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As Irmãs Grimm 1 - Detetives de contos de fadas

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Para Sabrina e Daphne Grimm, a vida não tem sido um conto de fadas. Depois do desaparecimento misterioso de seus pais, as irmãs vão morar com a avó – uma mulher que elas pensavam estar morta! A vovó Relda revela que as garotas têm dois ancestrais famosos, os Irmãos Grimm, cujo livro clássico de contos é, na verdade, um livro de histórias que registra travessuras mágicas. Agora, as meninas precisam assumir a responsabilidade da família e se tornar detetives de contos de fadas. O primeiro caso? Uma aventura de arrepiar para impedir que um gigante destrua a cidade para onde se mudaram. “Aventura, risadas e surpresas fizeram com que eu não conseguisse parar de ler.”

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AS IRMÃS GRIMMDETET IVES DE CONTOS DE FADAS

LIVRO 1

MICHAEL BUCKLEY

São Paulo 2010

Ilustrações de Peter Ferguson

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os gAlhos frondosos dA florestA raspavam em seus rostos e braços, mas Sabrina e Daphne não conseguiam parar de correr, apesar de estarem exaustas havia muito tempo. O medo comandava cada passo. Ouviram outro bramido retumbante ao longe, seguido pelo barulho de árvores sendo derrubadas e animais gritando. – Precisamos encontrar um jeito de acabar com isso – Daphne disse ofegante. Sabrina sabia que sua irmã mais nova tinha razão. Mas como? Elas eram duas crianças contra um monstro tene-broso. – Vou pensar em alguma coisa – Sabrina disse, pu-xando a irmã para trás de um enorme carvalho, porque as duas precisavam de um descanso. Sabrina apertou a mão de Daphne para acalmá-la, enquanto procurava respirar. Suas palavras tinham sido vãs. Ela não tinha um plano. A única coisa em sua mente naquele momento eram as batidas de seu coração. Mas não importava. Ele havia encontrado as duas. Lascas de madeira e terra caíram sobre elas quando a árvore sob a qual estavam foi violentamente arrancada. As meninas olharam para cima, para a cara horrorosa que as encarava, e sentiram o bafo quente em seus cabelos. O que houve com nossas vidas? – Sabrina perguntou a si mesma. Em que momento o mundo delas havia se tornado irreconhecível? E o que havia acontecido com ela, a menina de 11 anos que apenas dois dias antes era simplesmente uma órfã dentro de um trem?

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Vou morrer de tédio, Sabrina Grimm pensou ao olhar pela janela do trem para Ferryport Landing, Nova York.A pequena cidade a distância parecia ser forma-

da em grande parte por montes e árvores perto do Rio Hudson, gelado e sem graça. Alguns prédios de dois e três andares de arenito pardo se reuniam no que parecia ser a única rua da cidade. Além dela, havia quilômetros e quilômetros intermináveis de floresta perene. Sabrina não via cinemas, shopping centers nem museus e pen-sou que descrever Ferryport Landing como cidade era meio exagerado.

Pior que a cidade, só o clima. Chovia, e a chu-va sempre deixava Sabrina de baixo-astral. Prendeu o longo cabelo loiro atrás da orelha e parou de olhar pela janela, prometendo a si mesma que seria forte

DOIS DIAS ANTES1

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e não permitiria que sua irmã percebesse seu choro. Precisava ser a mais forte ali; afinal, estava prestes a completar 12 anos.

Daphne não notaria as lágrimas, de qualquer ma-neira. A irmã de Sabrina, de sete anos, manteve o rosto pressionado contra a janela durante toda a viagem de duas horas. Daphne havia ficado encantada com cada ponto horrível do mapa por onde passaram e só tirava os olhos das paisagens para fazer algumas perguntas sobre o destino.

– Eles têm rosquinhas em Ferryport Landing, Sra. Smirt? – Daphne perguntou para a mulher sentada na frente delas. A Sra. Minerva Smirt era a assistente social das irmãs. Uma mulher séria e carrancuda que devia ter quase 60 anos. Mantivera o nariz recurvado enfiado num livro a viagem toda de trem. Sabrina sabia que ela estava lendo apenas para não ter que conversar. A Sra. Smirt olhou para Daphne de maneira impaciente e bu-fou, como se a pergunta fosse mais do que ela pudesse suportar.

