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4334 AS FALSAS MEMÓRIAS NA RECONSTRUÇÃO DOS FATOS PELAS TESTEMUNHAS NO PROCESSO PENAL THE FALSE MEMORIES IN THE FACTS'S RECONSTRUCTION BY THE WITNESS IN THE CRIMINAL LAWSUIT Nereu José Giacomolli Cristina Carla di Gesu RESUMO O depoimento da testemunha resgata, na memória, a lembrança dos fatos ocorridos no passado, objetivando dar conhecimento ao julgador sobre aquilo já percebido, cumprindo uma função retrospectiva e recognitiva no processo penal. A fragilidade da prova testemunhal revela-se na dependência da recordação dos fatos, da memória da pessoa que os narra. O processo mnemônico não é fidedigno à realidade e a lembrança pode estar contaminada pelas falsas memórias. Além de uma boa aquisição e retenção da memória, é importante perceber, evitar e eliminar as falhas no momento da recuperação da lembrança das testemunhas, fontes de prova relevantes no processo penal. PALAVRAS-CHAVES: PROCESSO PENAL – PROVA TESTEMUNHAL – MEMÓRIA – FALSAS MEMÓRIAS. ABSTRACT The testimonial depoiment recalls, in the mind, the factual memory ocurried in the past, aiming to give knowledge to the judge about what has already been realized, fulfilling a recognitive and retrospective function in the criminal lawsuit. The fragility of the testimonial proof is revealed by its dependence on the rememorization of the facts, the memory of the person who tells the facts. The mnemonic process is not trustfull to reality and the recollection may be twisted by false memoried. Beyond a good acquisition and retention of the memory, it is important to perceive, avoid and eliminate the flaws in the moment of recalling the witness's memory, relevant proof's sources in the criminal lawsuit. KEYWORDS: CRIMINAL LAWSUIT – TESTIMONIAL PROOF – MEMORY - FALSE MEMORIED. Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

AS FALSAS MEMÓRIAS NA RECONSTRUÇÃO DOS FATOS … · Partimos da premissa de que o juiz é o destinatário da prova, pois a ele é feita a reconstrução dos fatos. Por isso, provar

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AS FALSAS MEMÓRIAS NA RECONSTRUÇÃO DOS FATOS PELAS TESTEMUNHAS NO PROCESSO PENAL

THE FALSE MEMORIES IN THE FACTS'S RECONSTRUCTION BY THE WITNESS IN THE CRIMINAL LAWSUIT

Nereu José Giacomolli Cristina Carla di Gesu

RESUMO

O depoimento da testemunha resgata, na memória, a lembrança dos fatos ocorridos no passado, objetivando dar conhecimento ao julgador sobre aquilo já percebido, cumprindo uma função retrospectiva e recognitiva no processo penal. A fragilidade da prova testemunhal revela-se na dependência da recordação dos fatos, da memória da pessoa que os narra. O processo mnemônico não é fidedigno à realidade e a lembrança pode estar contaminada pelas falsas memórias. Além de uma boa aquisição e retenção da memória, é importante perceber, evitar e eliminar as falhas no momento da recuperação da lembrança das testemunhas, fontes de prova relevantes no processo penal.

PALAVRAS-CHAVES: PROCESSO PENAL – PROVA TESTEMUNHAL – MEMÓRIA – FALSAS MEMÓRIAS.

ABSTRACT

The testimonial depoiment recalls, in the mind, the factual memory ocurried in the past, aiming to give knowledge to the judge about what has already been realized, fulfilling a recognitive and retrospective function in the criminal lawsuit. The fragility of the testimonial proof is revealed by its dependence on the rememorization of the facts, the memory of the person who tells the facts. The mnemonic process is not trustfull to reality and the recollection may be twisted by false memoried. Beyond a good acquisition and retention of the memory, it is important to perceive, avoid and eliminate the flaws in the moment of recalling the witness's memory, relevant proof's sources in the criminal lawsuit.

KEYWORDS: CRIMINAL LAWSUIT – TESTIMONIAL PROOF – MEMORY - FALSE MEMORIED.

Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

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1. Introdução

O presente trabalho tem por objetivo analisar a relação existente entre a prova testemunhal e a possibilidade de formação de falsas memórias na reconstrução dos fatos. Considerando a falência do monólogo científico, a prova testemunhal é abordada através de uma leitura interdisciplinar, diante da complexidade imposta pela pós-modernidade. A testemunha e a vítima de um delito se valem de suas recordações ao narrarem os fatos, tanto na fase pré-processual quanto na etapa processual, advindo daí a necessidade investigatória acerca do funcionamento da memória, não só pelo viés neurológico, mas também psicológico e social. Os estudos demonstram não ser o processo mnemônico fidedigno à realidade. Por isso, a lembrança não reconstrói os fatos como ocorreram na realidade. A reconstrução destes, no processo penal, prima pela prova careada aos autos através de testemunhas, circunstância que motiva o aprofundamento da investigação acerca dos fatores que influenciam nessa espécie de prova. Por conseguinte, pretende-se demonstrar que as falsas memórias e outros fatores de contaminação, podem macular a prova testemunhal, tão utilizada e valorada no processo penal brasileiro.

Partimos da premissa de que o juiz é o destinatário da prova, pois a ele é feita a reconstrução dos fatos. Por isso, provar significa convencer o julgador, induzi-lo ao convencimento de que o fato histórico ocorreu de um determinado modo, com aproveitamento de chances, liberação de cargas ou assunção do risco de uma sentença desfavorável por não fazê-lo.[1] Na realidade, os processos judiciais, como bem acentua Cordero, são máquinas retrospectivas, pois se faz mister verificar as hipóteses históricas formuladas pelas partes, isto é, dirigem-se a estabelecer algo já ocorrido e quem o realizou: “as partes formulam hipóteses; o juiz acolhe a mais provável, com base em determinadas normas, baseado em um conhecimento empírico oposto às fantasias de adivinhação, às êxtases intuitivas ou às cabalas de ciências ocultas” [2] Defende que “as funções narrativas pressupõem uma pessoa que emite, bem como destinatários, identificados ou não; a produção de textos, mais ou menos nítidos, verdadeiros ou falsos; é uma possibilidade própria do meio, que o narrador erre ou minta”.[3]

Assim, pelo fato de serem produtos humanos, as provas históricas não existem em estado natural. A palavra-chave da nomenclatura das ditas funções narrativas é a fé, ou seja, a crença pelo destinatário da prova acerca daquilo que está sendo dito. Isso porque “os locutores pretendem ser acreditados, e tudo o que dizem têm valor até quando os destinatários acreditam, de modo que o resultado depende de variáveis vinculadas a estados emotivos”.[4] Por mais credibilidade que o depoimento de uma testemunha possa transmitir, em se tratando de fé, sua adesão é sempre discutível, ou seja, a questão sempre será objeto de controvérsia por parte daquele que não foi convencido. O presente trabalho centra-se nesse meio probatório.

É imprescindível notar ser a prova testemunhal uma das poucas modalidades que permite a reiteração ou repetição em juízo, com exceção da prova antecipada e pré-constituída. Quanto às demais, discute-se a eficácia probatória, pois, segundo os princípios que regem a prova, somente a produzida em juízo tem entidade suficiente para afastar a presunção de inocência. O objetivo principal desse trabalho está voltado à prova testemunhal. Essa demonstra ser uma das modalidades mais frágeis de prova, na

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medida em que a recordação dos fatos depende da memória daquele que os narra. Além de o processo mnemônico não ser fidedigno à realidade, a lembrança ainda pode estar sujeita à contaminação de várias ordens, inclusive das falsas memórias.

No primeiro tópico o trabalho enfoca o funcionamento da memória, suas classificações, bem como a patologia decorrente das falsas memórias. Posteriormente, o estudo analisa alguns fatores de contaminação da prova testemunhal, tais como a forma de inquirição, o tratamento dispensado à testemunha, o decurso do tempo, o viés do entrevistador, a mídia e o subjetivismo do julgador.

2. A Memória e as Falsas Memórias

2.1 Memória

Antes de ser abordado, especificamente, o problema das falsas memórias, convém tecer algumas considerações acerca do funcionamento da memória.

