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As Indicações Geográficas no Tribunal de Justiça das Comunidades Européias. Kelly Lissandra Bruch 1 Resumo O trabalho analisa a evolução das indicações geográficas no Tribunal de Justiça das Comunidades Européias. O objetivo é verificar como este tema foi analisado e delineado, especialmente no tocante ao trade off entre o direito exclusivo sobre a utilização de uma indicação geográfica e a livre circulação de mercadorias, que é um dos pilares do direito comunitário. Para a realização desta pesquisa, foram analisadas as principais decisões referentes ao tema à luz da doutrina comunitária. Como resultado verifica-se a existência de três fases na evolução do tema no âmbito do TJCE: 1) a afirmação da competência comunitária em matéria de propriedade industrial; 2) a escolha de critérios para delimitar o alcance dos direitos de propriedade industriais; e 3) a estabilização e aperfeiçoamento dos critérios já definidos, envolvendo a correção de alguns desvios registrados na jurisprudência precedente e a definição dos direitos de propriedade industrial. Dentre estas fases, o que mais se destaca no âmbito das Indicações geográficas é o seu reconhecimento como um direito de propriedade industrial perante o TJCE, sua definição e o entendimento de que estes direitos não constituem simplesmente uma restrição quantitativa à importação ou exportação, ou ainda uma medida de efeito equivalente, mas direitos que devem ser preservados por garantir que o produto que ostenta uma IG ou uma DO provém de uma zona geográfica determinada e apresenta certas características particulares, sendo justificadas no âmbito comunitário. Para citação: BRUCH, Kelly Lissandra. Indicações Geográficas no Tribunal de Justiça das Comunidades Européias. In: Luiz Gonzaga Silva Adofo; Rodrigo Moraes. (Org.). Propriedade Intelectual em Perspectiva. 1 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, v. , p. 1-20. 1 Mestre em Agronegócios - CEPAN / UFRGS, doutoranda em Direito Privado - PPGD / UFRGS, Professora de Direito – ULBRA, Coordenadora de Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia do Escritório de Inovação Tecnológica – ULBRA, Assessora Jurídica do Instituto Brasileiro do Vinho - IBRAVIN.

As Indicações Geográficas no Tribunal de Justiça das Comunidades Européias

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As Indicações Geográficas no Tribunal de Justiça das Comunidades Européias.

Kelly Lissandra Bruch1

Resumo

O trabalho analisa a evolução das indicações geográficas no Tribunal de Justiça das Comunidades Européias. O objetivo é verificar como este tema foi analisado e delineado, especialmente no tocante ao trade off entre o direito exclusivo sobre a utilização de uma indicação geográfica e a livre circulação de mercadorias, que é um dos pilares do direito comunitário. Para a realização desta pesquisa, foram analisadas as principais decisões referentes ao tema à luz da doutrina comunitária. Como resultado verifica-se a existência de três fases na evolução do tema no âmbito do TJCE: 1) a afirmação da competência comunitária em matéria de propriedade industrial; 2) a escolha de critérios para delimitar o alcance dos direitos de propriedade industriais; e 3) a estabilização e aperfeiçoamento dos critérios já definidos, envolvendo a correção de alguns desvios registrados na jurisprudência precedente e a definição dos direitos de propriedade industrial. Dentre estas fases, o que mais se destaca no âmbito das Indicações geográficas é o seu reconhecimento como um direito de propriedade industrial perante o TJCE, sua definição e o entendimento de que estes direitos não constituem simplesmente uma restrição quantitativa à importação ou exportação, ou ainda uma medida de efeito equivalente, mas direitos que devem ser preservados por garantir que o produto que ostenta uma IG ou uma DO provém de uma zona geográfica determinada e apresenta certas características particulares, sendo justificadas no âmbito comunitário.

Para citação:

BRUCH, Kelly Lissandra. Indicações Geográficas no Tribunal de Justiça das Comunidades Européias. In: Luiz Gonzaga Silva Adofo; Rodrigo Moraes. (Org.). Propriedade Intelectual em Perspectiva. 1 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, v. , p. 1-20.

1 Mestre em Agronegócios - CEPAN / UFRGS, doutoranda em Direito Privado - PPGD / UFRGS, Professora de Direito – ULBRA, Coordenadora de Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia do Escritório de Inovação Tecnológica – ULBRA, Assessora Jurídica do Instituto Brasileiro do Vinho - IBRAVIN.

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Abstract

The paper analyzes the evolution of the geographical indications in the Tribunal of Justice of the European Communities. The objective is to verify as this theme was analyzed and delineated, especially concerning the trade off among the exclusive right about the use of a geographical indication and the free circulation of goods, that it is one of the mainstream of the community right. For the accomplishment of this research, the main decisions were analyzed regarding the theme to the light of the community doctrine. As result is verified the existence of three phases in the evolution of the theme in the TJCE: 1) the statement of the community competence as regards to industrial property; 2) the choice of criteria to delimit the reach of the industrial property rights; and 3) the stabilization and improvement of the criteria already defined, involving the correction of some deviations registered in the precedent jurisprudence and the definition of the rights of industrial property. Among these phases, which more stands out in the extent of the geographical Indications is the recognize that as a right of industrial property for the TJCE, his definition and the understanding that these rights don't simply constitute a quantitative restriction to the import or export, or still a measure of equivalent effect, but rights that should be preserved by guaranteeing that the product that shows an IG or one AO it comes from a certain geographical area and it presents certain private characteristics, being justified in the TJCE.

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Introdução

De um lado muito já se tratou na doutrina brasileira sobre as indicações geográficas. Todavia de maneira genérica, conceituando-a e buscando compreendê-la a partir da atual legislação vigente. Por outro lado, muito já se escreveu acerca da constituição e da evolução da União Européia - UE, bem como dos fundamentos e dos entendimentos basilares estabelecidos mediante a construção e a consolidação jurisprudencial do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias - TJCE.

Assim, optou-se, no presente trabalho, em tratar-se da evolução do entendimento acerca deste tema específico no referido Tribunal, buscando visualizar como o instituto das Indicações Geográficas se construiu e consolidou no âmbito da UE, bloco regional que reúne desde países protagonistas do nascimento do referido instituto, como a França, a países que não tem em pauta principal a abordagem da referida temática, como a Inglaterra. O tema escolhido trata do trade off existente entre o princípio da livre circulação de mercadorias e da livre concorrência – pilares da UE – e o instituto da indicação geográfica, que na doutrina dos direitos de propriedade intelectual também pode ser compreendido como um monopólio legal ou um direito de exclusiva em relação àqueles aos quais não é permitido o uso da referida indicação.

Na primeira parte, trata-se brevemente da UE, sua constituição e evolução, bem como de suas instituições, em particular abordando-se o sistema jurisdicional europeu. Na segunda parte aborda-se a evolução do instituto das indicações geográficas no âmbito do TJCE, buscando verificar como se consolidou este instituto e quais as principais linhas apresentadas pelo Tribunal, especialmente relacionadas às questões envolvendo livre comércio por um lado, e propriedade intelectual por outro. O que se busca é, mediante o estudo de um caso, compreender como se dá a construção do direito comunitário por meio da atuação e das decisões emanadas deste que é um dos pilares da construção e consolidação da UE: o sistema jurisdicional europeu.

Vale ressaltar que embora se trate o tema central do presente artigo como “indicação geográfica”, a denominação mais comum para este instituto, na União Européia, é “denominação de origem” ou “DO”. Isso por que no âmbito brasileiro este instituto é reconhecido pela primeira nomenclatura, assim como nos principais acordos internacionais. Todavia, nas jurisprudências do TJCE faz-se menção expressa à DO por se tratar de uma tradição européia a utilização desta nomenclatura.

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1 - Tribunal de Justiça das Comunidades Européias

1.1 – A União Européia Para que se compreenda o que significa a construção de um entendimento e de um

posicionamento no âmbito do direito comunitário, faz-se necessário compreender que a UE vem sendo construída desde 1950, logo após o fim da 2º Guerra Mundial, quando seus países se encontravam exauridos, economicamente destroçados e politicamente enfraquecidos. A única alternativa que se apresentava girava entorno da união, para que os países da Europa pudessem preservar seu legado político, cultural, jurídico e econômico.

