As Ingrejas Orientais

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  • 7/25/2019 As Ingrejas Orientais

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    As Igrejas da Europa Oriental no contexto atual

    Pe. James McCann, SJ

    H muito tempo, numa Chicago longnqua, eu era aluno numa escola secundria que se chamaSanto Incio, dos Padres Jesutas. Todos cursvamos latim e depois nos davam a escolha de umalngua moderna: espanhol, francs, alemo e russo. O francs foi minha primeira opo, depois oalemo, e por sorte, coloquei o russo em terceiro lugar. Poucos alunos escolheram o russo, ento mecolocaram no curso de russo. Tive uma grande surpresa: gostei muito da lngua e logo a aprendi.

    Por que os jesutas ofereciam um curso de russo? Tinha um jesuta, um padre americano, que forasido enviado ao Russicum, de Roma, para estudar o russo a fim de eventualmente trabalhar numa

    parquia, se a Unio Sovitica abrisse suas portas aos padres estrangeiros. Porm, a Unio Soviticano se abria nunca. Aps seus cursos em Roma, o Pe. Meyers foi a Harbin, na China, onde tinhauma importante populao russa. Depois veio a revoluo de Mao. O Pe. Meyers voltou aos EstadosUnidos.

    Naquela poca os Soviticos enviaram o primeiro satlite, o Spoutinik, ao espao. Os Americanosficaram ento com medo de estarem atrs na corrida espacial. Por isso, acrescentaram mais cinciase matemticas no currculo das escolas. Encorajavam tambm o estudo da lngua russa. Nessecontexto foi pedido ao Pe. Meyers que ensinasse russo na escola onde eu estudava. Fui seu aluno.

    O mesmo Pe. Meyers organizou uma viagem Europa a um preo bastante interessante. Ganheibastante dinheiro em um trabalho de vero para comprar a passagem. Visitamos muitos pases,

    comeando pela Irlanda, onde encontrei meus avs pela primeira vez. A viagem compreendia aindaIstambul e a Unio Sovitica. Chegamos pelo Mar Negro a Odessa, onde se via a clebre escada.Depois tomamos o trem para Kiev, onde eu fiquei gravemente doente. A dor era to intensa que eumesmo chamei a , a ambulncia. A equipe mdica chegou perguntando ondeexatamente eu sentia dor e quanto ganhavam os mdicos nos Estados Unidos. Eles decidiram de melevar ao hospital, . , o Hospitalclnico de Kiev em nome da revoluo de outubro.

    L experimentei a maior dor de minha vida. Meu apendicite estuporou. Levaram-me logo para asala de cirurgia. A mdica, uma mulher de certa idade, com os cabelos cortados num coque, mesalvou a vida. Tambm recebi sangue. Sangue sovitico? Sangue ucraniano? Quem sabe? O

    certificado que me deram no fim de minha estadia de duas semanas dizia data da sada do hospital ou data da morte sublinhar. Deixei o hospital no dia 3 de agosto. Oito dias depois, a ferida ainda estava sendodrenada, entrei no noviciado da Companhia de Jesus, perto de Cincinnati, no estado de Ohio.

    Conto esta histria para explicar como fui parar no escritrio de Reitor do Pontifcio InstitutoOriental.

    Continuei meus estudos de lngua e literatura russa e depois de histria, lei e poltica na YaleUniversity e, mais tarde, na Princeton University. Entre os dois, terminei meus estudos de teologia

    para o sacerdcio no Centre Svres, de Paris, donde vem meu francs.