A memória é definida como a faculdade de reter as idéias, as impressões e os conhecimentos adquiridos. Remete também à lembrança, à reminiscência. Segundo Izquierdo[5], a memória é a “aquisição, a formação, a conservação e a evocação de informações”, destacando a diferenciação entre aquisição e evocação, pois, enquanto a primeira pode ser também chamada de aprendizagem, na medida em que só se grava aquilo que foi apreendido, a segunda está relacionada à recordação, à lembrança, à recuperação. Literalmente “somos aquilo que recordamos”.[6] A ação e a comunicação estão relacionadas àquilo que é aprendido ao longo da vida e que está armazenado na memória. O complexo processo mnemônico é dividido, portanto, em três momentos: aquisição, retenção e recordação.

No que diz respeito à aquisição, Quecuty destaca que as recordações não são réplicas de acontecimentos percebidos, por serem limitados pela natureza do fato (tempo de observação, luminosidade, atenção aos detalhes, existência de violência, caráter estressante), e nem pelas próprias características e limitações da testemunha, tais como expectativas, estresse emocional, entre outros.[7]

Em um segundo momento, ou seja, na retenção, a informação é menos completa e exata, relacionando-se com o transcurso do tempo entre a observação do episódio e a recordação posterior, bem como com as informações obtidas após o fato. Nesses termos, dois fatores são de suma importância à deterioração da lembrança, segundo Yarmey: a) o intervalo de retenção (a diminuição da precisão da lembrança se deve ao esquecimento normal, o qual é mais rápido após a aquisição, tornando-se mais lento em seguida) e a informação após o ocorrido (durante esse intervalo, a testemunha está exposta a uma nova informação sobre o acontecimento presenciado, por exemplo: comentários posteriores de outras testemunhas criarão problemas para distinguir entre a informação original e a incorporada posteriormente). Freqüentemente, a informação posterior ao evento, recebida pela testemunha ou pela vítima, lhes é proporcionada durante a tomada da declaração pelo mesmo sujeito (policial) que a realizou. (...) as

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perguntas que obedecem a determinados interesses, parciais, baseadas em premissas falsas e em expectativas do entrevistador, podem distorcer, seriamente, a lembrança dos fatos, por uma testemunha. [8]

O processo de fixação definitiva da memória é chamado de consolidação. Esta, por sua vez, requer tempo e submete-se a numerosos agentes externos: “as memórias de longa duração não ficam estabelecidas em sua forma estável ou permanente, lodo depois de sua aquisição” .[9] Por isso, a neurologia destaca a possibilidade de modificação da memória no interregno entre a aquisição e a consolidação, devido à influência de fatores externos ao processo, o que nos leva a crer que no intervalo de tempo entre o acontecimento e o relato, seja ele extrajudicial ou judicial, pode também ocorrer alteração da lembrança da testemunha ou da própria vítima. O tempo e as informações pós-evento abrem uma brecha à formação de falsas memórias, na medida em que acabam por confundir a testemunha, a qual não distingue mais o evento original daquilo que foi incorporado depois.

O terceiro momento é representado pela recordação. Nessa fase é produzida a recuperação da informação armazenada na memória, o que pode ocorrer tanto com sucesso, ou com fracasso, devido a uma aquisição defeituosa ou ao próprio processo de lembrança em si. Assevera Quecuty que muitos dos fracassos que ocorrem na memória se devem à incapacidade de a pessoa recordar a informação, por uma aquisição defeituosa ou pela tarefa de lembrança em si mesmo. Entretanto, por não recordar algum aspecto do ocorrido não significa que este não esteja armazenado na memória, mas sim que, no momento, este não esteja acessível.[10]

No que concerne ao conteúdo, há dois grandes grupos de memórias, isto é, o da memória de procedimentos e o da memória declarativa. A memória procedural é aquela que tem capacidade ou habitualidade motora ou sensorial (atos motores ou concatenação de atos). Assim, conecta-se ao aprendizado de atividades como digitar um texto, andar de bicicleta, nadar, por exemplo. Pode, outrossim, ser subdividida em implícita (aquela adquirida de maneira mais ou menos automática, sem que o sujeito perceba claramente a aprendizagem, tal como ocorre com a língua materna) e explícita, a que se constitui em memória adquirida com plena intervenção da consciência. [11]

O segundo grupo, ou seja, o da memória declarativa é a que interessa ao presente trabalho, pois se refere à memória de fatos, eventos, de pessoas, de faces, de conceitos e de idéias. Aqui também há uma subdivisão em episódicas, relativas a eventos dos quais assistimos ou participamos, também chamadas de autobiográficas, e em semânticas, relacionadas aos conhecimentos gerais.

De fato, não há uma preocupação acentuada dos profissionais encarregados da investigação preliminar (inquérito policial, por exemplo) e da instrução processual acerca da psicologia do testemunho, principalmente no que se refere aos casos patológicos. De nada adianta uma boa aquisição e retenção da memória se houver falha justamente no terceiro momento, isto é, na recuperação da lembrança. Nesse sentido adverte Quecuty: sem uma boa atuação do encarregado da entrevista (inquirição), durante este último momento, de nada servem à testemunha as condições nas quais houve codificações e retenção.[12] Esse é o ponto nevrálgico da questão: produzir uma prova mais qualificada e, conseqüentemente, mais confiável, apta a convencer o

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julgador. Feitas essas considerações acerca da memória, passaremos a enfrentar, especificamente, o tema das falsas memórias.

2.2 As Falsas Memórias

Os estudos acerca das distorções da memória, realizados por Loftus[13], iniciaram nos anos setenta. Esses apresentaram resultados impressionantes e até mesmo assustadores, pois concluíram que a lembrança pode ser altamente manipulada a partir de informações errôneas sobre acontecimentos nunca vividos e também pode haver modificação dos fatos vivenciados. Loftus realizou centenas de experiências, com mais de vinte mil pessoas, a fim de constatar como a exposição a informações não verdadeiras distorce a memória. Averiguou, através de trabalho de campo, ser a desinformação capaz de modificar as lembranças de maneira previsível e até mesmo espetacular, nas situações mais cotidianas: “a informação errônea pode se imiscuir em nossas lembranças quando falamos com outras pessoas, quando somos interrogados de maneira evocativa, ou quando uma reportagem nos mostra um evento que nós próprios vivemos”.[14]

Apesar de nosso trabalho voltar-se à indução, importante esclarecer que as falsas memórias não giram apenas em torno de um processo inconsciente ou involuntário de “inflação da imaginação” sobre um determinado evento. Há tanto a possibilidade de as pessoas expostas à desinformação alterarem a memória de forma dirigida, quanto espontaneamente, ou seja, sem que haja sugestionabilidade externa. Os estudos de Stein e Pergher alertam para esse fator, fomentando a possibilidade da formação de uma falsa memória espontaneamente ou através de auto-sugestão. Explicam que “as falsas memórias são geradas espontaneamente, como resultado do processo normal de compreensão, ou seja, fruto de processos de distorções mnemônicas endógenas”.[15]

Sobre a implantação da falsa recordação, Loftus relata que a lembrança dos acontecimentos fictícios da infância possuem maior aceitação quando a fonte da informação foi esquecida e quando o participante se familiariza com os detalhes. Nesse sentido, destaca: “o fato de imaginar um acontecimento o torna mais familiar, e a familiaridade é então falsamente associada às lembranças da infância. Uma confusão como essa – esquecer a fonte de uma informação – pode ser típica de experiências infantis”.[16] Ainda conforme Loftus, “as falsas lembranças são elaboradas pela combinação de lembranças verdadeiras e de sugestões vindas de outras pessoas. Durante o processo, os participantes ficam suscetíveis a esquecer a fonte da informação. É um exemplo clássico de confusão de fonte, em que conteúdo e fonte estão dissociados”.[17]

A verificação da aludida indução ou sugestionamento é tão significativa que alguns participantes da pesquisa acabavam por lembrar acontecimentos ocorridos logo após o nascimento (lembrança dos móbiles do berço do hospital, das enfermeiras e das máscaras dos médicos), quando, na verdade, sabe-se que as “recordações ligadas ao primeiro ano de vida estão perdidas para sempre, sobretudo, porque o hipocampo, que desempenha um papel importante nos mecanismos da memória, não é suficientemente maduro nessa idade, para guardar lembranças recuperáveis na idade adulta”.[18]

Inclusive, nos testes, alguns participantes assinaram confissões de supostos danos em um computador, os quais nunca haviam praticado. Segundo Loftus, “Saul Kassin, da

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Universidade Williams, estudou as reações de indivíduos falsamente acusados de terem danificado um computador apertando uma tecla errada. Os participantes, inocentes no início, negavam a afirmação, mas depois de terem sido confrontados com um cúmplice do experimentador que afirmava tê-los visto fazer isso, vários deles assinaram confissões e terminaram por descrever, de maneira detalhada, o ato que não haviam cometido”.[19]

A assunção de culpa, inclusive a confissão por escrito, fornece bem a dimensão do problema, isto é, de quanto as pessoas podem ser induzidas a relatar acontecimentos não experimentados. Para o processo, a possibilidade de uma testemunha ou vítima fornecer um relato não verdadeiro, a partir da falsificação da recordação, compromete, integralmente, a confiabilidade do testemunho, gerando um imenso prejuízo ao imputado.