– É claro que têm rosquinhas. Há rosquinhas em todos os lugares – a Sra. Smirt respondeu.

– Na Lua, não – Daphne respondeu cheia de si e voltou a olhar pela janela.

A Sra. Smirt resmungou, o que fez Sabrina ter de abafar a risada. Ver Daphne deixando a assistente so-cial irritada era seu passatempo favorito. A mulher havia tomado a decisão errada ao escolher trabalhar com crian-ças, Sabrina pensou, principalmente porque parecia não

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gostar delas. A Sra. Smirt reclamava sempre que pre-cisava segurar suas mãos suadas, limpar os narizes es-correndo e se recusava a ler histórias antes da hora de dormir. Parecia gostar ainda menos das irmãs Grimm e as achava grosseiras, desobedientes e uma dupla de sa-bichonas. Por isso, Sabrina tinha certeza de que era uma missão pessoal para a Sra. Smirt tirar as duas do orfa-nato e enviá-las para alguém disposto a tomar conta de-las. Até então, não havia conseguido. Já havia mandado as irmãs para a casa de pessoas que, no geral, eram mal-vadas e, às vezes, malucas e que as colocavam para tra-balhar como empregadas, governantas ou simplesmen-te as ignoravam. Mas daquela vez ela tinha ido longe demais: estava enviando as duas para viverem com uma mulher morta.

– Espero que você não perturbe sua avó com todas essas perguntas ridículas! – a Sra. Smirt disse de manei-ra curta e grossa, como dizia quase tudo para Sabrina e Daphne. – Ela é velha e não aguenta muitas chateações.

– Ela já morreu! Eu já disse isso um milhão de ve-zes. Nossa avó já morreu! – Sabrina repetiu.

– Procuramos informações, Sally – A Sra. Smirt res-pondeu. – Ela é quem diz ser.

– Meu nome é Sabrina – a menina suspirou.– Ou isso. O orfanato não colocaria vocês duas sob

os cuidados de qualquer um – a Sra. Smirt disse.– É mesmo? E o que me diz da Sra. Longdon, que

jurava que o vaso sanitário do banheiro dela era assom-brado? – Sabrina perguntou.

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– Todo mundo tem suas esquisitices.– Ou o Sr. Dennison, que fez com que dormíssemos

dentro do caminhão dele? – Daphne se intrometeu.– Algumas pessoas adoram viver ao ar livre.– Os Johnson nos prenderam a um aquecedor! –

Sabrina exclamou.– Pode ficar pensando no lado negativo se quiser

– disse a Sra. Smirt. – Mas vocês deveriam ser gratas. As pessoas não se interessam muito em adotar crianças mal-educadas. Consegue imaginar como fiquei com ver-gonha quando soube o que você disse aos Keaton?

– Eles nos trancaram dentro de casa durante duas semanas para que pudessem viajar para Bora Bora – Sa-brina cantou.

– Acho que era Bahamas – Daphne disse.– Foram para Bermuda, e pelo menos trouxeram

camisetas para vocês duas – a Sra. Smirt disse. – Mas são águas passadas. Encontramos uma parente legíti-ma que está disposta a receber vocês duas. Mas, para dizer a verdade, meninas, eu as entregaria a seus cui-dados mesmo que ela fosse uma impostora. Não te-mos mais famílias interessadas em vocês. – Depois de dizer isso, a Sra. Smirt voltou a enfiar o nariz no livro. Sabrina viu o título: Como conseguir o amor que você quer.

– O que é impostora? – Daphne perguntou sem dei-xar de olhar pela janela.

– Significa alguém que finge ser quem não é – Sabrina explicou ao observar a chuva. No dia em que

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seus pais desapareceram, estava chovendo. Aquilo tinha acontecido havia mais de um ano e meio, mas Sabrina ainda sentia tristeza. Lembrava-se de que, naquela tarde, correu para casa com o boletim escolar guardado em se-gurança dentro de sua capa de chuva. Animada com suas notas A em matemática e inglês e seu B em ciências (e um pouco desapontada com seu C- em educação física), havia prendido o relatório na geladeira para que todos o vissem. Estranhara o fato de seus pais ainda não estarem de volta do trabalho, mas Sabrina não havia se preocupa-do com isso, até que a professora do jardim de infância de Daphne telefonou para saber por que ninguém tinha ido buscar a garotinha. Naquela noite, as irmãs dormiram na cama dos pais, esperando que eles voltassem para casa, enquanto trovões e raios dominavam o céu ao redor do apartamento. Quando a assistente social as buscou três dias depois, continuava chovendo, e o boletim de Sabri-na permanecia na geladeira esperando pelos elogios. Até onde Sabrina sabia, ele ainda estava lá.