    Gosto muito do ensino. Desde cedo ensinei o francs e o russo, e depois as relaes internacionais e

    a poltica comparativa da Rssia e da Europa Oriental (sobretudo da Polnia e da Iugoslvia) naLoyola University, de Chicago e na Xavier University, de Cincinnati. Em 2003 me pediram paradeixar as aulas e dirigir o secretariado de ajuda aos pases da Europa central e oriental junto

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    Conferncia Episcopal Americana. Cada ano h uma coleta na maioria das parquias dos EstadosUnidos para a Igreja da Europa Central e da ex-Unio Sovitica. Isso compreende vinte e oito

    pases. O secretariado sustenta financeiramente todo tipo de projetos (a construo de igrejas, osmass media, as escolas, as bolsas de estudos, os seminrios, a formao de leigos etc.). Esta coleta provisria , iniciada h vinte anos, continua at hoje porque ainda h muita necessidade na

    regio.Aps sete anos em Washington, me chamaram a Roma e ao Oriental. Era completamenteimprevisto! Estou no Brasil pela primeira vez com o P. Massimo Pampaloni, SJ, para encontrar osmeios de aprofundar nossos laos com vocs.

    Hoje me pediram para falar sobre os desenvolvimentos na Europa Central e Oriental e na ex-UnioSovitica aps a queda do comunismo, no fim dos anos 80 e no comeo dos anos 90. Levando emconta minha formao, falarei da Igreja e da poltica.

    Em breve celebraremos vinte a cinco anos da queda do muro de Berlim. Como o tempo passarpido! Devo assinalar que nenhum especialista no domnio dos estudos soviticos ou da histria da

    poltica havia predito a queda do comunismo. Mesmo um homem de grande experincia como ofamoso Henry Kissinger havia assinalado que o sistema poltico comunista tinha fraquezasevidentes, que enfraqueceria e, talvez, entraria em colapso ao redor do ano... 2015.

    Quando olhamos a religio organizada da regio em 1989, temos a tendncia de ver algo cinzento einforme. Lembro-me desses grandes blocos de apartamentos soviticos construdos nos anos 60 e70. Eles pareciam to uniformes que as crianas que voltavam da escola se perdiamdesesperadamente, no sabendo em qual bloco sua famlia habitava. Para resolver isso, algum tevea brilhante ideia de pintar pictogramas de animais nos blocos para ajudar as crianas a encontrar seu

    bom caminho. Moro no bloco com a girafa. Tu, tu vives no do elefante.

    Temos a tendncia a pensar os pases da Europa oriental e a ex-Unio Sovitica do mesmo modocinzento e informe. Mas isso no realmente o caso. Na Polnia, havia uma tolerncia relativa ,aomenos da religio crist. Grupos cristos, pastores, bispos, professores encontravam meios muitoastuciosos para jogar o jogo, assegurando uma vida eclesistica relativamente fcil em estreitoslimites. A vida dos fiis na Tchecoslovquia era radicalmente diferente. Conventos e casasreligiosas fecharam suas portas definitivamente. As escolas religiosas no existiam mais. Uma redecomplexa de denunciadores (sobretudo no clero) assegurava o controle estrito da vida religiosa.

    A Unio Sovitica, que se vangloriava da liberdade religiosa dentre outros direitos,desenvolviameios mais complicados para restringir a religio organizada. As mquinas de datilografar e asfotocopiadoras eram rigorosamente registradas e frequentemente fechadas a chave. Se um grupo

    particular tinha conseguido anunciar sua mensagem, o KGB inundaria o mercado negro com papelespecialmente tratado que poderia ser descoberto pelos detectores. A imprensa secreta, ento, era

    estritamente limitada. De vez enquanto os lderes religiosos eram presos. A disseminao dareligio era formalmente proibida s crianas.

    Os cristos continuaram a formar comunidades de culto durante aqueles anos, frequentemente sobcircunstncias muito difceis e muito frequentemente sem padres nem pastores.