Não se pode afastar a tendência daquele que toma os depoimentos em explorar unicamente a hipótese acusatória, induzindo os questionamentos, fruto do modelo inquisitorial, bem como do despreparo dos profissionais para lidar com essa situação. Mais preocupante é que, na maioria das vezes, diante da ausência de outros elementos probatórios, o julgador emite um juízo com base unicamente na palavra do(a) ofendido(a). Não se trata de por em descrédito essa prova, mas em demonstrar que, dependendo do contexto, ela não é suficiente para afastar a presunção de inocência.

A ausência de resquícios materiais, os quais poderiam desmentir a falsificação da lembrança, gera a problemática de desvendar o que de fato ocorreu, diante da “contaminação” do contexto no qual a prova foi produzida. Esse poderá ocorrer pelo induzimento realizado por parentes, por amigos, por policiais ou julgadores, ao formularem os seus questionamentos, bem como pela mídia, devido à notoriedade do caso. Igualmente, há uma estreita relação entre a memória e a emoção, considerando que os maiores reguladores da aquisição, da formação e da evocação das memórias são justamente as emoções e os estados de ânimo, somados, é claro, aos níveis da consciência. Com efeito, “nas experiências que deixam memórias, aos olhos que vêem somam-se o cérebro que compara e o coração que bate acelerado. No momento de evocar, muitas vezes, é o coração quem pede ao cérebro que lembre, e, muitas vezes, a lembrança acelera o coração”.[20] Além disso, quando estamos alerta e com bom ânimo, facilmente apreendemos ou evocamos algo; o mesmo não se pode dizer quando se está estressado, cansado ou deprimido, pois nesses estados de ânimo é mais difícil a apreensão de qualquer coisa”.[21]

A percepção deixa lacunas, adquirindo maior relevo as imagens mais emocionantes e a memória, devido à sua dinamicidade, acaba por descolorir essas imagens. Falando em metáforas, os detalhes percebidos vão se desvanecendo ao longo do tempo, restando apenas a “ossatura” de uma recordação, assemelhada a uma radiografia ou a uma árvore despida de folhagem. A imagem “esquelética”, ao ser evocada é revestida, inconscientemente, com detalhes não vivenciados.[22] O perigo reside em forçar uma testemunha ou a própria vítima a relatar detalhes acerca do fato delituoso ou a identificar o suspeito quando, na verdade, o depoimento foi vago e impreciso, portanto “esquelético”.

Nessa senda, importante lembrar que nem todas as pessoas expostas à indução adotam integral ou parcialmente uma falsa memória, assim como não é qualquer tipo de

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história, contada e reiterada, que é capaz de gerar a aludida falsificação. Enfatizamos, especialmente, o depoimento infantil, pelo simples fato de as crianças serem mais vulneráveis à indução, conforme a observação casuística e os estudos de experimentação. A tendência infantil vai, justamente, no sentido de corresponder às expectativas do que deveria acontecer, bem como às expectativas do adulto entrevistador.

Nessa senda, Binet[23] averiguou numerosos erros involuntários de crianças submetidas a testes de recordação, concluindo que “o grau de sugestionabilidade das crianças mais jovens é significativamente mais alto, em razão de dois fatores diferentes: (a) cognitio ou auto-sugestão, porque a criança desenvolve uma resposta segundo sua expectativa do que deveria acontecer; (b) e outro social, que é o desejo de se ajustar às expectativas ou pressões de um entrevistador”. Isso demonstra a fragilidade da memória infantil, em termos de sugestionabilidade.

No ponto, lançamos, ainda, alguns aspectos comprometedores do testemunho infantil explicitados por Altavilla, tais como o desenvolvimento fisiopsicológico, a percepção, a imaginação, a emotividade, a atenção, a memória, o egocentrismo, a distância e o intervalo de tempo, a sugestão, a sinceridade impulsiva, as mentiras e os erros, a vaidade e a curiosidade. Ainda, segundo o autor, a criança tem facilidade para descobrir a opinião do entrevistador, devido à sua grande intuição, o que vem a perturbar o que ela efetivamente sabe.[24] Além disso, Pisa e Stein, através de vasta revisão bibliográfica sobre o tema, alertam para o fato de que a obtenção de informações fidedignas de crianças acerca de delitos é tarefa bastante árdua, pois “(1) as crianças não estão acostumadas a fornecer narrativas elaboradas sobre suas experiências; (2) a passagem do tempo dificulta a recordação dos eventos; e, (3) pode ser muito difícil reportar informações sobre eventos que causam estresse, vergonha ou dor”. [25]

Na verdade, há um alerta generalizado, não à confiabilidade, mas sim à credibilidade do depoimento infantil. Com isso não se quer retirar o valor das declarações das crianças até mesmo porque, embora com algumas restrições, o artigo 208 do Código de Processo Penal permite que menores prestem o seu depoimento. O alerta feito no presente trabalho, tanto no que concerne ao depoimento das testemunhas em geral, quanto dos menores, diz respeito à exatidão das declarações, a fim de se obter uma prova com maior qualidade técnica. Por isso, é importante analisar o tratamento recebido pela prova testemunhal no Código de Processo Penal.

3. Fatores de Contaminação da Prova Testemunhal

O presente trabalho é voltado às provas históricas ou narrativas, por ser a prova produzida no processo, eminentemente testemunhal. Milhares de feitos são julgados com base unicamente nos ditos das vítimas ou das testemunhas, aliados a um indício qualquer. A prova oral, muitas vezes, é a única a embasar não só a acusação, como também a condenação, diante da ausência de demais elementos. Isso nos faz lembrar a afirmação de Bentham: “as testemunhas são os olhos e os ouvidos da justiça”.[26]

No processo penal, a problemática centra-se tanto no momento da produção da prova testemunhal, quanto antes dela, pois sua colheita, muitas vezes, não observa qualquer

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tipo de critério ou técnica, em busca da “verdade” sobre um determinado acontecimento. O problema não está na adjetivação, ou seja, se é “real” ou “processual”, mas no próprio substantivo “verdade”, na medida em que a abandonamos como escopo do processo acusatório. Neste ínterim, alertamos para a necessidade urgente deste meio de prova ser obtido com maior qualidade técnica. Os constrangimentos sofridos pela prova ao serem trazidas ao processo, muito embora influenciem na produção desta, configuram-se na garantia do cumprimento das regras do jogo, ou seja, à observância ao devido processo legal. Atuam como verdadeiros filtros processuais, não permitindo a utilização de provas ilícitas, o que jamais poderia ser tido como um fator negativo.

É claro que o “ideal” seria a colheita e a análise da prova totalmente despida dos riscos endógenos (internos) e exógenos (externos) ao processo. Contudo, isso está fora de cogitação, pois as pessoas não vivem em uma redoma de vidro, completamente isoladas das influências externas ou estanques às modificações no tempo. E mesmo que assim fosse, a própria memória e a imaginação poderiam trair a idéia de representação exata do acontecimento. Nesse sentido, a percepção de um determinado evento está eivada de interpretações, ou seja, de conhecimentos prévios e de interferências prováveis sobre aspectos da situação não percebida e não atendida por completo. Além disso, relembra Loftus [27] que a memória é armazenada em fragmentos e ao tentar recuperá-la contamos apenas com fragmentos e com base neles reconstruímos o evento inicial. No caso da sugestão falsa, é mais um fragmento armazenado e, no momento da recuperação, sua resposta depende dos fragmentos armazenados disponíveis.