A polícia deu início a uma investigação. Vasculha-ram o apartamento da família, em Nova York, à procura de pistas. Interrogaram vizinhos e colegas de trabalho. Coletaram impressões digitais e preencheram rela-tórios, mas não encontraram nada. Henry e Veronica Grimm simplesmente haviam desaparecido. Meses de-pois, a polícia encontrou o carro deles, abandonado. O único vestígio era uma marca de mão cor de sangue no painel do veículo. A polícia disse que não se tratava de sangue, mas, sim, de tinta, mas continuava sem pistas.

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A investigação chegara a uma rua sem saída. Enquanto isso, o orfanato para onde as irmãs haviam sido levadas começou a investigar por conta própria, procurando pa-rentes, mas, assim como a polícia, nada descobriu. Não existiam tios, avós, irmãos, irmãs nem mesmo primos de segundo grau. Os pais das meninas sempre diziam que eles eram a única família de que elas precisariam. Por isso, naturalmente, as irmãs ficaram chocadas quan-do uma mulher que afirmava ser a “Vovó Grimm” pediu a guarda delas.

O trem chegou à estação e Daphne afastou-se da janela, pôs a mão em concha na orelha de Sabrina e co-chichou: – Você acha que ela pode mesmo ser nossa avó? O papai contou que ela morreu antes de nascermos.

– De jeito nenhum – Sabrina disse quando o trem parou. – Não se preocupe. Vamos fugir antes de a velha maluca perceber.

Os passageiros ficaram em pé e pegaram suas ma-las dos compartimentos de bagagem acima de suas cabe-ças. Jogaram os jornais usados e com manchas de café no chão e seguiram em direção às portas. Um condutor anunciou que Ferryport Landing era a última parada.

– Meninas, vamos! – a Sra. Smirt ordenou, fa-zendo Sabrina sentir náuseas. Não queria conhecer a impostora que estava se fazendo passar por avó, mas não dava para discutir com a assistente social. A velha rabugenta tinha fama de durona e já havia deixado mais do que hematomas feios em órfãos respondões. Sabrina ficou em pé, tirou as duas malas pequenas do

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compartimento de bagagens e seguiu a Sra. Smirt e Daphne para sair do trem.

A chuva do final de novembro estava gelada. Daphne começou a tremer, por isso Sabrina abraçou a irmã e a segurou com força na plataforma lotada, ao lado da Sra. Smirt.

– Quando nós a encontrarmos, acho melhor vo-cês serem comportadas, ou estarão encrencadas – a Sra. Smirt avisou. – Nada de comentários grosseiros, respos-tas malcriadas, fiquem em pé, eretas, e tenham atitude de mocinhas pelo menos uma vez, ou então eu...

– Sra. Smirt? – uma voz interrompeu a ameaça da assistente social. As meninas olharam para a dona da voz e viram uma mulher rechonchuda diante delas. Usava um vestido azul-marinho que ia até os tornozelos e um xale branco de tricô ao redor dos ombros. Seu cabelo comprido e grisalho tinha mechas ruivas, revelando sua cor original, e ela o mantinha preso sob um chapéu azul--marinho que combinava com o vestido e tinha um bro-che grande de um girassol bem na frente. Seu rosto era bastante enrugado e flácido. Mas, mesmo assim, tinha um ar jovial. Talvez fossem as bochechas rosadas e os olhos verdes da mulher.

Ao lado dela estava o homem mais magro que Sa-brina já tinha visto. Tinha cabelos grisalhos despentea-dos e olhos enormes e marejados sob sobrancelhas que precisavam desesperadamente ser aparadas. Vestia um terno escuro vários tamanhos maior e segurava um guar-da-chuva com uma mão e o chapéu com a outra.