Atualmente constituem a União Européia vinte e sete países2, sendo que se encontram vigentes três tratados no âmbito comunitário: o Tratado que constitui a Comunidade Européia - TCE, que se refere ao 1º pilar da integração, constituído pelas três comunidades (CECA3, CEE e CEEA); o Tratado da EURATON (CEEA); e o Tratado da União Européia - TUE, referente ao 2º pilar de cooperação no domínio da política externa e segurança comum e o 3º pilar de cooperação no domínio da justiça e assuntos internos. 4

O quadro institucional das Comunidades Européias compreende hoje cinco instituições: o Parlamento Europeu, o Conselho da União Européia, a Comissão das Comunidades Européias, o Tribunal de Contas e o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias.

O Sistema Jurisdicional da UE é formado pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Européias – TJCE, pelo Tribunal de Primeira Instância – TPI e pelo recém criado Tribunal de Função Pública - TFP.5

O objetivo do Sistema Jurisdicional, de maneira geral, é garantir a interpretação e aplicação uniforme da legislação da UE em todos os Estados-Membros, possuindo competência para se pronunciar sobre litígios relacionado a Estados-Membros, às Instituições da UE, bem como às pessoas físicas e jurídicas.6

Contudo, antes de se tratar dos Tribunais em si, aborda-se, primeiramente, os princípios básicos, frutos da atuação do Sistema Jurisdicional, que norteia o entendimento deste na apreciação de todas as questões que lhe são submetidas.

1.1.1 - Supranacionalidade,

Segundo Kegel, “a supranacionalidade condiciona a particularidade do sistema jurisdicional comunitário, e em particular determina a jurisprudência do TJCE no sentido de ampliar e fortalecer as competências comunitárias e as instituições responsáveis pela sua implementação”7. Para a autora três princípios básicos distinguem a concepção de supranacionalidade e intergovernabilidade. Analisando-os, conclui-se que os princípios

2Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Chipre, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Hungria, Irlanda, Itália, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Países Baixos, Polônia, Portugal, Reino Unido, República Checa, Romênia, Suécia, 3 Extinta em julho de 2002. 4 Disponível em: < http://www.europa.eu.int/eur-lex/lex/pt/treaties/index.htm >. Acesso em: 26 jan 2006. 5 Disponível em: < http://www.europa.eu.int >. Acesso em: 24 jan. 2006. 6 Disponível em: < http://www.europa.eu.int >. Acesso em: 24 jan. 2006. 7 KEGEL, 2004, p. 70.

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aplicáveis à compreensão de supranacionalidade são os que melhor se ajustam ao modelo da UE 8. Sistematizamos suas ponderações no Quadro 1:

Princípio Intergovernabilidade Supranacionalidade UE

Composição dos órgãos decisórios

Órgãos decisórios compostos pessoas que são por representantes dos Governos, que são designados por estes e sujeitos as suas instruções.

Órgãos decisórios compostos por pessoas que não são representantes dos governos de seus Estados de Origem e que não estão subordinadas as suas instruções.

O órgão superior, responsável pela implementação e defesa dos interesses da Comunidade – a Comissão – é independente das orientações dos Estados-Membros.

Sistema decisório

Utilização da regra da unanimidade quando as decisões possuem efeito vinculante.

Admite-se que determinadas decisões sejam tomadas pela maioria dos membros, sem necessidade de unanimidade e vinculando mesmo aqueles Estados que votaram contra a decisão.

Decisões do órgão responsável pela representação dos interesses individuais dos Estados-Membros – o Conselho – podem ser tomadas por maioria e mesmo assim vincula os Estados perdedores.

Eficácia das decisões

Eficácia meditada – decisões devem ser executadas pelos próprios Estados-Membros para que possam produzir efeitos na sua ordem interna.

Eficácia imediata – decisões não precisam ser internalizadas por qualquer ato interno dos Estados para que produzam efeitos em sua ordem jurídica interna.

- Pode editar atos normativos (regulamentos, diretivas e decisões) que são diretamente vinculantes para os Estados-Membros e para os indivíduos. - Dispõe de um órgão judiciário próprio, com jurisdição obrigatória e cujas sentenças vinculam seus destinatários.

Quadro 1 – Princípios norteadores da concepção de supranacionalidade e intergovernabilidade e os princípios aplicáveis à compreensão de supranacionalidade que melhor se ajustam ao modelo da UE . Elaborado pelo autor com base em Kegel, 2004.

Segundo Kegel, os elementos supra indicados são apenas elementos de caráter

institucional, que encontram base nos Tratados que constituem a UE. Outros, de conteúdo mais político e que não se encontram expressamente delimitados nestes Tratados, foram desenvolvidos mediante a atuação do TJCE. 9 Os princípios jurisprudenciais construídos podem ser desta maneira resumidos10:

� Estrutura institucional que permite a formação da vontade dentro da UE, determinada pelos interesses comunitários.

� Transferência de competências nacionais aos órgãos comunitários. � Implantação de uma ordem jurídica própria, independente dos sistemas

jurídicos nacionais, resultando na autonomia e independência do Direito Comunitário.

� Aplicabilidade imediata do Direito Comunitário. � Primazia do Direito Comunitário.

Sãos estes princípios que caracterizam de maneira geral a supranacionalidade da UE e que delineiam a forma como se da seu desenvolvimento. Mais especificamente, são estes

8 KEGEL, 2004, p. 74. 9 KEGEL, 2004, p. 75. 10 KEGEL, 2004, p. 75-76.

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princípios norteadores os pilares da atuação e das decisões dos Institutos da UE e, em especial, do TJCE. 1.1.2 - Primazia do Direito Comunitário

A primazia do Direto Comunitário sucede diretamente da cessão de parcelas da soberania dos Estados-Membros em favor da EU, ou seja, “a questão hierárquica sempre foi fundamental para a Comunidade Européia, pois tanto a vigência quando a aplicação uniformes do Direito Comunitário, tornaram-se viáveis apenas pela sua primazia sobre os Direitos Nacionais.” 11 Conclui Kegel afirmando que “a primazia, portanto, implica na prevalência absoluta do Direito Comunitário sobre os Direitos Nacionais em caso de conflito de normas de ambos os ordenamentos.” 12

Esta primazia se dá em quatro níveis distintos: � 1. O Direito Comunitário originário e derivado possuem prevalência sobre o

Direito Nacional13; � 2. O Direito Comunitário prevalece sobre as cláusulas contratuais privadas

contrárias a ele14; � 3. As leis nacionais anteriores à norma comunitária são revogadas por esta, e

as leis nacionais posteriores à Norma Comunitária, contrárias a esta, não são válidas15;

� 4. As Normas Comunitárias prevalecem inclusive sobre as Constituições Nacionais16.

A primazia implica, inclusive, na obrigação objetiva do Estado-Membro de indenizar as partes que tenham sofrido dano em face da falta de implementação, ou da implementação parcial das normas comunitárias no direito interno.17

1.1.3 - Aplicabilidade imediata das normas comunitárias

A aplicabilidade imediata das normas de direito comunitário no direito interno dos Estados-Membros implica na incorporação automática desta norma comunitária,

11 KEGEL, 2004, p. 79. 12 KEGEL, 2004, p. 79. 13 Sentença do TJCE de 15 de julho de 1964, Caso Costa v ENEL. Segundo esta decisão, um direito nascido do Tratado não pode ser contrariado por um texto interno de um Estado-Membro. LOBO, 2005. 14 Sentença do TJCE de 14 de dezembro de 1971, Caso Politi v Itália. Conforme esta decisão, a lei posterior originada de um Estado-Membro não revoga a lei anterior, de origem comunitária, posto que estas não se encontram no mesmo nível hierárquico e portanto o efeito dos regulamentos sempre se oporão à aplicação de uma norma interna, inclusive posterior. 15 Sentença do TJCE de 08 de abril de 1976. Caso Defrenne v Sabena. Sentença do TJCE de 07 de fevereiro de 1991, Caso Nimz. Segundo estes casos, o Direito Comunitário prevalecerá sempre em face inclusive de contratos privados que a este sejam contrários, posto que as normas comunitárias têm aplicabilidade direta e, se obrigatória a sua observância, inclusive, como nos casos em tela, em se tratando de convenção coletiva de trabalho que dispunha sobre a igualdade de remuneração entre trabalhadores masculinos e femininos, esta deverá ser diretamente observada e respeitada. 16 Sentença do TJCE de 15 de janeiro de 1960, Caso Comptiors de Vente du Charbon da la Ruhr. Segundo este caso o direito comunitário não pode ser invalidado pelo direito interno, ainda que este direito interno o seja em nível constitucional. Sentença do TJCE de 09 de março de 1978, Caso Administração de Finanças Italiana v Simmenthal S.p.A.. Segundo este caso, as normas comunitárias invalidam, por princípio, quaisquer medias adotadas pelas legislações nacionais se estas forem incompatíveis com o direito comunitário. 17 Este entendimento encontra-se nas sentenças do TJCE, casos Francovich - Sentença do TJCE de 19 de novembro de 1991 e Dillenkoffer - Sentença do TJCE de 08 de outubro de 1996.