Fazendo-se alusão à contaminação a que está sujeita à memória, ao passar para o campo da consciência, a sensação acaba por penetrar num ambiente profundamente complexo, “repleto de recordações, emoções e outras sensações vindas de todos os pontos do organismo; e no meio de tantos e tão variados movimentos, a sensação simples é arrastada, sufocada e transformada numa sensação consciente infinitamente complexa”.[28]Além do processo mnemônico e das falsas memórias, destacamos, entre uma gama de fatores de contaminação da prova, o transcurso do tempo, a mídia, o viés do entrevistador e o subjetivismo do magistrado. Porém, antes de analisarmos especificamente esses fatores contaminantes, se faz mister tecer algumas considerações acerca da nova sistemática de colheita da prova testemunhal e da objetividade como é tratada a testemunha no processo.

3.1 Considerações Acerca do Cross Examination

A modificação trazida pela Lei nº 11.690, de 9 de junho de 2008, alterando a redação do artigo 212 do Código de Processo Penal adaptou-se, em parte, às regras do sistema acusatório, ao prever que as perguntas serão formuladas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiveram relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida. Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.A antiga redação do aludido artigo (as perguntas das partes serão requeridas ao juiz, que as formulará à testemunha), demonstrava um claro resquício inquisitorial, pois os questionamentos não eram formulados pelas partes diretamente aos depoentes. Na (re)formulação das perguntas e na transcrição do depoimento ocorria um “filtro” ou uma interpretação daquilo que havia sido dito pela testemunha.

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A principal característica diferenciadora do modelo acusatório em relação ao inquisitório esta na gestão da prova. Isto significa que, se a gestão probatória estiver a critério do julgador (juiz instrutor), o princípio informador[29] do sistema é o inquisitivo; de outra banda, se a gestão da prova estiver a cargo do órgão acusador, o princípio informador é o acusatório. Nesse último, o juiz deve permanecer inerte, em posição de alheamento, mesmo quando as partes não tenham aproveitado suas chances, liberando-se de suas cargas processuais, isto é, produzindo uma prova incompleta. O magistrado deve decidir com base naquilo que foi produzido nos autos – preço a ser pago pelo modelo acusatório, resignando-se com a atividade incompleta ou insuficiente das partes em relação à prova – e, em caso de dúvida, deverá proferir decisão absolutória.

O sistema adotado pela legislação processual brasileira assemelha-se ao cross-examination norte-americano, pois, em ambos, a acusação e a defesa formulam os questionamentos diretamente às testemunhas, as quais também ficam sujeitas ao contra-interrogatório da parte adversa; entretanto, diferindo-se deste porque a inquirição não é tarefa exclusiva das partes. O processo penal brasileiro não limitou a atuação do juiz, no sentido de somente presidir o ato, permitindo-lhe a faculdade de complementar a inquirição acerca dos pontos não esclarecidos. Da mesma forma, a modificação também se aproximou daquilo que os italianos chamam de esame incrociato (perguntas cruzadas). Nessa senda, a testemunha é submetida a interrogatório pela parte que a requereu e a contra-interrogatório pela parte adversária. As perguntas são formuladas diretamente pelas partes ao depoente. No processo penal italiano, somente o exame das testemunhas menores será conduzido pelo juiz, a não ser que este entenda que também devam ser submetidas ao interrogatório cruzado. O juiz pode se valer da ajuda de um familiar do menor ou de um perito em psicologia infantil durante a oitiva. No Brasil, em especial no Estado do Rio Grande do Sul, houve a implantação, em algumas comarcas gaúchas, do Depoimento sem Dano, para a oitiva de menores vítimas de delitos sexuais. O destaque deste tipo de procedimento está na produção propriamente dita da prova pelas partes, bem como na proibição de qualquer meio prejudicial à autenticidade das respostas, tais como induções, seduções, e as pressões contaminantes, por exemplo.

De suma importância ao estudo das falsas memórias é o fato de a legislação processual vedar as perguntas prejudicais à sinceridade das respostas, isto é, proibir a parte que postulou a oitiva da testemunha a formulação de perguntas sugestivas às respostas, cabendo ao juiz fiscalizar a produção desta prova.

Como bem adverte Cordero, os diálogos diretos desenvolvem tensões agônicas, desconhecidas no procedimento unipessoal; os examinadores contrários se propõem a destruir os ditos desfavoráveis e, nesse caso, derrubam a antiga proibição das perguntas ilícitas sugestivas. Mesmo que o julgador reprima determinados abusos e dirija o diálogo, através da indicação de possíveis temas a serem abordados, faz parte do jogo qualquer movimento que venha a desacreditar as testemunhas adversárias. [30] Ademais, a gestão da prova testemunhal foi colocada nas mãos das partes, cabendo a estas produzir a prova de modo a convencer o julgador. Com efeito, a acusação tem o encargo de provar a responsabilidade criminal do imputado e, dessa forma, quebrar a presunção de inocência. Ao réu não incumbe dever probatório, pois a seu favor milita a presunção de inocência, podendo valer-se do direito ao silêncio, sem que isso venha em seu prejuízo. Contudo, poderá aproveitar uma chance probatória, minimizando os riscos de uma sentença desfavorável (condenatória). O interesse pode estar em demonstrar que

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ele não foi o autor, que o fato não ocorreu, o seu álibi, que a qualificação jurídica não é adequada, além das defesas processuais. O interesse da defesa estará satisfeito na criação da dúvida razoável no espírito do julgador, em tornar crível sua alegação.[31]

Ocorre que, mesmo sendo o julgador o destinatário da prova, o magistrado deve manter a sua posição de alheamento, isto é, de garantidor, a fim de conservar o equilíbrio processual na colheita da prova. Portanto, nem subsidiariamente ou supletivamente pode o magistrado interferir na proposição e busca da prova, pois o encargo probatório é das partes. Ademais, em que pese o ganho com a previsão legislativa acerca da inadmissibilidade das perguntas sugestivas, nada se questiona sobre a vantagem da realização de um relato livre da testemunha antes das perguntas das partes. Quanto mais abrangente o relato, mais fidedigno ele será, embora não ofereça muitos detalhes.

De qualquer modo, a vedação da indução às respostas das testemunhas pode evitar à formação de falsas memórias, ponto fundamental do nosso trabalho. Trata-se de uma patologia presente na realidade processual, a qual sequer é trabalhada com mecanismos de controle. Cumpre-nos mostrar a existência da problemática e apontar algumas possibilidades de redução dos danos, diante da impossibilidade de outra solução.

3.2 A Objetividade no Tratamento da Testemunha

A redação do artigo 213 do Código de Processo Penal desconsidera a subjetividade da testemunha ao captar o acontecimento, considerando-o como um ato totalmente objetivo. Assim prevê: o juiz não permitirá que a testemunha manifeste suas apreciações pessoais, salvo quando inseparáveis da narrativa do fato. Elementar a advertência do magistrado no sentido de a testemunha se ater ao fato, evitando inúmeras folhas de transcrições de narrativas que não interessam ao feito, como comumente se vê na prática, bem como que “filtre” os excessos de adjetivações. Entretanto, por mais prudentes, íntegras e equilibradas que sejam as testemunhas, indenes a fatores perturbadores, não há como estabelecer se aquilo que está sendo dito é isento de qualquer interesse ou paixão.

A prova testemunhal deve ser tratada como uma questão subjetiva, a começar pelo fato de os relatos serem em primeira pessoa. Por isso, procede a crítica de Cordero à forma como a testemunha é referida pela lei. A objetividade da testemunha, exigida pelas normas, parece ilusória aos que consideram a interioridade neuropsíquica. Já, o aparelho sensorial escolhe os possíveis estímulos, codificados segundo modelos relativos aos indivíduos, as impressões integram uma experiência perceptiva, cujos fantasmas variam no processo mnemônico, tanto mais se a lembrança não é espontânea, mas solicitada, como ocorre com as testemunhas. Por último, convertido em palavras, o manipuladíssimo produto mental surge como enunciado factual ou de fato. Esse labirinto cognoscitivo, semântico, exposto a mil variações, induz a desconfiar das testemunhas.[32]

A crítica feita ao dispositivo legal concerne à falta de apreço acerca da interioridade mental da testemunha que, no dizer de Cordero [33], é uma hipótese, no mínimo, ingênua. Nesse sentido é a censura do processualista italiano acerca de sua legislação, em especial do artigo 194.3 do Código de Processo Penal, justamente porque este, do mesmo modo que a nossa previsão legal pressupõe a captação objetiva dos acontecimentos por parte do aparato sensorial, fazendo com que a memória os armazene

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como imagens sobre uma película ou sons gravados, em total desconsideração à complexidade e aleatoriedade da operação.