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A Sra. Smirt beliscou as meninas com força no om-bro, o que serviu como um aviso para que elas se com-portassem, e Sabrina pensou que aquela era também a última chance que ela teria de lhes causar dor.

– Sim, Sra. Grimm. Somos nós – a Sra. Smirt disse, transformando, com esforço, sua carranca de sempre em um sorriso.

– Sabrina? Daphne? – a mulher perguntou com um leve sotaque alemão. – Oh! Vocês duas são tão lindas! Que-ridinhas! Eu sou sua avó Grimm! – Ela abraçou as meni-nas com os braços gordinhos. As garotas tentaram escapar, mas a senhora parecia um polvo extremamente meloso, que as abraçava e beijava em seus rostos e ombros.

– Sra. Grimm, é um prazer conhecê-la – a Sra. Smirt interrompeu. A Sra. Grimm ficou ereta, e não era muito alta, e ergueu as sobrancelhas para a assistente social. Sa-brina podia jurar ter visto a senhora disfarçar um sorriso.

– É um prazer conhecê-las também – respondeu a Sra. Grimm.

– Estou muito contente por ter ajudado a senhora e as meninas a se reencontrarem.

– Tenho certeza disso – assentiu a senhora, dando as costas para a assistente social e piscando para as me-ninas. Pousou as mãos sobre os ombros das irmãs e as virou para seu acompanhante.

– Meninas, este é o Sr. Canis. Ele me ajuda a cuidar da casa e de outros assuntos. Ele também mora conosco e vai me ajudar a cuidar de vocês – ela disse.

As garotas olharam para o rosto abatido do velho.

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Ele era tão magro e parecia tão fraco que dava a impres-são de que o guarda-chuva que estava segurando cairia sobre sua cabeça a qualquer momento. Ele fez um mo-vimento de cabeça em direção às meninas e entregou o guarda-chuva à Sra. Grimm, pegou as malas e caminhou pela plataforma na direção do estacionamento.

– Bem, meninas, está na hora de dizer adeus – disse a Sra. Smirt, olhando para as portas abertas do trem.

Ela deu um passo adiante e abraçou Daphne sem ânimo, sussurrando alguma coisa em seu ouvido que fez a garotinha se encolher. Em seguida, envolveu Sabrina no abraço desagradável.

– Vamos fazer com que esta seja a última vez que nos vemos – a assistente social sussurrou no ouvido de Sabrina.

– Boa sorte, Sra. Grimm – a Sra. Smirt disse ao sol-tar Sabrina e esticou a mão para apertar a da senhora, que fez cara de quem seguraria um animal morto e fe-dorento. A assistente social, percebendo a desaprovação, hesitou por um instante e rapidamente entrou no trem sem olhar para trás. As portas foram fechadas e o trem partiu, voltando para a cidade de Nova York. Apesar de ter sentido uma grande alegria por estar livre da Sra. Smirt, Sabrina deu-se conta de que ela e sua irmã esta-vam sob os cuidados de uma desconhecida.

A Sra. Grimm continuou beijando as meninas até chegarem ao estacionamento, onde o Sr. Canis esperava por elas ao lado do carro mais velho que Sabrina já tinha visto. Sujo e coberto de pó, a porta de trás rangeu ao ser

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aberta pelo Sr. Canis, para que as meninas se acomodas-sem no banco.

– É seguro? – Sabrina perguntou enquanto o ho-mem e a senhora se acomodavam.

– Ele nos trouxe até aqui – disse a senhora rindo. – Acho que vai nos levar de volta.

O carro engasgou, falhou e, por fim, começou a funcionar, eliminando uma fumaça preta pelo carbura-dor. O motor fazia tanto barulho que Sabrina pensou que ficaria surda. Daphne levou os dedos aos ouvidos.

A Sra. Grimm virou-se para as meninas e gritou: – Apertem os cintos de segurança!

– O quê? – Sabrina gritou de volta.– O quê? – a senhora perguntou.– Não entendi! – Sabrina falou ainda mais alto.– Mais de seis! – a senhora respondeu.– Seis o quê? – Sabrina berrou.– Provavelmente! – A senhora riu, virando-se para

a frente.Sabrina suspirou. Daphne tirou os dedos dos ouvi-

dos tempo suficiente para prender o cinto velho. Sabrina rolou os olhos e procurou pelo cinto de seu lado. Pro-curou nos assentos rasgados e pegou uma corda velha e suja.

