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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO DA ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL DISSERTAÇÃO DE MESTRADO ORIENTADORA: SUELY SOUZA DE ALMEIDA ORIENTANDA: CAMILA PIMENTEL FREIRE “AS MARCAS DA TORTURA ENGENDRADA PELA DITADURA MILITAR BRASILEIRA”

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO DA ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

ORIENTADORA: SUELY SOUZA DE ALMEIDA

ORIENTANDA: CAMILA PIMENTEL FREIRE

“AS MARCAS DA TORTURA ENGENDRADA

PELA DITADURA MILITAR BRASILEIRA”

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RESUMO

Este trabalho investigou o terror de Estado, um dos instrumentos por excelência de violação dos direitos humanos, assim como os mecanismos ideológicos, materiais e culturais que legitimaram a ditadura militar brasileira. Ademais, privilegiaram-se as marcas visíveis e invisíveis/invisibilizadas deixadas pela tortura engendrada nesse período de barbárie da recente história brasileira, na subjetividade de ex-presos políticos. A discussão da tortura foi central: a sua singularidade, a brutalidade de seus métodos, de suas técnicas e a legitimidade alcançada em um determinado sistema político.

Palavras-chave: Ditadura Militar; Tortura; Direitos Humanos.

ABSTRACT

This work investigated the terror of State, one of the instruments for excellence of breaking of the human rights, as well as the ideological mechanisms, material and cultural that had legitimized the Brazilian military dictatorship. And also, the visible and invisible marks had been privileged left by the torture produced in this period of barbarity of recent Brazilian history, in the subjectivity of former-prisoners politicians. The discussion of the torture was central: its singularity, the brutality of its methods, its techniques and the legitimacy reached in one determined system politician.

Word-key: Military Dictatorship; Torture; Human rights.

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SUMÁRIO

Apresentação--------------------------------------------------------------------7

Introdução----------------------------------------------------------------------11

Capítulo 1 - Heranças da Ditadura Militar: Resistência e Memória---------34

Capítulo 2 –As Marcas Visíveis e Invisíveis da Tortura----------------------57

2.1- O Paradoxo da Tortura---------------------------------------------------80

2.2- Considerações sobre Legitimidade da Ditadura Militar Brasileira-----85

Capítulo 3- Projeto Clínico-Grupal/Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de

Janeiro: a clínica articulada à política----------------------------------------93

3.1- A Produção de Subjetividades e a Prática Clínica do Projeto Clínico-

Grupal--------------------------------------------------------------------------98

Considerações Finais---------------------------------------------------------120

Anexo A- Métodos de Tortura Utilizados pela Repressão Estatal---------128

Anexo B- Red Latinoamericana y Del Caribe de Instituciones de La Salud

Contra La Tortura, La Impunidad y Otras Violaciones a Los Derechos

Humanos-----------------------------------------------------------------------133

Anexo C- Proposta de Roteiro para Entrevista com Paciente do Projeto

Clínico-Grupal-----------------------------------------------------------------137

Anexo D- Proposta de Roteiro para Entrevista com Profissionais do Projeto

Clínico-Grupal-----------------------------------------------------------------140

Anexo E- Filmes e Vídeos----------------------------------------------------142

Anexo F- Relação dos Entrevistados----------------------------------------148

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Dedico esta dissertação àqueles que me cercam

com seu amor: meus pais,

José Marcos e Ana Lúcia.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço profundamente aos meus pais que, em todas as ocasiões, me

presentearam com seu apoio e carinho.

Ao meu marido Fábio, pelo incentivo e compreensão.

À Suely Almeida, orientadora por excelência.

À Victoria Grabois, pois sua trajetória de vida despertou-me para a

recente história brasileira que até então desconhecia.

À Adriana Freitas, pela amizade verdadeira.

À Vera Vital Brasil, sempre disponível, importante mediadora entre

mim e o Projeto Clínico-Grupal.

A todos aqueles que partilharam suas histórias de vida, seus projetos

e a sua dor por meio das entrevistas, fundamentais para a realização desta

dissertação.

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“Eu quase nada sei,

mas desconfio de muita coisa”

Guimarães Rosa1.

1 ROSA, J. Guimarães. “Grande Sertão: veredas” In: João Guimarães Rosa. Ficção Completa. Vol. 2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p. 16.

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APRESENTAÇÃO

No curso de Serviço Social, foram abordadas questões que

despertaram, como estudante da graduação, a iniciação da construção de um

futuro projeto profissional. A profissão tem como um dos pilares de seu

projeto ético-político a defesa dos direitos humanos e a negação do

autoritarismo, e dessa forma, aponta como compromisso uma intervenção

com vistas a fortalecer o acesso aos direitos civis, sociais e políticos.

O Código de Ética Profissional do Assistente Social, aprovado em 13

de março de 1993, pelo Conselho Federal de Assistentes Sociais (C.F.A.S.),

tem como uma de suas prerrogativas a defesa intransigente dos direitos

humanos.

No movimento das ações no campo dos direitos humanos como

perspectiva de enfrentamento da questão social, o Serviço Social tem um

grande desafio político. A profissão que, historicamente, teve sua

constituição fundamentada na “questão social”, como expressão máxima do

conflito capital-trabalho, tem um papel fundamental com relação ao

combate à violação dos direitos humanos, tão duramente conquistados pela

"classe" trabalhadora2.

2 Um ponto pertinente a ser ressaltado é a questão da indivisibilidade dos Direitos Humanos. Embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos tenha apontado a universalidade de tais direitos, os direitos econômicos, sociais e culturais passaram a ter uma maior atenção das convenções legais a partir da I Conferência Mundial de Direitos Humanos, de Teerã (1968) e, com maior ênfase, na II Conferência Mundial de Direitos Humanos, de Viena (1993). Esta conferência reafirmou a universalidade dos Direitos Humanos, seu caráter de totalidade e interdependência. No Brasil, “o debate sobre a necessária articulação entre as denominadas primeira e segunda gerações de direitos consubstanciou-se na Constituição Brasileira de 1988” (Almeida, 2001). Embora, no plano do discurso, os direitos sociais tenham sido incorporados, no campo das ações, a maioria das organizações e dos militantes ainda se restringe à defesa dos direitos

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O interesse pelo tema iniciou-se com a minha inserção como bolsista

de iniciação científica no núcleo GECEM – Gênero, Etnia e Classes – Estudos

Multidisciplinares –, por meio da pesquisa “Violência Estatal e Lutas Sociais:

a Constituição de Sujeitos”, que tem como objeto de estudo a violência

perpetrada por agentes de Estado: na ditadura militar contra protagonistas

da resistência ao regime, em um primeiro momento da pesquisa; e a violência

estatal direcionada a camadas menos favorecidas da sociedade brasileira,

de corte classista e racista, na segunda fase do processo de pesquisa.

Através de algumas das atividades desenvolvidas no âmbito da pesquisa,

como a atuação em entrevistas, a elaboração de relatórios, o estudo de

casos e a própria aproximação com a bibliografia referente ao tema, o

desejo de aprofundar elementos da discussão passou a ser crescente. A

interlocução com as histórias de vida, concretas, de atores vivos,

representantes da história como forma de resistência, somente confirmou a

escolha.

A violência estatal tem sido camuflada, caracterizando um quadro de

impunidade fortemente presente. Ocultam-se momentos violentos da

trajetória social e política brasileira, assim como a experiência de

resistência à violência sistemática do poder estabelecido. As instituições

estatais e seus agentes ainda estão perpassados por práticas ditatoriais,

especialmente no que concerne ao tratamento de presos e de moradores de

áreas menos favorecidas, principalmente os jovens pobres e negros.

Ademais, percebi a importância de pesquisar a temática, pois está

fortemente presente na atualidade, em função do recrudescimento da

violência estatal.

Durante o período de pesquisa, foram entrevistados sujeitos -

civis e políticos, não visualizando o seu formato indivisível e limitando o seu espaço de atuação.

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inseridos no Projeto Clínico-Grupal do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ

(GTNM/RJ) - atingidos pela tortura institucionalizada no regime militar. O

Projeto Clínico-Grupal criou uma abordagem inovadora, no que diz respeito

ao apoio médico-psicológico aos direta ou indiretamente atingidos pela

repressão estatal. O trabalho de campo foi complementado por meio de

entrevistas com profissionais que atuam no referido grupo, nas quais se

buscou elaborar um mapeamento das diversas experiências dos envolvidos,

portadores de níveis diferenciados de apropriação do espaço político. Para a

dissertação, foram utilizadas duas entrevistas realizadas com profissionais

do Projeto Clínico-Grupal do GTNM/RJ e cinco entrevistas com usuários do

referido Projeto, sendo que duas delas fazem parte do acervo da Pesquisa

intitulada “Violência Estatal e Lutas Sociais: a constituição de sujeitos”. As

demais entrevistas fazem parte do processo de pesquisa desta dissertação.

Nas entrevistas realizadas exclusivamente para esta dissertação, foram

escolhidos profissionais e usuários do Projeto Clínico-Grupal. A perspectiva

profissional trouxe um debate acerca da prática clínica hegemônica e

daquela adotada pelo Projeto; os usuários relataram o impacto do Projeto

em suas vidas e como reelaboraram a questão da tortura a partir de então.

Embora os entrevistados, especialmente os usuários, possuam diferentes

inserções políticas no que diz respeito à resistência ao regime militar,

partilham da experiência de participarem do Projeto, o que para a pesquisa

era suficiente e enriquecedor.

A fim de orientar o pensamento e captar a singularidade do fenômeno

estudado, foram construídas categorias, que, por meio do processo do

conhecimento, levaram à explicitação das contradições presentes no objeto

de estudo. Os dados obtidos pela pesquisa foram confrontados com as

categorias de análise à luz de um corpo teórico pré-existente e selecionado

(GOHN: 1984).

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Através da análise dos relatos obtidos nas entrevistas – ainda que,

muitas vezes, as falas sejam demasiadamente explícitas - buscou-se captar

as dimensões do fenômeno, almejando-se a ruptura com o senso comum e

suas representações.

No capítulo 1, procurar-se-á estudar o terror de Estado, um dos

instrumentos por excelência de violação dos direitos humanos e investigar

os mecanismos ideológicos, materiais e culturais que legitimaram a ditadura

militar, utilizando-se da violência/da tortura como prática

institucionalizada. Nesse sentido, busca-se estabelecer uma tentativa de

recuperação da memória coletiva, fundamental para a caracterização da

história como um espaço por excelência de gestação das condições de

reprodução política e social dos seres humanos.

No capítulo 2, investigar-se-ão as marcas visíveis e invisíveis

deixadas pela tortura engendrada na ditadura militar brasileira, na

subjetividade de ex-presos políticos. Ademais, buscar-se-á estudar os

efeitos e as (re)elaborações realizadas por esses protagonistas no espaço

público e privado. Nessa segunda etapa, será redimensionada a prática da

tortura no campo da política; a sua singularidade, a brutalidade de seus

métodos, de suas técnicas e a legitimidade alcançada em um determinado

sistema político.

No capítulo 3, será realizado o debate de uma prática clínica que traz

um viés inovador, em que se articula política e clínica, através de um

trabalho realizado pelo Projeto Clínico Grupal do Grupo Tortura Nunca Mais

do Rio de Janeiro, que propõe uma prática clínica diferenciada das

intervenções “psi” hegemônicas. Nesse sentido, será feita uma análise de

como os sujeitos inseridos no Projeto Clínico-Grupal elaboram suas

apropriações da situação de extrema violência a que foram submetidos.

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INTRODUÇÃO

Embora em um cenário da chamada “transição democrática” em que

avanços no campo da democracia formal foram conquistados, como por

exemplo, a Constituição Federal de 1988, que traz em seu bojo a afirmação

de uma série de direitos, as práticas de tortura se repetem cotidianamente,

especialmente nas instituições do Estado.

Chauí (2006)3 apresenta a democracia como uma forma sócio-política

definida pelo princípio da isonomia, da legitimidade do conflito e dos

direitos como conquista e espaço constitutivo da luta por novos direitos.

Dessa forma, Chauí afirma que a democracia surge como um regime

político singular, na medida em que carrega na sua própria constituição a

abertura para o novo.

Entretanto, a forma hegemônica de democracia no bojo da sociedade

capitalista é aquela em que se preconiza a sua definição liberal. Nesta

concepção, a democracia é reduzida a um “regime político eficaz, baseado na

idéia de cidadania organizada em partidos políticos, e se manifesta no

processo eleitoral de escolha dos representantes, na rotatividade dos

governantes e nas soluções técnicas para os problemas econômicos e

sociais” [grifos originais] (idem).

Paoli e Telles afirmam que na década de 90 já se presenciava a

consolidação da democracia:

“(...) entramos nos anos 90 com uma democracia consolidada,

3 CHAUÍ, Marilena. Educação em Direitos Humanos: memórias e desafios no contexto das sociedades contemporâneas. In: Congresso Interamericano de Educação em Direitos Humanos. Educação em Direitos Humanos nas Sociedades contemporâneas. Brasília, 2006. Anais eletrônicos. Disponível em: http:www.planalto.gov.br/sedh. Acesso em: 01. nov. 2006.

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aberta ao reconhecimento formal dos direitos sociais, garantias

civis e prerrogativas cidadãs reivindicados, mas que convive

quotidianamente com a violência e a reiterada violação dos

direitos humanos – um mundo que encena o avesso da cidadania e

das regras de civilidade, um mundo que (...) garante os direitos

políticos democráticos mas não conseguem fazer vigorar a lei, os

direitos civis e a justiça no conjunto heterogêneo da vida social,

subtraídos que são por circuitos paralelos de poder que obliteram

a dimensão pública da cidadania, repõem a violência e o arbítrio na

esfera das relações privadas, de classe, gênero e etnia, e tornam

o Estado cada vez mais ineficaz em tornar efetivas suas próprias

regulações” [grifos meus] (2000: 103).

Coutinho discute essa noção de democracia anterior de Paoli e Telles,

apesar de afirmar que, na atualidade, podem ser encontrados elementos

democráticos nas instituições brasileiras. Entretanto, como pensar

efetivamente em democracia no Brasil, enquanto os sujeitos não possuem

igual acesso a informação, enquanto práticas de usurpação de direitos

fundamentais são abstraídas da memória social e histórica do país e

enquanto estas se apresentam recorrentes, ainda hoje, no cotidiano das

instituições estatais?

Coutinho (1997) debate a contraposição entre “democracia burguesa”

e “democracia proletária”. Para o autor, seria um reducionismo pensar que

somente seria proletária a “democracia direta, participativa, baseada nos

conselhos ou sovietes (...) também os institutos da democracia

representativa tal como hoje existem – parlamentos eleitos por sufrágio

universal através do embate de partidos políticos de massa – são uma

conquista dos trabalhadores, ou, em outras palavras, são resultado de um

processo de lutas que ampliou o estreito horizonte teórico e prático do

liberalismo burguês originário” (p. 154-155).

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Segundo o autor, a ampliação da cidadania constitui um “processo

progressivo e permanente de construção dos direitos democráticos que

caracteriza a modernidade – termina por se chocar com a lógica do capital”

(p. 158). Esse encontro, afirma Coutinho, é contraditório e acaba por

caracterizar o processo de recuo do próprio capitalismo, obrigando-o a

fazer concessões. Para o autor, existe uma tendência nesse processo: a

“ampliação progressiva das vitórias da economia política do trabalho sobre a

economia política do capital (para retomarmos a expressão de Marx), ou

seja, a introdução cada vez maior de novas lógicas não mercantis na

regulação da vida social” (p. 159).

De acordo com Coutinho, o antagonismo entre cidadania plena e

capitalismo remete a uma outra contradição: cidadania e a existência da

classe social4. Palavras do autor: “(...) só uma sociedade sem classes - uma

sociedade socialista pode realizar o ideal da plena cidadania, ou, o que é o

mesmo, o ideal da soberania popular e, como tal, da democracia” (idem).

Chauí (2006) observa que justamente pelo princípio da isonomia,

característico da versão não-liberal da democracia, é que se põe a

contradição da vigência da democracia em uma sociedade de classes: como

conciliar igualdade e liberdade com as desigualdades sociais?

A vigência da democracia plena no Brasil pode também ser

questionada por meio de algumas ações políticas dos recentes governos

brasileiros. Após 31 anos do golpe militar e 16 da aprovação da Lei da

Anistia, o Estado Brasileiro, por meio do governo Fernando Henrique

Cardoso, se “propôs” a resolver o caso dos mortos e desaparecidos

políticos5, decretando, em dezembro de 1995, a Lei nº 9.140, cuja principal

4 O limite entre as classes sociais representa uma barreira inegável para a afirmação da democracia. 5 Uma figura criada pela ditadura brasileira na década de 70 e utilizada por outros regimes

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medida é o pagamento de indenização às famílias. O governo apresentou

esta proposta em decorrência da pressão de familiares e de entidades

nacionais e internacionais de Direitos Humanos. Assim, foi reconhecida

formalmente a responsabilidade da União pela morte de 136 desaparecidos

políticos entre o período de 02/09/1961 e 15/08/19796 e, posteriormente,

devido à resistência, foram incluídos na listagem prevista pela lei, aqueles

que durante o regime militar foram publicamente reconhecidos como

mortos7.

Entretanto, a Lei 9.140/95 apresentava três problemas

fundamentais: 1) eximia o Estado e seus agentes de responsabilizar-se pela

morte e desaparecimento dos opositores políticos no período do governo

militar; 2) não assumia a responsabilidade plena pela apuração das

circunstâncias das mortes e desaparecimentos, cabendo aos familiares

obter a documentação capaz de fornecer elementos para desvendar cada

caso. Dessa forma, recaía sobre as famílias o ônus da comprovação das

denúncias. Ademais, não determinava a abertura incondicional de todos os

arquivos do aparato repressivo daquela época, sob jurisdição do Estado; 3)

estabelecia a exclusão de muitos brasileiros que morreram lutando pela

liberdade, aceitando assim a versão difundida pela ditadura militar, não

ditatoriais da América Latina. São considerados desaparecidos políticos as pessoas desaparecidas em virtude de envolvimento, ou acusação de envolvimento, em atividades políticas. A referência se dá em relação aos que militavam no período do regime ditatorial. 6 Segundo o Relatório Azul, publicação anual da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos, 283 formas de tortura foram utilizadas pelo regime militar entre 1964 e 1979, este último, o "ano da Anistia". O Relatório também apresentou que 1.918 presos políticos disseram ter sofrido algum tipo de tortura nesse período. RONIGER, Luis; SZNAJDER, Mario. O Legado de Violações dos Direitos Humanos no Cone Sul. Tradução: Margarida Goldsztajn. São Paulo: Perspectiva, 2004. 7 Ainda em relação ao número de militantes assassinados em nome da Doutrina de Segurança Nacional e não contemplados pela lei, estão: os mortos em tiroteios e emboscadas; os brasileiros desaparecidos em outras ditaduras latino-americanas (139 no Brasil, 7 na Argentina, 5 no Chile e 1 Bolívia); e os opositores argentinos desaparecidos no Brasil após o ano de 1979.

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contemplando todos os opositores do regime assassinados por agentes da

repressão, ou mesmo, os “desaparecidos” no período de 1979 a 1985.

A Lei 9.140/95 trazia em seu bojo uma importante questão: a das

indenizações8. “Círculos militares e a própria mídia têm tentado reduzir a

luta pelo reconhecimento do que ocorreu nos anos 60 e 70 a uma simples

indenização” (COIMBRA, 1997). Isto já era previsto pelo fato de as

próprias fontes governamentais priorizarem as indenizações, em detrimento

do esclarecimento das circunstâncias dos assassinatos e mortes cometidos

pelos agentes da repressão – como, onde, quando e por quem. Além deste

aspecto, estão os atestados de óbito, que seriam um não-reconhecimento,

pois não contêm informações caracterizadoras das mortes. Os dados foram

fornecidos pelos próprios familiares, e esses atestados não esclarecem

como se deram as mortes, nem os locais onde foram enterrados.

Em todos os anos de luta contra a barbárie engendrada pelo regime

militar brasileiro, em nenhum momento fora solicitado por familiares e

entidades algum tipo de reparação pecuniária pela perda sofrida ou mesmo

pelas perseguições e humilhações. Para Coimbra (1997), a indenização é um

direito, pois dentro do sistema capitalista é por meio dela que o Estado

reconhece sua responsabilidade. Porém, para a autora, representa apenas

um efeito. Nesse sentido, a luta teria como objetivo o total esclarecimento

8 O governo argentino oferece 240 mil dólares por cada desaparecido político. A posição das Mães da Praça de Maio quanto a esse mecanismo é de oposição total. “Nós, as mães, não aceitamos a reparação econômica, ninguém vai colocar preço na vida de nossos filhos. De nenhum jovem, não tem dinheiro que pague uma vida (...) pretendem que a vida de nossos filhos tenha um preço (...) Há 30 mil que estão na lista dos desaparecidos, que levaram de nossas casas, comparar um filho com uma geladeira” (Hebe Bonafini: 2001). Quanto às famílias brasileiras, atingidas pelo Estado militarizado repressor, diferentes posicionamentos foram observados acerca da referida lei. A filha de um opositor assassinado pelo regime e considerado como morto aceita a indenização como algo positivo, mas insuficiente: “com esse projeto, com a indenização que eles ofereceram eu me sinto humilhada e porque eu acho que a gente tá nesse sistema capitalista e o que incomoda é dinheiro. Então eu acho que pra me indenizar, tem que ser muito dinheiro, alguma coisa que incomode, entendeu? O dinheiro que eles deram foi um cafezinho, entendeu?” .

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dos crimes cometidos pelos agentes do Estado.

O Brasil e outros países têm obrigações a serem cumpridas perante

os organismos internacionais, por terem ratificado Convenções, Tratados e

Pactos de respeito aos direitos humanos.

Entre as recomendações proferidas recentemente pelo Relator das

Nações Unidas, está a de que “as mais altas lideranças políticas federais e

estaduais precisam declarar de forma inequívoca que não tolerarão a

tortura ou outras formas de maus tratos por parte de funcionários públicos

(...)” (TORTURA NO BRASIL, 2004)9.