Acerca do funcionamento da memória, Antônio Damásio assevera que as imagens não são permanentemente retidas na memória, sob a forma de miniaturas ou microfilmes, pois qualquer tipo de “cópia” geraria problemas de capacidade de armazenamento, devido à imensa gama de conhecimentos adquiridos ao logo da vida. Segundo ele, “as imagens não são armazenadas sob forma de fotografias fac-similares de coisas, de acontecimentos, de palavras ou de frases. O cérebro não arquiva fotografias Polaroid de pessoas, objetos, paisagens; não armazena fitas magnéticas com música e fala; não armazena filmes de cenas de nossa vida; nem retém cartões com ‘deixas’ ou mensagens de teleprompter (...) Se o cérebro fosse uma biblioteca esgotaríamos suas prateleiras à semelhança do que acontece nas bibliotecas”. [34]

Ademais, conforme já referimos, a evocação da memória está relacionada à idéia de “representação aproximativa”, em clara oposição à concepção de que a memória é essencialmente reconstrutiva. Sempre que se recorda de um dado objeto, um rosto ou uma cena, não se obtém uma reprodução exata, mas uma interpretação, uma nova versão, reconstruída do original. Além disso, na medida em que a idade e a experiência se modificam, as versões da mesma coisa evoluem.[35]Nunca é demais alertar que o aparato perceptivo tem uma capacidade limitada e trabalha seletivamente. A captação de estímulos não é integral. Isto quer dizer que a pessoa exposta “a estímulos simultâneos capta aqueles a respeito dos quais está adaptado (...) e muito depende do estado emotivo (por exemplo, alarmes ante o perigo). Os dados sensoriais não são percepções, já que somente chegam a ser mediante uma tarefa classificatória automática, e, portanto, inconsciente; e ao variarem os modelos, alteram-se as figuras; e seria coisa assombrosa se o médico, o quiromante, o botânico, vissem a mesma face na mesma pessoa.[36]

Adverte Izquierdo não ser a lembrança igual à realidade: “a memória do perfume da rosa não nos traz a rosa; a dos cabelos da primeira namorada não a traz de volta, a da voz do amigo falecido não nos recupera o amigo”, considerando haver um passe de prestidigitação cerebral nisso: “o cérebro converte a realidade em códigos e as evoca por meios de códigos.”[37] Isso é um alerta à problemática posta em questão, a qual é praticamente ignorada pelos atores processuais e pela dogmática processual. Assim, a lembrança da testemunha acerca do fato delituoso não é capaz de reconstruí-lo da mesma forma como ocorreu na realidade; o estudo da percepção, do mesmo modo, seja pelo viés filosófico, antropológico ou psicológico, justifica a tese da impossibilidade de reconstrução do “todo”. A verdade está no todo, não na parte, e o todo é demais para nós, já dizia Carnelutti.[38] Também, o ideal de “busca da verdade” no processo, se revela deficitário, pois entre a realidade das experiências e a formação da memória e, entre essa e a posterior evocação, há um processo de tradução.

São inafastáveis as perdas ocorridas nesse processo de tradução, pois traduzir não quer dizer apenas verter de um código a outro, ou trair, como preferem os italianos (traduttore = traditore, para denotar as perdas), mas também, segundo Izquierdo[39], transformar. Ao reter e conservar a memória, o cérebro acaba por transformar a realidade, modificando-a, circunstância que demonstrar o sério risco a que está submetida a solução do processo penal, ao utilizar quase que exclusivamente a prova testemunhal. Ademais, a atividade sensorial é determinada pela potencialidade dos sentidos para perceber os estímulos. Isso quer dizer que a “realidade exterior” chega ao

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nosso “eu” tal como os órgãos dos sentidos a apresenta e, o mais importante de tudo, variando não só de indivíduo para indivíduo, mas também em relação ao mesmo indivíduo nos diversos momentos de sua existência.[40] A percepção é relativa, tendo maior ou menor potencialidade conforme as razões fisiológicas ou do meio: “ouve-se melhor à noite; vê-se com mais exatidão depois de ter descansado do que quando se está fatigado”.[41] Isso, insofismavelmente, corrobora o alerta à credibilidade do testemunho.

Para Merleau-Ponty[42], nossos olhos são muito mais que receptores das luzes, das cores e das linhas. Há um “terceiro olho”, um olhar de dentro que vê os quadros e as imagens mentais. Entretanto, mesmo levando-se em conta as concepções do real e do imaginário, a percepção, ainda assim, é incompleta. Nesse sentido, falta ao olho condições de ver o mundo e falta ao quadro condições de representar o mundo. Nas palavras do próprio autor: “o olho vê o mundo, e o que falta ao mundo para ser quadro, e o que falta ao quadro para ser ele próprio, e, na paleta, a cor que o quadro espera; e vê, uma vez feito, o quadro que responde a todas essas faltas, e vê os quadros dos outros, as respostas outras a outras faltas”.[43] O olho é um instrumento que se move por si mesmo, meio que inventa seus fins, o olho é aquilo que foi comovido por um certo impacto do mundo e que o restitui ao visível pelos traços da mão. Disso emerge o ideal de verdade do processo, de impossibilidade de reprodução do fato da maneira como ocorreu no passado. O processo penal não pode ficar alheio a essa situação, pois em qualquer das esferas, é ressaltada a impossibilidade de totalidade. Sob o viés filosófico da percepção de Merleau-Ponty, e sob o prisma da antropologia de Durant, sustenta-se a tese de Carnelutti de que o todo é demais para os humanos.

Da metáfora do quadro e do pintor, que não tem condições de representar o mundo através da tela, em razão de sua percepção parcial, até mesmo pela posição em que se encontra (vertical), é que se extrai a impossibilidade de a testemunha retratar a integralidade do acontecimento, em nome de uma “verdade real”. O mundo do pintor é “visível” através da tela, meio pelo qual interage, tal como o depoimento consubstanciado no papel; contudo, tanto o pintor quanto o depoente, retratam uma realidade aparentemente “completa” que, em relação ao todo, é apenas parcial. A pintura dá existência ao que a visão profana crê invisível.[44] A testemunha exterioriza aquilo que crê, reproduz o fato através da fala. Isso tudo gera um alerta: a falibilidade do testemunho.

Os riscos são multiplicados no processo penal, considerando não haver nenhuma regra processual capaz de determinar até onde as testemunhas merecem crédito. A credibilidade da prova testemunhal dependerá do contexto probatório e de quanto persuadiu o julgador, pois, desde o abandono do tarifamento probatório, nenhuma prova tem valor específico. Através da motivação da decisão poderá ser realizado um controle de determinado depoimento e de como contribuiu à emissão de um veredicto.

3.3 DO Transcurso do Tempo

Estreita é a relação entre o tempo e o direito, na medida em que “o tempo cria e mata o direito e o direito produz a duração do tempo”.[45] Em se tratando de prova penal e duração razoável do processo, comporta o seguinte questionamento: a aceleração e o ritmo social de uma sociedade complexa influem na formação da memória? A coleta da

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prova em um prazo razoável aumenta a sua confiabilidade? Afinal, qual o prazo razoável para a produção da prova?

A Constituição Federal garante, em seu artigo 5º, LXXVIII, a razoável duração do processo, a qual faz alusão tanto às dilações indevidas – demora excessiva da tramitação do feito – quanto à rapidez demasiada do julgamento. No sentido da afirmação de Lopes Jr. e Badaró, “embora o processo não seja um instrumento apto a fornecer uma resposta imediata àqueles que dele se valem, isto não pode levar ao extremo oposto de permitir que tal resposta seja dada a qualquer tempo. Se o processo demanda tempo para sua realização, não dispõe o órgão julgador de um tempo ilimitado para fornecer a resposta pleiteada”.[46] O processo não pode demorar demais – para não se configurar em negação à jurisdição –, mas, por outro lado, também não pode ser julgado imediatamente, pois deve respeitar, além da maturação do ato de julgar, as garantias fundamentais do contraditório, da ampla defesa, da presunção de inocência, da motivação das decisões judiciais, entre outras. E a observância de tais princípios está vinculada, necessariamente, à qualidade técnica da prova, coletada com maior confiabilidade se feita dentro de um prazo razoável.