– Eu disse para vocês prenderem os cintos! – a Sra. Grimm disse.

– Isto? – Sabrina gritou, segurando a corda.– Sim, sim! Aqui! – a senhora inclinou-se no banco

de trás e amarrou as pontas velhas do cinto de segurança

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de Daphne na corda suja de Sabrina com tanta força que as meninas mal conseguiram respirar.

– Pronto! Mais unidas do que dois passarinhos num ninho! – a senhora disse.

– Também adoro golfinhos! – Daphne exclamou.– Não desde que machuquei meus dedos do pé! –

a Sra. Grimm gritou. Sabrina escondeu o rosto com as mãos e resmungou.Elas dirigiram pela cidadezinha, que era formada

por uma estrada de mão dupla margeada por algumas lo-jas de antiguidades, uma loja de bicicleta, uma delegacia de polícia, a Agência de Correio de Ferryport Landing, um restaurante chamado Old King Cole’s, uma loja de brinquedos e um salão de beleza. O Sr. Canis entrou à esquerda no único farol da cidade e em poucos segundos eles estavam fora da área urbana, no que a Sra. Grimm chamou de “zona rural” de Ferryport Landing. Na opi-nião de Sabrina, a única plantação naquela cidade era de lama.

A casa da Sra. Grimm ficava num monte pontuado por árvores a 15 minutos do bairro mais próximo. Era pequena e atarracada, assim como sua dona, e tinha dois pisos, uma varanda ao redor e pequenas janelas com cortinas azul-claras. Arbustos folhosos acompanhavam o caminho de pedras que levava para a porta de entrada. Tudo pareceria confortável, mas logo atrás da casa esten-dia-se a floresta – com os galhos pendendo do pequeno telhado, como se as árvores se preparassem para engolir a construção toda.

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– A senhora vive numa casa de bonecas – Daphne disse e a Sra. Grimm sorriu.

Mas Sabrina não estava satisfeita. O lugar era assus-tador e ela tinha a impressão de estar sendo observada. Estreitou os olhos para olhar entre as árvores frondosas, mas se havia alguém à espreita, estava bem escondido.

– Por que a senhora vive aqui? – ela perguntou. Na cidade de Nova York, todo mundo vivia amontoado, e era assim que Sabrina gostava. Viver no meio do nada era perigoso e suspeito.

– Oh, eu gosto do silêncio – contou a Sra. Grimm. – É bom não ter que escutar as buzinas.

E ninguém conseguiria escutar os gritos de crianças daqui de cima, Sabrina pensou.

O Sr. Canis destravou o grande porta-malas embo-lorado do veículo, tirou as duas malinhas e guiou a to-dos até a porta de entrada. A senhora seguia logo atrás, remexendo em sua bolsa até tirar dela o que parecia o maior chaveiro do mundo. Centenas de chaves estavam presas ali, uma diferente da outra: chaves finas feitas com o que parecia ser cristal, chaves antigas de latão, chaves novinhas e prateadas de muitos tamanhos e mui-tas que não se pareciam com chaves de jeito nenhum.

– Nossa! Quantas chaves! – Daphne exclamou.– Quantas fechaduras – Sabrina acrescentou ao lan-

çar um olhar para a porta da frente. Havia dezenas de ferrolhos de todos os tamanhos e formatos.

A Sra. Grimm ignorou o comentário e procurou no chaveiro, inserindo uma chave depois da outra nas fe-

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chaduras até destrancar todas elas. Em seguida, bateu três vezes à porta e disse: – Chegamos.

Daphne olhou para a irmã, tentando encontrar uma explicação, mas Sabrina não tinha o que dizer. Em vez disso, fez um movimento com o dedo ao lado da orelha e disse “louca” sem soltar a voz. A menininha sorriu.

– Deixe-me pegar seus casacos, lieblings – a Sra. Grimm disse quando elas entraram na casa e ela se virou para fechar a porta e trancar todas as fechaduras.