Após a visita do Relator Especial da ONU e a publicação de seu

relatório, o governo brasileiro sob a presidência de Fernando Henrique

Cardoso, lançou o Plano Nacional de Combate à Tortura, em 2001. Também

foi lançada a Campanha Nacional Contra a Tortura10, por meio de um

9 O Relator das Nações Unidas sobre Tortura, na época sir Nigel Rodley, esteve no Brasil em 2000, convidado pelo governo nacional, entre os dias 20 de agosto e 12 de setembro. O Relator visitou Brasília e cinco capitais do país: São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco e Pará.. Em todas as visitas, com exceção da primeira, sir Rodley conheceu instituições carcerárias, centros de detenção - pré-julgamento e para meninos em conflito com a lei - e ainda penitenciárias (2004). 10 Segundo a denúncia da diretoria do GTNM/RJ: “(...) operação de marketing preparada e agora montada pelo governo brasileiro – através da Campanha Nacional Contra a Tortura – para favorecer sua imagem de defensor dos direitos humanos dentro do país e fora dele”.. O Grupo Tortura Nunca Mais/RJ ainda relembra o episódio: “Já em 1989, o Brasil assinava a Convenção Contra a Tortura da ONU, tendo que entregar, no ano seguinte, um Relatório sobre a situação desta prática em nosso país. Somente dez anos depois, em 2000, este documento foi encaminhado para as Nações Unidas. Naquele mesmo ano, pressionado internacionalmente pelas entidades de direitos humanos devidos às torturas que ocorriam cotidianamente no país, o governo federal convidou para visitar o Brasil, o Relator Especial da ONU Contra a Tortura. O Relatório Rodley, tornado público em abril de 2001, faz uma série de recomendações ao governo brasileiro, afirmando que o uso da prática da tortura no país é ‘generalizado e sistemático’. A partir daí, o governo FHC iniciou a montagem de sua operação de marketing anunciando uma Campanha Nacional Contra a Tortura” (Campanha Nacional Contra a Tortura: qual o propósito? GTNM/RJ–www.torturanuncamais-rj.org.br). O GTNM/RJ ainda fez importante denúncia: “Com o objetivo de dar legitimidade e credibilidade a esta Campanha o governo tentou seduzir e cooptar algumas importantes entidades brasileiras de direitos humanos. Entendemos que tal fato é extremamente perigoso e nefasto, pois com isto se está servindo e respaldando um governo que tem

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convênio entre o Ministério da Justiça – Secretaria de Estado dos Direitos

Humanos – e a Sociedade de Apoio aos Direitos Humanos, órgão de

representação do Movimento Nacional dos Direitos Humanos (MNDH). A

Campanha teve como objetivo “implantar uma Rede Nacional de Combate à

Tortura e uma Central Nacional, (...) encarregada de receber e tratar os

casos de tortura e tratamento cruel, desumano e degradante, repassando-

os às Centrais Estaduais, que ficaram responsáveis por dar andamento às

denúncias perante as autoridades, articulando esforços para garantir apoio

e proteção às vítimas, testemunhas e suas famílias” (TORTURA NO

BRASIL, 2004).

Na época de seu lançamento, algumas entidades de direitos humanos

e combate à tortura criticaram o Governo, sinalizando que a iniciativa seria

marketing de quem vinha sistematicamente violando normas e tratados

ratificados pelo Brasil. Ainda salientavam que o SOS Denúncia tiraria do

Estado a responsabilidade da denúncia, investigação e punição, pois caberia

ao indivíduo a denúncia do crime de tortura11.

Outras questões foram levantadas. Segundo o Movimento Nacional de

demonstrado não só ineficácia na área dos direitos humanos, como sua falta de vontade política para pensar seriamente sobre estas questões” (idem).

11 “O S.O.S. Tortura, espetacularmente veiculado nos meios de comunicação de massa, responsabiliza o indivíduo – afetado ou não – pela denúncia do crime de tortura, não provendo meios de controle sobre tal prática. Assim, retira do Estado e de seus agentes o ônus da denúncia e mesmo da investigação e penalização desse crime” (Campanha Nacional Contra a Tortura: qual o propósito? GTNM/RJ– www.torturanuncamais-rj.org.br). No Brasil, existe uma lei específica sobre a tortura: a Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997, conhecida como “Lei da Tortura”:“constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa e c) em razão de discriminação racial ou religiosa” (...) submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo” (...) Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal” (§ 1º).

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Direitos Humanos – MNDH –, o Ministério Público apresentou uma grande

resistência em receber as denúncias, visto que eram anônimas, logo,

incompletas. O Programa de Capacitação de Operadores de Direito para a

Prevenção da Tortura (voltada para integrantes do Judiciário, Defensorias

e Ministério Público) também não foi implementado.

O Governo Luís Inácio Lula da Silva, com início no ano de 2003,

embora tenha apresentado elementos mais progressistas, inclusive com a

presença de sujeitos da história de resistência do período ditatorial no mais

alto escalão de representação do governo, persistiu na mesma lógica do

governo anterior, do pacto entre as elites12.

O então Secretário Especial de Estado de Direitos Humanos,

Nilmário Miranda, no governo Luís Inácio Lula da Silva, afirmou a sua

pretensão de erradicar a tortura no Brasil. Na Resolução Nº 10, de

fevereiro de 2003, foi criada uma Comissão Especial, inserida no Conselho

de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, a fim de acompanhar denúncias e

formular sugestões. Em um período posterior, pela Resolução Nº 29, foi

12 O governo de Luís Inácio Lula da Silva assinou o Decreto nº 4.850, de 02 de outubro de 2003, instituindo uma Comissão Interministerial com o objetivo de adquirir informações que levem apenas à localização dos restos mortais de participantes da Guerrilha do Araguaia. Decisão que já se anunciava quando a Advocacia Geral da União recorreu da sentença histórica dada pela juíza federal, Dra. Solange Salgado, que determinou a abertura de todos os arquivos das Forças Armadas, inclusive a intimação dos militares de quaisquer patentes envolvidos para prestarem depoimento. Apesar das insistentes solicitações dos familiares de mortos e desaparecidos políticos, o governo federal continuou a afirmar o seu posicionamento de não-esclarecimento dos acontecimentos ocorridos durante o regime militar. A Comissão Interministerial representou um retrocesso na luta pelo direito à justiça e à verdade dos fatos, estruturalmente governamental - sem a presença de representantes da sociedade civil; enquanto outros países latino-americanos que passaram por ditaduras militares também sangrentas, instalam comissões com maior independência do Estado e transparência. A comissão totalmente sigilosa – selecionando os fatos que poderiam ter visibilidade pública - reproduz uma prática adotada durante o tempo em que os militares se encontraram no poder.

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criado o Grupo Móvel13, que se deslocaria a instituições policiais, prisionais

e unidades de cumprimento de medidas sócio-educativas a partir de

denúncias de prática de tortura, para tomar depoimentos de vítimas,

testemunhas e realizar entrevistas com os próprios policiais e com agentes

penitenciários”14.

Em junho de 2003, foi assinado o Protocolo de Ação Contra a

Tortura, com o intuito de estabelecer um pacto de combate à tortura no

território nacional: entre o Superior Tribunal de Justiça; a Procuradoria

Geral da República, Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão;

Ministérios Públicos dos Estados representados pelo Conselho Nacional de

Procuradores Gerais de Justiça; Ordem dos Advogados do Brasil; Ministério

da Justiça e Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da

República, entre outros (TORTURA NO BRASIL, 2004).

O Protocolo previu a criação de oficinas de trabalho, onde seriam

trocadas experiências e se constituiriam espaços multi e interdisciplinares.

Porém, o Protocolo somente reiterou os acordos firmados na Campanha

Nacional Contra a Tortura.

A Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da

República – SEDH/PR, por meio da Portaria nº. 102/2005, instituiu a

Comissão Permanente de Combate à Tortura e à Violência Institucional. A

Comissão é composta por servidores da Ouvidoria-Geral da Cidadania e da

Coordenação-Geral de Combate à Tortura.

Dentre as ações pretendidas pela Comissão estão: a realização de um

módulo sobre direitos humanos e tortura para ser aplicado em escolas de

formação de policiais e de agentes penitenciários, incluindo cursos de

13 Segundo o Relatório Tortura no Brasil, até o momento de sua publicação, o Grupo Móvel “não teve a atuação relevante que a gravidade do problema requer” (2004:18). 14 Disponível em: www.presidencia.gov.br/sedh. Acesso em: 12 Mai 2006.

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capacitação para os instrutores policiais e penitenciários; a criação de um

Disque Direitos Humanos, aproveitando os avanços alcançados pelo SOS

Tortura e corrigindo suas falhas, analisando a experiência do Disque Abuso

e Exploração Sexual e de sistemas semelhantes de recebimento e

encaminhamento de denúncias e reclamações sobre as instituições do

Sistema de Justiça Criminal existentes em outros países; a ratificação do

Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e

outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotado

pela Assembléia Geral da ONU em 18 de dezembro de 2002, assinado pelo

Brasil, mas ainda não ratificado (TORTURA NO BRASIL, 2004).

Nessas medidas, incluem-se também ações voltadas para a

responsabilização de agressores: a criação de ouvidorias independentes

para receber denúncias de tortura e acompanhar as investigações; a criação

de corregedorias específicas do Sistema Policial e do Sistema Penitenciário;

a capacitação dos profissionais da saúde que atuam no sistema prisional para

o registro e encaminhamento legal dos casos de tortura e de maus tratos a

que forem submetidos os presos; a adoção de medidas que tornem mais

rápidas as apurações das denúncias de tortura e maus tratos e que levem à

demissão do pessoal envolvido (ibidem)15.

O campo dos direitos humanos avança: iniciativas surgem a partir da

articulação e pressão de movimentos que pressionam o Estado. Entretanto,

alguns setores da sociedade, em sintonia com outros pólos da opinião

pública,

ainda tratam a questão dos direitos humanos com um discurso

extremamente conservador e estigmatizante. Portanto, são necessários

intensos estudos comprometidos com o desvelamento do processo histórico

15 As medidas que a Comissão pretende implementar são amplas e demandam um trabalho a longo prazo, por essa razão, ainda não é possível realizar uma avaliação.

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de constituição e perpetração do fenômeno da violência, ressaltando a

questão dos direitos humanos como uma conquista gerada pelas lutas sociais.

O crescimento da sociedade civil, como espaço de busca e efetivação

de direitos, tem polemizado a discussão em torno do papel do Estado e seus

investimentos no cenário público. Observa-se que a maioria das organizações

que abarca o tema dos direitos humanos ainda se limita à denúncia de

violação dos direitos civis e políticos, o que é absolutamente necssário,

conquanto insuficiente.

Segundo Acanda (2006), a sociedade civil é apresentada como a

“terra prometida, a solução de todos nossos problemas, um espaço no qual

existem e se desenvolvem, de forma espontânea, apenas boas qualidades.

Sua simples menção funciona como uma invocação mágica capaz de exorcizar

as potências do Mal, dissipar as angústias e convocar todas as forças

positivas contidas no social” (p. 16). O autor destaca, a partir da obra de

Adam Seligman (The Idea of Civil Society. Nova York: The Free Press,

1992), três usos da idéia de sociedade civil. O primeiro seria a sua

utlilização como slogan político; o segundo é o seu uso como conceito

sociológico referente a formas de organização social; o terceiro como

conceito filosófico vinculado à esfera dos valores e das crenças.

Acanda (2006) afirma que as experiências da luta política fizeram

com que estudiosos da América Latina questionassem o conceito de

sociedade civil. Segundo o autor, considera-se a importância de seu uso no

que concerne à mobilização de setores sociais, mas rejeita-se a sua

utilização como instrumento teórico. De acordo com o mesmo: “(...) o fato de

prevalecer a interpretação neoliberal, que identifica a sociedade civil com

as relações de mercado, faz sua utilização ocultar o caráter específico dos

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conflitos sociais das últimas décadas na América Latina (p. 38)16.

Acanda (2006) traz também a discussão sobre o fortalecimento da

ideologia dominante por meio de alguns sentidos incorporados ao discurso da

sociedade civil. Primeiramente, a contraposição mecanizada Estado-

sociedade civil pretende que a emancipação social seja somente possível

fora do Estado; o emprego da noção “sociedade civil” quando encobre

fenômenos determinantes como, por exemplo, a existência de classes

sociais; e por fim, um outro aspecto significativo seria que a “personificação

privilegiada” da sociedade civil, as ONGs - consideradas por muitos como o

espaço puro, livre da influência do Estado – mascaram o seu real interesse

(instrumentos do grande capital ou comprometidas com as organizações

populares). Assim, percebe-se como a concepção de sociedade civil pode ser

utilizada tanto para justificar um Estado cada vez mais restrito no que diz

respeito aos direitos sociais quanto para designar um espaço de busca por

ampliação de direitos.

“[a expressão sociedade civil] disseminou-se largamente, colando-

se ao senso comum, ao discurso político e ao imaginário das

sociedades contemporâneas: empregam-na tanto a esqueda

histórica quanto as novas esquerdas, tanto o centro liberal quanto

a direita fascista” (NOGUEIRA, 2004: 216)17.

16 Nesse sentido, Acanda (2006) ressalta que as ditaduras militares perpetradas nessa região não se empenharam para eliminar todas as associações independentes do regime, somente aquelas que expressavam os interesses dos “setores mais pobres”. 17 Nogueira (2003) problematiza três concepções de sociedade civil: a gramsciana, um espaço de embates direcionado política e eticamente, de formação de vontades coletivas e de construção de projetos societários globais; a sociedade civil liberal, privada e oposta ao Estado; e por fim, a sociedade civil social, de orientação supra-estatal, em que há um choque entre o social e o institucional, pois acredita-se na sua “ética superior”, o que leva também a um distanciamento do Estado. NOGUEIRA, Marco Aurélio. As três idéias de sociedade civil, o Estado e a politização. In: Ler Gramsci, entender a realidade. COUTINHO, C.N.; TEIXEIRA. A. de Paula (Org.) Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 215-233.

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Ao campo dos direitos humanos, assim como ao debate da sociedade

civil é atribuída uma polissemia de sentidos: esfera dos direitos universais e

indivisíveis; configuração dos direitos civis e políticos ou dos direitos

econômicos, sociais e culturais; justificativa por parte de alguns setores da

sociedade brasileira para o aumento da violência na contemporaneidade;

dentre diversas outras interpretações.

Contudo, o poder público que deveria zelar pelo cumprimento dos

compromissos firmados pelas inúmeras convenções e tratados ratificados

pelo Brasil, ao longo de sua história, atua como agente violador dos próprios

direitos humanos.

Autoridades políticas reforçam as práticas de tortura ou outras

formas de maus tratos por parte de funcionários públicos. O prefeito do Rio

de Janeiro, César Maia, defendeu em fevereiro de 2003, em notícia

veiculada pelo jornal “O Globo”, que a polícia “matasse quem tivesse que

matar”, afirmando ainda: “o bandido tem que ter medo da polícia, deve-se

pensar em direitos humanos para os que respeitam a lei”18.

Para Coimbra (2001: 61):

“(...) cotidianamente, os meios de comunicação nos fazem

crer que se a grande massa excluída de nossa população age

diferentemente das elites é porque vive e, portanto, pensa,

percebe e sente diferentemente de nós. Por isso não pode

receber o mesmo tratamento”.

A sensação permanece nos corações e mentes: são violados, de forma

18 Segundo a fala de um leitor do jornal O Estado de São Paulo, na década de 90: “O Brasil se transformou numa verdadeira lata de lixo e, para limpá-la, são necessários garis especiais”. Grifos originais (apud Coimbra, 2001: 105).

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sistemática e bastante cruel, direitos de seres humanos. Segundo a ótica de

alguns setores da sociedade, estes perdem a sua condição humana por

ocuparem um determinado território, por situarem em uma determinada

classe social, por infringirem a lei ou mesmo por seu pertencimento étnico-

racial. Essas características se aliadas, tornam-se perfeitas para justificar,

perante as subjetividades dominantes, o seu extermínio.

O então secretário de Segurança Pública do Estado do Rio de

Janeiro, Anthony Garotinho, em maio de 2003, “comemorou a morte de mais

de cem criminosos antes de completar 15 dias no cargo e prometeu

endurecer ainda mais com os bandidos” (TORTURA NO BRASIL, 2004: 20).

Na mesma época, o secretário “convidou para assumir o mando do 22º

Batalhão da Polícia Militar (BPM) (...) um Tenente Coronel que fora

condenado a 1 ano e 10 meses – com direito a gozar a pena em liberdade –

por comandar uma sessão de espancamento na Cidade de Deus, Zona Oeste

do Rio de Janeiro, num episódio que ficou conhecido como ‘Muro da

Vergonha’” (idem).

A concepção de segurança pública acima reflete a questão da

segurança tratada como uma guerra a ser travada contra o crime. A polícia,

que detém o monopólio da violência governamental, deve introjetar a noção

de inimigo e, conseqüentemente da necessidade de exterminá-lo. Observa-

se aí uma inversão da função da polícia, que de administradores de conflitos

passam a ser juízes, pois decidem quem deve morrer ou sobreviver nessa

“guerra” cotidiana.

O discurso recorrente é de que os defensores dos direitos humanos

são considerados defensores de “bandidos”, uma das estratégias de

descaracterizar a militância pelos direitos humanos. Esta associação teve

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sua origem durante o governo Leonel Brizola19, especialmente difundida no

estado do Rio de Janeiro, pela tentativa do governo de implementar

políticas que visavam à humanização das prisões. Esta associação remete

também à relação estabelecida na sociedade entre violência e pobreza. O

argumento depreciativo utilizado serve como justificativa de casos de

intimidação e agressão desses defensores. Nesse quadro, passam a ser

atingidos pelo estigma de que são alvos aqueles que defendem, ou seja, além

das violações serem naturalizadas pela sociedade20, uma “segunda” violação

é permitida: a direcionada aos sujeitos que lutam contra a impunidade.

“A população considera que “métodos humanitários e o respeito à

lei por parte da polícia contribuíram para o aumento do crime (...)

[e] tem exigido punições mais pesadas e uma polícia mais violenta

e não direitos humanos” 21(Caldeira, 2000: 349).

19 O livro “Elite da Tropa” relata sobre o plano de assassinar Leonel Brizola, idealizado por alguns membros do BOPE – Batalhão de Operações Policiais Especiais. Em um dos diálogos transcritos na obra, retrata-se o momento em que um dos membros pensa em desistir: “- (...) meu caro, sendo missão de segurança máxima, quem hesitar, dança. Não vamos recuar nem aceitar defecções. Qualquer defecção será tratada como alta traição. Você sabe muito bem o que isso significa” (grifos meus). SOARES, Luiz Eduardo; BATISTA, André; PIMENTEL, Rodrigo. Elite da Tropa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. 314 p. 20 Conforme levantamento realizado em 1997, pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER) e pelo instituto independente de pesquisa Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro constatou que 63,4% dos brasileiros entrevistados acreditam que os criminosos são indivíduos que perderam os respectivos direitos por não respeitarem os direitos alheios. Cerca de 40% dos entrevistados consideram aceitável o uso de tortura pela polícia para obter confissões de suspeitos e número idêntico considera o linchamento de supostos transgressores errado mas compreensível. 21 Caldeira na sua obra “Cidade de Muros – crime, segregação e cidadania em São Paulo” aborda sobre o aumento da violência na cidade, o fracasso das instituições estatais frente ao seu combate e a criação de novas formas de discriminação social. A autora, em um dos capítulos do livro, faz uma discussão sobre a concepção dos direitos humanos como privilégio de bandidos. A obra ainda faz referência ao episódio ocorrido em 1992 na “Casa de Detenção”, onde uma grande parcela da sociedade apoiou a ação sanguinária do Estado.

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A associação imediata entre violência e pobreza tem como um de seus

pressupostos a idéia de que moradores de periferia ou de baixa renda

possuem uma aliança direta ou indireta com o narcotráfico. Essa vinculação

obscurece a cumplicidade de setores significativos do Estado -

representado pelos seus agentes -, “incluindo o aparato de segurança

pública e o Judiciário, com os sistemas de corrupção política e financeira”

(ALMEIDA, 2004:56).

O estudo elaborado pelo Centro de Estatística Religiosa e

Investigações Sociais – CERIS - diz que não há consistência analítica nos

argumentos que conectam criminalidade e pobreza. Alguns estudos

priorizam a questão: a violência, nesse sentido, é isolada e focalizada nas

áreas pobres, o que contribui para a sustentação de hipóteses

mistificadoras (ALMEIDA, op. cit.).

O estigma imputado às classes consideradas perigosas acaba por

repercutir na vida desses sujeitos: nos seus processos de subjetivação, ao

internalizarem sua “condição” inferiorizante; na sua auto-

apresentação/representação como portadores de direitos ou não; e também

nas suas possibilidades de circulação entre as diversas instâncias da

sociedade.

Os casos de violação dos direitos humanos são, em especial, apoiados

por setores expressivos da sociedade, quando se trata de pessoas

empobrecidas ou com um dado pertencimento étnico-racial. A questão da

vinculação ao trabalho também representa um elemento significativo; os que

estão inseridos no mercado de trabalho - embora carreguem consigo as

características anteriormente abordadas - possuem uma maior

“credibilidade” por parte da sociedade, entretanto, não perdem sua

condição de possíveis suspeitos (COIMBRA, 2001).

Entretanto, é preciso não absolutizar todas as tentativas de defesa

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dos direitos humanos. Seria importante atentar para o fato de que algumas

iniciativas pela defesa dos direitos humanos ao não se articularem com

estratégias mais globais, universais, acabam, muitas vezes, por fragilizar

esse campo ou mesmo por representar ações conformadas pelo heroísmo

(Almeida, 2004). Relações precárias de trabalho nesse campo ou mesmo

práticas voluntaristas, solidárias e heróicas podem fragilizar ainda mais os

setores que “vivem e lutam no tênue limite entre a banalização da vida e a

naturalização da morte” (ALMEIDA, 2004: 63).

De acordo com Coimbra (2001: 91):

“Os pobres considerados ‘viciosos’, por sua vez, por não

pertencerem ao mundo do trabalho – uma das mais nobres

virtudes enaltecida pelo capitalismo – e viverem no ócio, são

portadores de delinqüência, são libertinos, maus pais e vadios.

Representam um ‘perigo social’ que deve ser erradicado;

justificam-se, assim, as medidas coercitivas, já que são criminosos

em potencial. Essa periculosidade também está presente nos

‘pobres dignos’, que por força da sua natureza – a pobreza –

também correm os riscos das doenças”.

Os que se posicionam contra os direitos humanos apóiam-se em

categorias e estigmas, “articulam seus discursos com base nas categorias

estereotipadas associadas à oposição do bem contra o mal” (idem). Para a

autora em questão, estes sujeitos utilizam algumas estratégias. Uma delas

seria a construção simbólica do criminoso como ser perverso, a “essência do

mal”, desprovido de qualquer condição humana22.

22 Nos exercícios diários, o Batalhão de Operações Policiais Especiais – BOPE – enaltece seus “cantos de guerra”: “‘Homem de preto, qual é sua missão? É invadir favela e deixar corpo no chão’ ‘Você sabe quem eu sou? Sou o maldito cão de guerra. Sou treinado para matar. Mesmo que custe minha vida, a missão será cumprida, seja ela onde for – espalhando violência, a morte

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Após o fim da ditadura militar, as práticas de tortura no Brasil

passaram a ser, em grande parte, direcionadas a pessoas de baixa-renda,

moradoras de regiões menos favorecidas, de origem afro-brasileira23 ou

indígena24.

Segundo a fala de Afanasio Jazadji, um dos radialistas mais

e o terror’. ‘Sou aquele combatente, que tem o rosto mascarado; uma tarja negra e amarela, que ostento em meus braços me faz ser incomum: um mensageiro da morte. Posso provar que sou forte, isso se você viver. Eu sou (...) herói da nação’ ‘Alegria, alegria, sinto no meu coração, pos já raiou um novo dia, já vou cumprir minha missão. Vou me infiltrar na favela com meu fuzil na mão, vou combater o inimigo, provocar destruição’ Se perguntas de onde venho e qual é minha missão: trago a morte e o desespero. E a total destruição’ ‘Sangue frio em minhas veias, congelou meu coração, nós não temos sentimentos, nem tampouco compaixão, nós amamos os cursados e odiamos pés-de-cão’. Cursados são os próprios membros do BOPE; pés-de-cão são os policiais militares comuns. ‘Comandos, comandos e o que mais vocês são? Somos apenas malditos cães de guerra, somos apenas selvagens cães de guerra’”. SOARES, Luiz Eduardo; BATISTA, André; PIMENTEL, Rodrigo. Elite da Tropa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. As “canções” acima demonstram a barbárie que reina na Polícia Militar. Sem ética nenhuma e sem uma política pública de segurança efetiva, ficamos entregues a esses sujeitos que, na imensidão de sua ignorância e de seu próprio abandono, carregam sua “filosofia” de guerra: é matar ou morrer. 23 “Conforme levantamento da população carcerária realizado em São Paulo, cujo documento foi fornecido pela FUNAP (Fundação de Amparo ao Preso) – órgão vinculado à Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo -, a maior parte da população carcerária é constituída por não-brancos. Desta pesquisa, baseada no censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2000, destaca-se que a população do Estado de São Paulo é 70% constituída por brancos e na proporção de 30%, não-brancos. Ainda que a grande maioria da população do estado seja composta por brancos, aproximadamente 47% dos homens e mulheres presos são brancos, enquanto que aproximadamente 53% dos homens e mulheres presos são não-brancos. Tendo em vista que as torturas são praticadas no país, via de regra, na população sob custódia do Estado, pode-se destacar que esta prática teria principal incidência sobre a população negra ou parda” (TORTURA NO BRASIL, 2004).