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significando que estes não poderão alegar qualquer razão, mesmo que constitucional, para o não cumprimento da norma.18

Não se trata de recepção ou reprodução da norma no âmbito interno - posto que isto exigiria um internalização da norma, mas na própria aplicabilidade imediata desta, a partir de sua entrada em vigor em nível comunitário. É isso que garante a uniformidade do Direito Comunitário, o qual não poderá ser negado, negligenciado ou quebrado sob qualquer alegação de incompatibilidade interna. 19 1.1.4 - Aplicabilidade direta das normas comunitárias

Segundo Campos20, a aplicabilidade direta da norma comunitária permite a plena eficácia dos Tratados Comunitários em relação aos agentes econômicos. É ela que permite que os agentes privados possam invocar, perante os Estados, as disposições dos Tratados e das demais normas comunitárias, consistindo este no “direto de toda pessoa pedir ao juiz nacional que aplique o conjunto do direito comunitário, sendo obrigação do juiz aplicar a legislação comunitária, indiferentemente de seu Estado ou legislação nacional”.21 1.1.5 – Aplicabilidade direta do Direito Comunitário Primário;

Compreendendo-se que há uma obrigação dos Estados-Membros em conferir aplicabilidade direta às normas comunitárias, alguns critérios foram estabelecidos para que estas possam ser diretamente aplicáveis. 22

A primeira condição é de que a norma comunitária seja clara e precisa.23 Em segundo lugar, ela não pode ser objeto de apreciação ou discricionariedade por parte dos Estados-Membros. Isso quer dizer que esta não deve possibilitar ao legislador interno qualquer atuação para que seja diretamente aplicável.24 Em terceiro, esta aplicabilidade direta exige que a norma comunitária não requeira medidas executórias, seja dos Estados-Membros, seja dos Órgãos Comunitários.25

Atendendo-se a todas as condições acima expostas, a norma comunitária deverá gerar “efeitos jurídicos no relacionamento dos indivíduos com seus Estados” 26, ou seja, aplicabilidade direta. 1.1.6 - Aplicabilidade direta do Direito Comunitário Secundário.

A aplicabilidade direta da norma comunitária, respeitadas as condições explanadas no item anterior, são válidas tanto para o Direito Primário, quando para o Direito Secundário, o que significa que o seja para Regulamentos, Diretivas e Decisões.27

18 KEGEL, 2004, p. 85. 19 KEGEL, 2004, p. 86. 20 CAMPOS, 1989, p. 205. 21 KELGE, 2004, p. 87. 22 KELGE, 2004, p. 88. 23 Caso van Gend en Loos, Sentença do TJCE de 05 de fevereiro de 1963; Caso Molkerei – Zentrale Westfalen-Lippen v Hauptzollant Padernborn, Sentença do TJCE de 03 de abril de 1968; Caso Eunomia v Itália, Sentença do TJCE de 26 de outubro de 1971; Caso Capolongo v Maya, Sentença do TJCE de 19 de junho de 1973. 24 Caso Molkerei – Zentrale Westfalen-Lippen v Hauptzollant Padernborn, Sentença do TJCE de 03 de abril de 1968. 25 Caso Molkerei – Zentrale Westfalen-Lippen v Hauptzollant Padernborn, Sentença do TJCE de 03 de abril de 1968 26 KEGEL, 2004, p. 89.

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O regulamento tem aplicação direta, conforme reconheceu o TJCE, no Caso Politi28, afirmando que a sua própria natureza e sua função no sistema é que conferem efeitos imediatos e diretos, conforme dispõe o artigo 249,2 do TCE.

Já as diretivas, em regra, dependem de um ato dos Estados-Membros para a sua implementação. Contudo, embora o texto do artigo 249 do TCE não se refira expressamente a Diretivas, há entendimento doutrinário e jurisprudencial que afirmam a aplicabilidade direta destas, sob o fundamento de que, sua inaplicabilidade direta enfraqueceria o efeito útil destas.29 Além disso, a estrutura jurídica da UE poderia abalar-se como um todo “se fosse possível a cada Estado-Membro retardar o efeito de uma diretiva pela sua não conversão em norma nacional no tempo hábil previsto.” 30

Conduto, esta aplicação se daria se atendidas duas condições: que ela fosse clara e auto-executável e que o prazo previsto para a transposição da diretiva pelo Estado-Membro para o seu ordenamento interno já tivesse se esgotado, ou ainda que isso tenha sido feito de maneira incorreta. 31

Com relação às Decisões, pondera Kegel32 que “é necessário coibir uma possível intenção protelatória por parte dos Estados em retardar a entrada em vigor dos efeitos de uma decisão, quando esta preencher as condições de aplicabilidade direta” mencionadas anteriormente, conforme dispõe os casos do TJCE Grad v Finanzant Trautstein33 e Hansa Fleisch Ernst Mund 34. 1.2 – Estrutura jurisdicional da UE

O Tribunal de Justiça das Comunidades Européias – TJCE foi criado em 1952, pelo Tratado de Paris. Segundo o artigo 220 do TCE, compete tanto ao TJCE quanto ao Tribunal de Primeira Instância a garantia do respeito ao Direito na interpretação deste Tratado.35

O TJCE tem como missão institucional assegurar o respeito do direito na interpretação e aplicação dos Tratados que instituem as Comunidades Européias, bem como das normas jurídicas adotadas pelas Instituições Comunitárias competentes. Para o

27 KEGEL, 2004, p. 89. 28 Sentença do TJCE de 14 de dezembro de 1971. 29 KEGEL, 2004, p. 91. 30 KEGEL, 2004, p. 91. 31 KEGEL, 2004, p. 92. 32 KEGEL, 2004, p. 91. 33 Sentença do TJCE de 06 de outubro de 1960. 34 Sentença do TJCE de 10 de novembro de 1992. 35 O TJCE atua como Tribunal Constitucional quando interpreta, em última instância, a adequação das normas comunitárias e das normas nacionais ao TCE. Contudo, sua atuação não se limita ao controle jurisdicional, estendendo-se também ao controle do direito comunitário como um todo, controlando a aplicação, a interpretação e a construção do Direito Comunitário. Ele também atua como Tribunal Administrativo, competindo a ele a jurisdição para examinar os atos administrativos dos órgãos comunitários e, em ultima instância, os atos administrativos dos órgãos administrativos dos Estados-Membros relacionados à execução do direito comunitário. Atua como Tribunal Trabalhista, posto que a ele compete decidir sobre a livre circulação de trabalhadores, seguridade social e tratamento igualitário a homens e mulheres nestas relações. Também atua como Tribunal Fiscal, decidindo sobre a interpretação dada às Diretivas, pelos Estados-Membros, no âmbito de impostos e direitos aduaneiros. Atua como Tribunal Penal ao controlar as multas administrativas impostas pela Comissão. Por fim, atua como Tribunal Civil, tratando do reconhecimento e execução de sentenças nas áreas civil e comercial. KEGEL, 2004, p. 94-96.