– Liebling? – Daphne perguntou.– Significa “querida” em alemão – disse a senhora.

Abriu um armário onde deixava seu casaco e muitos li-vros caíram a seus pés. O Sr. Canis rapidamente os pegou.

– Meninas, devo dizer que não sou muito boa em questões domésticas – a Sra. Grimm confessou. – Vamos jantar em uma hora – ela disse ao Sr. Canis, que pegou os casacos das meninas e se dirigiu para as escadas.

– Senhoritas, permita-me que eu apresente a casa – ela as direcionou para a sala de estar. Era enorme, uma sala muito maior do que parecia possível em uma casa tão pequena. Todas as paredes eram tomadas por estan-tes, recheadas com mais livros do que Sabrina já tinha visto. Pilhas deles ficavam no chão, sobre as mesas e em todos os cantos. Havia um bule de chá sobre uma pilha grande que dava a impressão de que desabaria a qualquer instante. Havia volumes embaixo das almofa-das do sofá e do tapete. Havia diversas pilhas enormes diante de uma televisão antiga, impedindo a visão de quem quisesse assistir a desenhos. Nas lombadas dos

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livros, Sabrina viu os mais estranhos títulos: Pássaros de Oz, A Autobiografia de uma Rainha Malvada e Sa-patos, Brinquedos e Biscoitos: Tradição de Artesanato de Duendes.

A Sra. Grimm entrou em outro cômodo com as me-ninas, onde havia uma mesa de jantar repleta de livros abertos e prontos para serem lidos. Sabrina pegou um deles e rolou os olhos ao ler o título: 365 Maneiras de Cozinhar Dragão.

A senhora apresentou cômodo por cômodo, mos-trando onde guardava os salgadinhos na cozinha de azu-lejos brancos e como fazer para fechar a porta velha do banheiro. Sabrina fingia estar interessada, mas, na ver-dade, secretamente “analisava o território”. Era uma téc-nica que ela havia aprendido quando passou um ano num abrigo. Em cada cômodo, observava a localização das janelas e portas, olhava para as fechaduras e presta-va bastante atenção aos pontos onde o piso rangia. Mas não foi fácil fazer aquilo ali. Sempre se distraía com os livros esquisitos e com as dezenas de fotos em preto e branco que decoravam as paredes. Na maioria delas era possível ver uma Sra. Grimm bem mais jovem e um homem atarracado e barbudo com um sorriso largo. Havia imagens dele caminhando na floresta, em pé sobre uma geleira, escalando uma montanha e até montando camelos no deserto. Em algumas fotografias, a Sra. Grimm carrega-va uma criança pequena numa cadeirinha, com o homem barbado ao lado dela, sorrindo orgulhoso para a câmera.

Daphne estava igualmente distraída, e quando vol-

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taram para a sala de estar, ela caminhou até uma foto e a observou com atenção.

– Esse era o seu opa, Basil – a Sra. Grimm disse saudosamente.

– Opa? – Daphne perguntou.– Avô, liebling. Ele faleceu cerca de 11 anos atrás

– ela disse.– Este é seu filho? – Daphne quis saber.A senhora sorriu e analisou a fotografia, como

se não tivesse certeza. – Este é seu papai – apontou com um sorriso. A menininha observou a foto com mais atenção, mas Sabrina se virou. Os bebês eram sempre todos iguais. Uma foto velha não podia provar nada.

– Oh! Eu me esqueci dos biscoitos – a senhora falou ao correr para a cozinha. Logo voltou com uma travessa com biscoitos de chocolate quentinhos. Daphne, é claro, logo pegou um deles e mordeu.

– Eles têm o mesmo sabor dos biscoitos de minha mãe! – ela exclamou.

– Como você acha que ela conseguiu a receita, meu anjo? – a Sra. Grimm perguntou.

Sabrina recusou-se a pegar um biscoito, lançando para a Sra. Grimm um olhar como se dissesse: “Sei mui-to bem quais são suas intenções”. – Não ia permitir ser comprada com biscoitos.

Naquele momento, o Sr. Canis entrou no cômodo.– Eu ia apresentar as meninas ao Elvis – a Sra.

Grimm disse a ele.

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O Sr. Canis esboçou um sorriso, fez um movimento de cabeça e passou por elas, em direção à cozinha.