Com efeito, o transcurso do tempo é fundamental ao esquecimento, pois além de os detalhes dos acontecimentos desvanecerem-se no tempo, a forma de retenção da memória é bastante complexa, não permitindo que se busque em uma “gaveta” do cérebro a recordação tal e qual ela foi apreendida. E, a cada evocação da lembrança, esta acaba sendo modificada. A memória opera efetivamente a partir do presente, tal como o paradoxo apontado por Ost e confirmado por Virilio, conservando-se na memória tão-somente aquilo que é reconstruído, a velocidade e a instantaneidade dos acontecimentos, aliada ao decurso do tempo, não permitiriam a recordação, isto é, a fixação dos fatos na memória. Por isso, a prova há de ser colhida em um prazo razoável.[47]

Através do estudo da memória, não só pelo aspecto neurológico, mas principalmente pelo viés social, compreendemos que a aceleração e o ritmo de uma sociedade complexa influem na formação da memória, pois a velocidade dos acontecimentos, muitas vezes, não permite que os fatos sejam fixados na memória, a qual requer tempo para a consolidação e posterior evocação. Destarte, diante da conflituosa relação entre tempo/memória e esquecimento, respondemos afirmativamente ao questionamento antes proposto, no sentido de a coleta da prova em um prazo razoável aumentar sua confiabilidade, ou, pelo menos, minimizar os danos em relação à falsificação da lembrança. Para isso, pensamos em uma equação simples: quanto menor o intervalo de tempo entre o fato delituoso e as declarações das vítimas e das testemunhas, menor será a possibilidade de haver esquecimento e menor a possibilidade de influências externas. Tudo isso aliado a uma entrevista forense (inquirição) realizada com qualidade. A complexidade está em estabelecer qual seria este prazo. Trata-se do difícil equilíbrio do ciclista – não pode correr de mais para não cair –; em contrapartida, também não deve andar devagar demais, para evitar as quedas. Em termos processuais, não há como acelerar demais o procedimento, a fim de evitar o atropelo das garantias, mas, em contrapartida, também não há como demorar muito, para não cair no esquecimento.

Um dos defensores da necessidade da estipulação legal de um prazo máximo de duração do processo é Pastor.[48] Entretanto, também refere não ter o aludido prazo que ser necessariamente único. Isso porque alguns casos requerem uma duração mais

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prolongada (dentro da razoabilidade temporal máxima permitida) e outros, pela sua simplicidade, não. A determinação legal no sentido de que a instrução deva ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) e 30 (trinta) dias, respectivamente, aos ritos ordinário e sumário, conforme a redação dada aos artigos 400 e 531 do Código de Processo Penal, pela Lei 11.719/2008, gera um novo e inevitável questionamento. O prazo legal extremo de fixação da instrução é o mais adequado?

Embora, em tese, a tomada dos depoimentos em tempo exíguo, por um lado, favoreça à memória, evitando o esquecimento, por outro, gera uma série se inconvenientes. Em primeiro lugar, na prática, a observância dos aludidos prazos quiçá seja inoperante, devido à dificuldade de data para pauta dos magistrados de primeira instância. Em segundo lugar, os aludidos prazos desconsideram a complexidade dos casos, o número de fatos e de réus, entre outros fatores e, em terceiro plano, não há uma sanção para eventual descumprimento. Um prazo meramente ordenatório[49], isto é, despido de conseqüências processuais em caso de eventual descumprimento, não se reveste de qualquer eficácia.

Afora isso e, a nosso ver, um dos principais inconvenientes, muito embora se viabilize a duração máxima à designação da instrução, outro ponto fundamental diz respeito à perda da qualidade da colheita da prova, devido à reunião de muitos atos processuais em uma só audiência. Dificilmente se pode conferir qualidade técnica à prova oral, com a utilização da técnica da entrevista cognitiva no mesmo momento processual em que são tomadas as declarações do ofendido, inquiridas todas as testemunhas arroladas, tomados os esclarecimentos dos peritos, feitas as acareações e os reconhecimentos de pessoas e coisas, interrogado o acusado e colhidas as alegações finais. A previsão legal é de uma audiência una, mas, acima da formal simplificação dos procedimentos está a qualidade dos depoimentos e a constituição de um processo penal ético.

A concentração dos atos processuais estaria submetida a menores eventualidades e evitaria o “tempo morto”[50] do processo nas prateleiras dos cartórios e dos gabinetes. A determinação legal de um prazo à instrução evitaria a manipulação judicial, ou seja, o decisionismo e as arbitrariedades, da razoabilidade da duração dos processos[51]. Entretanto, há que ser considerado que a produção da prova oral restaria prejudicada nos termos em que proposta. Assim, se por um lado minimizaria o dano em relação ao lapso temporal, por outro, reduzir-se-ia a qualidade na colheita dos depoimentos.

3.4 O Viés do Entrevistador

Através da entrevista (intervenção verbal entre duas pessoas), o entrevistador busca no entrevistado a obtenção de informações específicas acerca de determinado evento. Considerando ser a inquirição das vítimas e das testemunhas de um fato delituoso, o componente mais importante das investigações e o principal elemento de prova no processo criminal, é crucial à avaliação da confiabilidade desses relatos ao estudo acerca da linguagem e da metodologia utilizados pelo entrevistador[52]. A exatidão das declarações, principalmente no que concerne ao testemunho infantil, pode ser seriamente maculada, em razão do modo como a criança é inquirida e em função de seu alto grau de sugestionabilidade, fomentando a formação de falsas memórias. Com efeito, as crianças são mais suscetíveis à falsificação da lembrança.

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O crescente número de acusações por delitos sexuais, comumente praticados na clandestinidade e sem evidências materiais, fomentou os estudos sobre o modo como as entrevistas são conduzidas. A partir disso, os pesquisadores passaram a sugerir que, muitas vezes, as respostas das crianças aos questionamentos dos adultos refletiam o que elas pensavam que o adulto queria ouvir, correspondendo às expectativas do adulto entrevistador, ao invés de relatarem suas lembranças, sendo, portanto, infiéis ao fato efetivamente ocorrido. Também, constatou-se que as crianças raramente respondem não saber sobre o que estão sendo questionadas ou assumem não entender a pergunta, em franca tentativa de cooperação com o adulto. Ademais, a repetição de um mesmo questionamento é interpretada pela criança como forma de fornecer novas informações, por não ter dado uma resposta correta e, buscando ser mais agradável e sociável, mudam a resposta.[53]

3.5 A Mídia

Não podemos afastar o fato de as notícias postas nos jornais, após o acontecimento do delito, influenciarem as pessoas envolvidas no cenário de um determinado processo, devido a sua carga de sensacionalismo e emotividade. Carnelutti acentuava o fato de o crime ser também uma forma de diversão para “a cinzenta vida quotidiana”. A investigação de um delito, além de “dolorosa necessidade social”, também passou a ser uma espécie de entretenimento. Nessa senda, segundo o autor, há uma verdadeira degeneração do processo penal, na medida em que cada delito desencadeia uma onda de busca, de conjunturas, de informações, de indiscrições. Assim, “policiais e magistrados, de vigilantes se tornam vigiados pela equipe de voluntários prontos a apontar cada movimento, a interpretar cada gesto, a publicar cada palavra deles. As testemunhas são encurraladas como lebres de cão de caça; depois, muitas vezes sondadas, sugestionadas, assalariadas. Os advogados são perseguidos pelos fotógrafos e pelos entrevistadores. E, muitas vezes, infelizmente, nem os magistrados logram opor a este frenesi a resistência requerida pelo exercício de seu austero mister”.[54]

Não é à toa que os telejornais ocupam grande parte da sua programação com notícias acerca de crimes, quando não insistem, por semanas, em divulgar todas as etapas da investigação de um mesmo caso (como o foi, por exemplo, com a morte da menina Isabela, supostamente jogada do 6o andar do prédio onde morava o pai e a madrasta) ou alguma operação da Polícia Federal (Operação Rodin, Satiagraha, por exemplo). A mídia acaba familiarizando a população com as investigações policiais, com as decisões acerca de buscas e apreensões, prisões cautelares, concessões de liminares e hábeas corpus, entre outras, induzindo-a, sempre de forma parcial (apenas trechos são revelados), sem que se tenha conhecimento acerca da realidade que foi careada ao processo, gerando um imenso grau de contaminação. O cenário imposto pela mídia pode confundir a testemunha sobre aquilo que efetivamente percebeu no momento o delito, com o que leu sobre o fato ou com o ouviu posteriormente. Carnelutti ressalta, ainda, ser a testemunha um ser humano e não um documento, sendo seu depoimento eivado de subjetivismos e juízos de valor: “um homem com seu corpo e com sua alma, com seus interesses e com suas tentações, com suas lembranças e com seus esquecimentos, com sua ignorância e com sua cultura, com sua coragem e com seu medo. Um homem que o processo coloca numa posição incômoda e perigosa,

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submetido a uma espécie de requisição para a utilidade pública, afastando de seus afazeres e sua paz, pesquisado, espremido, inquirido, suspeitado”.[55]

Na verdade, Carnelutti chama a atenção para um problema que não é novo. O crime não importa somente para o Estado e para os envolvidos, sendo do interesse de todos, pois se tornou uma forma de divertimento. E, na medida em que as notícias ou comentários sobre o fato delituoso aumentam, também maior será o risco de sugestionamentos e contaminações da prova. Disso resulta mais uma vez a necessidade de a prova ser produzida em um prazo razoável pois, quanto mais o tempo passa, maior será o grau de contaminação da testemunha pela mídia (nos casos de grande repercussão). Destarte, a exatidão da recordação pode ser gravemente afetada pela influência de fatos sabidos posteriormente através da televisão e dos jornais, sem falar nos comentários de familiares e vizinhos.