    A Igreja Ortodoxa Russa foi efetivamente destruda nos primeiros anos do poder sovitico. Haviaum programa de atesmo militante ou feroz. Stlin encontrou a religio, podemos assim dizer,durante a Segunda Guerra mundial. Ele pensava que uma reintegrao da Igreja Ortodoxa Russaseria til para o desenvolvimento do patriotismo russo (e no sovitico). H a muita ironia. Porcerto tempo, Stlin foi seminarista em sua Gergia natal. Certamente foi-lhe pedido para deixar oseminrio por causa de sua atividade revolucionria e sua participao em roubos de bancos!

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    A reintegrao da Igreja durante guerra teve certo sucesso. Soldados que iam para a morte gritando, ! Pela ptria, por Stlin! A ideia de ptria () tinha ento aomenos um pequeno contedo religioso.

    Os lderes soviticos do ps-guerra utilizaram a Igreja para a poltica estrangeira sovitica. Aps1946 o Patriarcado de Moscou tinha um Secretariado para as questes estrangeiras. A Igreja, apesarde ter sobrevivido, ficou irreversivelmente comprometida. A jovem gerao de 1989 compreendeu

    bem isso.

    Para os anos de minha infncia, rezava-se no fim da missa de cada domingo pela converso daRssia. Como se dizia ento: esteja atento ao objetivo de tua orao! A Unio Soviticadesmoronou, e a Igreja Ortodoxa Russa entrava numa era de renovao autntica.

    Vocs conhecem a histria da converso ao cristianismo da Rus de Kiev (o ancestral da Rssia)?Segundo a tradio, a Princesa Olga (talvez Helga), de Kiev, tornou-se crist. Ela tentava persuadirseu neto, o Grande Prncipe Vladimir, de tambm se tornar cristo. Vladimir convocou para umencontro representantes de todas as religies conhecidas. Ele enviou sua delegao ao redor domundo para conhecer os cultos de cada religio. Ele no gostava do Isl, mas nunca disse por que.A f crist latina, representada na poca pelos alemes, era sombria e cheirava mal. Seu culto,

    pouco impressionante, no possua beleza. Os judeus eram fascinantes, mas se sua lei e sua alianavinham de Deus, por que estavam dispersos por todo canto em tantos pases do mundo? O povode Romatomava hstias para a comunho, mas Jesus no tinha abenoado po?1

    A liturgia dos greco-cristos persuadiu Vladimir. Seus legados voltaram de Constantinopla com aclebre descrio da liturgia na Hagia Sophia. Estvamos maravilhados e no sabamos seestvamos no cu ou na terra... Deus est l com eles. No podamos esquecer tal beleza eharmonia2.

    Vladimir se converteu no ano 988, e assim se converteu o povo da Rus de Kiev. Como batiz-los?Orden-los de descer no rio Dniepr ! No uma grande surpresa que a converso total das pessoasno se realizou de uma s vez. Muitos costumes e usos pagos permaneceram at hoje.

    Do mesmo modo, quando a Igreja Ortodoxa Russa se encontrou de repente liberada de controlessoviticos, ela no podia planejar uma reintegrao plena de repente. Os imveis deviam serrestaurados, frequentemente de maneira radical. Muitas igrejas tinham sido utilizadas comodepsitos, ringues, salas de cinema etc. Donde viria o dinheiro para empreender uma restauraoto radical? Sem nenhuma dvida, do Estado. Devia se formar um novo clero numeroso. A se fezgrandes compromissos. Dava-se aos seminaristas uma formao muito superficial em teologia. Elesse precipitavam ordenao. Sua formao era provisria ao menos. Esta gerao do clero estagora recebendo uma melhor formao e atualizao, mas a Igreja tinha sofrido da fraca formaono comeo.

    O estado russo forte de Yeltsin e, mais tarde, de Putin, que sucedeu Unio Sovitica, desenvolvialaos estreitos com a Igreja Ortodoxa Russa. No somente Yeltsin, mas tambm Putin, retornaram

    pessoalmente Igreja e frequentavam muito frequentemente os ofcios, ao menos durante asgrandes festas. O dinheiro flua abundante da parte do Estado russo pra restaurar e construir igrejasortodoxas em todo lugar na Federao. Nos anos 30 a famosa Catedral do Cristo Salvador, emMoscou, tinha sido destruda por Stlin, que colocou a maior piscina do mundo em seu lugar.