Que homem esquisito, Sabrina pensou ao escutar dois rangidos altos no meio do piso da sala de estar.

– Ele é o seu namorado? – Daphne perguntou à senhora, que estava tentando equilibrar o prato de bis-coitos em cima de duas pilhas instáveis de livros.

A Sra. Grimm corou e sorriu. – Oh, querida, não. O Sr. Canis e eu não estamos nos cortejando. Somos apenas bons amigos – ela disse.

– O que significa cortejando? – Daphne perguntou à irmã.

– É uma palavra antiga para namorar – Sabrina res-pondeu.

De repente, houve um grande abalo na casa. Livros caíram das estantes, as janelas balançaram e a bandeja de biscoitos caiu ao chão antes de a senhora conseguir pegá-la. E então algo enorme entrou na sala, bem onde elas estavam.

A criatura se movia com tanta pressa, que Sabrina não conseguiu ver o que era. Empurrou abajures e cadei-ras, pulou sobre uma poltrona e derrubou as apavoradas meninas no chão. Sabrina gritou, certa de que elas esta-vam prestes a ser comidas quando, para sua surpresa, uma língua pegajosa lambeu seu rosto. Abriu os olhos e olhou para a cara simpática de um cachorro gigante.

– Elvis, por favor, saia de cima delas – a Sra. Grimm disse, meio brava e meio rindo do dogue alemão. – Ele sempre fica muito agitado com pessoas novas –

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o enorme cachorro deu mais uma lambida no rosto de Sabrina, deixando um longo caminho de baba, antes de se sentar ao lado da senhora, ofegante e balançando o enorme rabo.

– Este é o Elvis. Ele faz parte de nossa pequena fa-mília e é completamente inofensivo quando gosta de al-guém – a Sra. Grimm disse, acariciando a imensa cabeça do animal. O cachorro lambeu o rosto dela.

– E quando ele não gosta? – Sabrina perguntou ao se colocar em pé. A avó ignorou a pergunta.

Daphne, por outro lado, levantou-se e abraçou o cachorro. – Oh, adorei ele! É tão fofo! – ela riu enquanto beijava o animal.

– Este é o único namorado que tenho – a Sra. Grimm falou sorrindo. – E provavelmente o mais esperto que já tive também. Vejam!

Daphne deu um passo para trás e ela e Sabrina observaram quando a Sra. Grimm esticou a mão na di-reção de Elvis. – Elvis, a patinha – ela pediu, e o ca-chorro ergueu a pata enorme e colocou-a na mão da senhora.

Daphne riu.– Finja que está morto – Daphne disse e o animal

caiu duro para o lado. O impacto fez com que muitos livros balançassem nas estantes.

A Sra. Grimm riu. – Vocês duas devem estar mor-rendo de fome depois da viagem. Acho que é melhor eu começar a preparar o jantar. Espero que gostem de espa-guete e almôndegas.

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– Adoro espaguete e almôndegas! – Daphne excla-mou enquanto Elvis lhe dava mais uma lambida.

– Sei disso – a Sra. Grimm disse com uma piscade-la. Entrou na cozinha, onde começou a mexer em pane-las e pratos.

– Não gosto daqui nem um pouco, Daphne – Sa-brina resmungou enquanto secava a última lambida do cachorro. – Não se acostume com este lugar. Não ficare-mos por muito tempo.

– Deixe de ser metida a besta – Daphne falou ao dar um beijão em Elvis. “Metida a besta” era seu adjetivo favorito ultimamente. – Ela não nos machucaria. É legal.

– É por isso que as pessoas malucas são perigosas. A gente pensa que elas são legais até que, um dia, acaba-mos acorrentadas na garagem – Sabrina respondeu. – E não estou sendo metida a besta.

– Está, sim.– Não estou, não.– Está, sim – Daphne insistiu. – Qualquer coisa é

melhor do que morar no orfanato, certo?Daphne tinha razão. Sabrina aproximou-se da fo-

tografia que a senhora dizia ser do pai delas e observou com atenção. O bebê de bochechas rosadas parecia olhar fixamente para ela.

O Sr. Canis tirou de cima da mesa de carvalho uma quantidade suficiente de livros para que todos pudessem