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cumprimento desta missão, foram atribuídas ao TJCE amplas competências jurisdicionais, que este exerce no quadro de diversas espécies de ações e recursos. 36

O Tribunal de Primeira Instância – TPI, criado como conseqüência do Ato Único Europeu com a finalidade de ocupar-se de parte dos assuntos que sobrecarregavam o TJCE, resultou na instituição de um sistema jurisdicional baseado no duplo grau de jurisdição, onde todos os processos julgados em primeira instância pelo TPI podem ser objeto de recurso para o TJCE, limitados às questões de direito.37

Face o número crescente de processos que têm sido submetidos ao TPI, o Tratado de Nice, previu a criação de “câmaras jurisdicionais” para certas matérias. Com base nisso, o Conselho adotou, em 2 de Novembro de 2004, uma Decisão que institui o Tribunal da Função Pública da UE, sendo que também está em estudo a criação de um Tribunal da Patente Comunitária.38 Em linhas gerais, o TPI é competente para conhecer, em primeira instância, de todas as ações e recursos dos particulares e dos Estados-Membros, com exceção dos atribuídos a uma “câmara jurisdicional” e dos reservados ao TJCE.39

De maneira geral, o Sistema Recursal Comunitário é composto das seguintes ações

e recursos: Ação por Incumprimento, Recurso de Anulação, Ação por Omissão, Ação de Indenização, Recurso de Indenização do Tribunal de Primeira Instância, Recurso de Reenvio Prejudicial, Ações Embasadas em Cláusulas Compromissórias, Ações e Recursos em Matéria de Função Pública.

a) Ação por Incumprimento

Permite ao TJCE fiscalizar o cumprimento pelos Estados-Membros das obrigações que lhes incumbem por força do direito comunitário, podendo se dar por iniciativa da Comissão ou por iniciativa de outro Estado-Membro.40

Segundo o artigo 226 do TCE, na hipótese de um Estado-Membro não cumprir qualquer das obrigações que lhe incumbem por força do TCE, a Comissão deverá formular um parecer fundamentado sobre o assunto e informar a este Estado-Membro. Se o Estado-Membro não atender ao parecer, tanto a Comissão, quando qualquer outro Estado-Membro41, poderão recorre ao TJCE.

A Competência para esta ação é originária do TJCE. Neste caso a legitimidade ativa é da Comissão ou de outro Estado-Membro, e a legitimidade passiva é do Estado-Membro que em tese descumpriu suas obrigações perante a UE. O objeto da ação é a alegada omissão do Estado-Membro.42

Se for declarado pelo TJCE o incumprimento, o Estado-Membro deverá suprir sua omissão. Se, após a propositura de nova ação pela Comissão, o TJCE declarar que o Estado-Membro ainda não atendeu à sua decisão, o TJCE pode, a pedido da Comissão,

36 Disponível em: < http://www.europa.eu.int >. Acesso em: 24 jan. 2006. 37 Disponível em: < http://www.europa.eu.int>. Acesso em: 24 jan. 2006. 38 Disponível em: < http://www.europa.eu.int>. Acesso em: 24 jan. 2006. 39 Disponível em: < http://www.europa.eu.int >. Acesso em: 24 jan. 2006. 40 Disponível em: < http://www.europa.eu.int>. Acesso em: 24 jan. 2006. 41 O artigo 227 do TCE também possibilita que qualquer outro Estado-Membro questione o cumprimento de uma obrigação decorrente do TCE, por outro Estado-Membro. 42 KEGEL, 2004, p. 99-100.

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condená-lo no pagamento de uma quantia fixa ou progressiva correspondente a uma sanção pecuniária.43 b) Recurso de Anulação

Conforme dispõe o artigo 203 do TCE, o recurso de anulação permite ao TJCE e ao TPI, controlar a legalidade dos atos de uma Instituição Comunitária, tais como Regulamentos, Diretivas e Decisões, ao Direito Comunitário, perante o Direito Comunitário.44

A competência originária para julgá-lo, em regra, é do TPI, salvo exceções. Pode haver recurso do TPI ao TJCE, relacionado a questões de direito. A legitimidade ativa pode ser dos Estados-Membros, das Instituições Comunitárias ou de um particular que seja destinatário de um ato – interesse direito, ou ao qual este diga direta e individualmente respeito – interesse indireto. A legitimidade passiva será da instituição ou, em caso de atos conjuntos, instituições autoras do ato questionado. O objeto do recurso é o ato, proveniente de uma Instituição Comunitária, questionado como ilegal perante o Direito Comunitário.45

c) Ação por omissão

Segundo o artigo 232 do TCE, a omissão ou carência de ação é uma modalidade de ilegalidade quando esta constitui em uma violação ao TCE. Esta ação permite, portanto, ao TJCE e ao TPI, quando acionados, fiscalizar a legalidade da inação das Instituições Comunitárias. Ressalta-se que este tipo de ação só pode ser intentado depois de a Instituição ter sido convidada a agir.46

A competência originária para julgá-lo, em regra, é do TPI, salvo exceções. Pode haver recurso do TPI ao TJCE, relacionado a questões de direito. A legitimidade ativa é das Instituições Comunitárias (Conselho, Comissão e Parlamento), dos Estados-Membros, mesmo que sem interesse direito,do Banco Central Europeu e do Tribunal de Contas, no caso destes restrito as suas competências. A legitimidade passiva será da Instituição Comunitária que se abstiver de agir, mesmo que convidada.47 d) Ação de Indenização

Esta ação é fundada na responsabilidade extracontratual da Comunidade, e permite ao TPI determinar a responsabilidade da Comunidade pelos danos causados aos cidadãos e às empresas pelas suas instituições e pelos seus agentes no exercício das suas funções.48

A competência originária para julgar é do TPI, podendo haver recurso do TPI ao TJCE, relacionado a questões de direito. A legitimidade ativa é dos Estados-Membros e particulares que tenham sido lesados pela Comunidade e que busquem a reparação. A legitimidade passiva é da Comunidade, representada pela Instituição Comunitária que originou o fato gerador da responsabilidade. O objeto da ação é a “reparação dos danos causados pelos órgãos ou agentes comunitários no exercício das respectivas funções”.49

43 Disponível em: < http://www.europa.eu.int>. Acesso em: 24 jan. 2006. 44 Disponível em: < http://www.europa.eu.int>. Acesso em: 24 jan. 2006. 45 KEGEL, 2004, p. 102-104. 46 Disponível em: < http://www.europa.eu.int>. Acesso em: 24 jan. 2006. 47 KEGEL, 2004, p. 105-106. 48 Disponível em: < http://www.europa.eu.int>. Acesso em: 24 jan. 2006. 49 KEGEL, 2004, p. 108.

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e) Ação baseada em Cláusula Compromissória. Tratam-se de ações relativas a contratos de direito público ou privado, celebrados

pela Comunidade50 ou acordados entre Estados-Membros51, contendo uma Cláusula Compromissória. Na primeira tem competência originária o TPI, podendo haver recurso do TPI ao TJCE, relacionado a questões de direito. Na segunda tem competência originária o TJCE.52 f) Ações e Recursos em matéria de Função Pública

Trata-se de ações entre a Comunidade e os seus funcionários ou agentes. A partir da implementação do TFP, este será o tribunal originário, podendo haver recursos ao TPI em matérias de direito e se requerer, em casos excepcionais, o reenvio para o TJCE.53 g) Recurso de Decisão do TPI

Trata-se da interposição de recursos dos acórdãos do TPI para o TJCE, limitado às questões de direto. Se o recurso for admissível e procedente, o TJCE pode anular a decisão do TPI. Caso o processo esteja em condições de ser julgado, o TJCE pode decidir definitivamente o litígio. Caso contrário, deve remeter o processo ao TPI, que fica vinculado pela decisão proferida sobre o recurso pelo TJCE.54 h) Processo de Reenvio Prejudicial

Trata-se de processo específico do Direito Comunitário. Embora o TJCE seja, pela sua natureza, o guardião supremo da legalidade comunitária, não é, no entanto, a única jurisdição que aplica o direito comunitário.55

A legitimidade ativa é dos órgãos jurisdicionais nacionais, na medida em que a execução administrativa do direito comunitário permanece sujeita a sua fiscalização. Um grande número de disposições dos Tratados e do direito derivado (regulamentos, diretivas, decisões) criam diretamente direitos individuais em benefício dos nacionais dos Estados-Membros, que os juízes nacionais têm a obrigação de garantir. Assim, os órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros são, por natureza, os primeiros garantidores da aplicação do direito comunitário. Para assegurar uma aplicação efetiva e homogênea da legislação comunitária e evitar qualquer interpretação divergente, os juízes nacionais podem dirigir-se ao TJCE para pedir esclarecimento referente a um ponto de interpretação do direito comunitário, para poderem, por exemplo, verificar a conformidade da respectiva legislação nacional com este direito.56

O pedido de decisão prejudicial pode igualmente ter como finalidade a fiscalização da legalidade de um ato de direito comunitário. Neste caso o TJCE responde não através de um simples parecer, mas mediante acórdão ou despacho fundamentado. O tribunal nacional destinatário fica vinculado à interpretação dada. O acórdão do TJCE vincula também os outros órgãos jurisdicionais nacionais aos quais seja submetido um problema idêntico.57

50 Artigo 238, TCE. 51 Artigo 239 TCE. 52 KEGEL, 2004, p. 110. 53 Disponível em: < http://www.europa.eu.int>. Acesso em: 24 jan. 2006. 54 Disponível em: < http://www.europa.eu.int>. Acesso em: 24 jan. 2006. 55 Disponível em: < http://www.europa.eu.int>. Acesso em: 24 jan. 2006. 56 Disponível em: < http://www.europa.eu.int>. Acesso em: 24 jan. 2006. 57 Disponível em: < http://www.europa.eu.int>. Acesso em: 24 jan. 2006.