    Em 1992, o primeiro ano depois da queda da Unio Sovitica, anunciaram um plano dereconstruo da Catedral exatamente como era em todo seu esplendor neogtico do sculo XIX.

    1Serge A. Zenkovsky, ed. The Nikonian Chronicle From the Beginning to the Year 1132 (Volume One), trans. S. A.and B. J. Zenkovsky, Princeton: The Kingston Press, Inc., 1984, 79-81.2Ibid., 98.

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    Acima desta estrutura imensa se previa a construo de escritrios para o Patriarca e sua comitiva.O custo total seria pago pelo Estado. Fala-se do equivalente de 500 milhes de dlares.

    Deram Igreja Ortodoxa muitos privilgios, inclusive uma licena especial para a venda de cigarrose licores sem taxas.3

    A Igreja Ortodoxa Russa, novamente revitalizada, achava-se confortvel em sua nova e recenteposio. A base teolgica para isso pode ser encontrada na noo de symphonia, que data da pocade Bizncio e, sobretudo, do reinado do Imperador Justiniano. Via-se o imprio como uma reflexodo Reinado de Cristo. A Igreja e o estado deviam colaborar para a realizao de um destinosublime do povo sob sua jurisdio e no existe conflito entre os meios utilizados pela Igreja e oEstado na promoo do bem comum de seus cidados. A Igreja e o Estado so separados em suas

    prprias esferas, mas desenvolvem uma relao ntimacuja linha de demarcao resta incerta.4Descreveu-se essa relao como uma maneira de exercer o poder poltico (para baixo), mastambm como uma estratgia para obt-lo (para o alto).5Dito de outro modo, cada lado aproveita

    politicamente da situao.

    A Duma, ou o Parlamento russo, aprovou um projeto de legislao regularizando o estatuto oficialdos grupos religiosos no pas. Nos primeiros anos ps-soviticos havia uma grande consternao noque concernia a atividade livre de certas seitasque vinham, majoritariamente, do Ocidente. Numacolaborao muito estreita com a Igreja Ortodoxa Russa, a Duma reconheceu quatro religiestradicionaisna Rssia: o cristianismo ortodoxo, o isl, o judasmo e o budismo. Alicja Couranoviescreveu, Eventualmente, mecanismos de cooperao (o que se chamava uma associao social)foram criados na esfera pblica, sobretudo na educao e no bem pblico.6 A Igreja OrtodoxaRussa continuava ao mesmo tempo uma atividade muito vigorosa na diplomacia internacional,gozando, desde 2003, dos laos estreitos com o Ministrio das Relaes Exteriores, sob SergeLavrov. Segundo esse regulamento, o territrio cannico da Igreja (ou seja, o territrio sobre oqual exerce sua jurisdio) se estende ao espao ps-sovitico inteiro exceto a Gergia e a

    Armnia.

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    A atividade das outras religies tradicionais at agora mnima. Notem que aortodoxia a nica forma aceitvel do cristianismo tradicional. Os outros cristos, como porexemplo, os catlicos, foram assim marginalizados do ponto de vista legal.

    A presena da Igreja Ortodoxa Russa em outros domnios sociais impressionante. A Igreja jogaum grande papel nas foras militares com a presena onipresente dos capeles. Aqui o patriotismo ea f esto estreitamente ligados. A Igreja tem boa reputao no que concerne a proteo dossoldados contra abusos arbitrrios do poder e contra o bullying.8Na educao, a EOR pediu cursossobre a Ortodoxia em todas as escolas do Estado na Rssia. Com o tempo, chegou-se a umcompromisso. Cada aluno deve escolher um curso entre as quatro religies tradicionaisou umcurso sobre a tica secular. No trabalho caritativo, a Igreja fornece os servios que eramassegurados antes pelo Estado sob o regime sovitico.