3.6 O Subjetivismo do Julgador

Do magistrado espera-se a imparcialidade, como pressuposto de validade da decisão, inclusive, colocando sob suspeição e impedimento os atos processuais no desempenho da função jurisdicional que maculem essa ordem. Elementar que a atuação do juiz como um terceiro imparcial, eqüidistante das partes, não se estenda a outros profissionais, tais como ao órgão acusador, aos assistentes sociais, aos médicos, aos psicólogos, aos policiais, entre outros, na medida em que ao julgador cumpre o papel de garantidor dos direitos fundamentais.

Contudo, imparcialidade não é sinônimo de neutralidade. Esta diz respeito à projeção das experiências, dos sentimentos, das vivências pessoais do magistrado sobre o processo, configurando-se a neutralidade em um mito. Neste ínterim, seria utópico pensar a prolação de decisões judiciais dissociadas de valores sociais, de paradigmas históricos, filosóficos e psicológicos. O magistrado poderá proferir sentença formalmente imparcial, por não ser parte, sem que isso, de longe, suprima sua neutralidade subjetiva no processo, isto é, “aquela projetada sobre o processo que diz das vivências pessoais do juiz, seus gostos e desgostos, suas paixões, seu eu, seu modo de ser no mundo, pois o sentido da compreensão não acontece sem a sobreposição sobre o objeto a ser analisado, sem a vivência do ser com seu entendimento singular, pousado sobre a realidade”. [56]

O juiz não é a mero reprodutor de textos legais, resumindo-se tão-somente a dar uma solução ao problema a partir da simples aplicação do fato à norma, traduzida na singeleza do silogismo. Ao sentenciar, o magistrado diz o que sente, sendo o papel do sentimento do juiz algo fundamental, evidenciado pela própria etimologia da palavra “sentença”, a qual tem origem no verbo “sentire”. Por meio da sentença o juiz experimenta uma emoção, ele sente e declara o seu sentir.[57] Portanto, entre os elementos fáticos apresentados, é inafastável que o juiz ‘eleja’ uma das versões e, da mesma forma, ‘eleja’ o significado (justo) da norma: “esse eleger é inerente ao ‘sentire’ por parte do julgador e se expressa na valoração da prova (crença) e na própria axiologia, incluindo a carga ideológica que faz da norma (penal ou processual penal) aplicável ao caso”.[58]

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O discurso da decisão judicial é extremamente complexo, pois trabalha com projeções conscientes, bem como com um discurso inconsciente que subjaz à decisão: “o campo da manipulação consciente é o da sintaxe discursiva, em que o enunciador lança mão de estratégias argumentativas e de outros procedimentos para criar os efeitos da decisão, verdade e realidade que pretende transmitir, com a finalidade de convencer o seu interlocutor (todos os demais sujeitos do processo) da justeza da decisão. O enunciador (juiz) organiza sua estratégia discursiva em função de um jogo de imagens: imagem que ele tem do interlocutor (os sujeitos do processo e a sociedade), a imagem que ele pensa que o interlocutor tem dele, a imagem que ele deseja passar para o interlocutor, o juízo que faz de si mesmo e do profissional que é, a imagem do justo que pretende buscar”.[59]

A existência de requisitos para a prolação da sentença, bem como a necessidade constitucional e infraconstitucional de motivar a decisão diminuem a discricionariedade do magistrado, obrigando-o à utilização de ajustes lingüísticos; contudo, não excluem do ato de julgar suas questões existenciais, seus porquês e suas emoções, na medida em que se está tratando de um se humano. Nesses termos, o juiz nunca decide de forma neutra, não tendo como dissociar do ato de julgar suas tradições, seus costumes, suas vivências. Por isso, “o juiz, por mais fracionado que esteja, por mais distanciado de seu mundo instintual no momento de julgar, por mais imbuído de sua postura profissional, ainda leva consigo, ainda projeta no processo o seu eu particular. O profissional que muitas vezes fala é o agente social, é a classe que representa (com seus valores únicos), é o pai, ou o filho, é sua singularidade.”[60] Portanto, apesar de a decisão do magistrado ser formalmente imparcial, não é correto falar em neutralidade, pois esta diz com as experiências pessoais do juiz, as quais, mesmo que inconscientemente, são projetadas no julgamento.

Isso demonstra que a avaliação de toda prova produzida no processo, embora não seja feita de forma discricionária – observância do princípio do livre convencimento motivado ou persuasão racional –, pode ser contaminada pelo próprio subjetivismo do julgador que acaba por introduzir suas vivências no processo, mormente ao analisar a prova.

4. Considerações Finais

Diante desse estudo acerca do funcionamento da memória e da possibilidade de falsificação da lembrança entre a retenção e o processo de recordação, é relevante sublinhar a nova problemática existente acerca das falsas memórias. Nova, é claro, no âmbito do processo penal, pois há muito tempo é abordada pela psicologia do testemunho.

Não há como o processo penal ignorar a realidade posta em questão, isto é, a patologia decorrente da falsificação da lembrança. É preciso, portanto, que não só os profissionais de outras áreas – psicologia e psiquiatria –, mas também que os profissionais do direito – delegados, promotores, juízes e advogados – estejam preparados para lidar com essa situação, trabalhando para evitar problemas dessa ordem ou, então, minimizando as conseqüências danosas daí decorrentes.

A investigação e a análise da possibilidade da presença de falsas memórias nos depoimentos de testemunhas evita que pessoas sejam investigadas, presas, acusadas e

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condenadas com base em uma prova frágil, tal como é a prova testemunhal, a qual, muitas vezes, se vale de uma memória distorcida, dissociada da realidade do fato delituoso.

O ideal seria o abandono da “cultura” da prova testemunhal[61], produzida com pouquíssima qualidade e o fomento do uso da tecnologia na produção da prova, com respeito, é claro, aos direitos e às garantias constitucionais. Entretanto, levando-se em conta a distância entre o “ideal” e o “real”, é preciso trabalhar com medidas de redução dos danos[62], aptas a minimizar as contaminações a que está sujeita a prova testemunhal, das quais destacamos: a) a colheita da prova em um prazo razoável, objetivando a diminuição da influência do tempo (esquecimento) na memória; b) a adoção de técnicas de interrogatório e da entrevista cognitiva[63], com o intuito de obter informações quantitativas e qualitativamente superiores as das entrevistas tradicionais, altamente sugestivas; c) a gravação das entrevistas, permitindo ao julgador de segunda instância, o conhecimento do modo como os questionamentos foram elaborados, bem como as reações dos entrevistados. Também é de grande valia o registro eletrônico das entrevistas realizadas da fase investigativa por assistentes sociais e psicólogos, para que o magistrado possa avaliar os métodos utilizados e o grau de contaminação das respostas; d) a exploração de outras hipóteses, diversas da acusatória, por parte do entrevistador, fazendo-se uma abordagem de outros aspectos ofertados pela vítima ou pelas testemunhas, por ocasião dos depoimentos.

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[1] Vid. GOLDSCHMIDT, James. Princípios Gerais do Processo Penal: conferências proferidas na Universidade de Madri nos meses de dezembro de 1934 e de janeiro, fevereiro e março de 1935, 2002, p. 50, acerca da concepção do processo como situação jurídica.