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É também no âmbito do processo de reenvio prejudicial que qualquer cidadão europeu pode solicitar que sejam esclarecidas as regras comunitárias que lhe dizem respeito. De fato, embora o processo de reenvio prejudicial só possa ser desencadeado por um órgão jurisdicional nacional, único habilitado a pronunciar-se sobre a sua oportunidade, todas as partes envolvidas, ou seja, os Estados-Membros, as partes já presentes nos órgãos jurisdicionais nacionais e, entre outras instituições, a Comissão, podem participar no processo perante o TJCE.58

58 Disponível em: < http://www.europa.eu.int>. Acesso em: 24 jan. 2006.

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2 - Evolução Jurisprudencial das Indicações Geográficas

Para tratar da evolução da tratativa das Indicações Geográficas no âmbito do TJCE, faz-se necessário compreender em que aspecto encontra-se este instituto inserido no âmbito da União Européia.

2.1 Princípio da livre circulação de mercadorias

Para Stelzer “a livre circulação de mercadorias representa a mais importante das quatro liberdades de integração (mercadorias, serviços, pessoas e capitais), pois forma o chamado ‘núcleo duro’ de um bloco econômico.”59 Este “núcleo duro” encontra-se embasado no artigo 3 do TCE, em seus itens 1, alínea a e c:

Artigo 3.o 1. Para alcançar os fins enunciados no artigo 2.o, a ação da Comunidade implica, nos termos do disposto e segundo o calendário previsto no presente Tratado: a) A proibição entre os Estados-Membros, dos direitos aduaneiros e das restrições quantitativas à entrada e à saída de mercadorias, bem como de quaisquer outras medidas de efeito equivalente; c) Um mercado interno caracterizado pela abolição, entre os Estados-Membros, dos obstáculos à livre circulação de mercadorias, de pessoas, de serviços e de capitais;

Este artigo é regulamentado pelo Título I da Parte III do TCE, artigos 23 a 31.

Conforme ressaltado por Almeida, o objetivo do TCE “é criar um mercado comum dentro do qual as mercadorias possam circular livremente”.60

Segundo Stelzer, “tradicionalmente, as barreiras levantadas para impedir a entrada de produtos classificam-se em tarifárias e não tarifárias, ou, sob melhor terminologia, aduaneiras e não aduaneiras.”61 Seguindo esta lógica, o TCE, em seu artigo 23, determina a proibição de estabelecimento de direitos aduaneiros de importação e exportação e de quaisquer encargos de efeito equivalente na relação entre os membros da Comunidade Européia; e em seus artigos 28 e 29, o Tratado proíbe as restrições quantitativas à importação e à exportação, bem como as medidas de efeito equivalente.

Segundo Campos e Campos, esta dupla proibição se deve ao fato de que “a simples eliminação dos direitos aduaneiros e encargos de efeito equivalente não bastaria, como é óbvio, para tornar efetiva a liberalização das trocas entre os Estados-Membros.”62 Ou seja, além das barreiras tributárias, havia necessidade de se coibir as restrições quantitativas, ou seja “vedar aos Estados a possibilidade de impedir ou restringir as trocas quer através de sua proibição pura e simples quer através de medidas limitadoras das quantidades a

59 STELZER, 2003, p. 473. 60 ALMEIDA, 1999, p. 215. 61 STELZER, 2003, p. 474. 62 CAMPOS & CAMPOS, 2004, p. 537.

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exportar ou a importar” 63 e as medidas que, embora não visem isso, tenham um efeito equivalente.

Contudo, estabelecer quais são estas medidas restritivas e, em especial, as de efeitos equivalentes, não foi imediata. Esta se consolida especialmente pela atuação do TJCE. Assim, a consolidação da livre circulação de mercadorias, em especial as restrições quantitativas e medidas de efeito equivalente, que são mais difíceis de serem verificadas e coibidas, deu-se em especial pela atuação do TJCE, especialmente devido a três julgados, segundo Stelzer: Dassonville64, Cassis de Dijon65 e Cinétheque66.

Em síntese, com relação ao acórdão Dassonville, o TJCE entendeu que “qualquer regulamentação comercial dos Estados-Membros, suscetível de prejudicar direta ou indiretamente, atual ou potencialmente, o comércio intracomunitário, deve ser considerada como uma medida de efeito equivalente a restrições quantitativas.”67 No caso Cassis de Dijon construiu-se o princípio do reconhecimento mútulo, pelos Estados-Membros da União Européia, de seus regulamentos respectivos, na ausência de uma regulamentação comum ou de uma harmonização comunitária. Desta forma, “mas que se abster de tomar alguma medida, exigia-se do Estado que acatasse a legislação dos outros Estados-Membros.”68 Com relação ao caso Cinétheque, o TJCE, indo além das medidas claramente protecionistas, determinou que uma norma expedida por um Estado-Membro não pode constituir uma restrição dissimulada ao comércio entre Estados-membros. Ou seja, ao comparar mercados, “se dessa comparação resultasse que uma determinada regulamentação comercial restringisse o comércio mais que outro mercado, tal circunstância poderia ser entendida na qualidade de discriminatória ou protecionista.” 69 Desta forma vinha se consolidando a jurisprudência comunitária com prevalência da livre circulação de mercadorias.

Contudo, o próprio Tratados das Comunidades Européias faz certas derrogações à regra da livre circulação de mercadorias, notadamente no artigo 30:

As disposições dos artigos 28.o e 29.o são aplicáveis sem prejuízo

das proibições ou restrições à importação, exportação ou trânsito justificadas por razões de moralidade pública, ordem pública e segurança pública; de proteção da saúde e da vida das pessoas e animais ou de preservação das plantas; de proteção do patrimônio nacional de valor artístico, histórico ou arqueológico; ou de proteção da propriedade industrial e comercial. Todavia, tais proibições ou restrições não devem constituir nem um meio de discriminação arbitrária nem qualquer restrição dissimulada ao comércio entre os Estados-Membros.

Dentre outras derrogações, com relação aos tópicos que se pretende estudar neste

artigo, o TCE, em seu artigo 30, deu prevalência aos direitos de propriedade intelectual sobre o princípio da livre circulação de mercadoria. Isso por que o direito de propriedade

63 CAMPOS & CAMPOS, 2004, p. 533. 64 Sentença do TJCE de 11 de julho de 1974. 65 Sentença do TJCE de 20 de setembro de 1979. 66 Sentença do TJCE de 11 de julho de 1985. 67 Sentença do TJCE de 11 de julho de 1974. 68 STELZER, 2003, p. 475. 69 STELZER, 2003, p. 475.

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industrial pode implicar em uma restrição à livre circulação de mercadorias devido a duas características suas: o direito exclusivo e a territorialidade deste direito.70

Almeida cita interessante situação: se uma mesma marca é protegida em Estados-Membros distintos, sendo sua titularidade de empresas diferentes, como se daria a livre circulação de mercadorias? Poderia o titular da marca opor-se à importação e venda do produto com a referida marca em seu Estado-Membro se esta foi legalmente produzida em outro Estado-Membro? Neste caso, não se estaria perante uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa? Todavia, o não permitir esta oposição estaria negando o direito exclusivo do titular da marca.71 Assim, o exercício do direito de propriedade industrial permitiria criar obstáculos de ordem legal à circulação de mercadorias na medida em que se reconhecesse ao titular o poder de impedir a importação de produtos abrangidos pelo seu direito de exclusividade. 72

Todavia o Tratado não particularizou quais restrições ao comércio são justificáveis por este artigo, especialmente quais institutos são considerados como propriedade industrial e comercial, nem deu estes poderes ao legislador nacional.