    3Michael Urban, Review of Russian Orthodoxy Resurgent: Faith and Power in the New Russia by John Garrardand Carol Garrard (Princeton: Princeton University Press, 2008) in Canadian-American Slavic Studies46 (2012),493-494.4Lucian N. Leustean, Orthodoxy and the Cold War. Religion and Political Power in Romania, 1947-65,Houndmills, Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2009, 10-11; Grigorios D. Papathomas, Le PatriarchatOecumnique de Constantinople (y compris la Politeia monastique du Mont Athos) dans lEurope unie, Katerini,Athens : Editions Epektasis, 1998, 705, cited in Leustean, 10.5Andrei Terian, Review of Orthodoxy and the Cold War. Religion and Political Power in Romania, 1947-65by

    Lucian N. Leustean(Houndmills, Basingstoke, 2009) in Europe-Asia Studies65, no. 1 (2013), 158.6Alicja Curanovi, Religion in Russias Foreign Policy,New Eastern Europe 3(VIII)/2013, trans. Justyna Chada.7Ibid.8Urban, 494.

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    A Igreja Ortodoxa Russa desenvolveu uma vida intelectual vigorosa nos anos ps-soviticos. Vriasinstituies de ensino superior foram fundadas ou restauradas. Algumas gozam do favor doPatriarca, outras menos. Pode-se falar do desenvolvimento de certas faculdades bastanteindependentes e de certas universidades independentes com um grande programa de estudos. Estasavanam lentamente segundo as normas do Ocidente.

    A biblioteca extraordinria do Pontifcio Instituto Oriental me recorda a energia da vida intelectualda Igreja Ortodoxa Russa antes da Revoluo de Outubro. Temos a tendncia, no Ocidente, de verna Rssia uma Igreja sempre isolada e no engajada no mundo mais amplo. No o caso. Quandonosso Instituto organizou um seminrio sobre o ponto de vista ortodoxo relacionado ao ConclioVaticano I, pensei que o mesmo seria muito breve. Mas, quando olhei as numerosas revistas deseminrios do interior (no em Moscou ou em So Petersburgo) que temos em nossa biblioteca, medei conta de quanto os movimentos intelectuais (religiosos e seculares) na Europa interessavam osortodoxos russos do sc. XIX.

    Neste ano h um grande debate no Parlamento russo sobre a possibilidade de dar Igreja OrtodoxaRussa uma posio especial na Constituio do pas. O Patriarcado de Moscou sustenta esta

    proposio, mas pediu um debate mais amplo na sociedade. Existe a possibilidade de se mudar oEstado russo de um estado secular (como hoje) a um estado onde o cristianismo ortodoxoconstituir a fundao da identidade nacional e a herana da Rssia.9

    No pode haver dvida sobre a posio de favorecimento da ortodoxia na Rssia de Putin. Este falamuito do modo como o estado russo tinha se tornado fraco. Ele fala tambm muito pouco docolapso da Unio Sovitica. Nesta mentalidade a ortodoxia se torna um instrumento do Estado euma parte integral da civilizao russa. Na perspectiva de Putin, as grandes mudanas provocadas

    pela globalizao poderiam roer a identidade russa e diluir a natureza especfica da cultura russa. Omundo do Isl tambm pe seus desafios civilizao russa. A Igreja Ortodoxa poderia compensarseus desenvolvimentos.10

    Os catlicos do mundo ps-sovitico descobriram logo que a EOR defenderia com vigilncia suasprerrogativas do territrio cannico. Em 2001, quando o Vaticano declarou a instalao de quatrodioceses na Federao russa, a resposta foi imediata e furiosa. Os catlicos so acusados ainda hojede se engajar no proselitismo, de perseguir sem justificao cidados ortodoxos inocentes e de leva-los converso. Agncias catlicas caritativas, como orfanatos, eram atacadas abertamente e vriasforam fechadas sob o pretexto de falta de proteo contra incndio.