[2] CORDERO, Franco. Procedimiento Penal. Tomo II, 2000, p. 4.

[3] CORDERO, Franco. Procedimiento Penal. Tomo II, 2000, p. 4.

[4] CORDERO, Franco. Procedimiento Penal. Tomo II, 2000, p. 4.

[5] IZQUIERDO, Iván. Memória, 2006, p. 9.

[6] IZQUIERDO, Iván. Memória, 2006, p. 9.

[7] Em QUECUTY, María Luisa Alonso. “Psicología y Testimonio”. In: Fundamentos de la psicología jurídica, 1998, p. 172.

[8] Em QUECUTY, María Luisa Alonso. “Psicología y Testimonio”. In: Fundamentos de la psicología jurídica, 1998, p. 172.

[9] Segundo IZQUIERDO, Iván. Memoria, 2006, p. 25, nas primeiras horas de sua aquisição, as memórias declarativas de longa duração são suscetíveis à interferência por numerosos fatores, desde traumatismos cranianos ou eletrochoques convulsivos, a uma variedade enorme de drogas e, até mesmo, à ocorrência de outras memórias. Ainda, a exposição a um ambiente novo dentro da primeira hora após a aquisição pode deturpar seriamente ou até cancelar a formação definitiva de uma memória de longa duração.

[10] QUECUTY, María Luisa Alonso. “Psicología y Testimonio”. In: Fundamentos de la psicología jurídica, 1998, p. 172.

[11] IZQUIERDO, Ivan. A Memoria. Entrevista com Ivan Izquierdo concedida à RAN – Revista Argentina de Neurociencias, por Ignacio Brusco, MD; Diego Golombeck, Phd e Sérgio Strejilevich, MD. Trad. Renato M.. E. Sabbatini. Capturada na internet em 18/10/2006 http://www.cerebromente.org.br/n04/opiniao/izquierdo.htm., p. 2.

[12] QUECUTY, María Luisa Alonso. “Psicología y Testimonio”. In: Fundamentos de la psicología jurídica, 1998, p. 173.

[13] LOFTUS, Elizabeth. “As falsas lembranças”, in: Viver mente & cérebro. p. 90 a 93.

[14] LOFTUS, Elizabeth. “As falsas lembranças”, in: Viver mente & cérebro, p. 90.

4354

[15] STEIN, Lílian Milnilsky e PERGHER, Giovanni Kuckartz. “Criando falsas memórias em adultos por meio de palavras associadas”, in Psicologia: Reflexão e Crítica, 2001, p. 354.

[16] LOFTUS, Elizabeth. “As falsas lembranças”, in: Viver mente & cérebro, p. 92.

[17] LOFTUS, Elizabeth. “As falsas lembranças”, in: Viver mente & cérebro. P. 93.

[18] LOFTUS, Elizabeth. “As falsas lembranças”, in: Viver mente & cérebro. pp. 92-93.

[19] LOFTUS, Elizabeth. “As falsas lembranças”, in: Viver mente & cérebro, p. 93.

[20] IZQUIERDO, Iván. Memória, 2006, p. 12.

[21] IZQUIERDO, Iván. Memoria, 2006, p. 12.

[22] ALTAVILLA, Enrico. Psicologia Judiciária. Vol. 1, 1945, p. 40.

[23] Em PISA, Osnilda. Psicologia do testemunho: os riscos na inquirição de crianças, 2006, p. 13.

[24] ALTAVILLA, Enrico. Psicologia Judiciária. Vol. 1, 1945, pp. 53 e ss.

[25] PISA, Osnilda e STEIN, Lílian Milnitsky. Entrevista Forense de crianças: técnicas de inquirição e qualidade do testemunho. Revista da AJURIS, 2006, p. 219.

[26] GORPHE, François. La critica del testimonio, 1949, p. 1.

[27] Em PISA, Osnilda. Psicologia do testemunho: os riscos na inquirição de crianças, 2006, p. 15.

[28] ALTAVILLA, Enrico. Psicologia Judiciária. Vol. 1, 1945, p. 20.

[29] Vide COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. “O papel do novo juiz no processo penal”. In: Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal, 2001, p. 17 e 18.

[30] CORDERO, Franco. Procedimiento Penal, Tomo II, 2000, p. 55.

[31] Vid. GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?) do Processo Penal. Considerações Críticas. Provas, Ritos Processuais, Júri e Sentença, 2008, p. 15.

[32] CORDERO, Franco. Procedimiento Penal, Tomo II, 2000, p. 55.

[33] CORDERO, Franco. Procedimiento Penal, Tomo II, 2000, p. 59.

[34] DAMÁSIO, Antônio R. O Erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano, 1996, p. 128 e 129.

[35] DAMÁSIO, Antônio R. O Erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano, 1996, p. 128.

4355

[36] CORDERO, Franco. Procedimiento Penal, Tomo II, 2000, p. 60.

[37] IZQUIERDO, Iván. Memoria, 2006, p. 17.

[38] CARNELUTTI, Francesco. Verità, dubbio, certezza, 1965, p.5.

[39] IZQUIERDO, Iván. Memória, 2006, p. 18.

[40] ALTAVILLA, Enrico. Psicologia Judiciária. Vol. 1, 1945, p. 16.

[41] ALTAVILLA, Enrico. Psicologia Judiciária. Vol. 1, 1945, p. 17.

[42] MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito, 1963, p. 19.

[43] MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito, 1963, p. 19.

[44] MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito, 1963, p. 20.

[45] PASTOR, Daniel R. El Plazo Razonable en el Proceso del Estado de Derecho, 2002, p. 78.

[46] LOPES Jr., Aury. BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito Processual Penal no Prazo Razoável, 2006, p. 6.

[47] Vid. OST, François. O tempo do direito, 1999, p. 59 e VIRILIO, Paul. “O paradoxo da memória do presente na era cibernética”. Entrevista com Paul Virilio concedida a Frederico Casalegno, in Memória cotidiana: comunidades e comunicação na era das redes, 2006, p. 94.

[48] PASTOR, Daniel R. El Plazo Razonable en el Proceso del Estado de Derecho, 2002, p. 675.

[49] PASTOR, Daniel R. El Plazo Razonable en el Proceso del Estado de Derecho, 2002, p.434.

[50] PASTOR, Daniel R. El Plazo Razonable en el Proceso del Estado de Derecho, 2002, p. 426.

[51] PASTOR, Daniel R. El Plazo Razonable en el Proceso del Estado de Derecho, 2002, p. 674.

[52] Vid. PISA, Osnilda e STEIN, Lílian Milnitsky. Entrevista Forense de crianças: técnicas de inquirição e qualidade do testemunho. Revista da AJURIS, 2006, p. 218.

[53] PISA, Osnilda e STEIN, Lílian Milnitsky. Entrevista Forense de crianças: técnicas de inquirição e qualidade do testemunho. Revista da AJURIS, 2006, p. 220.

[54] CARNELUTTI, Francesco. As Misérias do processo penal, 1995, p. 45.

[55] CARNELUTTI, Francesco. As Misérias do processo penal, 1995, p. 46.

4356

[56] GIACOMOLLI, Nereu José e DUARTE, Liza Bastos. “O mito da neutralidade na motivação das decisões judiciais: aspectos epistemológicos”, 2006, p. 288.

[57] LOPES Jr., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal – Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional, 2007, p. 284.

[58] LOPES Jr., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal – Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional, 2007, p. 248 e 245.

[59] GIACOMOLLI, Nereu José e DUARTE, Liza Bastos. “O mito da neutralidade na motivação das decisões judiciais: aspectos epistemológicos”, 2006, p. 289.

[60] GIACOMOLLI, Nereu José e DUARTE, Liza Bastos. “O mito da neutralidade na motivação das decisões judiciais: aspectos epistemológicos”, 2006, p. 293.

[61] LOPES Jr., Aury. e GESU, Cristina di. Prova Penal e Falsas Memórias: em busca da redução de danos. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, 2007, p. 16.

[62] Vide LOPES Jr., Aury. e GESU, Cristina di. Prova Penal e Falsas Memórias: em busca da redução de danos. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, 2007, p. 16.

[63] Sobre as técnicas de interrogatório e a entrevista cognitiva consultar QUECUTY, María Luisa Alonso. “Psicología y Testimonio”. In: Fundamentos de la psicología jurídica, 1998, p. 177 e ss.