24 Relatório elaborado por entidades de defesa dos direitos humanos - iniciativa do dhInternacional, parceria do MNDH - Movimento Nacional de Direitos Humanos - com o GAJOP – Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares, 2001. O Programa dhINTERNACIONAL é uma iniciativa do MNDH e do GAJOP, com o intuito de proporcionar o acesso às entidades de direitos humanos do Nordeste brasileiro aos sistemas global e interamericano de proteção dos direitos humanos. Disponível em: www.gajop.org.br . Acesso em: 01 dez. 2006.

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populares de São Paulo:

“Tinha que pegar esses presos irrecuperáveis, colocar todos num

paredão e queimar com lança-chamas (...) Eles não têm família,

eles não têm nada, não têm com que se preocupar, eles só pensam

em fazer o mal; e nós vamos nos preocupar com eles? (...) esse tipo

de gente... gente? Tratar como gente!, estamos ofendendo o

gênero humano!” (Programa na Rádio Capital em 25 de abril de

1984).

Uma outra tentativa de deturpar a luta pelos direitos humanos é a

responsabilização do processo de democratização pelo aumento da violência.

Seria pertinente mencionar que enquanto a legalidade do Estado Repressor

caía por terra, cresciam os organismos de perpetuação da violência privada

como os esquadrões da morte, aparentemente não-estatais25.

Os defensores dos direitos humanos se voltam também para as

tentativas de reformar os sistemas penitenciário e judiciário. Uma grande

parcela dos que se contrapõem à defesa ignoram a ordem legal e legitimam a

vingança privada, travada por grupos de extermínio, os abusos de

autoridade, ou mesmo, as execuções sumárias por parte das autoridades

policiais, como também ações violentas de sujeitos individuais26.

A Representante do Alto Comissariado das Nações Unidas para

Execuções Sumárias, a Sra. Asma Jahangir, em missão oficial no Brasil em

outubro de 2003, confirmou a participação dos policiais em crimes com teor

25 Para uma leitura sobre os esquadrões da morte, consultar a passagem da obra de Huggins, Haritos-Fatouros e Zimbardo (2006: 164). 26 Nesse quadro, encontramos setores da sociedade brasileira favoráveis à aplicação da pena de morte no país. Na tensão existente entre pena de morte e direitos humanos, existem duas visões da punição, como afirma Caldeira (2000). Segundo a autora, a primeira abrangeria a lei, o sistema judiciário e a justiça. A segunda teria como perspectiva a vingança privada, em que a dor seria protagonista na aplicação da punição, tendo como justificativa a ineficiência do sistema judiciário.

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de violência e até a sua inserção em grupos de extermínio. Segundo a

mesma, no Brasil:“a polícia mata e goza da maior impunidade”.

Para compreendermos os mecanismos de legitimação dessas ações,

faz-se necessário elucidarmos algumas representações acerca dos

instrumentos propagadores da violência. A banalização da dor leva à

discussão dos métodos de tortura utilizados para a obtenção das

“confissões”. A tortura é relacionada à verdade, uma “técnica” eficiente de

produzir resultados frente a outras, que seriam consideradas ineficientes.

Nesse quadro, a violação dos direitos humanos é considerada mecanismo de

conhecimento e manutenção da ordem.

“Mas espera um pouquinho: o que é tortura, e o que é que vocês

esperam da polícia? A polícia não tem bola de cristal (...) Você tem

que tirar aquilo de uma forma ou de outra (...) Como é que você faz

pra tirar a verdade do cara? Não existe. É na pancada, mesmo!

Não existe persuasão, não existe interrogatório, não existe, não

existe (...) Então veja só, existe a tortura, mas existe mesmo. Ela,

infelizmente, é necessária” (AFANASIO JAZADJI em entrevista

no dia 20 de dezembro de 1990).

Como salienta Caldeira, a aceitação do uso da dor pauta-se na

centralidade do corpo na punição, sendo utilizada em práticas disciplinares

contra os possíveis criminosos e também contra as categorias que

necessitam de um “controle especial”, os “subalternos”, principalmente as

crianças, as mulheres, os pobres e os loucos.

Para Caldeira (2000:375), “por meio da punição violenta e do crime, os

brasileiros articulam uma forma de resistência às tentativas de expandir a

democracia”. A fala da autora faz referência à insurgência dirigida ao

primeiro governador eleito em São Paulo após o fim da ditadura, em que

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foram realizados ataques violentos contra os direitos humanos.

Destaca-se aqui a fala de Caldeira (2000:375):

“A elaboração do preconceito na fala do crime, a recriação

simbólica de desigualdades, (...) o apoio à violência policial e às

medidas privadas e ilegais de lidar com o crime, a construção de

muros na cidade, o enclausuramento e o deslocamento dos ricos, a

criação dos enclaves fortificados e as mudanças no espaço público

rumo a padrões mais explicitamente separados e não-

democráticos, o desrespeito aos direitos humanos e sua

identificação com “privilégios de bandidos” e a defesa da pena de

morte e das execuções sumárias são todos os elementos que vão

na direção oposta e muitas vezes contestam a democratização e a

expansão de direitos”.

Portanto, pode-se observar que assim como foi engendrada uma

resistência contra as práticas violentas protagonizadas pelos militares e que

resultou na constituição do campo dos Direitos Humanos no Brasil, foram

também produzidas, na história político-social brasileira, tentativas de

impedir a democratização do país, buscando-se retroceder às conquistas

efetuadas a partir das lutas sociais. Isso pode ser claramente observado

nos discursos conservadores, com o intuito de modificar a legislação

existente, assim como na descaracterização da luta pela defesa dos direitos

humanos.

Em muitos países, homens, mulheres e crianças "desapareceram",

depois de detidos oficialmente. Outras pessoas foram assassinadas, sem

disfarce algum de legalidade: foram "escolhidas" e mortas por agentes de

seu próprio governo. Tais abusos – que ocorrem em diversos países – exigem

uma resposta internacional. A Anistia Internacional, assim como outras

organizações contemporâneas que vislumbram a defesa dos Direitos

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Humanos, contribuem para formar um campo de tensão, ou porque não, de

pressão, viabilizando alguns avanços no que diz respeito à efetivação desses

direitos. A Anistia, como uma organização transnacional, contribuiu para a

denúncia das práticas fortalecidas e oficialmente utilizadas durante o

regime ditatorial e sua atuação estende-se até os dias atuais.

O debate travado no campo dos direitos humanos não se restringe ao

âmbito nacional. A partir da publicização e da transposição das fronteiras

no que diz respeito às denúncias de violação dos direitos humanos, a

concepção originária do direito internacional vem sofrendo transformações,

como “direito exclusivo dos Estados e suporte da soberania nacional”

(GÓMEZ, 1997: 33). Dessa forma, os indivíduos, governos e organizações

têm sido submetidos a novos sistemas de regulação formal que transcendem

o Estado-Nação. Com essas mudanças, põe-se o questionamento da

soberania do Estado no debate político mundial, e nesse intuito, a temática

dos direitos humanos ganha centralidade por ser uma questão global, que

ultrapassa fronteiras e territórios nacionais.

Nesse processo, o campo dos direitos humanos vem ganhando espaço

no contexto internacional, sendo legitimado, progressivamente, através da

sua normalização no plano jurídico-formal. Representam marcos

fundamentais desse processo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos

das Nações Unidas (1948), a Convenção Européia para a Proteção dos

Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (1950) assim como as

conferências realizadas desde então, em especial a II Conferência Mundial

de Viena (1993), em que foi reafirmada a universalidade, indivisibilidade e

interdependência dos direitos humanos.

Fontana (2004), ao pensar na relação entre a história e as classes

dominantes, afirma que os governos sempre tentaram controlar a produção

historiográfica e os próprios conteúdos históricos transmitidos pelo ensino.

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O autor traz a noção das “guerras da história” e defende que as classes

dominantes não temem a história, mas procuram difundir o “tipo de história

que lhes convém” (p. 343).

Fontana (ibidem) tenta reconstruir uma concepção historiográfica

que não se paute em uma concepção linear da evolução humana, recuperando

assim a memória coletiva, que na totalidade histórica desempenhou funções

sociais, muitas vezes contraditórias: legitimar a ordem política e social

vigente, assim como preservar as esperanças coletivas pela própria ordem

estabelecida.

A história que é contada e propagada no decorrer dos tempos sempre

irá representar uma versão, ou seja, nunca terá completa veracidade. A

manipulação da história por parte de alguns setores da sociedade será

sempre “necessária” para fundamentar a sua legitimação ou mesmo a sua

supremacia, no sentido do pensamento de Gramsci - termo que unifica

hegemonia e dominação, consenso e coerção, direção e ditadura. Nesse

sentido, a ocultação faz-se necessária para que alguns fatos não cheguem ao

conhecimento de outros setores, também protagonistas dessa “mesma”

história.

CAPÍTULO 1- HERANÇAS DA DITADURA MILITAR: RESISTÊNCIA E

MEMÓRIA

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No início dos anos 60 do século XX, presenciava-se uma grande

efervescência da esquerda e dos movimentos culturais. O governo João

Goulart representava uma direção política mais alinhada com as bases de

esquerda e, por essa razão, despertava progressivamente um número

significativo de oposicionistas; evidenciava-se o clamor popular pelas

reformas de base, dentre elas a reforma agrária27. Nesse contexto

nacional, foram criados o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), o Centro

Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE), o Movimento

de Cultura Popular (MCP), o Programa Nacional de Alfabetização (PNA),

inspirado no método Paulo Freire, dentre outros, extremamente

significativos.

Os setores conservadores deram início a uma ofensiva contra as

reformas que estavam em curso, com apoio do governo norte-americano.

Dentre as estratégias dessas forças estavam: a divulgação de que a criação

de uma central sindical demonstrava a intenção de uma revolução comunista

no Brasil; a organização de passeatas no Rio de Janeiro e São Paulo, com o

intuito de imobilizar os setores de esquerda da sociedade – “Marcha da

Família com Deus pela Liberdade” – reunindo, nas duas cidades cerca de um

milhão de pessoas.

Em 1º de abril de 1964, o golpe foi consolidado, não como uma

rebelião qualquer de um setor da sociedade brasileira, mas sim

representando o triunfo de um movimento histórico que vinha se

estruturando desde a década de 50. De acordo com Netto (2001), o golpe

ilustrou um movimento reacionário, que “resgatou precisamente as piores

tradições da sociedade brasileira”. Além da necessidade de reverter o

“processo de democratização”, que estava em curso no período pré-64,

27 Segundo Jacob Gorender (1987), o governo apresentava duas tendências: uma seria a aliança com a burguesia nacional e a outra, a ênfase na aliança com as forças populares.

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tinha-se também de adequar as instituições ao novo padrão de

desenvolvimento da época.

Diversos tipos de resistência ao regime foram engendrados, como por

exemplo, o ideário hippie. Segundo Coimbra (1995: 28), de um lado a geração

que entra na clandestinidade e/ou na militância armada; de outro, os hippies,

ligados, em muitos casos, às produções alternativas e aos movimentos

contraculturais originados nos Estados Unidos e na Europa durante os anos

60 e 70.

Segundo o relato de uma ex-integrante da ALN, na época uma jovem

militante:

“Acho que foi uma época tão interessante, tão importante... como

teria sido difícil pra eu viver com 18, 20 anos hoje. Era uma

efervescência cultural e política aberta... aberta em termos,

porque a gente tava numa ditadura... mas ainda era ditadura

velada, as coisas ainda não tavam muito explícitas. Nesse meio

tempo eu acho que eu participei de todas as passeatas, todos os

movimentos, todos...”.

A “geração de 68” produziu novos padrões de comportamento e

conseqüentemente valores distintos daqueles conservados pelas gerações

anteriores. As relações entre homens e mulheres foram pensadas de uma

outra forma, apesar das limitações existentes no campo, também impostas,

por exemplo, pelos próprios companheiros de militância28. A monogamia,

virgindade, a reprodução, que até então eram questões de sacra importância

na sociedade, em especial, no tocante ao comportamento feminino, passaram

a ser discutidas por alguns de seus segmentos. Essa nova discussão

28 As mulheres, mesmo representando figuras significativas no interior das organizações, ainda sofriam “pré-conceitos” de seus companheiros do sexo masculino e, muitas vezes, ficavam limitadas a tarefas “secundárias”.

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carregava um teor menos preconceituoso e menos conformador de

comportamentos (COIMBRA, 1995).

As falas abaixo ressaltam a importância da mudança de

comportamento dos sujeitos no período de intensas transformações

políticas:

“A geração de 68, que é produzida junto com o movimento

tropicalista, traz, portanto, a marca dos movimentos

contraculturais, quando há a possibilidade de se fazer uma série

de sincretismos e de misturas. Abandonam-se os antigos modos de

vestir, de falar, de morar, de comer” (ibidem: 13).

“a imagem que eu tenho assim desse período onde várias

tentativas, várias iniciativas de caráter revolucionário tomaram

lugar com uma coisa que... que teve uma abrangência maior na

sociedade (...) um momento também de revolução dos costumes, de

liberação da mulher, liberação sexual, drogas, e enfim, várias

coisas de mudanças grandes nos costumes (...) no Brasil teve

também esse caráter, diferente de outros países da América

Latina, eu acho, com as suas especificidades” (filha de um

militante considerado morto político, 2001).

O golpe de 1964 não somente representou um contra-movimento às

transformações culturais/políticas, mas também possuía um objetivo claro e

específico: implantar legitimamente uma política de terror, com vistas ao

aprofundamento do capitalismo monopolista.

Dreifuss (1981) menciona que a implantação do golpe teria por

objetivo a conquista da hegemonia, da fração multinacional-associada da

burguesia. O autor afirma que as elites foram capazes de assegurar os

poderes econômico e administrativo, transformando o aparelho do Estado

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em um componente dos interesses monopolistas predominantes.

De acordo com as palavras do próprio autor:

“O poder de classe dos interesses multinacionais e associados foi

expressado, depois de abril de 1964, através da hegemonia por

eles estabelecida dentro do aparelho de Estado, do controle

direto das agências de formulação de diretrizes políticas e de

tomada de decisão e da presença pessoal dos representantes

desses interesses econômicos na administração em geral”

(1981:419).

O autor afirma que a queda do governo ocorreu devido a um

movimento civil-militar e não por um golpe das Forças Armadas no então

presidente João Goulart. O Complexo IPES/IBAD (Instituto de Pesquisas e

Estudos Sociais/Instituto Brasileiro de Ação Democrática) no âmbito das

Forças Armadas teria como objetivo a “neutralização do dispositivo popular

de João Goulart e a minimização do apoio militar a diretrizes políticas

socialistas ou populistas” (p.362). A “elite orgânica” ficou com a incumbência

de articular a campanha antipopular e logicamente anti-João Goulart.

As estratégias de busca de legitimação e de suporte da sociedade

como um todo chegaram ao extremo.

O DOPS, em 1969, distribuiu em várias instituições, escolas,

residências, um folheto chamado Decálogo de Segurança que instruía os

seus leitores:

“Antes de formar uma opinião, verifique várias vezes se ela é

realmente sua, ou se não passa de influência de ‘amigos’ que o

envolveram. Não estará sendo você um inocente útil numa guerra

que visa destruir você, sua família e tudo o que você mais ama

nesta vida?

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Se você for convidado, ou sondado, para conversas sobre assuntos

que lhe pareçam estranhos ou suspeitos, finja que concorda e

cultive relações com a pessoa que assim o sondou e avise a Polícia

ou o quartel mais próximo. As autoridades lhe dão todas as

garantias, inclusive de anonimato.

Há muitas linhas telefônicas cruzadas. Sempre que encontrar uma

delas mantenha-se na escuta e informe logo a Polícia ou o quartel

mais próximo (...) Quando um novo morador se mudar para o seu

edifício ou para o seu quarteirão, avise logo a Polícia ou o quartel

mais próximo” (CHIAVENATO, 2004: 152-153).

Segundo Tavares (2005), o “alcagüete só não foi elevado à condição

de ‘herói patriótico’ (como na Alemanha de Hitler, na Itália fascista e na

URSS de Stalin) porque o sarcasmo público o reduziu a uma expressão

satírica: o ‘dedo-duro’” (p. 182).

Outras instituições como a Igreja Católica, foram importantes

instrumentos de construção do oposicionismo ao governo de Jango. Segundo

Chiavenato (2004), a campanha religiosa contra o governo foi desencadeada

no Rio de Janeiro, pelo cardeal dom Jaime de Barros Câmara. Na

perseguição aos comunistas, o cardeal trouxe das Filipinas o padre Patrik

Peyton, um agente da CIA – Central Intelligence Agency, “um especialista

em ‘levantar’ as massas católicas contra o ‘comunismo ateu’, em nome da

Virgem Maria” (p.45). Na década de 70, foram descobertas que as

passeatas promovidas em 1964 por associações católicas foram financiadas

por empresas e pelo Departamento de Estado dos EUA.

Gorender (1987), centrado na concepção de que o regime militar não

esteve calcado em bases consensuais, afirma que Dreifuss estaria incidindo

em aplicação equivocada da teoria de Gramsci. Segundo Gorender, de acordo

com o pensamento gramsciano, para a obtenção da hegemonia, precisam

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estar aliados consenso e coerção, um não pode substituir o outro. A

ditadura militar não podia ter hegemonia, no sentido gramsciano;

entretanto, necessitava de legitimidade.

Para Gorender, o golpe partiu de vários focos conspiradores

desconexos. Entretanto, o autor afirma também que a Escola Superior de

Guerra (ESG) e o IPES – o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais - foram

grandes articuladores do golpe, pois estabeleceram vínculos ”entre o grande

empresariado e a alta oficialidade das Forças Armadas, que permitiram a

unificação de idéias e ações na montagem da operação de derrubada do

Governo Goulart” (p. 52).

Segundo Carvalho (2005), foram estabelecidas diversas tentativas de

atribuir ao golpe de 1964 a sua inevitabilidade. Para o autor, a maioria

dessas tentativas surgiu no seio da própria esquerda, como uma justificativa

para seus “erros políticos”. Ainda de acordo com Carvalho, a explicação mais

difundida foi a de que o golpe resultou de uma conspiração por parte do

imperialismo norte-americano.

Carvalho (idem) afirma que o golpe foi conseqüência das estratégias

dos agentes políticos no período. Considerando as muitas explicações de

cunho econômico, Carvalho afirma: “O golpe e sua rápida vitória não fora

determinado pela presença da fortuna, mas pela ausência de virtù “ (p. 120).

Carvalho (ibidem) insiste: “Explicadas ou não as surpresas de 1964,

reafirmo a convicção de que o desfecho se deveu muito mais a ações e

omissões de agentes políticos, à "virtù"¸do que a grandes causas sociais, à

fortuna”. Segundo o autor, os atores políticos se desviaram das reformas

em nome de ilusórias mudanças radicais, conseqüência de uma errônea

avaliação da correlação de forças presente no período.

Carvalho (2005) também ressalta a explicação - de cunho econômico -

para a inevitabilidade do golpe. A implantação de um regime autoritário

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aparece como indispensável para a manutenção da superexploração do

trabalho num sistema de dependência econômica. Outra vertente explicativa

argumentava que o golpe - e conseqüentemente o regime autoritário –

representava uma exigência do aprofundamento do capitalismo. Ainda

dentro do universo da economia, mais uma vertente: o golpe seria necessário

para o restabelecimento da capacidade do país de “poupar, retomar o

investimento e recuperar o ritmo de crescimento econômico paralisado

desde 1962” (p. 120).

Várias vertentes para o “surgimento” do golpe foram trabalhadas no

debate político-social. Contudo, sugere-se que o golpe de 1964 é fruto de

vários fatores, em conjunto, de precedência política, econômica e ideológica.

As estratégias de legitimação e perpetuação da ditadura militar

foram perfeitamente concernentes ao aprofundamento do capital

internacional no país. O apoio norte-americano, inclusive no que diz respeito

ao aparato repressivo montado à época do regime (este apoio não se

restringia às relações econômicas), abrangia também a prática militarizada

repressiva: fornecendo cursos/equipamentos de tortura para os possíveis

torturadores da época, técnicas que, infelizmente, acabaram por ser

exportadas para outras ditaduras latino-americanas.

Segundo o relato de Tavares (2005):

“(...) descarregam de novo sobre nós o ‘Doutor Volts’, aquela

máquina em que sobressai uma inscrição em relevo, ‘Donated by

the people of United States’29 e, logo abaixo, a insígnia da

Aliança para o Progresso, com duas mãos entrelaçadas”.

Ibarra (2000) afirma:

29 Tradução para o português: “Doado pelo povo dos Estados Unidos”.

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“Nunca la violencia que ejerce el Estado contra aquellos que se le

oponen, es solamente esfuerzo estatal. En el seno de la sociedad

civil existen amplias porciones que en no pocas ocasiones, apoyan

activa o pasivamente las infâmias má inauditas. En efecto, en no

pocas ocasiones, amplias porciones de ciudadanos justifican la

ejecución extrajudicial o la desaparición forzada” (p. 15).

Arendt (2004) discute que, as ditaduras provocam um enxugamento

do poder decisório, pois os mecanismos de controle do poder executivo –

instituições e órgãos – são abolidos.

Nesse sentido, de acordo com Tavares (1999), o Ato Institucional nº

5 (AI-5) de 1968 representou a perda da vergonha da ditadura. Em outros

termos: perde-se a roupagem de regime envergonhado, sendo a tortura um

método e uma via de permanência no poder. Gaspari (2002) argumenta que a

ditadura, ao perder a vergonha, passou a exibir um regime com

características anárquicas e violência nas prisões, período que designa como

os anos de chumbo. Gorender (1987) sinaliza que a medida repressiva

“consumou o fechamento completo da ditadura militar” (p. 71), e Netto

(2001) indica que representou a militarização das relações sociais.

Manoel Conceição Santos, um líder camponês, afirma:

“Nas cidades as praças ficaram vazias, as fábricas vigiadas pela

polícia, centenas de sindicatos sob intervenção, suas diretorias

destituídas, grêmios estudantis fechados, teatros invadidos,

músicas, filmes e peças teatrais censuradas, parlamentares

cassados, jornalistas e intelectuais amordaçados, a imprensa sob

censura prévia, e as prisões lotadas de brasileiros opositores do

regime. Quase todos torturados e muitos assassinados. O “milagre

econômico” dos militares precisava de um Brasil amorfo e sem

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resistência à nova etapa de brutal acumulação capitalista no país”

(Carta à Comissão Especial da Lei Estadual 10.726/2001, a fim de

requerimento de indenização, em 02 de julho de 2002).

A perseguição às lideranças nacionalistas e aos comunistas foi

implacável; predominava o clima de terror, pessoas que se opunham ao

regime eram presas, torturadas ou assassinadas nas dependências dos DOI-

CODIs (Destacamento de Operações Internas/ Centro de Operações de

Defesa Interna)30, o mais terrível órgão oficial implantado em escala

nacional.