Segundo Campos e Campos:

Algumas destas medidas derrogatórias do princípio da livre circulação de mercadorias [...] podem ser tomadas pelos Estados unilateralmente, isto é, sem intervenção das instâncias comunitárias – embora a adoção de tais medidas esteja sujeita a um controlo ulterior de caráter administrativo (a cargo da Comissão) ou jurisdicional (a cargo do Tribunal de Justiça os dos próprios tribunais nacionais). 73

Ou seja, em princípio cabe à Comissão – que é um órgão independente dos Estados-Membros – “não só autorizar um Estado-Membro a adotar uma dada medida de salvaguarda, como igualmente revogar ou modificar a autorização que tenha concedido” 74. Além disso, também cabe à Comissão “fixar a natureza, as condições e modalidades de tais medidas, e bem assim o período de tempo durante o qual essas medidas podem ser aplicadas” 75.

Na omissão da Comissão, fica o delineamento deste item a cargo do TJCE. Isso por que este artigo é uma exceção à regra da livre circulação de mercadorias e por isso “o TJ entendeu que as exceções à regra geral devem ser interpretadas de maneira restritiva” 76.

2.1 A propriedade industrial na jurisprudência comunitária

Para Campos e Campos Segundo o Tribunal de Justiça, as restrições à livre circulação dos produtos, fundadas na proteção da propriedade industrial e

70 ALMEIDA, 1999, p. 215. 71 ALMEIDA, 1999, p. 216. 72 SOUZA E SILVA, 1996, p. 111. 73 CAMPOS & CAMPOS, 2004, p. 547. 74 CAMPOS & CAMPOS, 2004, p. 547. 75 CAMPOS & CAMPOS, 2004, p. 547. 76 ALMEIDA, 1999, p. 218.

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comercial, só são compatíveis com o Tratado na medida em que são justificada pelos direitos que constituem o objeto específico dessa propriedade, direito esse que, em matéria de brevêt (patentes) é designadamente de assegurar ao titular ... o direito exclusivo de utilizar uma invenção77. (grifos no original)

Souza e Silva divide em três fases a evolução da tratativa do tema da propriedade industrial pela jurisprudência comunitária. Em um primeiro momento há uma “afirmação da competência comunitária em matéria de propriedade industrial” a qual é acompanhada de “indecisões quanto ao alcance e modalidades dessa afirmação”.78 A segunda fase se caracteriza pela “escolha de critérios para delimitar o alcance dos direito de propriedade industriais” que é particularmente caracterizada pelo desenvolvimento dos princípios comunitários. 79 A terceira fase caracteriza-se pela “estabilização e aperfeiçoamento dos critérios já definidos, envolvendo a correção de alguns desvios registrados na jurisprudência precedente”. 80

2.1.1 – Primeira fase

O Caso Grundig v. Consten81 marca o primeiro entendimento relevante que o TJCE teve sobre o tema propriedade industrial. Neste caso específico esboçava-se a distinção entre a existência e o exercício do direito de propriedade industrial. Segundo esta sentença, embora o direito comunitário não possa interferir na atribuição do direito de propriedade industrial, relacionado a sua existência, ele poderá controlar, com base nas normas de concorrência, o exercício desse direito, com o objetivo de impedir o abuso de direito por parte dos respectivos titulares, sem afetar o uso normal do direito.82

O Caso Deutsche Grammophon83, demonstra a alteração do entendimento do TJCE, nos seguintes termos. Primeiramente afirma que o artigo 36 (agora artigo 30) do TCE não admite derrogações à liberdade de circulação de mercadorias, a não ser na medida em que esta derrogação seja justificada para salvaguardar os direitos que são o objetivo específico desta propriedade, no caso, os direitos de propriedade industrial. Em segundo, considera que, se um direito é invocado para proibir a comercialização de um produto em um Estado-Membro posto legalmente por seu titular ou terceiro autorizado em outro Estado-Membro, tal proibição vem a consagrar o isolamento dos mercados nacionais, o que colide frontalmente com a finalidade essencial do Tratado, que é a fusão dos mercados nacionais em um único mercado. Por fim, considera que esta finalidade de constituição de um mercado único não poderá ser atingida se os nacionais dos Estados-Membros puderem fechar os seus mercados.

Segundo Souza e Silva, “esta decisão constitui um marco fundamental na jurisprudência do Tribunal de Luxemburgo (TJCE).” Isso porque ela determina a aplicação das normas relativas à circulação de mercadorias à matéria da propriedade industrial. Além

77 CAMPOS & CAMPOS, 2004, p. 550. 78 SOUZA E SILVA, 1996, p. 135. 79 SOUZA E SILVA, 1996, p. 135. 80 SOUZA E SILVA, 1996, p. 135. 81 Caso Grundig v Consten. Sentença do TJCE de 13 de julho de 1966. 82 SOUZA E SILVA, 1996, p. 136-137. 83 Caso Deutsche Grammophon. Sentença do TJCE de 08 de junho de 1971.

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disso determina que “só serão admissíveis as restrições à circulação de mercadorias que sejam justificadas para salvaguardar o objeto específico daquele tipo de direito”. 84

Neste ponto o TJCE aproxima sua forma de delimitar o conteúdo e alcance dos direitos de propriedade industrial à teoria do esgotamento de direitos, posto que entende que, uma vez que o produto deste direito tenha sido colocado no mercado do território de um Estado-Membro de maneira legal, este produto poderá circular livremente em todo o território do mercado comum, por que “após a primeira colocação no mercado, efetuada pelo titular ou com o seu consentimento, o direito comunitário sobrepõe-se ao direito exclusivo derivado da lei nacional e o produto protegido fica sob a alçada da liberdade de circulação de mercadorias”. Ou seja: “o direito do titular, nesse momento, já se esgotou.” 85

No caso Keurkoop v. Nancy Kean Gifts, o TJCE afasta-se do conceito de objeto e se funda em outro critério que é o exercício legítimo do direito, em contraste com o abuso de direito. Neste caso, segundo Almeida, o TJCE entendeu o que o artigo 30 “protege o exercício legítimo dos direitos de propriedade industrial, mas não pode ser invocado a favor de um exercício abusivo desses direitos, com o objetivo de dividir artificialmente o Mercado comum.” 86

Passada a primeira fase, citada por Souza e Silva, passa-se a analisar a jurisprudência que aborda especificamente as Indicações Geográficas no âmbito do TJCE. 2.2 – As indicações geográficas na jurisprudência comunitária

Neste item busca-se explanar como se deu a evolução da jurisprudência do TJCE acerca das indicações geográficas, abordando-se para tanto os principais julgados, os quais definiram os principais marcos para a atual compreensão da indicação geográfica como um direito de propriedade intelectual, passível de ser incluído entre os direitos considerados no artigo 30 do Tratado das Comunidades Européias que considera justificada a proibição ou restrição à importação a proteção da propriedade industrial e comercial. 2.2.1 – Segunda fase

a) Caso Dassonville

O primeiro caso, Dassonville87, embora já citado por outro aspecto, inaugura a fase preliminar relacionada com indicações geográficas. Trata-se do caso de um comerciante que pretendia importar da França para a Bélgica o “Scotch Whisky” sem o certificado de origem da Administração aduaneira britânica. Todavia o governo belga exigia esta certificação. Embora ele pudesse obter esta certificação se importasse de um país terceiro, isso seria muito mais difícil do que importando diretamente do país de origem. Em suma, o TJCE entendeu que:

enquanto não for instituído um regime comunitário que garanta aos consumidores a autenticidade da DO de um produto, os Estados membros podem tomar medidas para evitar as práticas desleais na condição de que estas medidas sejam razoáveis e de que os meios

84 SOUZA E SILVA, 1996, p. 142. 85 SOUZA E SILVA, 1996, p. 142. 86 ALMEIDA, 1999, p. 219. 87 Sentença do TJCE de 11 de julho de 1974.