    Os jesutas fornecem um exemplo interessante do destino dos catlicos na Rssia ps-sovitica.Primeira entidade religiosa baseada no estrangeiro a pedir um reconhecimento legal, a Companhiade Jesus recebeu tal reconhecimento oficial (da parte do Ministrio da Justia) em 1992, menos deum ano depois do colapso da Unio Sovitica. Fiis a seu voto ao Pontfice Romano, os jesutas so

    frequentemente enviados em qualquer parte no mundo com uma tarefa especfica. A Rssia eradiferente. O Papa pediu aos jesutas para irem Rssia e descobrir quais eram as necessidades dacomunidade catlica. Este caminho no era fcil. Mesmo agora, mais de vinte anos depois, asituao no clara.

    Por deferncia com os ortodoxos russos, os jesutas de rito bizantino trabalham na Ucrnia, e no naRssia. Todos os jesutas na Rssia (exceto o Bispo de Novosibirsk) celebram a liturgia

    9Nina Achmatova, The role of Orthodoxy in the Russian Constitution: the proposal raises controversy andfears,AsiaNews, 29 November 2013. See also the remarks of the influential Archpriest Vsevolod Chaplin, headof the synodal department on relations between the church and society, in Russian church calls for broad

    debate of idea for special role of Orthodox faith in Constitution, Interfax, 26 November 2013.10See reflections in Julien Nocetti, Review of The Religious Factor in Russian Foreign Policy, by Alicja Curanovi(London, 2012), Politique trangre, 2013, no. 1, 221-222; and in Andre P. Tsygankov, La Russie et le Moyen-Orient: entre islamisme et occidentalisme, Politique trangre, 2013, no. 1, 79-91, trans. C. Tarpinian.

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    exclusivamente em rito latino. Isso criou uma confuso cultural. Uma velha russa, que visitava umade nossas casas, via a capela, cujos desenhos tinham sido concebidos por um irmo polons. Ela

    pensava instintivamente que, talvez, se tratasse de um lugar santo, mas no estava segura. permitido rezar aqui?, perguntava ela de um modo muito russo.

    Os esforos dos jesutas em fundar um Instituto de ensino superior em Moscou encontraramdificuldades considerveis. No fundo deste problema h a realidade de que existem poucos jesutasde origem russa. Parecia, no comeo dos anos 90, que havia muitas vocaes, mas isso no seconfirmou. Com efeito, poucos candidatos permaneceram na Companhia. A lei russa pede que odiretor de um instituto de ensino superior, em qualquer lugar que seja na Federao, seja umcidado russo. Mas os jesutas russos so pouco numerosos. Por causa disso, o Instituto de Moscou

    possui dois reitores: um reitor de jure e um reitor de facto. Outras questes burocrticas tinhamforado o Instituto a mudar radicalmente seu programa de estudos ou ento o mesmo corria o riscode ser fechado atravs de um processo legal. A populao catlica pouco numerosa e muitodispersa em grandes territrios. Assim difcil para os jesutas discernirem e encontrarem um papel.Buscamos ainda.

    Gostaria de falar brevemente da Ucrnia. A situao religiosa antes da crise atual era caracterizadapor divises profundas. Na Igreja catlica os greco-catlicos dominam pelo nmero e influncia.Recentemente eles se transladaram: o patriarcado de Lviv est agora em Kiev. Os catlicos de ritolatino so muito pouco numerosos e esto concentrados na regio oeste do pas, sobretudo ao redorde Lviv. Como vocs sabem, por razes polticas delicadas, o chefe da Igreja greco-catlica oarcebispo maior, apesar de a Igreja ser em princpio patriarcal. Reza-se pelo patriarca naliturgia.