O sistema DOI-CODI foi inspirado pela Operação Bandeirantes

(OBAN)31. Lançada em 1969, era uma organização que dispunha de apoio

oficial. Entretanto, não estava normatizada legalmente. “A OBAN era um

órgão de análise, de informações, de interrogatório e de combate” (FICO,

2001).

De acordo com a fala de uma ex-militante do PC do B:

“Depois eles fizeram o interrogatório com todo tipo de pressão

psicológica possível, gritos, simulação de... eu acho que eles tavam

treinando parecia que entravam aquele montão, bonzinhos,

30 O DOI-CODI, localizado na rua Barão de Mesquita, tinha na sua entrada uma placa de metal que continha a seguinte informação: “Aqui não tem Deus nem direitos humanos” (VIANNA, 2003). 31 “Tendo em vista combater o processo revolucionário que estava assumindo proporções alarmantes no Estado de São Paulo e, particularmente, nesta cidade, resolveu o Exmo. Sr. Gen. Cdt. do II Exército, maior autoridade federal na área, adotar medidas urgentes e práticas para pôr cobro às ações subversivas que se processavam. Assim, criou a chamada Operação Bandeirante, cuja finalidade precípua era a de proporcionar uma forma de trabalho comum, obtido pela integração dos diversos órgãos com encargos de sustentáculos de defesa interna. Este grupamento de trabalho, coordenado pelo II Exército, compor-se-ia de elementos das FFAA desta secretaria (DEOPS/PM) E SNI/ASP” Documento reservado. Informação sobre a Operação Bandeirante. Secretaria de Estado dos Negócios da Segurança Pública. Coordenação de Informações e Operações. Gabinete do Secretário Cel. Ex. Danilo Cunha Lima. São Paulo, 2/06/1970 (VIANNA, 2003).

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sentavam, saíam, chegavam os maus. Era treino para a Operação

OBAN, depois, pra aperfeiçoar e tudo chefiado pela Polícia Civil,

(...) eles que tinham experiência em tortura, a milicada não tinha,

depois que ficou com experiência”.

Os CODI tinham como atribuições o planejamento, a coordenação, o

controle e a execução das medidas de defesa interna. Os DOI, “unidades

militares comandadas”, mais flexíveis, poderiam mudar sua composição de

acordo com as exigências de cada operação. As principais equipes eram a

dos captores e dos interrogadores” (FICO, 2001: 124).

A prática militarizada repressiva encontrava na Doutrina de

Segurança Nacional32, a sua base ideológica. Segundo Netto (2001: 17), “na

frente externa, a militância anticomunista encorpava-se na tese das

‘fronteiras ideológicas’ e no compromisso com o alinhamento automático a

Washington; na frente interna, com a síndrome da segurança total e a

criminalização do dissenso político (o ‘inimigo interno’)”.

Aliada a outras medidas repressivas, surge com o regime militar, o

Serviço Nacional de Informação – SNI. Tendo como seu fundador o General

Golbery do Couto e Silva, o SNI assumiu a função de uma agência central de

informação e também de um “conselho de assessoria para formulação de

diretrizes políticas nacionais”. Abarcando todas as áreas da vida social,

política e militar brasileira, estabeleceu uma “rede de informações” dentro

dos ministérios, órgãos do governo, movimentos da classe operária,

estudantil, dentre outros (DREIFUSS, 1981). O significado do SNI vai além

da instrumentalização para a manutenção da repressão, ou mesmo da

32 Alguns autores atribuem seu “nascimento” à data de 1947, com a Doutrina Truman, que deu origem à Guerra Fria, “justificada como doutrina de defesa da civilização ocidental e cristã, a partir do pressuposto da existência de uma guerra oculta, permanente e ideológica contra o comunismo internacional” (PASCUAL, Alejandra Leonor. Terrorismo de Estado: a Argentina de 1976 a 1983. Brasília: Universidade de Brasília, 2004).

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implantação da Doutrina de Segurança Nacional. As Forças Armadas,

caracterizadas pelas normas e hierarquia institucional, não eram dotadas da

flexibilidade necessária para o envolvimento político. Para isso fazia-se

necessário um outro órgão, não subordinado diretamente às Forças

Armadas, capaz de perpetuar sua existência “mesmo depois que (...)

voltassem aos quartéis” (DREIFUSS: 423), funcionando como “um foco de

apoio (...) e como um agente da manipulação da organização política da

sociedade” (FICO, 2001:124).

O SNI, em 1970, aprovou o seu “Plano Nacional de Informações”

(PNI), confeccionado com a colaboração de diversas pessoas, inclusive civis.

O Sistema Nacional de Informações (SISNI), instituído a partir deste

mesmo ano, tinha a função de assegurar o funcionamento do “sistema”,

inclusive a “execução de atividades de informações, normatizando,

supervisionando e fiscalizando todos os órgãos participantes, a fim de que

um fluxo constante de informações mantivesse o governo informado de

tudo” (FICO, 2001: 80). Segundo o órgão, havia dois tipos de informações: a

informação propriamente dita e a contra-informação, isto é, “a tentativa de

neutralizar as atividades de informações dos ‘inimigos’” (ibidem).

Fico (2001) aponta que, a partir de 1968, as demandas por

informações, inicialmente planejadas pelo General Golbery, ultrapassaram os

dados necessários às tomadas de decisões presidenciais, e tinham de

interagir com a “polícia política”, atingindo a particularidade da vida dos

cidadãos.

No confronto com o terror de Estado, as organizações de esquerda

resistiram aos ataques militares e, segundo algumas vertentes,

apresentaram práticas de violência. Para o entendimento aqui presente, não

se pode justificar ou mesmo igualar lados tão nitidamente opostos:

opositores políticos e repressores políticos. Para Gorender (1984: 235), “é

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perda de tempo discutir sobre a responsabilidade de quem atirou primeiro.

A violência original é a do opressor, porque inexiste opressão sem violência

cotidiana incessante. A ditadura militar deu forma extremada à violência do

opressor. A violência do oprimido veio como resposta”33.

Nos anos 60, no âmbito da esquerda, diferentes projetos societários

se articulavam e se confrontavam. A militância em oposição à ditadura

militar brasileira não foi homogênea, daí o surgimento de inúmeros partidos

políticos e movimentos, de diversas orientações político-ideológicas. Mas em

um sentido esses projetos se tocavam: o ideal de transformar a sociedade

vigente naquele período.

Uma ex-militante da ALN discute a ideologia dos tempos de

resistência:

“Mas você com vinte anos acha que vai fazer mesmo a revolução,

que não há nada na frente que possa impedir... o socialismo vem, a

vida vai ser melhor para todos, é uma onipotência total (...) a gente

tinha uma certa arrogância histórica, era tanta certeza de que as

coisas iam dar certo (...)” (EX-MILITANTE DA ALN, 2005).

Tavares (2005) faz uma crítica à posição assumida por alguns

militantes desse período:

“Tudo era a ‘causa’. E esse tudo fazer pela ‘causa’ se tornara uma

obsessão, uma razão de viver que nos cegava a tudo mais. Não

jogávamos fora a ética, e era por estar nela que fazíamos da

33 Nessa discussão, Gorender (1984: 236) acredita que a “violência revolucionária não deve ir além do necessário à anulação da violência do inimigo (...) a violência revolucionária nunca pode ser um fim em si mesma. Não pode ser absoluta e incondicionada. Os revolucionários praticam a violência não somente dentro de determinadas condições políticas, mas também conforme os princípios de um código de ética que visa a preservá-los da contaminação pela corrupção moral da classe dominante”.

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‘causa’ a única causa e conseqüência de tudo. Mas, ao ser a razão

única do nosso mundo, a ‘causa’ nos retirava do mundo e da vida” .

Uma militante pela anistia na década de 70 apresenta uma visão mais

romântica sobre a luta daquele período:

“que eu aprendi é que há gente boa, gente que luta, gente que sabe

se sacrificar em benefício de outros, em benefício de um ideal né,

que pode passar privações nessa luta em prol de alguma coisa

melhor pra sociedade (...) teria sido uma vida muito mais sem

graça, isso aí... é um dos motivos da gente sentir vontade de viver,

é justamente estar nessa luta né (...) teria sido uma coisa muito

mais sem graça mesmo, viver sem ta participando, eu vejo muita

gente que passa pela vida e nunca teve envolvimento nenhum”.

Porém, puderam ser percebidas diferentes posições em face da

mesma realidade. Nem todos se apropriaram da militância esquerdista ou

mesmo da luta armada. Muitos (em especial aqueles que pensavam a

transformação da sociedade por meio de reformas processuais)

acreditavam que, através do pacifismo, poderiam recuperar sua legalidade.

O PCB estabeleceu, em um determinado momento histórico, com a

Declaração Política de Março de 58, a resolução da nova linha política do

partido, onde a revolução brasileira seria alcançada em duas etapas:

primeiramente uma revolução nacional e democrática, com base

antiimperialista; como uma segunda etapa, a revolução socialista. Nem todos

os componentes do partido aceitavam tal concepção etapista, já que a

declaração teve voto contrário de dois membros da Comissão Executiva na

época: João Amazonas e Maurício Grabois (GORENDER, 1987).

Segundo Ferreira (1996), a partir da intensificação da repressão,

algumas organizações políticas mantiveram o “projeto de transformação”,

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porém, incorporaram a luta armada “como forma de enfrentamento e de

manutenção das condições para a ação transformadora” (p.58).

O projeto de um setor significativo da esquerda, que fez a opção pela

luta armada e clandestina, está relacionado diretamente com o seu campo

de possibilidades (ibidem). Portanto, para o entendimento de que sujeitos

específicos, em um determinado momento histórico, tenham subordinado ou

mesmo conjugado o seu projeto individual com um projeto coletivo, é preciso

que se compreenda a força simbólica e política de tal projeto, pois a adesão

dos militantes não está dissociada do “processo de individualização de suas

trajetórias”. Ademais, nesse processo são compartilhados significados,

construídas identidades que conferem legitimidade a tais atos34.

Nesse sentido, a clandestinidade, como recurso do campo de

possibilidades, atendia tanto à expectativa de sobrevivência, como também

à proteção contra práticas violentas da repressão. Os militantes, nessa

perspectiva, tiveram de assumir, de acordo com Ferreira (1996:60), uma

nova forma de identificação, uma “identidade ad hoc”, representando “um

papel que não foi construído através de trajetórias de vida nem das

interações estabelecidas ao longo de seu percurso”.

Em contraponto à Ferreira, pode-se argumentar que as identidades

ad hoc carregavam consigo, de forma contraditória, marcas da trajetória

dos sujeitos, pois não estavam completamente desconectadas e alheias ao

percurso vivido. Nesse sentido, essas identidades estabeleciam-se na

34 Para Sontag (2005), “a argumentação contra a guerra não depende de informações sobre quem, quando e onde; o caráter arbitrário do morticínio implacável constitui prova suficiente (...) Para um judeu israelense, uma foto de uma criança estraçalhada no atentado contra a pizzaria Sbarro no centro de Jerusalém é, antes de tudo, uma foto de uma criança judia morta por um militante suicida palestino. Para um palestino, uma foto de uma criança estraçalhada pelo tiro de um tanque em Gaza é, antes de tudo, uma foto de uma criança palestina morta pela máquina de guerra israelense. Para o militante, a identidade é tudo” (p. 14). SONTAG, Susan. Diante da Dor dos Outros. Susan Sontag; tradução Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 107 p.

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tensão com as identidades “originais” e a sua aceitação/rejeição seria

configurada de acordo com as apropriações realizadas pelos próprios

sujeitos acerca das mesmas.

Telles (1994) ressalta a importância de se qualificar as práticas de

resistência, atentando para não reduzi-las à sobrevivência política. A autora

considera esta redução oriunda de uma “visão instrumental que se priva de

elucidar o significado desses e outros espaços de ação, no que foram

capazes de produzir, em termos de fatos e eventos” (p.227).

Para se caracterizar a resistência vivida naqueles anos marcados pela

dor e pelo extermínio de projetos de vida, sejam eles mais amplos ou

individuais, é preciso que ressaltemos o ano de 1968.

De acordo com Cardoso (1998), 1968 teve uma peculiaridade, uma

internacionalidade quanto à importância dos acontecimentos, apesar de suas

diversas “singularidades históricas”. Em muitos países do mundo,

simultaneamente ocorrem significativos episódios que mudariam o devir

histórico. No Brasil, os anos que seguiram este período foram marcados

pelos vestígios da violenta repressão, por uma certa “normalização da

sociedade e da política” que levou, de acordo com a autora, ou ao

“esquecimento do acontecimento (...) pela própria dimensão inercial do

tempo (...) ou a imposição mesma, pela força, do esquecimento”.

Paralelamente aos episódios protagonizados pelo terror de Estado no

território brasileiro, em um contexto internacional irrompia a crise dos

valores socialistas.

O “regime de silenciamento” se perpetua de forma geracional.

Primeiramente, direcionado aos opositores do regime; em um segundo

momento, sendo transferido diretamente para suas famílias e companheiros

sobreviventes, que viveram a dor da perda e a impossibilidade de alcançar

justiça; e, posteriormente, aos militantes que lutam para que esse período

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da história não seja negado ou distorcido, como é usualmente feito pelas

práticas dominantes.

Alguns discursos remetem à idéia de um vazio deixado pela repressão

pós-64. O ocultamento de focos resistentes à ditadura mascara também a

verdade histórica. Para Telles, chega-se “a ponto de eliminar todo e

qualquer vestígio de prática social e histórica (...) como se a história

estivesse subsumida à racionalidade objetiva das transformações

econômicas, políticas e institucionais em curso no país” (p.221).

Parte da sociedade brasileira não tomou conhecimento das

atrocidades cometidas durante a ditadura militar, inclusive contribuindo

para sua legitimação. Através de mecanismos ideológicos, como a criação da

figura do subversivo ou mesmo a idéia difundida de terrorismo associada

aos comunistas, contribuiu-se para tal mascaramento. No campo das ações

mais concretas, diversos outros instrumentos foram implementados no

período: as mobilizações das camadas burguesas, como por exemplo, as

Marchas, as manifestações de repúdio ao comunismo, a manipulação e

censura dos meios de comunicação. Aliado ao aparato repressivo montado

pelo regime, estava todo o suporte ideológico, fundamental para a

manutenção da ditadura militar. Essas estratégias representaram

mecanismos ideológicos que não findaram com a queda do regime, e que

acabaram por perpetuar o quadro de impunidade hoje presente. Dessa

forma, pode-se perceber a reprodução do “poder de um status quo que visa

ao esquecimento como impedimento da memória”35.

Para Irene Cardoso (2001), a história não foi esquecida, ela não foi

reconhecida, ou seja, não foi compartilhada coletivamente. Segundo a

35 FRANCISCO, Sônia de Abreu; JORGE, Marco Aurélio; MOURÃO, Janne Calhau. Violência organizada, impunidade e silenciamento. In: Clínica e Política: Subjetividade e Violação dos Direitos Humanos. Equipe Clínico Grupal, Grupo Tortura Nunca Mais/RJ. Rio de Janeiro: Instituto Franco Basaglia/Editora TeCorá, 2002. p.55.

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autora, isto ocorre pela própria imposição da ditadura militar, o

impedimento da circulação e apropriação das informações. A autora discute

sobre a estratégia de implantação do terror. De acordo com suas palavras:

“O terror político assume a forma de uma técnica de produção do silêncio,

desde a censura, passando pelo silenciamento da sociedade através do

medo, até o limite máximo de sua expressão, quando ‘mata a própria morte’,

no procedimento do desaparecimento” (p.156).

Segundo Cardoso (1998), a normalização da sociedade e da política

significou “ou o esquecimento do acontecimento, como diluição na memória,

pela própria dimensão inercial do tempo (...) ou a imposição mesma, pela

força, do esquecimento”36 (p. 7).

A “produção do inexistencialismo” (idem) teve relação direta com o

fato de que a transição da ditadura militar a um regime dito democrático no

Brasil ocorreu sob a tutela das Forças Armadas; a impunidade dos

torturadores também foi fator contribuinte, tendo sido legitimada pela Lei

da Anistia, conhecida como a auto-anistia.

A lei de anistia concede seus benefícios “a todos quantos, no período

compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979,

cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que

tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração

Direta e Indireta, de Fundações vinculadas ao Poder Público, aos servidores

dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos militares e aos dirigentes e

representantes sindicais, com fundamento em Atos Institucionais ou

Complementares”. Ademais, a lei considera, ainda, conexos, para os seus

efeitos, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos

36 “No Brasil de 78, 68 foi caracterizado pelo silêncio ou foi objeto de contracomemoração, o que pode ser evidenciado pela imprensa da época, cuja manchete mais simbólica daquele momento, num caderno especial do jornal O Estado de São Paulo, foi “Maio de 68 – A Primavera do Nada” (Cardoso, 1998: 7).

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ou praticados por motivação política.

Hélio Bicudo, revisando a concepção existente de que a Lei da Anistia

beneficiava torturadores, acredita que os juristas puderam utilizar esse

dispositivo para beneficiar muitos que torturaram e mataram em nome do

Estado terrorista. Ainda de acordo com Bicudo, “ao que tudo indica,

encontrou-se nessa interpretação a razão para equiparar-se, para seus

efeitos, torturadores e torturados (...) uma solução incompatível com o

próprio instituto da anistia”37.

Méndez (2003) faz uma discussão sobre as políticas de silenciamento

produzidas pelos Estados na América Latina:

“Una constante de los gobiernos de transición a la democracia en

Latinoamérica ha sido la mantención de políticas de olvido

pasivo38, las que se han llevado a cabo principalmente a través de

dos mecanismos: primero, por medio del silenciamiento opresivo,

como ignorancia forzada y, segundo, por el establecimiento de una

política de ‘reconciliación’ para una ‘adecuada convivencia nacional’

sobre la base de la amnistía hacia los responsables de las

violaciones a los derechos humanos” .

“La lucha contra el olvido se há centrado principalmente em la

constituición de uma memória colectiva, lo más cercana posible a

la realidad de los hechos acontecidos. Tarea difícil para quienes

han emprendido esta iniciativa, ya que sin el apoyo de políticas

gubernamentales claramente orientadas a este objetivo, se corre

37 Parecer sobre a anistia- www.torturanuncamais-rj.org.br. 38 “Enfrentar y elaborar la vivencia colectiva (olvido activo), que implica reconocer y colectivizar lo sucedido, reparar integralmente a las víctimas y sus descendientes, y castigara todos los responsables; o realizar acciones tendientes a omitir lo sucedido y esperar a que todo se olvide, ‘dando vuelta la página’ en pos de la ‘unidad y reconciliación nacional’ (olvido pasivo)”. Pode-se perceber que a maioria dos governos dos países que sofreram ditaduras militares, optou pelo “olvido pasivo”, pela política de reconciliação mascarada.

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el riesgo de que la ‘verdad’ vivida por miles de personas no se

incorpore a los contenidos que se transmitirán a las futuras

geraciones, quedando fuera de la llamada memoria histórica

nacional. Situación de suma relevancia, pues es la memoria la que

articula la historia de los pueblos y configura la identidad de los

grupos y la identidad nacional”.

A impunidade, marcante na cultura política brasileira, tem grande

influência na produção da subjetividade dos atingidos. Desamparados pelo

fato de que perpetradores da violência continuam impunes, muitas vezes

condecorados em nossa sociedade, ou, ainda mais grave, ocupando cargos

públicos, estes atingidos apresentam muitas lacunas em suas trajetórias de

vida. Em face do não-esclarecimento das mortes, a própria imaterialidade

da vida em decorrência da impossibilidade de fazer luto frente a seus

mortos, no caso específico dos familiares dos atingidos pelo regime

ditatorial, estes são condenados a uma outra clandestinidade: arrastar suas

histórias de vida como se fossem unicamente pessoais/privadas, sem lugar

na “história oficial”39.

Por não terem tido acesso aos corpos de seus mortos, uma parcela

dos sujeitos que vivenciou esse período da história, compartilharia de uma

“nostalgia fechada”, que, segundo Cardoso (1996), “se caracterizaria por um

congelamento do tempo, uma retenção do tempo”, em decorrência da perda,

da imaterialidade da vida.

O profissional do Projeto Clínico-Grupal faz um comentário sobre as

formas pelas quais as marcas da tortura refletem na subjetividade dos

sujeitos:

39 FRANCISCO, Sônia de Abreu; JORGE, Marco Aurélio; MOURÃO, Janne Calhau. Violência organizada, impunidade e silenciamento. In: Clínica e Política: Subjetividade e Violação dos Direitos Humanos. Equipe Clínico-Grupal, Grupo Tortura Nunca Mais – RJ. Instituto Franco Basaglia/Editora TeCorá.. Rio de Janeiro: 2002.

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“Há importantes efeitos-subjetividade que verificamos na clínica

com esses pacientes: insegurança, medo, depressão, sentimento

persecutório, dentre outros. A vida profissional é muitas vezes

comprometida, sendo que em alguns casos houve mesmo uma

incapacitação. Quanto à vida política, em alguns casos há um

distanciamento repulsivo, isto é, o ex-militante torna-se avesso à

prática política. No entanto, não temos aqui uma regra, pois há

formas variadas da violência de Estado e a tortura gerarem

efeitos-subjetividade” .

A filha de um desaparecido político fala sobre a perda sofrida, que a

afetou não só emocionalmente como paralisou algumas esferas de sua vida:

“E não só acabaram com a vida daqueles que eles (...) Acabaram

com aqueles que sobraram também porque a minha mãe teria outra

qualidade de vida se não tivesse passado a dor que ela passou

(emociona-se), entende? E eu que com certeza (emociona-se),

teria condições de estudar, de me profissionalizar melhor. Eu

sempre fiquei... na mediocridade por falta total de condições. Meu

pai era... se ele fosse vivo...ele...nossa, nós teríamos outra, outra

vida. Não só economicamente menos prejudicada, mas assim, de...

riqueza, de conhecimento, eu teria estudado, teria feito uma

faculdade, estaria profissionalizada. Ah! Eu poderia proporcionar

também uma vida melhor para os meus filhos”.

“Eu nem gosto de falar sobre mim não (...) filha biológica de Mário

Alves. Eu comungo as mesmas idéias, mas não sou é... assim... a

intelectual a altura de ser de a filha do Mário Alves. Muitos filhos

ai, fizeram as biografias de seu pai, eu não consigo fazer uma

resumida se quer um folderzinho, é difícil pra mim. Até porque

vocês viram eu sou prolixa, e pra mim tudo é pouco, eu começo a

falar dele e vai rolando.... entende? E tem mais e mais....Então,

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eu... me considero assim com relação ao meu pai e minha mãe é...

não é inadequada, é não corresponde ao que eles mereciam ao que

agora estivesse fazendo pela memória deles. Porque eu poderia

estar fazendo mais com certeza. Eu poderia ter feito mais

também pra mim mesma. Eu realmente em muitos momentos me

acomodei, porque foi tanta dificuldade, tanta dificuldade, tanta

luta, tanta adversidade que teve momentos que me permitir

relaxar parar de estudar, parar de trabalhar, ficar curtindo uma

de mãe é.... tal. E nisso claro, usei esse tempo muito que bem, fui

uma supermãe. Mas deixei de evoluir, de me aperfeiçoar e tudo

mais”.

A partir da noção de “imaterialidade da vida” trazida por Cardoso

(2001), pode-se pensar em que medida a imaterialidade não se faz da vida,

mas da morte. A impossibilidade do luto - de um referencial - a

inacessibilidade à matéria corpórea, ou seja, a inexistência do ritual do luto

acaba por deixar um vazio, que caracteriza a imaterialidade da morte.