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de prova exigidos não tenham por efeito entravar o comércio entre os Estados Membros e sejam, assim, acessíveis a todos os seus nacionais.88

Conclui o TJCE que esta exigência por parte do Estado-Membro importador se

tratava de uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa incompatível com o TCE. Todavia, o TJCE não abordou se a questão de alguma forma se relacionava com o artigo 30 do TCE. b) Caso Comissão C.E. v. R.F.A. ou Sekt e Weinbrand

O segundo caso, Comissão C.E. v. R.F.A89, informa que a Alemanha (R.F.A.) segundo sua legislação interna, reserva as denominações “Sekt” e “Weinbrand” para produtos nacionais e a denominação “Prädikatssekt” apenas para vinhos produzidos na Alemanha a partir de uvas específicas. Desta forma, segundo a Comissão, a Alemanha viola as regras atinentes ao livre comércio de mercadorias do TCE. Com base na Diretiva 70/50/CEE, vigente ao tempo da demanda, que determinava em seu artigo 2, parágrafo 3, que são proibidas medidas que reservem unicamente para produtos nacionais denominações que não constituem nem DO nem indicação de proveniência, o TJCE decidiu que as denominações questionadas não se aplicavam a produtos cuja qualidade se deva a sua locação numa zona de proveniência determinada e que pode se aplicar a produtos importados. Isso por que a obrigação dos produtos não alemães em utilizar denominações desconhecidas no mercado interno alemão levariam a facilitar a venda do produto alemão e dificultar a venda dos produtos importados, o que significa que a legislação vinícola alemã comporta medidas de efeitos equivalentes a restrições quantitativas às importações.90 c) Caso Joh. Eggers Sohn & Co v. Hansestadt Bremen ou Weinebrand

O terceiro acórdão, Joh. Eggers Sohn & Co v. Hansestadt Bremen91, trata da restrição da utilização da denominação “Weinbrand” e “Qualitätbranntwein aus Wein” apenas a destilados de vinho que tivessem determinadas fases de produção em território alemão. Recordando a decisão anterior, o TJCE decidiu que esta restrição constituía uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa, segundo o artigo 30 (ora 28) do TCE, não justificada pelo artigo 36 (ora 30) do TCE. Isso por que não são justificadas com base no artigo 36 (ora 30) “as medidas de um Estado membro que subordinam, para um produto nacional, o uso de uma denominação de qualidade, mesmo facultativa – que não constitui nem uma denominação de origem nem uma indicação de proveniência” 92 no sentido da já citada Diretiva 20/50/CEE. 2.2.2 – Terceira fase

Estes acórdãos encerram a segunda fase citada por Souza e Silva, que constroem as linhas gerais da tratativa das Indicações Geográficas no TJCE. Parte-se neste ponto, para a análise das decisões que efetivamente constroem de forma positiva o entendimento do que

88 ALMEIDA, 1999, p. 224. 89 Sentença do TJCE de 20 de fevereiro de 1975. 90 ALMEIDA, 1999, p. 225-227. 91 Sentença do TJCE de 12 de outubro de 1978. 92 ALMEIDA, 1999, p. 230.

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são hoje as Indicações Geográficas no entendimento do TJCE, posto que até as decisões já citadas o Tribunal não havia se pronunciado no sentido de entender a DO como instituição incluída no âmbito do artigo 30 do TCE.

a) Caso Bodegas Unidas

Esta situação muda com o acórdão do caso Établissement Delhaize frère et Compagnie Le Lion S.A. v. Promalvin S.A. e AGE Bodegas Unidas S.A.93 No referido caso a empresa Delhaize encomendou da empresa Promalvin a quantia de 3.000 hl (três mil hectolitros) de vinho Rioja. Aceita a encomenda pela Promalvin, esta fez o pedido à empresa AGE Bodegas Unidas. Todavia a AGE Bodegas Unidas comunicou à Promalvin que não poderia atender ao pedido em face da regulamentação espanhola que proibia a comercialização de vinhos a granel, se estes tivessem denominação de origem. Mas esta mesma regulamentação permitia as vendas a granel no interior da região de produção. O Tribunal de Commerce de Bruxelas, onde foi apresentada a demanda, entendeu que se encontrava perante uma regulamentação espanhola que poderia ter sua validade questionada perante o direito comunitário e desta forma optou pelo Reenvio Prejudicial da demanda ao TJCE.

Em suma, o TJCE decidiu que este regulamento se constitui em uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa à exportação, que é proibida pelo ora artigo 29 do TCE, pois tem como efeito restringir especificamente as exportações de vinho a granel e desta forma obter uma vantagem particular para as empresas de engarrafamento nacionais situadas na região de produção. Esta restrição, imposta pelo referido regulamento, só poderia ser justificada por razões inerentes à proteção da propriedade industrial e comercial, conforme o atual artigo 36 do TCE, se fosse necessária para assegurar que a DO cumprisse sua função específica de garantir que o produto que a ostenta provém de uma zona geográfica determinada e apresenta certas características particulares, o que não seria o caso no referido julgado, posto que internamente pode haver esta circulação.

O interessante deste acordo, segundo Almeida, é que com o mesmo “ficou claro que as DO estão incluídas na propriedade industrial e comercial do art. 36, e, por outro lado, disse qual era a função específica da DO capaz de justificar restrições à liberdade de circulação de mercadorias”, qual seja, a de “garantir que o produto que a ostenta provém duma zona geográfica determinada e apresenta certas características particulares.”94

b) Caso Exportur

O segundo caso, Exportur S.A. v. LOR SA e Confiserie du Tech95, trata-se de um dos mais significativos para as DO no âmbito da UE, posto que distingue as indicações de proveniência das DO e estas das denominações genéricas. Neste caso a Exportur (sociedade das empresas exportadoras de torrões de Jijona), localizada em Jijona na Espanha, apresentou ação perante a Cour d’Appel de Montpellier, em face das sociedades Lor e Confiserie du Tech, com sede em Perpigna, França, pelo fato destas últimas estarem fabricando “touron jijona”, “touron catalan type Alicante” e “touron catalan type Jijona”. Ocorre que Jijona e Alicante são nomes de cidades espanholas. Em 27 de junho de 1973 foi firmado em Madrid um acordo bilateral, entre França e Espanha, relativo à proteção das

93 Sentença do TJCE de 09 de junho de 1992. 94 ALMEIDA, 1999, p. 241. 95 Sentença do TJCE de 10 de novembro de 1992.

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DO, indicações de proveniência e denominações de certos produtos. Neste as denominações “touron de Alicante” e “touron de Jijona” são exclusivamente reservadas, no território francês para os produtos espanhóis, sendo ainda proibida a utilização de termos tais como “tipo”, “gênero”.

Na dúvida com relação à compatibilidade do acordo bilateral com o TCE, o Tribunal optou pelo Reenvio Prejudicial da demanda ao TJCE.

Primeiramente, o TJCE estabeleceu a diferença entre indicações de proveniência e DO. A indicação de proveniência não se refere à qualidade ou tipicidade de um produto, cujo sabor especial se deva ao lugar de origem onde foi produzido. Trata-se de uma indicação que pode gozar de certa reputação perante o consumidor e garantir para os produtores do lugar uma forma essencial de fixação de clientela, devendo por isso ser protegido como tal. Já as DO garantem, além da proveniência, o fato da mercadoria ter sido fabricada de acordo com normas de qualidade e de fabrico aprovadas por um ato da autoridade pública e por esta controlada, garantindo assim existência de determinadas características próprias. Por isso estas últimas também permitem regras que determinem a proibição da utilização dos termos “tipo” ou “gênero”.

Em segundo lugar o TJCE tratou do princípio da territorialidade no âmbito das DO. Segundo este, a proteção das DO e indicações de proveniência é regulada pelo direito do país no qual a proteção é solicitada (país que vai importar) e não pela do país de origem. Isso quer dizer que uma DO no país de origem pode ser considerada genérica no país importador. Todavia este princípio pode ser derrogado por um acordo bilateral, como é no caso, que considera como tais as DO e indicações de proveniência de ambos os países mutuamente.

Como se questionou a validade do acordo bilateral perante a adesão da Espanha à UE posteriormente96, esta foi analisada pelo TJCE. Em regra as disposições de uma convenção celebrada depois de 01 de janeiro de 1958 por um Estado-Membro da UE com outro Estado não podiam, a partir da adesão deste segundo Estado à UE, aplicar-se à relação entre ambos, caso fossem contrárias às regras do TCE. Concluiu o TJCE que este acordo bilateral não é contrário ao TCE, prevalecendo o mesmo, posto que as proibições ficam no âmbito do atual artigo 36 do TCE. Ou seja, ambas constituem-se direito de propriedade industrial previsto como exceção à regra no referido artigo. c) Caso Condorniu

No terceiro caso, Codorniu S.A. v. Conselho C.E.97, ao contrário dos demais, onde se utilizou a via do Recurso Prejudicial, a empresa Codorniu requereu a anulação do então artigo 1, parágrafo 2, c do Regulamento (CEE) n. 2045/89, que alterou o Regulamento (CEE) n. 3309/1985. A empresa Codorniu requereu a anulação de um item que concedia com exclusividade o uso da expressão “crémant” para vinhos espumantes de qualidade elaborados na França e em Luxemburgo. Isso por que a empresa Condorniu, sociedade espanhola que se dedica à fabricação e comercialização de vinhos, é titular da marca “Gran Cremant de Codorniu”, a qual utiliza desde 1924. Além disso, outros produtos espanhóis utilizam a denominação Gran Cremant.