    At hoje, no perodo ps-sovitico, os greco-catlicos e os latinos no manifestaram uma grandeharmonia. Irromperam disputas ao redor do programa acadmico da Universidade CatlicaUcraniana, uma escola fundada pelos greco-catlicos. Grandes debates se desencadearam ao redor

    da posse dos imveis, cada vez que o Estado devolvia uma igreja aos catlicos. Em minhaopinio esta falta de solidariedade entre os catlicos levou-os a uma perda preciosa de influncia.

    A Igreja Ortodoxa da Ucrnia dividida em trs grupos diferentes: a Igreja Ortodoxa Ucraniana(Patriarcado de Moscou), a Igreja Ortodoxa Ucraniana (Patriarcado de Kiev), e a Igreja OrtodoxaUcraniana Autocfala. Tambm aqui, a falta de unidade fez diminuir a presena da Igreja nasesferas social, cultural e poltica. A mesma falta de unidade enfraqueceu a autoridade moral daIgreja.

    A situao atual na Ucrnia extremamente sria. Ela muda a cada dia. Ento, se falar no dia onzede maro, mas eu no falarei aqui no texto escrito.

    Falei muito da Rssia, mas muito importante! Farei agora algumas generalizaes sobre a situao

    na Europa central e oriental antes de nosso debate.Como em toda parte na Europa e na sia ps-comunista, as Igrejas manifestaram sua falta deexperincia com a democracia. O novo sistema poltico, embora ostentasse muita liberdade, erafrequentemente (e isso foi uma surpresa) muito intolerante com a religio organizada. Em certos

    pases, uma rigorosa separao da Igreja e do Estado foi introduzida na lei. Em outros pases, asIgrejas foram foradas a estabelecer compromissos com os homens polticos a fim de exercer umainfluncia poltica. Foram ainda foradas a aceitar o dinheiro pblico ou a estabelecercompromissos a fim de transmitir em todo canto sua voz.

    A Polnia, onde a Igreja catlica foi dominante durante sculos, apresenta um caso interessante. Ahierarquia catlica na Polnia tinha ao longo dos anos de comunismo desenvolvido meios muito

    astuciosos para evitar ser oprimida pelo sistema comunista. Aps a queda do comunismo, muitosbispos acreditavam com confiana que a grande influncia da Igreja seria inscrita na lei do pas.Com a evoluo de um novo sistema poltico, entretanto, isso no se deu.

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    Os primeiros anos da Polnia ps-comunista foram marcados por um grande caos no domniopoltico, com ao redor de 40 a 50 partidos que lutavam para chegar ao Sejm (Parlamento). Umgrupo, o Partido Polons dos Amadores da Cerveja, por exemplo, conseguiu 16 cadeiras no

    parlamento aps a eleio de 1991.11Os partidos eventualmente se consolidaram a fim de ir adiante.Naquele momento, alguns bispos pensavam que a promoo do ponto de vista catlico demandava

    o apoio da Igreja a um partido particular. Fazer isso (embora muitos bispos no tenham participado)era um bacio di morte, um golpe fatal no partido em questo. Sem nenhuma dvida os polonesesno queriam uma relao muito estreita entre a Igreja e o Estado. Aps esta experincia, a maioriados bispos se retirou desse tipo de jogo.

    Apesar de o consenso poltico ser raro na Polnia, o que demonstrado pela multiplicidade dospartidos, havia um acordo entre os poloneses sobre a necessidade da nao se confrontar com seupassado comunista. Num processo que se chamou de lustrao, vrias pessoas que tinhamocupado posies importantes na Polnia comunista foram examinadas minuciosamente paradiscernir seu papel no regime. Um Instituto para a Memria Nacional (Instytut Pamici Narodowej)assumiu esse delicado trabalho.