A prática dos desaparecimentos utilizada pela ditadura militar

representava essa imaterialidade. De acordo com Cardoso (idem): “O

desaparecimento configura uma experiência de morte sem sepultura, ou

seja, uma experiência de morte que se carrega em vida. A impossibilidade da

realização do ritual do luto – a sepultura – configura uma situação de perda

em que não se consegue renunciar ao objeto perdido, o que produz a

melancolia” (p. 139-140).

Por outro lado, Cardoso (2001) também apresenta a “nostalgia

aberta”. Segundo a autora, essa nostalgia enquanto movimento da memória

que instaura mudanças espaciais e temporais, pode levar a uma

problematização do tempo presente, a uma análise histórica que possibilite

expor os limites impostos e a forma de ultrapassá-los, permitindo dessa

forma, uma re-invenção, um fazer-se outro (p. 131).

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Nessa última concepção “a memória é um acontecer nostálgico; como

força de evocação e de produção de lugares e de figurações, a força de

nominação não é uma força que fixa, mas uma força que imprime um tornar-

se, produtora de mudanças de lugares, que são também mudanças de tempo”.

A partir da dor, retorna-se, representando uma etapa que tem por objetivo

avançar para um outro lugar, a priori desconhecido, mas potencializador40.

De acordo com a fala da filha de um militante considerado morto

político:

“A minha tese de mestrado foi dedicada ao meu pai. E a

dedicatória era assim: a Lincoln Bicalho Roque, meu pai, a quem a

ditadura Militar fez isenção de liquidar, mas só fez transferir a

sua vida orgânica em potência transformadora que não cessa de

me fortalecer. Aí essa foi a dedicatória da tese de mestrado. Eu

acho bonito, porque eu vivi essa história durante muito tempo:

transformar essa questão da morte do meu pai numa potência,

numa força revolucionária. Tudo que eu fazia, eu tinha que mudar

o mundo, tinha que ser muito diferente, tinha que ser muito

especial” .

É contra o “inexistencialismo” citado por Cardoso que Fontana (2004)

nos convida a desvendar em “A História dos Homens”, para que seja

permitida a compreensão do porquê do cenário político atual, as suas

manifestações, a sua degradação, a atomização, o individualismo, o vazio de

projetos coletivos.

Na busca que vai de encontro ao vazio, acredita-se ser extremamente

importante, apesar de também intensamente doloroso, trazer ao debate a

40 Cardoso (2001:128) considera a nostalgia como “um tipo de memória, como um trabalho de reminiscência e de imaginação, que pela sua força de evocação, fabrica, produz os lugares da memória”.

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prática que, dentre outras coisas, caracterizou a longa ditadura militar

brasileira como um período de terror.

CAPÍTULO 2- AS MARCAS VISÍVEIS E INVISÍVEIS41 DA TORTURA

“(...) Como é difícil acordar calado

Se na calada da noite eu me dano

Quero lançar um grito desumano

Que é uma maneira de ser escutado

Esse silêncio todo me atordoa

Atordoado eu permaneço atento

41 De acordo com a discussão realizada sobre o silenciamento e a produção do esquecimento imputados à recente história brasileira, no que diz respeito às extremas violações dos direitos humanos ocorridos na época da ditadura militar, podemos pensar em marcas “invisibilizadas”. KOLKER, T.; MOURÃO, J. C.. Marcas invisíveis ou invisibilizadas? (Clínica e Política, 2002).

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Na arquibancada pra a qualquer momento

Ver emergir o monstro da lagoa

Pai,

afasta de mim esse cálice

afasta de mim esse cálice

de vinho tinto de sangue”

(Chico Buarque/ Gilberto Gil/ 1973)

Nas suas prisões, durante a década de 70, o lavrador Manoel

Conceição Santos foi submetido à tortura de forma brutal:

“Somente fui saber o meu destino quando o avião pousou no Rio de

Janeiro e fui entregue ao Comando do I Exército e levado para o

quartel da Polícia do Exército, no bairro da Tijuca. Arrancaram a

minha perna mecânica e fui colocado nu dentro da “cela geladeira”,

onde era alimentado apenas com pão e água, defecava e urinava no

mesmo local em que me encontrava (...) Fui torturado inicialmente

na cadeira de dragão, que é uma cadeira de ferro, com braços e

um buraco no assento. Depois de amarrado na cadeira, os

torturadores enfiavam uma barra de ferro, viravam para que

ficasse como se fosse um “pau de arara”. Nessa posição era

espancado com cassetete e recebia choques elétricos nos órgãos

genitais e por todo o corpo. Depois me retiravam da cadeira do

dragão e me espancavam com palmatória, cassetete de borracha,

murros e golpes de caratê em todas as partes do meu corpo. Nu e

sem a perna mecânica eu não resistia em pé, e caia (...)

Numa outra vez eles me colocaram num carro e levaram para um

local que tinha uma piscina, onde fui amarrado com os braços

atado às pernas, como um porco, jogaram-me três vezes na água e

quase morri afogado. Nesse mesmo local colocaram-me grudado

num poste entremeado aos braços, com as mãos algemadas e sem

a perna mecânica, onde fui espancado durante horas. Quando fui

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retirado, estava roxo de espancamentos, palmatórias e golpes de

caratê. Tive que ser hospitalizado, e me davam banho de gelo para

espalhar o sangue coagulado no corpo.

Depois fui entregue ao CENIMAR42 (...) Logo que cheguei

amarraram-me os testículos, fui arrastado pelo meio da sala e em

seguida dependurado pelos órgãos genitais (...) Uma vez ligaram

fios de uma bateria de avião no meu pênis, testículos, nariz e

ouvido, e aplicaram tantas cargas elétricas que quase me

enlouqueceram. (...) Como se tudo isso não bastasse fui crucificado

pelos órgãos genitais: os torturadores levantaram meus braços

com cordas amarradas ao teto, colocaram meu pênis e os

testículos em cima da mesa e com uma sovela fina de agulhas de

costurar pano deram mais de trinta furadas. Depois bateram um

prego no meu pênis e o deixaram durante horas pregado na mesa.

Após tudo isso, me derrubaram no chão e ameaçaram arrancar os

intestinos pelo reto.

Por causa desse tipo de tortura fiquei durante semanas urinando

somente através de sonda, e impotente durante anos. E assim

continuaram as torturas durante os sete meses que fiquei

desaparecido no Rio de Janeiro, quando os torturadores

ameaçavam me colocar num avião e jogar em alto mar ou nas

montanhas.

No período que fiquei no CENIMAR era sempre interrogado pelo

“Dr. Cláudio”, que vim saber depois se tratar do inspetor Solemar

Moura Carneiro, agente do órgão de informação da Marinha e

especialista em Ação Popular, que assistia a tortura e orientava os

torturadores”43.

O aparato de repressão montado comportou diversos procedimentos:

o caso do PARA-SAR (que planejou ações de seqüestro e de eliminação da

42 CENIMAR: Centro de Informações da Marinha. 43 Carta de Manoel Conceição Santos à Comissão Especial da Lei Estadual 10.726/2001, a fim de requerimento de indenização, em 02 de julho de 2002.

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população civil); as invasões de domicílio em que se buscavam suspeitos,

familiares, inclusive crianças; a atuação do Esquadrão da morte, combatendo

clandestinamente “a criminalidade na repressão política”; a presença de

organizações paramilitares, grupos clandestinos de repressão (“Voluntários

da Pátria” no nordeste e o “Braço Clandestino da Repressão” em São Paulo),

que contribuíram para o aumento dos desaparecimentos; as prisões

clandestinas - “Casa dos Horrores” em Fortaleza, “Casa de São Conrado” no

Rio de Janeiro, “Casa de Petrópolis”, “Colégio Militar de Belo Horizonte”,

“Fazenda 31 de Março”, em São Paulo (CARDOSO, 1997).

Os diversos mecanismos utilizados eram: torturas com casais;

ameaças aos familiares; falsos seqüestros também de entes queridos; entre

outros44.

Uma ex-militante da ALN afirma:

“eles entraram, pegaram a mamãe e a minha irmã que tinha

quatorze anos, seqüestraram, levaram pro CODI, pra ser

interrogada, pra dizer onde eu tava (...) aterrorizaram bastante,

diziam quem eu era, terrorista que ia ser morta, que eles iam

matar e a minha irmã realmente passaram a mão nela... uma menina

de quatorze... pra apavorar, aterrorizar. Ela passou décadas, mal

fala disso, não consegue falar direito” .

Nesse sentido, a tortura como uma prática por excelência da

44 Ana Joaquina relata: “Eu ouvia meu pai gritar e gritava. Um senhor de cor, enorme, acho que o carcereiro, tapava minha boca com a mão. Mas eu queria minha mãe, que estava numa cela ao lado e eu e minha irmã sozinhas. Então eu gritava. Eu querendo ir para o colo de minha mãe e não podendo. E meu pai gritando” (apud VENTURA). Ana Joaquina é filha de Domingos Simões, então proprietário do sítio Murundu, em que se realizava o XXX Congresso da UNE, conhecido como o fracassado Congresso de Ibiúna, que resultou na prisão de aproximadamente 1.500 estudantes. Ana Joaquina tinha três anos quando foi presa com seu pai, sua mãe e sua irmã Maria da Glória. VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

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violência - estabelecendo uma analogia com o pensamento de Vásquez (1977)

– tem como alvo imediato o ser corpóreo, mas objetiva atingir o ser social.

Vásquez discute a violência ressaltando as relações sociais, pois

afirma que o seu objeto é formado por seres que são sujeitos dessas

relações e que as corporificam. Palavras do autor: “(...) as ações humanas

que se exercem sobre eles não se dirigem tanto ao que têm de seres

corpóreos, físicos e sim a seu ser social (...) o corpo é o objeto primeiro e

direto da violência, mesmo que esta, a rigor, não se dirija em última

instância ao homem como ser meramente natural, e sim como ser social e

consciente. A violência visa a dobrar a consciência, obter seu

reconhecimento, e a ação que se exerce sobre seu corpo dirige-se, por isso,

a ela” (idem: 379-380).

A tortura desencadeia inúmeros processos de subjetivação e de

objetivação nas diversas esferas social, cultural, política, que se pode

pensar em um continuum: "Jorge, membro de uma equipe assassina que

ingressou na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro em 1979, lembra-se

que, quando tinha seis ou sete anos, sua família foi vítima de [uma limpeza]

(...) Jorge recorda a invasão da casa de sua família (...) a mãe de Jorge,

violentada pelos soldados, ficou aterrorizada com a possibilidade de ser

assassinada naquele momento ou depois (...) O pai de Jorge era francês e

supostamente 'subversivo', acabou indo para as instalações de tortura

'Barão de Mesquita' (...) [foi] deportado para a França como 'indesejável'.

Jorge nunca mais viu o pai. Sua mãe 'não aguentando a situação' de ter sido

violentada e o rapto do marido, sofreu derrame que a deixou inutilizada. Os

funcionários da assistência à infância do governo militar determinaram que

sua mãe 'não tinha mais condições psicológicas para criar os filhos'"

(HUGGINS, HARITOS-FATOUROS e ZIMBARDO, 2006). Jorge e seus

três irmãos foram internados na FEBEM. Na instituição, foi submetido a

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torturas. Após dois anos de serviço militar, ingressou na Polícia, passando

depois para o DOI/CODI. Ironicamente, como agente do órgão de

repressão, levaria muitos de seus presos à rua Barão de Mesquita.

De acordo com Coimbra (2004), a tortura é uma “viagem ao inferno: o

dos suplícios físicos e psíquicos, dos sentimentos de desamparo, solidão,

medo, pânico, abandono, desespero”.

“Eu passei... é como o Elio Gaspari diz... por todo receituário de

porão. Choque elétrico, porrada a torto e à direita, pau de arara o

tempo todo, o médico vinha pra ver se você estava em bom estado

pra apanhar mais, soro da verdade, delegacia clandestina, CODI,

aí fui parar no hospital, aí volta pro hospital, fica sem dormir, sem

comer, enfim, o que foi dramático assim pra mim é... a tortura

física você tem que ir agüentando até onde pode, mas o dramático

é que esse negócio de não dormir, não comer e a tensão de “agora

vem mais porrada, quem vai ser agora, será que eles vão... né, o

que vai acontecer... a tua cabeça não pára de funcionar, acho que

foi o mais próximo possível que eu tive de um surto...” (EX-

MILITANTE DA ALN).

A tortura inflige um efeito tão devastador sobre a constituição mais

íntima daquele que é torturado, que, em um determinado momento, o corpo,

até então parte integrante do ser em questão, volta-se contra o seu próprio

eu, na medida em que exige uma ação imediata, com o intuito de paralisar a

situação de tortura. Nesse sentido, pode-se pensar até que ponto o

torturador, nessa condição, não ganha um aliado em potencial. A tortura

acaba por transformar o corpo, a princípio alvo de sua ação, em algoz do

sujeito torturado.

“A tortura transforma nosso corpo – aquilo que temos de mais

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íntimo – em nosso torturador, aliado aos miseráveis que nos

torturam. Esta é a monstruosa subversão pretendida pela tortura.

Ela nos parte ao meio (...) O corpo na tortura nos aprisiona (...) ele

se volta contra nós, na medida em que exige de nós uma

capitulação (...) O corpo que é torturado, nos tortura, exigindo de

nós que o libertemos da tortura, a qualquer preço. Ele se torna,

portanto (...) o porta-voz dos torturadores, aliado a estes na

sinistra tarefa de nos alunar (...), transformando-nos em objeto”

(PELLEGRINO, 1988).

A tortura é sistemática, não existe ao acaso. Portadora de uma

intencionalidade específica e de uma fundamentação política, não

caracteriza uma forma de violência simples. Sua estrutura é complexa, na

medida em que representa a violência na sua forma mais sofisticada, porque

elege seus alvos, os classifica, possui seus próprios instrumentos45 e de

acordo com seus objetivos, deixa marcas visíveis ou

invisíveis/invizibilizadas, de modo que o seu eleito tenha de conviver com ela

durante toda a sua vida.

Baeza (2000) afirma:

“La tortura y sus consecuencias se diferencian nítidamente de

otros actos de violencia, por perversos y brutales que ellos sean.

Ella es un acto humano integral, no solo porque tiene intención,

porque es racional, porque es elegida, sino también porque tiene

causas, motivos, aprendizajes, objetivos, marcos de referencia

ideológica, técnicas específicas de realización, pericia, códigos

simbólicos, lugar social definido, personal especial para aplicarla y

porque su fin no es solo destruir al sujeto que la sufre sino que

paralizar, mediante el terror, a toda la sociedad” (p. 30).

45 Vide Anexo A.

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Para Almeida (1995), devemos considerar que a ação violenta não é

desprovida de uma certa racionalidade, portanto, não é fruto da demência

involuntária. A patologização na análise acaba por isolar o indivíduo,

culpabilizando-o e o responsabilizando-o como ser exclusivo na produção da

violência, retirando assim a dimensão estrutural violenta. Esse tratamento

da violência, conjuntamente com julgamentos morais discriminatórios,

desconecta e desespacializa o fenômeno, das densas relações de poder que

o envolvem.

O ex-militante do PC do B expressa em seu relato a amplitude da

tortura:

“A experiência da tortura se reflete de várias formas na

minha vida. Desde as formas sutis até o fim do sonho

revolucionário, o alinhamento da esquerda mundial ao estilo

burguês eleitoreiro do mundo globalizado, até as formas

mais concretas, fisiológicas, como uma auto-estima

questionável, hipertensão, síndrome pós-traumática,

diagnosticada e tratada tardiamente, aflição e angústia de

se sentir só sem ter interlocutores capazes de sequer

entender sobre o que você está falando, ou pensando, fora

os tradicionais complexo do herói–mártir que te cobra uma

postura revolucionária para sempre e o outro que é o

complexo de não ter morrido na tortura” .

O terror psicológico também tem um papel importante na

desconstrução dos sujeitos. A qualquer momento, poder-se-ia ser o próximo,

assim como vários de seus companheiros já partiram e nunca mais

retornaram:

“Numa madrugada sou retirada da cela, levada para o pátio,

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amarrada, algemada e encapuzada (...) Aos gritos dizem que vou

ser executada e levada para ser ‘desovada’ como num ‘trabalho’ do

Esquadrão da Morte (...) Acredito (...) Naquele momento morro um

pouco (...) Em silêncio, aterrorizada, urino-me (...) Aos berros,

riem e me levam de volta à cela (...) Parece que nessa noite não

têm muito trabalho a fazer (...) Precisam se ocupar (...)”

(COIMBRA, 2004).

“(...) numa simulação de fuga na estrada (...) mandaram eu fugir (...)

eu fiquei paralisada, também eu tava toda doída, toda

arrebentada, não dava pra correr, eu ia cair logo ali, mas eu fiquei

paralisada e eles começaram a atirar pra baixo, pra cima, pro meio

(...) entre a Rio-São Paulo entraram num bequinho (...) é

fuzilamento simulado... nada não, só uma brincadeirinha”46 (EX

MILITANTE DA ALN).

A intensidade daqueles anos de resistência, heroísmo e dor

proporcionaram momentos ou mesmo um cotidiano de medo e incerteza aos

protagonistas dessa barbárie.

De acordo com o relato de Tavares (2005), um dos prisioneiros da

ditadura militar trocados pelo embaixador norte-americano que fora

transportado para o México pela Força Aérea Brasileira, em 1969:

“Sou o primeiro da fila de prisioneiros sentados de costas para as

janelinhas do avião, ao longo da fuselagem, e só eu ouço a ameaça.

Um calafrio me eriça a pele. Sinto medo, mas, imediatamente, a

fantasia suplanta o temor e eu faço que não escuto. Olho para a

frente, para o largo corredor deserto (...) e penso no meu banco

46 O fuzilamento simulado foi uma prática utilizada desde o início do golpe em 1964 e consistia em um terror psicológico, pois os presos eram, na maioria, vendados ou colocados de costas para o pelotão que simulava seu fuzilamento “com tiros de festim ou disparando rajadas por sobre a cabeça da vítima” (Tiradentes: um presídio da ditadura – Memórias de presos políticos: p. 512).

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que ficará vazio quando me atirarem pela porta. Mas eu já

conheço esse truque: irão fazer comigo – penso – o que fizeram

com Victor no dia em que fui preso e ele foi levado num

helicóptero da Marinha. Sobrevoaram toda a costa de Angra dos

Reis para que ele apontasse onde era o acampamento do nosso

grupo e, já de entrada, abriram a porta do helicóptero e o

empurraram no ar. Com a perna esquerda amarrada ao aparelho

por uma corda, ele balançou na vertical como um pêndulo, durante

minutos. O helicóptero voava lento, logo parava e se mexia de um

lado a outro, de alto a baixo, e então o prisioneiro voava em

círculos, como aqueles trapezistas voadores dos circos. Depois ele

foi içado a bordo, tonto e desnorteado, sem saber direito o que

queriam dele, se esquartejá-lo vivo nas nuvens ou apenas mostrar

que também se tortura no ar. Devolvido pela Marinha do Exército,

ele ficou imóvel três dias, deitado de bruços e só de tanga – sem

qualquer movimento a não ser um leve piscar de olhos – no chão de

cimento do calabouço, ao lado da minha cela, no quartel da rua

Barão de Mesquita, no Rio” .

O suplício causado pela tortura e os traumas vividos desde então são

tão profundos que as (re)elaborações de alguns sujeitos sobre as diversas

questões inerentes ao cotidiano sofreram uma inversão. As marcas deixadas

pela violência a que foram submetidos são confundidas com experiências

vividas anteriormente. Nesse sentido, corre-se um sério risco: o de

despotencializar a intensidade daquelas ações bárbaras e atribuir traumas,

seqüelas, à incapacidade individual.

Segundo a fala do ex-militante do PC do B:

“Em resumo a tortura objetiva te destruir enquanto pessoa. Não

apenas fisicamente, mas forja em seus neurônios, no seu

metabolismo, na sua memória o medo de conseqüências de você

exercer plenamente aquilo que você é. De forma que fica muito

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difícil separar diante das dificuldades afetivas ou emocionais que

atributos tiveram origem na tortura, daqueles que tiveram outras

origens, daqueles que já eram ou seriam seus de qualquer jeito.

Numa cela que passei na PE do Rio de Janeiro estava escrito atrás

da porta: as marcas do corpo sumirão, as do espírito nunca” (EX-

MILITANTE DO PC DO B).

A coisificação dos sujeitos se dá de tal forma que a violência se

traduz na “destruição da essência” do torturado. Essa relação mostra-se

contraditória: a coisa é inerte e passiva; porém, o que “o torturador deseja

da coisa é que ela sofra, grite, confesse, fale” (CHAUÍ, 1987).

“A loucura da situação de tortura é esta: deseja-se que, através

da dor e da degradação, um ser humano vire coisa e ao mesmo

tempo permaneça gente para que reconheça no torturador um

outro ser humano, pois se tal reconhecimento não existir, não

pode haver confissão, não pode haver capitulação e sobretudo não

pode haver admissão do poder do torturador” (ibidem).

Ibarra (2000) argumenta: “En la tortura se busca llegar hasta lo más

profundo del objetivo del terror que es la desarticulación de la voluntad. Se

busca transformar resistencia en docilidad. Docilidad en identificación.

Identificación en admiración hacia el carcelero y torturador” (p. 11).

Na relação torturador-torturado, o tempo e o espaço não são

localizáveis pela vítima. Esta, submetida a todo tipo de privações, não

reconhece no torturador um agente da lei, porque na situação de tortura,

não existe uma lei, uma regra específica. Para Cardoso (1997), esta relação

é dual, em que a “onipotência do primeiro se constrói a partir da total

impotência da vítima, pela impossibilidade de sua defesa e pelo sofrimento

do corpo torturado”. Segundo a autora, o reconhecimento do algoz como a

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figura da lei significaria a incorporação de uma terceira referência, a lei, o

que impossibilitaria o fundamento do funcionamento da tortura - a completa

despersonalização e destruição subjetiva do torturado.

A ausência de legalidade, segundo a autora, continua gerando o

discurso da não-existência formal da tortura política e, é nessa base, que se

perpetua a sua negação pela corporação militar, até os dias atuais.

Na “lógica da clandestinidade do horror”, o torturador revela a

capacidade humana de produzir o horror: “a impressão que eu tinha de uma

parte dos torturadores é que eles não pertenciam ao mesmo grupo humano

que eu” (EX-MILITANTE DA ALN).

De acordo com Maria do Carmo Brito47, ex-militante da Vanguarda

Popular Revolucionária - VPR:

“Na tortura, você rapidamente é colocado cara a cara com um

horror maior que a dor: tem gente de sua mesma espécie, o homo

sapiens – duas pernas, dois braços, uma cabeça – que é um

monstro”.

Na resistência a esse mecanismo perverso, os torturados procuravam

manter a sua lucidez, para evitar que o torturador penetrasse na sua

subjetividade mais profunda. Este não pode ser caracterizado como um ser

humano fora de sua racionalidade. Segundo Arendt (1999: 299): “muitos não

eram pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e

assustadoramente normais”.

Huggins, Haritos-Fatouros e Zimbardo (2006) discorrem sobre os

tipos de torturadores: os racionais, e logo, morais; os irracionais, imorais.

Nessa concepção está a teoria da "proporcionalidade" da tortura: quando os

47 Depoimento retirado da obra: Vianna, Martha. Uma Tempestade como a sua Memória: a história de Lia, Maria do Carmo Brito. Rio de Janeiro: Record, 2003.