Verificou-se em primeiro lugar que a palavra Cremant não se refere a uma origem geográfica, mas sim a um método de fabricação de vinho. Alegou o Conselho que este

96 Na data da celebração do Acordo Bilateral a França já fazia parte da então CEE. 97 Sentença do TJCE de 18 de maio de 1994.

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tratamento diferenciado se deve ao fato de que Cremant é uma indicação tradicional utilizada na França e em Luxemburgo, o que ignorou o fato de que esta expressão também é tradicional na Espanha.98

O TJCE concluiu que a “a expressão crémant é atribuída principalmente com base no método de fabrico do produto; a atribuição da menção crémant não está dependente de uma conexão geográfica.” 99 Desta forma, “se o tratamento diferenciado não é justificado a medida impugnada deve ser anulada” 100.

d) Caso Winzersekt

O quarto caso, SMW Winzersekt v. Land Rheinland-Pfalz101, que se utilizou mais uma vez da via prejudicial, trata da possibilidade de utilização do termo “méthode champenoise”. A proibição de utilizar o referido termo, segundo o TJCE, é aplicável aos vinhos que não têm direito à denominação de origem controlada "Champanhe" e é imposta pelo artigo 6., n. 5, segundo e terceiro parágrafos, do Regulamento n. 2333/92/CEE, que estabelece as regras gerais para a designação e a apresentação dos vinhos espumantes e dos vinhos espumosos.

Primeiramente, segundo o TJCE, esta proibição não pode ser considerada uma violação a um direito de propriedade de um determinado produtor de vinho, posto que esta indicação, antes da entrada em vigor do regulamento, podia ser utilizada por todo e qualquer produtor de vinho espumante.

Além disso, o TJCE entendeu que para alcançar o objetivo de interesse geral constituído pela proteção das denominações de origem e das indicações geográficas dos vinhos, “o Conselho tinha legitimidade para considerar essenciais, por um lado, a informação precisa do consumidor final e, por outro, a impossibilidade de um produtor tirar proveito, para o seu próprio produto, da reputação firmada para um produto similar pelos produtores de outra região, o que implicava a proibição que ele estabeleceu, fazendo-a aliás acompanhar, para tomar em consideração a situação dos produtores a ela adstritos, de medidas transitórias e da possibilidade de recorrer a menções alternativas.” 102

Por fim, deve ser ressaltado que a medida não constitui uma violação do princípio da igualdade, “na medida em que o fato de certos produtores serem titulares do direito à denominação de origem controlada ‘Champanhe’ constitui um elemento objetivo que justifica uma diferença de tratamento em relação aos produtores de vinho espumante.” 103

e) Caso Montanha

Por fim, o quinto e último caso a ser analisado neste trabalho trata de um grupo de processos penais contra Jacques Pistre e Outros104, no qual a Cour de Cassation francesa levou ao TJCE uma questão prejudicial sobre a interpretação do artigo 2. do Regulamento n. 2081/92/CEE do Conselho. Em suma, esta decisão trata da questão da possibilidade de uma denominação, no caso “Montanha”, ser qualificada como indicação geográfica, denominação de origem ou indicação de proveniência.

98 ALMEIDA, 1999, p. 246. 99 ALMEIDA, 1999, p. 247. 100 ALMEIDA, 1999, p. 247. 101 Sentença do TJCE de 13 de dezembro de 1994. 102 Sentença do TJCE de 13 de dezembro de 1994. 103 Sentença do TJCE de 13 de dezembro de 1994. 104 Sentença do TJCE de 07 de maio de 1997.

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Os réus destes processos, franceses gerentes de sociedades com sede em Lacaune, na França, estavam utilizando as denominações “montagne” ou “monts de Lacaune” em produtos de charcutaria, embora não tivessem recebido a autorização prevista em legislação nacional para a utilização destes termos. 105

Os réus alegaram que a denominação “montanha” não se constituía em uma indicação geográfica, tratando-se de termo puramente descritivo e genérico, com o que concordou o TJCE. Reconheceu também o TJCE que não se tratava de uma indicação de proveniência, posto que esta se destina a informar o consumidor que um determinado produto provêm de um certo lugar, região ou pais. 106

Além disso, ao se tratar de uma regulamentação nacional que reserva a utilização de um determinado termo apenas para produtos fabricados no território nacional e elaborado a partir de matérias-primas nacionais, esta regulamentação entrava as trocas comerciais intracomunitárias, sendo discriminatória em detrimento das mercadorias importadas dos outros Estados-Membros. Sendo uma legislação discriminatória, esta só se justificaria se estivesse embasada no artigo 36 do TCE - no caso, como uma espécie de propriedade industrial. Não se reconhecendo a natureza desta denominação como sendo uma DO ou IG, não há como justificar esta discriminação, reconhecendo-se a mesma como contrária à livre circulação de mercadorias no âmbito das Comunidades Européias. 107

105 ALMEIDA, 1999, p. 248. 106 ALMEIDA, 1999, p. 249. 107 ALMEIDA, 1999, p. 249.

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Considerações Finais

O objetivo do presente trabalho foi apresentar a evolução da tratativa de um direito de propriedade industrial – as indicações geográficas e denominações de origem, em face do princípio do livre comércio e da livre circulação de mercadorias, analisado sob a ótica das decisões jurisprudenciais, especificamente do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias – TJCE. Para tanto, entendeu-se necessária uma breve introdução do funcionamento atual da União Européia, para que se compreenda em que contexto encontra-se este tribunal inserido. Além disso, optou-se pela análise da jurisprudência deste tribunal, por compreender-se tratar a União Européia de um dos berços deste instituto, e um dos locais onde mais se tem discutido a questão. Também, buscava-se verificar a convivência entre as legislações nacionais e a legislação comunitária, na tratativa deste assunto.

Buscou-se analisar todas as jurisprudências clássicas ligadas ao tema. Todavia, deve ser ressaltado que após estas decisões algumas alterações foram feitas nos próprios regulamentos que tratam das Indicações Geográficas no âmbito comunitário. No caso do vinho, em especial, o Regulamento n. 2392/1989/CEE do Conselho, foi substituído pelo Regulamento n. 1493/1999/CEE do Conselho. Já o Regulamento n. 2081/1992/CEE do Conselho, foi substituído pelo Regulamento 510/2006/CEE do Conselho. Em princípio, pelo que se pesquisou e com base nos principais autores que abordam a jurisprudência comunitária relacionada com o tema, não houve outros julgados que tenham alterado as linhas gerais acima expostas, o que não impede inovações futuras.

Em síntese, o que colheu das decisões analisadas é que a regra geral da livre circulação de mercadorias, um dos ápices da União Européia, pode ser desconsiderada em casos específicos, os quais são taxativamente indicados no artigo 30 do Tratado das Comunidades Européias. Dentre estes casos, encontra-se a propriedade industrial e comercial. Todavia, o próprio tratado não define o que se englobaria neste caso específico. Para tanto, conforme Souza e Silva, já citado, identificam-se três fases na evolução da tratativa do tema da propriedade industrial pela jurisprudência comunitária:

a) afirmação da competência comunitária em matéria de propriedade industrial; b) escolha de critérios para delimitar o alcance dos direito de propriedade

industriais; c) estabilização e aperfeiçoamento dos critérios já definidos, ao que se acrescenta a

definição dos direitos de propriedade industrial. Dentre estas fases, o que mais se destaca no âmbito das Indicações geográficas é o

seu reconhecimento como um direito de propriedade industrial perante o TJCE, a definição de seus institutos e o entendimento de que estes direitos não constituem simplesmente uma restrição quantitativa à importação ou exportação, ou ainda uma medida de efeito equivalente, mas direitos que devem ser preservados por garantir que o produto que ostenta uma IG ou uma DO provém duma zona geográfica determinada e apresenta certas características particulares, sendo justificadas no âmbito comunitário.

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Referências

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