    Certas figuras catlicas foram examinadas, mas para a maioria dos casos a hierarquia escapava a umexame rigoroso. Esperava-se que a prpria Igreja tratasse o passado de seus lderes. Este no umcaptulo muito bonito na Igreja Catlica ps-comunista. Um dos piores momentos foi o danomeao, em dezembro de 2006, pelo Papa Bento XVI, de Stanisaw Wielgus como Arcebispo deVarsvia. Confessado por ele mesmo, e mencionado na imprensa, Wielgus tinha tido contatos comos servios secretos de inteligncia na Polnia comunista. Por causa do furor dos poloneses,Wielgus teve que pedir demisso j em janeiro de 2007. O embarao foi extremo. Ou a Igreja notinha examinado suficientemente o candidato a um posto to importante ou, implicitamente, elaqueria embaralhar as pistas de um passado colaboracionista. O caso deu impulso ao movimento dalustrao. Ao mesmo tempo, a Igreja prometeu olhar com lupa o passado de cada prelado em cadadiocese. Pode-se duvidar que tenha realizado suficientemente esta tarefa.

    A nova prosperidade da Polnia ps-comunista coincidia com um fenmeno j conhecido emmuitos pases, e, sobretudo, no Quebec e na Irlanda. Numa sociedade dominada por uma s tradioreligiosa, quando a nova liberdade coincide com a prosperidade, a frequentao da igreja cai e aigreja dominante perde sua influncia. o caso na Polnia, onde a frequncia caiu e as vocaes aosacerdcio e vida religiosa so menos numerosas que antes. No entanto, a Igreja possui uma vidaainda muito vigorosa e resta uma das mais fortes igrejas da Europa.

    A Igreja, com tudo isso deve lutar com o assalto da modernidade e de um relativismo moral. Estefenmeno criou certas posies extremistas. Como indica Keely Stauter-Halsted, o fato de a Igrejase concentrar em certas questes ticas como a contracepo... ajuda a explicar a irrupo de umaala radical e chauvinista do catolicismo [na Polnia].12

    Quando se olha toda a regio, se v em muitos lugares a evidncia de um velho modo de pensarsovitico que se poderia chamar em ingls zero-sum thinking- o que bom para mim mau parati, o que mau para ti bom para mim. Este modo de pensar toca mesmo as Igrejas, que veem asoutras Igrejas como concorrentes. A Igreja Ortodoxa Russa no aceita os catlicos porque eles, deum modo ou de outro, ameaam os ortodoxos russos, e, sobretudo as crianas. Os greco-catlicos eos latinos na Ucrnia se disputam publicamente a posse legal de igrejas devolvidas. Tais combatesintestinos levam a situaes que se tornam escandalosas.

    11

    Keith Crawford, East Central European Politics Today: From Chaos to Stability? (Manchester: ManchesterUniversity Press, 1996), 185-186.12Keely Stauter-Halsted, Review of Faith and Fatherland: Catholicism, Modernity, and Poland, by Brian Porter-Szcs(Oxford: Oxford University Press, 2011) inJournal of Modern History 85, no. 2 (June 2013), 468.

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    Em muitos pases ps-comunistas, uma nica Igreja domina, em detrimento das outras. Pequenosgrupos religiosos sofrem por causa disso. As atividades das religies em minoria sofrequentemente limitadas, como tambm seu acesso populao. Eles recebem frequentemente umestatuto legal inferior. Assim, a vida religiosa de todo o mundo diminuda.

    Pode-se perguntar em nossa discusso quanto de autoridade moral as igrejas teriam, levando emconta as dificuldades que mencionei. Pode-se igualmente perguntar o que explica a concentraosobre o interesse em si no lugar de concentrar sobre a unidade diante da invaso do poder doEstado. Finalmente, pode-se perguntar como as igrejas so responsveis por seus atos, nos domniossocial, poltico e mesmo econmico. A quem elas respondem?

    Obrigado pela vossa ateno. Alegro-me com uma discusso vigorosa!