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casos exigissem a prática da tortura (importância e urgência acerca das

informações a serem reveladas, sujeitos elegíveis - aqueles que se negassem

a fornecer informações ou mesmo por seu temperamento "petulante"),

estariam dentro do universo do "descomprometimento moral". A questão da

elegibilidade do torturado, culpabiliza-o em detrimento do agente que

pratica a tortura e este se apresenta como aquele capaz de definir o

tratamento mais adequado para cada caso, o que é excesso de violência ou

não. Quando a tortura era perpetrada para prazer pessoal, a sua prática era

condenada por outros torturadores. Mas como distinguir esses dois níveis?

No processo da tortura, como saber se satisfação individual e

funcionalidade profissional não se mesclam ou se completam? Nesse sentido,

a moral entra como um fator de minimização da culpa e de justificativa das

ações.

A lucidez ou a tentativa de mantê-la, mesmo que de forma

fragmentada, representava uma significativa estratégia de sobrevivência:

“Toda vez que eu ouvia alguém sendo torturado, fechava as mãos

com força, cravando as unhas na palma da mão.

Foi então que (...) a francesa me salvou. Ela dizia que eu não

deveria fazer isso porque você endurece e perde a sensibilidade,

e que a sensibilidade tinha que ser mantida a qualquer custo. Ela

me ensinou que eu não podia cair em desespero, e disse uma coisa

esquisitíssima, que na época eu demorei uns dois dias para

entender: - Você não pode dizer ‘eu sofro’; tem que dizer ‘eu sou o

sofrimento’. Porque ‘eu sofro’ é insuportável; ‘eu sou o sofrimento’,

não.

Porque, assim como tinha morrido Juares, devia haver milhares de

mulheres vietnamitas cujos maridos estavam morrendo naquela

mesma ocasião, que a humanidade sempre sofreu horrores, as

mulheres sobretudo, e que tudo isso era suportável. Eu enfim

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entendi, e assimilei isso para o resto da vida” (VIANNA, 2003).

Outro aspecto fundamental é a teatralização da tortura. Nessa

situação-limite, o sentimento de irrealidade é um fator constitutivo: seja

pelo aparato técnico-científico da tortura, seja pelos “espectadores”, ou

propriamente pela inteira exposição. Além desses fatores, essa

teatralização é clandestina, “na qual o poder se apresenta como absoluto

porque sem nome, sem lugar e sem rosto, revela um dos aspectos mais

impressionantes da tortura: os torturados sentem-se sem direitos, mas os

torturadores confessam-se sem poderes” (CHAUÍ, 1987). Segundo os

torturados, essa situação tem um grande risco: a identificação desses dois

atores; aquele que é vítima, o torturado, e aquele que tem o poder, o

torturador, daí a tamanha perversidade desse mecanismo. Contudo, o que os

identifica, “é a instância que os domina e que deles escapa, a máquina do

próprio poder” (ibidem).

“(...) tem a intimidade com o torturador que é muito complicada e

tem um que faz papel de bonzinho, isso tudo te confunde de uma

maneira assim enlouquecida, talvez se fosse agora eu não me

confundisse, mas com 21 anos me confundia” (EX-MILITANTE DA

ALN).

Tavares (2005) por sua vez afirma:

“O choque elétrico nos faz perder a percepção concreta. Ouço

vozes, mas não sei o que dizem nem se me interrogam ou falam

comigo. Logo, a máquina do choque elétrico pára. Em poucos

segundos, entendo que procuram as chaves das algemas e se faz

uma pausa. Ouço, então, uma voz: - Isto é uma irresponsabilidade!

Na ilusão do náufrago à espera de um salva-vidas, entendo que

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alguém – talvez o comandante do quartel – aparece em minha

defesa e chama de ‘irresponsabilidade’ o que estão fazendo

comigo. Só mais tarde vim a entender a verdade:

‘irresponsabilidade’ era não terem me tirado as algemas antes do

primeiro choque elétrico, pois assim – com as mãos unidas pelo

metal – a corrente, embora aplicada no lado direito, passava

diretamente ao coração e o preso podia morrer ali mesmo. O

choque elétrico não se aplica com intenções assassinas, mas para

triturar o prisioneiro, esmigalhá-lo, reduzindo-o a uma condição de

inferioridade e impotência absoluta, física e psicológica. Eles não

pretendiam matar, nem nos matar. Só nos aniquilar em vida,

destruir-nos vivos como numa fogueira em que Joana D’Arc

queimasse e queimasse sem jamais se extinguir nas chamas, para

sofrer ainda mais com a dor multiplicada”.

Entre torturador e torturado é impensável a criação de uma relação

de igualdade. A tortura pode ser protagonizada em alguns momentos pelo

torturador, quando pratica a sua “função” de algoz com todos os tipos de

métodos possíveis. Isto não quer dizer que esta situação não possa ser

transformada, na medida em que o torturado consiga se desviar dos

objetivos inicialmente estabelecidos pelo torturador. A mutação referida

não significa a inversão dos papéis - mas a resistência, física, psicológica e

ideológica frente àquele mecanismo tão perverso e desigual - como nos

casos em que militantes resistiram até a morte para não delatar seus

companheiros48.

A relação descrita anteriormente é bastante complexa, no sentido de

48 Para Huggins, Haritos-Fatouros e Zimbardo (2006: 72), na pesquisa com relatos de histórias de vida, existe o perigo de se enfatizar a resistência e minimizar a importância do "poder estrutural". Dessa forma, pode-se passar a impressão de que torturadores e torturados encontram-se em igualdade nesse momento extremo de violência, colocando em segundo plano o impacto do poder estrutural.

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que a tortura não é impessoal, como o assassinato, por exemplo. Este é

rápido e não pressupõe uma relação mais duradoura. Porém, a tortura pede

um "compromisso com a vítima", mesmo que seja a concretização da tortura

propriamente. O assassinato não exige uma preparação, a tortura sim.

De acordo com Huggins, Haritos-Fatouros e Zimbardo (2006):

"Os torturadores devem desenvolver um relacionamento

'emocional' manipulativo consciente com suas vítimas, tratando-as

como indivíduos sem sentir empatia por elas (...) precisam dominar

técnicas para obter informações rápida e habilmente sem matar as

vítimas (...) o trabalho do torturador é relativamente lento e

metódico, enquanto o do assassino freqüentemente é rápido e

espontâneo. O trabalho do torturador nunca se completa, enquanto

o do assassino está temporariamente cumprido cada vez que

alguém é assassinado".

A “infinitude” da tortura também se mostra nas marcas que os

sujeitos carregam consigo e que refletem nas diversas esferas de suas

vidas.

Também podemos fazer um recorte de gênero, pois de acordo com os

relatos de mulheres torturadas, a tortura direcionada à mulher é

extremamente machista, sem contar o fato de que, na sociedade brasileira,

com fortes traços moralistas, à mulher é atribuído o espaço privado e

familiar. Dessa forma, a sua inserção política, aliada a sua aparente

fragilidade física e a sua condição de “mulher” (supostamente desejada pelo

homem), eram fatores favoráveis para a perpetração da tortura.

De acordo com o relato de Cecília Coimbra, ex-presa política e

militante do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ:

“Logo que sou levada ao DOI-CODI/RJ, depois de três dias no

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DOPS, um pouco antes de ser iniciada a tortura, recebo na cela

onde me encontro uma estranha ‘visita’: Amílcar Lobo que se diz

médico, tira minha pressão e pergunta se sou cardíaca. Ou seja,

prepara-me para a tortura (...) para que esta possa ser mais eficaz

(...) Geralmente eram as mulheres que recebiam essa ‘visita’, com o

objetivo de terem suas resistências avaliadas para que a

repressão pudesse saber até que ponto poderiam agüentar as

torturas, sem atrapalhar as informações que precisavam tirar

delas. Colocam-me nua e acontecem as primeiras sevicias (...) Os

guardas que me levam, freqüentemente encapuzada (...) percebem

minha fragilidade (...) constantemente praticam vários abusos

sexuais (...) Os choques elétricos no meu corpo nu e molhado são

cada vez mais intensos (...) Eu me sinto desintegrar: a bexiga e os

esfíncteres sem nenhum controle (...) ‘Isso não pode estar

acontecendo: é um pesadelo (...) Eu não estou aqui (...)’, penso eu. O

filhote de jacaré com sua pele gelada e pegajosa percorrendo meu

corpo (...) ‘E se me colocam a cobra, como estão gritando que

farão?’ (...) Perco os sentidos, desmaio (...)” (2004).

A obra Brasil: Nunca Mais – um relato para a história traz inúmeros

relatos de aborto e de estupros direcionado a mulheres:

“A qualquer hora do dia ou da noite sofria agressões físicas e

morais. ‘Márcio invadia minha cela para ‘examinar’ meu ânus e

verificar se ‘Camarão’ havia praticado sodomia comigo. Este

mesmo ‘Márcio’ obrigou-me a segurar seu pênis, enquanto se

contorcia obscenamente. Durante esse período fui estuprada duas

vezes por ‘Camarão’ e era obrigada a limpar a cozinha

completamente nua, ouvindo gracejos e obscenidades, os mais

grosseiros” (INÊS ETIENNE ROMEU, 198549).

49 BRASIL: NUNCA MAIS – UM RELATO PARA A HISTÓRIA. Prefácio: D. Paulo Evaristo Arns. Rio de Janeiro: Vozes, 1985.

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O aparato montado pelo regime de terror contava com a significativa

participação de profissionais - entre eles médicos e enfermeiros – que

reanimavam presos ou davam o aval para que os torturadores prosseguissem.

De acordo com o ex-soldado Adaílton Vieira Bezerra, 50 anos, que atuou

junto ao aparato repressivo nos porões da Guerrilha do Araguaia como

"enfermeiro" do Exército:

"Preparavam a lama de fezes e urina. Colocava-se uma tábua, duas

latinhas, a pessoa ficava em cima e tinha um fio para segurar. O

fio tinha trechos desencapados. Aquele cabo recebia corrente

elétrica vinda da bateria ou do gerador (...) Era quando a pessoa

tinha medo de falar. Ela continuava apanhando, continuava a

tortura, até ficar escornada, vazando sangue pela boca, pelo

ouvido. Os interrogatórios eram retomados. Nova sessão de

tortura e nós trabalhávamos de novo para reanimar”50.

“No Rio ou em Montevidéu e em qualquer parte, esses médicos-

monstros eram os únicos com poder sobre os torturadores. Os

únicos com capacidade de ordenar que parassem”51 (TAVARES,

2005).

Os traumas psíquicos deixados pela tortura são de grande

intensidade, como o mostra o relato de uma ex-militante da ALN:

“o psiquiatra do CODI me disse... Amílcar Lobo... ele foi me

50 Folha de São Paulo, 01 de maio de 2005. “Ex-militares relatam tortura do Exército contra guerrilha”. 51 Flávio Tavares refere-se ao Rio de Janeiro, local em que foi preso pela ditadura militar brasileira, e a Montevidéu, Uruguai, já no exílio, onde foi seqüestrado e acusado de espionagem.

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examinar, eu tava muito ferida, choques elétricos, e ele soltou

assim muito tranqüilamente: -“você tem o útero retrovertido

infantil, nunca vai poder ter filhos”. Eu tinha 21 anos, eu fiquei...

os quase quatro anos que eu fiquei presa, eu só pensava isso, “não

vou poder ter filhos, será que eu posso ter filhos?” era uma forma

de tortura... eu não entendi na época que isso era tortura... mas

foi... pra uma mulher de 21 anos era uma forma de tortura assim...

leve na forma e brutal no conteúdo”52 .

“o médico, não me lembro o nome do cara, era urologista do

hospital do Exército, do hospital geral do Exército, “nós aqui

temos dois critérios: um é o senso de dever como médico e o

outro é o amor pela pátria, pelo que você fez você não merece

consideração” Aí virou pros quatro caras da OBAN que tavam me

levando (...) provavelmente do Estado, do DOPS sei lá, todos eles

andavam juntos, trabalharam juntos e falou “esta moça deve

beber muito líquido e não deve apanhar no rim, o resto é com

vocês”.

As saídas utilizadas pelos atingidos frente ao terror de Estado

chegavam a “transpor” a própria realidade:

“Aí eu fiquei muito doente mesmo (...) eu via um monstro, o tempo

todo ele me acompanhava, eu fiquei tão ruim que pra não

enlouquecer de vez, eu tinha o tal monstro que ficava felizmente

fora de mim. Então era um adolescente, com síndrome de Down,

que ficava a uma certa distância de mim e olhava pra mim com um

sorriso que era enigmático. Eu não sabia se ele ia me atacar, se ele

52 A tortura sexual tem início com a nudez forçada, a fim de elevar ao limite a situação de vulnerabilidade e humilhação. A possibilidade de um abuso, estupro ou sexo anal é constante e potencial. O preso pode ser colocado nu na frente de parentes e estranhos ou mesmo forçado a abusar sexualmente um do outro. Aliado à questão física e intrinsecamente psíquica está o medo de uma possível gestação, da perda da masculinidade, de não ser mais capaz de ter filhos.

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não ia me atacar, ele era forte, ele me acompanhava em todo

lugar, então eu tava ficando completamente louca” (UMA EX-

MILITANTE DO PC DO B).

Gaspari (2002) considera que a tortura tornou-se rotineira no

interior da máquina de repressão do regime militar pela associação de dois

conceitos - um seria a concepção absolutista da segurança da sociedade e o

outro se associa à funcionalidade dessa prática, que representava uma

forma eficaz de acabar com os terroristas, papel atribuído aos opositores

políticos do período.

A implantação do terror no regime militar, para Ibarra (2000), não

representa um indício de sua monstruosa força, mas sim de sua profunda

debilidade. Para o autor, um Estado que se assenta no uso da força é fraco e

um Estado que se assenta no consenso é forte.

Ibarra (2000) afirma:

“La ejecución extrajudicial y la desaparición forzada son

solamente medios que buscan la intimidación y en el caso de la

segunda, información. A su vez intimidación e información,

también son solamente medios que facilitan la liquidación de

opositores y subversivos. Es la obtención de la estabilidad política

del Estado, el verdadero objetivo del terror” (p.7).

De acordo com Gaspari, a tortura é filha do poder e não da maldade

desumana dos seres humanos, pois ela tem um sentido para aqueles que a

sofrem e outro para aqueles que a fazem funcionar. Para o torturado, resta

a dor e para os torturadores a certeza da eficácia do método. Para os

últimos “o crime não está na tortura, mas na conduta do prisioneiro. É o

silêncio, acreditam, que lhe causa os sofrimentos inúteis que podem ser

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instantaneamente suspensos através da confissão” (2002: 20).

A confissão passa pela capacidade de o sujeito resistir àquele

mecanismo de extrema coerção. Para Gorender (1987), “são mais aptos a

resistir à tortura os militantes que interiorizaram a ideologia socialista e

fizeram dela sua norma moral” (p. 261). A ex-dirigente da ALN, Zilda

Xavier, chamou de covardes os simpatizantes da organização envolvidos na

cilada em que Marighella, o chefe da organização, foi assassinado.

Segundo Gaspari (2002: 39), esse julgamento “subverte o problema

moral da tortura, transferindo-se à vítima a responsabilidade pela conduta

do algoz”. Portanto, percebe-se uma polêmica quanto à questão dos

interrogatórios e da resistência à tortura53. Nesse sentido, de absoluto

acordo com Gaspari e de encontro ao pensamento de Gorender, acredita-se

que a culpabilização - daqueles que não conseguiram, por qualquer razão,

desviar-se dos objetivos dos torturadores - constitui uma forma de

remeter ao indivíduo a responsabilidade por uma prática [a tortura] que vem

no seio de um projeto político, de forma a lhe conferir legitimidade e a

perpetuá-lo. Dessa forma, a ditadura militar brasileira seria absolvida,

enquanto alguns sujeitos seriam “endeusados” e outros seriam

“crucificados”.

De acordo com a fala de uma ex-militante da ALN:

“Era assim: ou você não fala nada ou você é traidor, e não é

nenhuma coisa nem outra, eles estão ali pra te destruir, pra te

quebrar, pra te destruir como pessoa, é isso... é pra quebrar tua

espinha dorsal, pra você se deprimir, se desapontar, não acreditar

em mais nada, pra você se confundir com os teus dias, com o que

53 Segundo Maria do Carmo Brito, ex-militante da VPR: “Na verdade, nunca achei que quem fala é um monstro, um traidor. Sempre pensei que cada um tem o seu limite, que isto é da condição humana. Nunca fui sectária. Mas é diferente quando é com você. A gente sempre acha que deveria ter sido mil vezes melhor do que foi” (VIANNA, 2003).

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você pensa e com isso eles conseguiam todas as informações que

eles querem e ainda se você sobrevivesse fisicamente que eu digo

é... você vai sobreviver muito mal psicologicamente. Eu acho que a

intenção é essa, é... destruir o teu eu”.

“Pra começar toda aquela empáfia nossa que a gente tava

preparado... foi uma tremenda de uma falácia. Ninguém nas nossas

condições poderia estar preparado pra levar porrada e do jeito

que foi. Morrer, talvez, é mais rápido, mas ser torturado, não, a

gente não tinha preparo” .

De acordo com Gaspari (2002), existe uma confusão entre o

interrogatório e o suplício. No primeiro existem perguntas e respostas. No

suplício, busca-se a submissão. Quando os presos respondem, suas falas são

resultado de uma submissão única e exclusiva à vontade do torturador.

A tortura leva a diferentes níveis de dor. O sofrimento é comandado

pelo torturador e, nesse sentido, este possui o controle do corpo do

torturado. Num determinado momento, o preso prefere a morte à confissão,

que se torna um aspecto irrelevante. “A dor destrói o mundo do torturado

ao mesmo tempo que lhe mostra outro, o do torturador, no qual não há

sofrimento, mas o poder de criá-lo” (GASPARI, 2002).

A teoria da funcionalidade e da necessidade da tortura para obter

confissões camufla a verdadeira busca pela sua inimputabilidade, argumento

que vem embasando os discursos que pretendem manter a impunidade no

país.

Na situação de tortura, os agentes que a praticam podem tentar

justificar suas ações ao alegarem a obediência a ordens superiores. Nesse

sentido, pode-se fazer uma analogia ao pensamento de Arendt (2004):

“faria muito mais sentido considerar o funcionamento dos ‘dentes da

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engrenagem’ (...) em termos do apoio global a um empreendimento comum do

que em termos habituais de obediência aos superiores” (p. 110).

Nesse sentido, Arendt (ibidem) avança, pois ao considerar

“empreendimento comum” está se referindo a uma dimensão mais ampla, em

que remove a discussão agentes/tortura do espaço unicamente

individual/particular para o debate em torno da noção de projeto, formado

por um coletivo.

Para Maria Rita Kehl (2002): “o mal, em centenas de casos como o de

Eichmann, foi praticado não por razões essencialmente perversas – por

exemplo, como um ódio pessoal contra os judeus, movido por sentimento de

extrema intolerância , mas por motivos banais: obediência, oportunismo,

vontade de fazer deslanchar uma carreira medíocre. A idéia de que o maior

mal possa ser praticado de um modo banal pelo mais insignificante e servil

dos homens deve nos alertar para isto: que o fundamento de todo Desejo

não é nada além do desejo masoquista de sujeição a um Outro absoluto (...) a

banalidade do mal nasce do vazio de pensamento” (p. 90) .

Pode-se realizar também uma discussão estrita sobre a questão da

obediência. Esta tem direta relação com a questão do descomprometimento

moral da violência (HUGGINS, HARITOS-FATOUROS E ZIMBARDO,

2006). Trata-se de seres humanos que, desempenhando funções, sujeitos a

normas e ordens superiores, declaram-se desprovidos de sua

responsabilidade na perpetração de atrocidades.

A retirada da noção da individualidade para o sentimento e status de

pertencimento ao grupo modelava as novas identidades desses sujeitos

obedientes - instrumentos da barbárie que eles mesmos perpetravam54.

54 O treinamento de militares recém-chegados à instituição tem esse propósito: todos "pagam" pelo erro de um, não existe individualidade, mas somente a identidade esquadrão, tropa, pelotão.

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Coimbra (2001:221) afirma que profissionais de psicologia têm

procurado encontrar características psicopatológicas em pessoas

protagonistas de regimes de terror. De acordo com a autora, uma

pesquisadora americana surpreendeu-se ao final de sua pesquisa que, ao

examinar sete criminosos de guerras nazistas, não encontrou personalidades

“desajustadas”.

Na questão da responsabilidade como parte da coletividade pode-se

fazer uma ligação com a impunidade. Os responsáveis/culpados que

lideraram a execução e a manutenção dos mecanismos de legitimação do

regime militar não foram punidos legalmente e nem moralmente. A anistia,

abrangendo atingidos e agentes repressivos ao mesmo tempo, acabou por

responsabilizar atingidos e torturadores, camuflando a culpa pertencente a

grupos específicos da sociedade brasileira.

2.1 O PARADOXO DA TORTURA

Pretende-se expor, nessa reflexão sobre as características dessa

forma brutal de violência, a seguinte hipótese: a tortura é um mecanismo

tão perverso que, ao mesmo tempo em que representa a impossibilidade de

se fazer política, mostra-se um instrumento de afirmação de um projeto

político, determinado historicamente. Daí a denominação “o paradoxo da

tortura”.

Para tal exposição, trataremos de distintas concepções sobre

política, mas que, no nosso entendimento, convergem na direção desse

paradoxo. Dessa forma, trabalhar-se-á com as concepções de Hannah

Arendt, Marilena Chauí e Antonio Gramsci.

Para Arendt (1994), o poder corresponde à habilidade humana para

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agir em coletividade, nunca representando a propriedade de um indivíduo. O

poder seria resultante do consenso entre iguais55, baseado na vontade

comum e não no simples convencimento. De acordo com essa concepção, a

política somente pode ser pensada por meio da ação comunicativa, em que os

sujeitos envolvidos nessa relação de poder/política são semelhantes e

ativos, no sentido de que trazem elementos de igual equivalência.

A violência diferencia-se pelo seu caráter instrumental, pois depende

da justificação pelo fim que quer alcançar. Segundo a autora, “jamais existiu

governo exclusivamente baseado nos meios da violência. Mesmo o domínio

totalitário, cujo principal instrumento de dominação é a tortura, precisa de

uma base de poder – a polícia secreta e sua rede de informantes”56 (p. 40).

Arendt afirma que a violência e a brutalização da política encontram-

se na esfera do não-político. Para Arendt (1994:44), o poder é a essência de

todo governo, mas a violência não. Esta está imersa na possibilidade de

destruir aquele; a perda do poder abre espaço para a violência. De acordo

com a mesma: “Poder e violência são opostos; onde um domina

absolutamente, o outro está ausente. A violência aparece onde o poder está

em risco, mas, deixada a seu próprio curso, ela conduz à desaparição do

poder”. Entretanto, acredita-se, não quer negar que, no interior da esfera

do poder, possa existir a prática da violência; Arendt apenas aponta para a

potencialidade que esta tem de destruí-lo. Nesse sentido, pode-se pensar

que a violência pode estabelecer uma relação de paralelismo com o exercício

do poder, na medida em que este encontra uma oposição que possa ameaçá-

lo.

Segundo Chauí (1987), diferentemente da tradição liberal, no golpe

55 Não se pretende no presente estudo, discutir sobre os sujeitos iguais de que trata Arendt em sua obra. 56 Seria necessário frisar que a mesma faz uma distinção entre os regimes totalitários e os governos ditatoriais, que será abordada posteriormente.

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de 1964, entende-se que “à moda do terror, do nazi-fascismo e da

monarquia medieval, a representação sofreu uma inversão profunda: é por

que se governa que se é representante” A autora ressalta:“Em outros

termos, recuperam do terror e da monarquia absoluta o direito de vida e

morte sobre toda a sociedade. É essa inversão fantástica que designei como

impossibilidade da política” (CHAUÍ, 1987).

Chauí (ibidem) traz para a discussão a questão da impossibilidade da

política. Acredita-se que a “impossibilidade da política” pensada por Chauí e

o conceito da esfera do não-político de Arendt trazem aspectos

importantes para o entendimento da questão.

A concepção ampla de política gramsciana atenta para a importância

da política na constituição dos seres sociais. A escolha teórica anterior

reitera o fato de que as idéias de Gramsci norteiam a concepção de política

desta dissertação.

O conceito de política gramsciano abrange duas concepções. Em seu

sentido “amplo”, como “catarse”, a política é um elemento que atravessa

todas as esferas do ser social. E como “catarse”, indica a passagem do

momento meramente econômico para o momento político e ético,

identificado com a liberdade. Nessa concepção, a política é concebida como

instrumento de criação, de elaboração de consciência para que a "classe

social" possa se tornar hegemônica na sociedade57 (COUTINHO, 2003).

No sentido restrito, o conceito aparece como o “conjunto de práticas

e de objetivações que se referem diretamente ao Estado, às relações de

poder entre governantes e governados. Se, em sua primeira acepção a

57 A acepção restrita gramsciana de “política” a apresenta como algo transitório no decorrer da história, que “será superada dialeticamente, (...) elevada a nível superior na sociedade comunista” (COUTINHO, 2003). O caráter histórico e, por essa razão, transitório, tem origem na divisão da sociedade em classes e tem seu fim com o advento da sociedade comunista e a conseqüente extinção das classes sociais.

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política pode ser considerada um momento ineliminável da estrutura

ontológica do ser social, nessa segunda acepção ela aparece, ao contrário,

como algo historicamente transitório” (COUTINHO, 2003: 93).

Gramsci, diferentemente de Marx, Engels e Lenin, presenciou a

intensificação dos “processos de socialização da participação política”. A

formação de novos sujeitos políticos possibilitou a Gramsci a ampliação da

teoria de Estado elaborada anteriormente por esses pensadores.

Gramsci, ao ampliar o conceito de Estado, pensa o termo sociedade

política representado pelo Estado-coerção aliado à sociedade civil, esta

formada pelas diversas organizações sociais e coletivas autônomas em

relação àquela. No pensamento gramsciano, a supremacia seria o momento

em que a hegemonia e a dominação, o consenso e a coerção, a direção e a

ditadura são unificados, mas a disputa pela supremacia dependeria da

autonomia das esferas superestruturais e do grau de correlação de forças

entre as classes sociais.

De acordo com Acanda (2006), a teoria da hegemonia de Gramsci tem

como ponto de partida a questão da relação entre política e cultura. Com o

significado gnosiológico do princípio da hegemonia, Gramsci ressalta a sua

ruptura com a concepção liberal e afirma a dialética da sua interpretação

sobre política58 - a relação orgânica entre política e cultura, entre poder e

saber. Nesse sentido, Gramsci pensa os processos de dominação e o poder,

analisando-os também na esfera cultural.

A teoria gramsciana sobre o poder apresenta-se em contraposição às

concepções liberal e marxista economicista da II Internacional. Na

concepção liberal, o poder é considerado um bem, uma mercadoria que

58 Segundo Coutinho (2003), no pensamento gramsciano existe uma centralidade da política, pois se tende a relacionar todas as esferas do ser social com o campo político, ”a política como elemento real ou potencial ineliminável” (p. 91).

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concebe a figura de um “sujeito primário, dotado de direitos naturais e

poderes” (idem, 202). O poder é visto como algo negativo, veículo da

repressão. Na concepção marxista também se presencia a negatividade do

poder, pois se enfatiza o seu caráter de repressão e violência. O poder é

concebido como o Estado, e a sua função seria apenas a manutenção das

relações econômicas existentes.

Acanda (2006: 203) afirma:

“Gramsci nos confronta com um poder que é sempre imanente ao

meio em que é exercido (...) O poder não é visto como uma coisa

que se adquire ou se perde. Seu estatuto não é o de ‘ente objeto’,

mas de uma relação. Por isso, não é possível identificá-lo apenas

com a ação repressiva, com uma barreira que impede a

possibilidade de uma ação diferente. Ao interpretá-lo como

hegemonia, Gramsci destaca sua positividade, seu modo operante

e também (principalmente) produtivo, criador de possibilidades. O

poder é relação de forças, é atividade”.

O poder na situação de tortura se despe de sua condição de relação e

criação. A política pensada por Gramsci em um sentido amplo, generoso,

deforma-se na sua essência. A tortura, ao anular o outro, apresenta-se

concretamente como a impossibilidade da política - daí a analogia com o

pensamento de Chauí (1987) - e distancia-se inimaginavelmente da

concepção arendtiana de espaço de comunicação entre os sujeitos.

Nesse intuito é que pretendemos pensar como a política, momento

constitutivo da estrutura ontológica do ser social, “da liberdade, da

teleologia, do dever ser, da iniciativa dos sujeitos” (Coutinho, 2003), pode

ser usurpada de forma drástica dos sujeitos a que a tortura se direciona. A

tortura como instrumento de anulação destrói as potencialidades no

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momento de sua execução, interrompendo projetos ou destruindo-os em

diferentes proporções.

A tortura como via de total e brutal aniquilação do outro como ser

humano, ultrapassa largamente a noção gramsciana de coerção. Embora se

reconheça a importância da formulação gramsciana, aqui se quer pensar a

prática da tortura como um mecanismo que vai além desses conceitos

elaborados anteriormente sobre o espaço da política. Paradoxalmente, a

mesma tortura representa uma via significativa de afirmação de um projeto

político, pois nessa total anulação esmaga seus opositores, anulados pela sua

perversão e eficácia. Dessa forma, a tortura é fundada nessa contradição,

que lhe dá sentido e legitimidade.

2.2 CONSIDERAÇÕES SOBRE A LEGITIMIDADE DA DITADURA

MILITAR BRASILEIRA

Neuman (1969), ao pensar na função social da ditadura, levanta a

possibilidade de ser uma tentativa de uma classe social ameaçada, que

tentando manter o seu status quo, instaura a ditadura59. Considero ser esse

o caso específico do Brasil, pois o golpe militar foi instaurado em um período

de intensa efervescência política e cultural.

Netto (2001) considera o regime militar instalado no Brasil como uma

59 Franz Neuman caracteriza outras duas possíveis funções sociais para a ditadura: 1) classes sociais que reivindicam o reconhecimento de seus interesses que os políticos no poder se recusam a conceder; 2) classes condenadas que, na tentativa de transformar suas condições sócio-econômicas, instauram um sistema que lhes restitua sua antiga posição (1969: 276).

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ditadura militar-fascista. O autor discute que, até a implementação do AI-

5, a ditadura se apresentava como basicamente reacionária, na qual ainda

cabiam mediações de corte democrático. Nesse sentido, destacando o

momento posterior a este Ato Institucional, o mesmo caracteriza o

momento como “genuíno” para a autocracia burguesa, pois “converte-se num

regime político de nítidas características fascistas” (p.38 – grifos originais).

Touraine (1989) destaca que as formas de controle utilizadas nas

ditaduras militares latino-americanas eram bastante diferenciadas daquelas

usadas pelos regimes fascistas. Segundo o mesmo, nas ditaduras latino-

americanas, houve maior teor repressivo do que propriamente ideológico,

diferentemente do que ocorreu no fascismo60 .

Seria importante grifar, de acordo com Netto (2001), que a

hegemonia nunca saiu das mãos da burguesia. Na contracorrente do

processo ditatorial, não se engendraram núcleos capazes de trazer

propostas “aptas a transcender os quadros da ordem burguesa” (p.44).

Gorender (1987) não concorda com a tese de uma ditadura militar

identificada com o fascismo, pelo fato de a direção estatal não ter sido

monopolizada por um partido fascista. Dessa forma, o autor opta pela idéia

de militarização do Estado.

Coutinho (2000), indicando que a ditadura instalada no país não

representou uma ditadura fascista clássica, pois não dispunha de bases de

massa organizadas, acredita que “o regime militar não foi capaz de

subordinar totalitariamente (...) [a] crescente sociedade civil ao Estado” (p.

89). Dessa forma, prefere o termo autoritarismo61, pelo fato de que o

60 TOURAINE, Alain. Palavra e Sangue: política e sociedade na América Latina. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Trajetória Cultural, 1989. 598 p. 61 Norbert Lechner designa os regimes militares instalados no Brasil, na Argentina e Chile como um novo autoritarismo (LECHNER, Norbert. La crisis de Estado en América Latina. Revista Mexicana de Sociología. México, v.39, nº 2, p.389-426, abr/jun. 1977).

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regime se restringiu a domesticar (pelo aparato legal) e reprimir (pela via do

terrorismo de Estado) a sociedade civil, ou seja, teve de certa forma, que

conviver com ela. Contrapondo-se à noção de autoritarismo abordada por

Coutinho, Netto (2001) aponta que este termo tem “funcionado como

panacéia descritiva e compreensiva, que, pela sua indeterminação, é aplicável

a qualquer ‘objeto’ e vale para as mais díspares conjunturas históricas”

(p.39).

Para Neuman (1969), o que distingue o totalitarismo politicamente é a

existência de um partido estatal monopolista, porque os instrumentos de

coação já utilizados não são suficientes para controlar a sociedade e porque

a fidelidade das burocracias e das forças armadas pode ser em alguns casos

duvidosa. Com a máquina do Estado controlada, o partido envolve “um

aspecto sócio-psicológico que pertence ao que chamamos comumente de

sociedade de ‘massa’ (...) o grupo totalitário tem que assumir a forma de um

movimento democrático (...) embora [despido] de toda a sua verdadeira

substância” (p.269). Nesse caso, refere-se à ditadura totalitária62.

Arendt (2004) faz uma importante diferenciação entre os regimes

ditatoriais e os totalitários. Nas ditaduras, a autora considera que se tem a

supressão da liberdade política, enquanto que a vida privada não é afetada.

Nos governos totalitários todas as esferas da vida são afetadas, logo, a

dominação não se estende somente à esfera da política. Nesse sentido, a

autora faz uma distinção clara entre as duas formas de governo63.

62 Neuman (1969) na sua “tipificação” das ditaduras aborda também a ditadura simples e a ditadura cesarista. A primeira, para ser mantida, necessita exercer controle sobre “instrumentos clássicos de domínio: o exército, a polícia, a burocracia e o Judiciário”. Segundo o autor, essas ditaduras ocorrem em países onde as massas não são politizadas e a política está centralizada nas mãos de setores específicos. Na ditadura cesarista entra um novo elemento: a questão da legitimação popular. 63 Arendt (2004) argumenta: “(...) em qualquer ditadura, quanto mais numa ditadura totalitária, o número relativamente pequeno de homens capazes de tomar decisões – que num governo normal ainda podem ser nomeados – encolhe para Um, enquanto todas as

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Para Ibarra (2000), uma ditadura – diferentemente do totalitarismo

- tem suas limitações em sua própria natureza. Existe a necessidade

irreversível de “reprimir para governar”. A informação é vital para eliminar

a oposição ou a subversão, assim como o desaparecimento forçado busca

apropriar-se da corporeidade e do psi da "vítima"64.

De acordo com Ibarra (idem), nas ditaduras, a violência como ato de

dominação se converte no eixo fundamental das relações entre o Estado e a

sociedade. Nas ditaduras “abertas” as ações violentas encontram amparo em

um corpo jurídico que supostamente daria legalidade ao terror. Ibarra

acredita que “el terror busca crear en el seno de la sociedad, la sensación

de que el poder del estado es invencible, de que cualquier forma de

resistencia es una estúpida e inútil osadía, que solamente conduce a la

muerte, a la tortura y a la cárcel” (p.6).

Entretanto, podemos pensar em que medida, nas ditaduras militares,

a vida privada mantém-se imune aos mecanismos de repressão. No que diz

respeito aos militantes opositores ao regime, constantes ameaças e

seqüestros eram direcionados a familiares. A supressão de direitos e a

exacerbação das práticas violentas, em especial com o AI-5 no caso

brasileiro, também provocaram importantes rearranjos no âmbito privado,

limitando a inserção desses sujeitos no espaço das relações sociais e

estreitando laços com companheiros que se encontravam na mesma situação

de clandestinidade e vulnerabilidade. Entretanto, a militância em si e todas

as suas conseqüências consistem em uma opção político-ideológica e não uma

imposição direta do regime, embora o aparato repressivo seja o propulsor

da supressão das liberdades individuais.

instituições e órgãos que começam a controlar ou ratificam a decisão executiva são abolidos” (p. 92). 64 Mais uma vez Ibarra (2000) refere-se à noção de vítima, a qual não pretendo aprofundar.

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Os traumas psíquicos deixados nos torturados podem também chegar

à perda do sentido do espaço privado, como mostra a seguinte fala:

“(...) eu tenho coisas persecutórias, por exemplo, a casa pra mim,

essa casa, eu moro aqui há 26 anos, não é um lugar seguro, pra

todo mundo a casa é um lugar seguro, não é? (...) O lugar que você

podia ser presa era na sua casa. Enquanto você tava na rua era

difícil de você ser preso. O território mais perigoso era a sua

casa, era um lugar fixo. Então a casa sempre representou pra mim

um perigo (...) Até hoje não gosto de casa. Até hoje não gosto de

dar meu nome, meu endereço, meus dados, eu tenho uma

restrição” (UMA EX-MILITANTE DO PC DO B).

Em face do exposto acima, pode-se perceber que a invasão da esfera

privada não estava restrita às relações sociais, com companheiros de luta ou

mesmo com familiares. A perda de sentido dos espaços público/privado

chega ao ponto de uma sobreposição entre eles, em que se confundem ou se

alteram os sentidos de referência, segurança, confiabilidade, estabilidade.

Para Gaspari (2002), a tortura não pode viver enclausurada, ela

acaba por transbordar para outras áreas da atividade pública. Nessa rede,

encontra-se a cumplicidade do Judiciário65, a fim de prevenir possíveis

denúncias e anular confissões obtidas. Aliados também são encontrados em

65 Na obra Brasil: Nunca Mais (1985), discute-se sobre a “subversão do direito” como mais um dos instrumentos do regime militar. Em 1974, João Henrique Ferreira de Carvalho foi condenado a um ano de reclusão. A sua condenação foi fundamentada apenas nos autos do Inquérito Policial Militar (IPM). Entretanto, segundo o Código de Processo Penal Militar, a finalidade do IPM é fornecer subsídios ao representante do Ministério Público para propor a ação penal. João Henrique interpôs recurso, mas não obteve sucesso. Os ministros do Superior Tribunal Militar entenderam que: “De acordo com o princípio do livre convencimento, alicerçado no exame do conjunto de provas, é legítima a condenação que se funda na instrução policial não infirmada pela prova colhida na instrução judicial, porque o convencimento do julgador se inspira na realidade dos fatos apurados com isenção, e não no lugar onde se faz a colheita das provas” (p. 193). Para uma consulta acerca da participação do Judiciário na ditadura militar brasileira, recorrer à obra.

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hospitais, médicos e legistas dispostos a contribuir para fraudar autópsias e

autos de corpo de delito.

De acordo com Gorender (1984), a rotinização da tortura contribuiu

para minimizar a deterioração da imagem pública das Forças Armadas. Para

o autor, a fase inicial da tortura não era sofisticada, era brutal para que os

militantes fossem obrigados a delatar seus companheiros – “a maioria das

quedas ocorreu em pontos de rua e em aparelhos denunciados” (p.228).

Ainda, segundo Gorender, a segunda fase contou com um certo refinamento,

o objetivo não era única e exclusivamente arrancar confissões mais

urgentes, mas “alargar o círculo das informações, de completar confissões

e rechear os fichários trabalhados pelos analistas de interrogatórios”

(ibidem). Dessa forma, a tortura apresenta-se também como dispositivo de

controle social: por meio da imposição do medo, era obtida a conivência com

o regime.

Os torturadores recebiam do Centro de Informações do Exército

uma condecoração meritória, a Medalha do Pacificador – a mais alta

premiação do Exército, que registrava o reconhecimento pelos serviços

prestados. Ao mesmo tempo mantinham uma situação falsa de que

interrogadores deveriam respeitar leis, diretrizes e um mundo clandestino,

onde a prática da tortura era usual e legítima. Uma das exemplares

comprovações desse aparato clandestino construído pela ditadura militar foi

um Manual de Tortura encontrado nos arquivos do DOPS/Paraná, pela

professora Derley Catarina de Luca (apud COIMBRA, 2001: 223). Além de

ser propriamente um manual de interrogatório, também fornecia

informações sobre os sintomas por ele produzidos:

“o interrogatório é uma arte e não uma ciência (...) o fator que

decide o resultado de um interrogatório é a habilidade com que

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interrogador domina o indivíduo, estabelecendo tal advertência

para que ele se torne um cooperador submisso (...) o objetivo de

um interrogatório de subversivos não é fornecer dados para a

justiça criminal processá-los; seu objetivo real é obter o máximo

possível de informações. Para conseguir isso será necessário

recorrer a métodos de interrogatório que, legalmente, constituem

violência (...) se o prisioneiro tiver de ser apresentado a um

tribunal para julgamento, tem de ser tratado de forma a não

apresentar evidências de ter sofrido coação em suas confissões

(...) fraquezas de caráter, como medo, hábitos nervosos ou

inversamente excesso e confiança, podem ser usados com

vantagem pelo interrogador (...) um homem que esteja obviamente

em estado de terror, deve ser conservado em condições que

aumentem sua apreensão (...) como resultado das pressões (...) o

indivíduo pode experimentar alguns sintomas: fadiga mental e

física; (...) aumento da consciência culpada (...) neste estágio, o

indivíduo por necessidade do conforto físico e mental, tornar-se-á

cada vez mais dependente do interrogador (...)”.

Para Gaspari, a tortura não pode ser justificada em defesa da

sociedade, pois representa um instrumento do Estado contra ameaças a fim

de atingir objetivos específicos. Segundo o autor, quando a tortura é levada

para dentro das instituições hierarquizadas criadas pela máquina,

caracterizadas pela forte disciplina contida nelas, produz-se uma burocracia

da violência. Nesse sentido, para que esse mecanismo tenha eficácia, faz-se

necessária a recompensa funcional, através das gratificações e/ou

promoções dirigidas a esses torturadores.

Como afirma Gaspari (2002), em alguns casos, o “combate ao

terrorismo” provoca a suspensão de garantias constitucionais mesmo em

regimes democráticos, como ocorreu na Itália e na Irlanda. Entretanto,

nesses casos a repressão existiu paralelamente à manutenção da ordem

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constitucional. No caso brasileiro, a tortura sistemática, sancionada a partir

de 1968, “tornou-se inseparável da ditadura”. Na concepção do autor,

diferentemente de Hanaah Arendt e Marilena Chauí, a tortura é

transformada em mais um elemento do jogo político e, enquanto prática dos

porões, faz com que uma parte dos sujeitos perca todas as suas garantias,

inclusive a percepção da sua própria condição de cidadania.

Neste capítulo, estabeleceu-se uma tentativa de problematizar como

uma prática tão bárbara pode legitimar e/ou ultrapassar o universo da

política - como espaço de comunicação e embates entre os seres humanos –

na medida em que também promove a sua afirmação. Eis o paradoxo da

tortura. No próximo capítulo, será realizada uma discussão sobre a

possibilidade de trabalhar os efeitos da tortura a partir de uma prática

clínica diferenciada, articulando-se direta e necessariamente política e

clínica. Para tal, introduzir-se-á a militância do Grupo Tortura Nunca Mais

do Rio de Janeiro, espaço por excelência do debate que se quer apresentar.

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CAPÍTULO 3 – PROJETO CLÍNICO-GRUPAL/ GRUPO TORTURA

NUNCA MAIS DO RIO DE JANEIRO: A CLÍNICA ARTICULADA À

POLÍTICA

“Quem cala sobre o teu corpo

Consente na tua morte

(...)

Quem grita, vive contigo!”

(MILTON NASCIMENTO/ RONALDO BASTOS)

Dentre as organizações que trabalham em prol dos direitos humanos,

o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro – GTNM/RJ vem se

caracterizando como um movimento social de destaque na luta travada

desde os anos 80.

Fundado em 1985, por familiares juntamente com ex-presos políticos

e pessoas comprometidas com a defesa dos direitos humanos, concentra-se

nos seguintes aspectos: impedimento de que torturadores sejam

condecorados, ou ainda mais grave, ocupem cargos públicos; esclarecimento

das circunstâncias em que ocorreram centenas de assassinatos e tortura de

opositores do regime militar, além do julgamento e punição de seus

perpetradores; e ainda denúncia das violações atuais dos direitos humanos.

A origem do grupo foi vinculada a um episódio ocorrido no Rio de

Janeiro, no início do mesmo ano. Naquele momento, no mês de abril, no

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governo Leonel Brizola, a imprensa veiculava a nomeação do coronel Walter

Jacarandá para o cargo de Comandante do Corpo de Bombeiros do Rio de

Janeiro. A partir da sua fotografia, exibida juntamente com a notícia, o

coronel foi identificado por diversas pessoas, dentre elas o Secretário

Estadual de Transportes, Brandão Monteiro, como um de seus torturadores.

A reação do Comando do Corpo de Bombeiros foi inocentar o militar.

Outra denúncia teve uma grande repercussão na época. O coronel

José Halfed Filho66, que havia indicado Jacarandá, também foi acusado de

ter sido mais um agente repressor do regime militar. Este ocupava o cargo

de secretário de Estado de Defesa Civil e, por essa razão, era membro do

Conselho Estadual de Justiça, Segurança Pública e Direitos Humanos

(CEJSPDH). Ou seja, um protagonista da violação dos direitos humanos, que

tinha direito de voto em questões referentes à defesa da pessoa humana.

Nesse quadro de nomeações de torturadores e denúncias, familiares

de atingidos pela ditadura e cidadãos ligados à defesa dos Direitos Humanos

se reuniram, pediram o afastamento dos torturadores67 e analisaram a

postura dos órgãos oficiais em relação a esse cenário. Dessa forma, criaram

a “entidade civil cujas finalidades primeiras são a denúncia e o

esclarecimento de todo e qualquer crime contra a pessoa humana – ontem,

hoje e sempre – e a postura firme e consciente contra a impunidade”

66O coronel José Halfed Filho, mesmo com todas as denúncias, permaneceu no cargo público, filiando-se posteriormente a um partido considerado de “esquerda”, o Partido Socialista Brasileiro, PSB. 67 Anteriormente à formação do grupo, familiares de mortos e desaparecidos políticos e defensores dos Direitos Humanos fizeram um abaixo-assinado exigindo o afastamento do coronel José Halfed Filho do CEJSPDH: “AO CONSELHO DE JUSTIÇA, SEGURANÇA PÚBLICA E DIREITOS HUMANOS Nós, diretamente atingidos pela repressão política e pela tortura, na década de 70, e demais pessoas e entidades que lutam pela defesa dos Direitos Humanos, vimos protestar contra a presença do coronel José Halfed Filho, do Corpo de Bombeiros, neste Conselho, até que esteja devidamente esclarecida sua participação, ou não, no esquema repressivo. Consideramos indispensável a abertura de processo que esclareça os fatos (...) (Seguem-se as assinaturas)” (ELOYSA, B. I Seminário do Grupo Tortura Nunca Mais, 1987).

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(ELOYSA, B. I Seminário do Grupo Tortura Nunca Mais, 1987).

Ademais, seria importante ressaltar que não se trata de uma

organização não-governamental – ONG – e sim de uma organização cujos

integrantes são militantes, sem qualquer vinculação profissional.

Coimbra assinala: “Com todo respeito que a gente tem às ONGs, a

gente faz questão de dizer que (...) é um grupo de militante; que a gente

sobrevive do nosso trabalho sem desonra nenhuma dos que vivem dessa

militância”68 .

Algumas conquistas realizadas pelo Grupo são muito significativas

para a luta contra a impunidade, como os julgamentos nos Conselhos de

Medicina, de médicos que contribuíram ou atuaram diretamente na

repressão ditatorial; o impedimento da nomeação de torturadores; o

afastamento de torturadores de cargos públicos; entre outros.

Apesar das vitórias alcançadas pelo Grupo serem parciais, já

representam importantes conquistas. Paoli e Telles destacam:

“Construídas na interface entre Estado e sociedade, essas arenas

públicas permitem tornar a gestão publica permeável às

aspirações e demandas emergentes da sociedade civil, retirando

do Estado o monopólio exclusivo da definição de uma agenda de

prioridades e problemas pertinentes à vida em sociedade. E isso

significa um outro modo de se construir uma noção de interesse

público: uma noção plural e centralizada, capaz de traduzir a

diversidade e a complexidade da sociedade, rompendo por isso

mesmo, com sua versão autoritária, solidamente enraizada na

política do país, sinonimizada com a razão do Estado e identificada

com a imposição autoritária da lei” (2000: 121).

68 Seminário “Violência, gênero e subjetividade” realizado em 13 de agosto de 2001 pelo núcleo de pesquisa GECEM da Escola de Serviço Social UFRJ – mesa “Conjunturas políticas distintas e produções de violência”.

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Observa-se a atualidade da entidade: tanto pelas marcas ainda

visíveis nos sujeitos que viveram concretamente os anos de chumbo, quanto

pelas feridas engendradas na atualidade, pois a tortura continua a ser

perpetrada pelos agentes do Estado, de forma sistemática e naturalizada.

Esses agentes conhecem a tortura já no período de treinamento,

como o caso que será relatado. O cadete Márcio Lapoente da Silveira foi

torturado, aos 18 anos, em um treinamento, no dia 9 de outubro de 1990,

realizado na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), em Resende,

Rio de Janeiro. O pelotão comandado pelo tenente Antônio Carlos De Pessoa

praticava exercícios demasiadamente intensos, quando Márcio sentiu-se mal

e foi impossibilitado pelo oficial de se recuperar. No meio de insultos e

pontapés, inclusive de coturno e fuzil, Márcio desmaiou. Enquanto era

torturado, outros oficiais assistiam como a um espetáculo. Márcio foi

colocado em uma maca permanecendo horas sem atendimento, sendo

removido em uma ambulância desprovida de equipamentos e oxigênio. O

cadete chegou ao Hospital Central do Exército – HCE - no Rio de Janeiro

morto, quando poderia ser atendido em um hospital em Resende. Diagnóstico

no HCE: meningite. A autópsia foi assinada pelo legista Rubens Pedro

Macuco Janine, médico atuante na ditadura militar, onde assinava laudos

falsos de presos políticos assassinados. Por essa razão, teve seu registro de

médico cassado pelo Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de

Janeiro, em 200069.

Em um treinamento da Polícia Militar, alunos eram submetidos à

“Eucaristia”: o oficial instrutor oferecia o líquido da “Eucaristia” a cada um,

que com o corpo nu era obrigado a rolar na vala de óleo, a rastejar por um

69 COIMBRA, Cecília. Tortura nas Forças Armadas. Disponível em: www.dhnet.org.br/denunciar/brasil_2001/capi_tortura.htm. Acesso em: 15 Mai 2006.

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fosso de esgoto e em um túnel escuro sem entrada de ar. Durante o

“percurso”, eram lançadas bombas de gás lacrimogêneo. Aqueles que não

finalizavam a cerimônia de “batismo”, eram punidos com novos trotes ou

expulsos da instituição.

Outro caso que ilustra como essa prática é usual, mesmo dentro dos

quartéis: o cabo da Aeronáutica, Nazareno Kleber de Mattos Vargas, 29

anos à época da prisão, acusado de seqüestro, ficou preso, inicialmente, na

76ª Delegacia Policial, em Niterói, 1997. Na Delegacia, foi torturado com

choques elétricos e espancamentos. Sua mulher também foi torturada na

mesma prisão, obrigando-o a assinar sua confissão de seqüestro.

Posteriormente foi levado para o Batalhão de Infantaria da Aeronáutica

(BINFA) do III Comando Aéreo/RJ (COMAR), onde foi torturado durante

dois anos e meio, até 1999, quando foi transferido para a Clínica Psiquiátrica

Bela Vista, em Jacarepaguá (RJ) por ordem judicial. “Durante os dois anos e

seis meses em que ficou preso foi, quase que diariamente, torturado com

espancamentos (chutes, socos, pontapés, joelhadas, tapas), choques

elétricos, sevícias sexuais (introdução de dedos e cassetete em seu ânus),

palmatórias nas palmas das mãos e solas dos pés. De um modo geral, esses

suplícios aconteciam à noite. Freqüentemente, era algemado para receber

choques elétricos e ser espancado. A cela que ocupou com mais três outros

presos era insalubre, com condições sub-humanas de higiene, com ratos,

lacraias e baratas. Muitas vezes, após ser torturado, era colocado na cela

despido e no meio de suas próprias fezes”. Seus torturadores sempre se

apresentavam encapuzados. Diversas vezes Nazareno tentou o suicídio70.

Dessa forma, percebe-se a importância da entidade no que concerne

à luta pela não-violação dos direitos humanos.

70 COIMBRA, Cecília. Tortura nas Forças Armadas. Disponível em: www.dhnet.org.br/denunciar/brasil_2001/capi_tortura.htm. Acesso em: 15 Mai 2006.

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3.1- A PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES E A PRÁTICA CLÍNICA DO

PROJETO CLÍNICO-GRUPAL

Na década de 1970, período em que a ditadura militar intensificou

seu aparato repressivo, no universo das práticas psi predominava uma

leitura hegemônica da psicanálise, marcada pela “neutralidade científica”

totalmente dissociada do campo político. Nesse sentido, o inconsciente era

reduzido à dimensão “familiarista-edipiana”, onde “todo sentimento de mal-

estar existencial passa a ser remetido para o território da falta” (Brasil,

2002: 152). Essa postura da prática clínica a caracteriza como um dos

instrumentos de reprodução e naturalização das subjetividades dominantes.

Para Birman (1994), a tradição stalinista recusava o saber

psicanalítico como uma totalidade, caracterizando-o “como um discurso

constituidor de falsa consciência”. Segundo o autor, que chega a mencionar

o “terrorismo anti-subjetivo”:“A psicanálise seria uma ideologia pequeno-

burguesa e, para a política do proletariado, seria um obstáculo à revolução

por ter a sua preocupação centrada na questão da subjetividade. Nesta

perspectiva, a relação da psicanálise e da política seria de exclusão

absoluta: ou a psicanálise, ou a política” (p. 101). A suposta neutralidade da

psicanálise, seria para Birman (ibidem), a revelação de sua postura

política:“a sua ‘neutralidade’ seria a assunção de um lugar definido no campo

político e indicaria a sua ideologia” (p. 97).

Segundo Costa (1986), contrariando a concepção de que na psicanálise

o político estava ausente, elaborada por Luciano Martins, os indivíduos que

procuraram a psicanálise estavam conscientes “de que tratamento

psicanalítico não é nem nunca foi substituto de ação política (...) muitos

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deles experimentaram o processo psicanalítico como uma maneira de

resolver conflitos pessoais, a fim de melhor desempenharem suas atividades

políticas” [grifos originais] (p. 131).

Ainda de acordo com Costa (1986), acredita-se que uma relação

causal entre autoritarismo e subjetivismo deixa de lado “mediações sociais

imprescindíveis”. Ademais, por duas razões: faz do autoritarismo um

“fenômeno genérico, a causa específica de um fenômeno restrito, o

subjetivismo” (p. 131); e, por outro lado, não explica o surgimento do

subjetivismo, não apontando de que forma esse subjetivismo se distingue de

outros períodos históricos.

Portanto, para adentrarmos no universo psi, primeiramente,

pretende-se situar ainda que muito sinteticamente, antes de apresentar a

perspectiva adotada pelo Projeto Clínico Grupal, algumas tendências do

debate na área das Ciências Humanas e Sociais, optando por aquelas que

apresentam uma concepção crítica no sentido de pensar a produção das

subjetividades no contexto das relações sociais.

Marilena Chauí (1997) pensa a subjetividade como:

“(...) uma estrutura de experiências significativas e significantes

que não começam nem terminam na consciência de si de um

sujeito, uma teia de sentidos tecida na relação intercorporal e no

diálogo com o outro (...) a subjetividade é um nó de ações

corporais e simbólicas originariamente intercorporais e

intersubjetivas, das quais a consciência de si enquanto sujeito é

um dos aspectos, não a definição”. (p.19)

Marilena Chauí (1997) afirma que são nas novas formas de

sociabilidade que a subjetividade é “modelada e plasmada”.

Segundo Mezan (1997), a subjetividade pode ser identificada em

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três planos: o singular, o particular e o universal. O singular é aquele que é

único do indivíduo, marca a sua existência como um ser humano diferente de

todos os outros. O universal representa aquilo que é compartilhado por

todos os indivíduos, a própria condição humana podendo ser um exemplo. O

particular significa o que é próprio de um determinado grupo de indivíduos,

mas não de outros.

Para Birman (1994), no pensamento freudiano, o sujeito se constitui a

partir de sua relação com o outro, portanto, a cultura seria um elemento

presente na construção de subjetividades.

Ainda segundo Birman (1994: 102):

“A formulação freudiana em o Mal-estar na civilização se

constitui a partir desta problemática central da interpretação

psicanalítica do sujeito, estando este definitivamente posicionado

como um impossível ponto de articulação absoluta entre a

natureza e a cultura. Então, o sujeito é condenado ao ‘mal-estar’

que a sua existência cultural lhe coloca, sendo isso o que define a

dimensão trágica do pensamento freudiano. Enfim, se esta tese

não define com clareza uma política psicanalítica freudiana, ela

implica, contudo, afirmar incisivamente a impossibilidade de

harmonia absoluta entre o sujeito e a cultura, relação esta sempre

destinada ao conflito para o sujeito”71.

Para Castoriadis (1999), quando se propõe a estudar a “produção de

efeitos-subjetividades”, significa pensar sobre uma dimensão particular do

sujeito, tentando-se traduzir a processualização dos significados e o

sentido de sua própria existência.

71 “(...) o mal-estar na cultura que se incrementa com o desenvolvimento civilizatório e impõe renúncias crescentes à subjetividade”. Birman ainda afirma: “o desenvolvimento histórico da civilização, pelas demandas crescentes que impõe às individualidades, promove o incremento do conflito psíquico pelas renúncias que exige do corpo pulsional” (1994: 131).

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Castoriadis (1999:45) ressalta:

“Tal sujeito não é uma realidade, é um projeto, em parte realizado

pelos indivíduos, em parte, sobretudo, a ser realizado também em

função de uma transformação que se refere não apenas aos seres

humanos na sua singularidade, mas à sociedade em seu conjunto”.

Como afirma Castoriadis (1999), é na dimensão particular da vida

social do sujeito, que as subjetividades são processadas, visto que a

subjetividade é construída socialmente, não é algo imanente ao indivíduo.

Segundo a concepção anterior, a dimensão da particularidade é

fundamental para se entender o período histórico estudado, os efeitos que

foram produzidos nos sujeitos a partir de suas experiências de dor e

sofrimento, as novas – ou velhas - elaborações que foram realizadas por

esses sujeitos como estratégias de manutenção da vida na sua totalidade.

Nos anos 80, as atividades dos movimentos sociais têm grande

repercussão e fazem emergir novas questões. Esse cenário de mudanças

também pode ser observado nas práticas psi com a “segunda geração de

psicanalistas argentinos” que trazem uma nova leitura da psicanálise. Assim,

são introduzidas as “contribuições da Análise Institucional de origem

francesa; (...) [o] pensamento de Guattari, Deleuze e Foucault, o que passa a

produzir movimentos de desnaturalização das demandas então produzidas e

a possibilidade de pensar as subjetividades como produções histórico-

sociais” (idem).

Profissionais envolvidos com esses novos questionamentos elaboraram

um Projeto com um viés inovador, o Projeto Clínico-Grupal, de apoio médico-

psicológico, direcionado aos direta ou indiretamente atingidos pela

repressão estatal. Destacando-se dos demais serviços de saúde, aliou a

perspectiva clínica aos componentes político-sociais e éticos engendrados na

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nossa história.

Segundo Vera Vital Brasil (2005), a proposição do Projeto Clínico

representa:

“uma outra concepção de trabalho clínico, já crítico em relação às

práticas que estavam sendo hegemônicas naquela época - que era

uma concepção que privilegiava muito a história familiar em

detrimento das outras produções sociais que estão em curso o

tempo todo”.

O profissionais do Projeto Clínico-Grupal considera que:

“(...) o projeto clínico-grupal tem uma escuta atenta para os

efeitos-subjetividade resultados da experiência da violência.

Consideramos importante a posição dos pacientes na reconstrução

da narrativa dessas experiências”.

De acordo com a profissonal do Projeto Clínico Grupal:

“Uma experiência de ruptura com a psicanálise tradicional, de um

rompimento com a IPA que é a instituição internacional de

psicanálise (...) a perspectiva grupalista tinha leitura de outros

teóricos e principalmente da análise institucional francesa. Essas

leituras vieram críticas em relação à psicanálise (...) já

introduzindo na época o pensamento da diferença, que é o

pensamento trazido por Deleuze, Guatarri (...)”.

A perspectiva da Análise Institucional Socioanalítica redefine a

noção clássica de instituição, pensada a partir de então como um locus de

“produção constante de modos de legitimação das práticas sociais”.

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Segundo Benevides (2002), a clínica da diferença presente na

proposta do Projeto é aquela que abrange o conhecimento na sua forma

transformadora, que nos convida a criar novas formas. A clínica como

produtora de diversos sentidos.

Vera Vital Brasil afirma:

“(...) Marcada em sua história pelo intimismo e pelo privado, a

clínica tem produzido efeitos perversos: silêncio, omissão sobre

os processos, sobre os acontecimentos na cena clínica”72.

Em contraponto, Benevides (2002) ressalta: “não se trata de

representação de características particulares de indivíduos e/ou grupos.

Estas só nos levam a lugares absolutizados e separados do campo onde se

trava a luta contra as forças que nos estagnam frente à composição de

novas cartografias subjetivo-sociais” (p. 136).

Benevides (2002:136) afirma uma concepção transversalista da

subjetividade em que redes de fluxos se cruzam, onde as diferenças são

ressaltadas, dando origem a outros modos de existência, outros devires.

Para a autora, essa noção “conforma uma outra clínica, clínica da intervenção

e da experimentação de práticas que são sempre sociais. O indivíduo e o

social aqui só aparecem como formas, expressão de fluxos que se cortam

incessantemente, fluxos coletivos”.

Para o entendimento aqui presente, os processos de subjetivação não

são pertencentes somente ao indivíduo, mas são produzidos no grupo -

social, político, etc. - no qual está inserido. Nesse sentido, podem-se

verificar alguns discursos semelhantes acerca da mesma experiência social

72 VITAL, Vera. Subjetividade e Violência: a produção do medo e da insegurança. Tema 1: Psicanálise, Política e Estado. Estados Gerais da Psicanálise: Segundo Encontro Mundial, Rio de Janeiro 2003.

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e histórica ou a negação dessa mesma experiência73. Entretanto, não se

pode descartar a dimensão da particularidade como parte constituinte do

processo de produção da realidade. Juntamente com o singular e o universal,

conformam os níveis de apreensão dessa realidade.

A profissional do Projeto Clínico-Grupal assim se refere à proposta

do Projeto Clínico-Grupal:

“A gente acredita que pode dar um outro sentido para essas

marcas [da tortura]; sentidos que não tinham sido dados

anteriormente por essas experiências, quer tenham essas pessoas

passado por outras experiências clínicas ou não, muitas vezes

porque a própria esquerda recusava a análise, a terapia [porque]

isso era coisa da burguesia, a questão era outra: a luta, o

enfrentamento” .

O profissional do Projeto Clínico-Grupal afirma:

“(...) A intervenção clínica se impunha imediatamente como

intervenção político-institucional não só pela natureza da demanda

que nos chegava, mas também pelo procedimento de intervenção

que acionávamos: no lugar de nos atermos à narrativa pessoal ou

ao sofrimento individual, buscávamos a dimensão coletiva na base

do processo de instituição da violência relatada. Neste sentido,

entendíamos que a intervenção possuía essa fórmula: devolver ao

coletivo ou ao plano de produção uma realidade configurada ou

instituída como pessoal e individual. A dimensão da política se

impunha para nós como esse plano de produção, sempre coletivo,

envolvendo uma dimensão pública da existência. Estávamos,

portanto, às voltas com esse limite tênue entre a experiência

73 A formulação presente não pretende, em nenhum momento, a homogeneização da produção de subjetividades.

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individual e a experiência do coletivo. Tratava-se, então, de

encontrar um dispositivo clínico-político-institucional apropriado

para garantir a transversalização desses domínios. O grupo se

mostrou a nós como esse dispositivo por excelência”.

O referido Projeto recebeu apoio do Fundo Voluntário das Nações

Unidas para as Vítimas de Tortura - FVNUVT, em 1991. Em 1996 e 1997, o

Projeto passou a ser financiado também pela Comunidade Européia, o que

permitiu a oferta de novas modalidades terapêuticas e a inserção de

segmentos da sociedade atingidos pela violência contemporânea. No período

de 2000 a 2002, ainda subsidiada pela União Européia, a Equipe do Tortura

Nunca Mais do Rio de Janeiro desenvolveu projeto conjunto com “entidades

similares de países do cone sul - Argentina, Chile, Uruguai - com ações de

assistência, qualificação de profissionais de saúde e produção de três

publicações”74. O resultado dessa articulação foram as publicações: o livro

Clínica e Política: Subjetividade e Violação de Direitos Humanos – que reúne

artigos de membros da equipe do Projeto Clínico-Grupal, além de outros

estudiosos do tema, e que contém o Protocolo de Istambul75, traduzido

pela primeira vez em português; a publicação Paisajes del Dolor, Senderos

de Esperanza: Salud Mental y Derechos en el Cono Sur; e II Seminario

latinoamericano: Violencia, impunidad y producción de subjetividad

juntamente com o IRCT - International Rehabilitation Council for Torture –

organização internacional com sede na Dinamarca.

74 PROJETO: “Qualificação de profissionais de saúde para suporte médico-psicológico, reabilitação física e social e assistência jurídica a vítimas de tortura e violência institucionalizada” - Projeto Clínico Grupal, GTNM/RJ. 75 O Protocolo de Istambul consiste em um Manual para a Efetiva Investigação e Documentação da Tortura e Outros Tratamentos ou Punições cruéis, Desumanas ou Degradantes, que foi concluído em 1999 e contou com a participação de defensores de direitos humanos, dentre vários profissionais, que representaram quarenta instituições de vários países.

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A articulação com entidades da América Latina e a preocupação com a

contínua pesquisa e qualificação dos profissionais voltados para a prática

clínica potencializam o trabalho desenvolvido e reiteram a vinculação

histórica desses países, haja vista as suas experiências marcantes no que

diz respeito às violações de direitos humanos.

“A idéia de potencializar profissionais da saúde é que eles possam

ter mais recursos [teóricos e metodológicos] para poder atender

melhor as pessoas que eles recebem” (VERA VITAL BRASIL,

2005).

Em 12 de dezembro de 1997, foi proclamado pela Assembléia Geral

das Nações Unidas, o Dia Internacional de Apoio às Vítimas da Tortura - 26

de junho –, pelo fato de que nessa mesma data entrou em vigor a Convenção

das Nações Unidas Contra a Tortura. A campanha internacional para a

comemoração dessa data tem sido coordenada pelo IRCT, uma organização

de profissionais de saúde que promove e dá suporte à reabilitação dos

atingidos pela tortura. Esta organização foi estabelecida em 1985 e

atualmente abarca aproximadamete 200 centros de reabilitação. Na

América Latina, estes centros e outras entidades de direitos humanos

conformam a Red Latinoamericana y Del Caribe de Instituiciones de Salud

contra la Tortura, la impunidad y otras violaciones a los Derechos

Humanos/Red Salud (www.redsalud-ddhh.dm.cl)76.

O Projeto, produtor de uma prática clínica em que há a presença

marcante da perspectiva dos direitos humanos, preocupa-se não somente

76 “La Red SaludDH está conformada por instituciones de la región que atienden la problemática de personas afectadas por la tortura, la impunidad y otras violaciones a los derechos humanos, así como la prevención y las consecuencias biopsicosociales de estas prácticas. Además, está considerada como un espacio plural y democrático, abierto a otras instituciones regionales que trabajen en este campo y que se identifiquen con sus metas” (www. redsalud-ddhh.dm.cl).

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com a assistência aos protagonistas de situações de violência, mas também

com a formação de profissionais atuantes no Projeto ou em instituições de

saúde como um todo. Nesse sentido, o trabalho volta-se para a crítica ao

processo de formação profissional ocorrido durante a ditadura militar e

para a formação contemporânea, que ainda carrega traços conservadores. O

Projeto, a partir da difusão de sua experiência e da capacitação de

profissionais, tem o objetivo de ampliar e qualificar o atendimento aos

atingidos pela violência organizada.

“O profissional de saúde não está, em geral, suficientemente

capacitado a perceber as manifestações da violência, seja pelas

limitações de uma formação excessivamente técnica, seja por

estar mais voltado para aspectos intrapsíquicos, excluindo os de

cunho político-social, seja pelas precárias condições de trabalho

que enfrenta”77.

A formação acadêmica desses profissionais apresenta-se como uma

barreira no que diz respeito ao enfrentamento dos desafios existentes na

rede pública de assistência. Dessa forma, percebe-se de forma explícita a

necessidade da inclusão na trajetória acadêmica do debate acerca dos

componentes políticos, sociais e éticos encontrados no cotidiano

profissional.

A experiência de formação - treinamento ou capacitação - para

profissionais de saúde e estudantes universitários vem sendo desenvolvida

77 Projeto: Qualificação de Profissionais de Saúde para Suporte Médico-Psicológico, Reabilitação Física e Social e Assistência Jurídica a Vítimas de Tortura e Violência Institucionalizada. “O projeto tem como finalidade capacitar os profissionais de saúde da rede pública em Saúde Mental e Direitos Humanos para que melhor atendam os usuários destes serviços, fornecendo-lhes ferramentas clínicas e jurídicas que possibilitem identificar e lidar com as situações de tortura experimentadas pelos pacientes”. Projeto enviado para a Suíça. Projeto Clínico-Grupal/Grupo Tortura Nunca Mais/Rio de Janeiro, 2004.

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desde a criação do Projeto, em 1991.

Nos anos de 2000 a 2002, com o apoio financeiro da União Européia,

foi criada a pesquisa “Produção de Violência e Subjetividade

Contemporânea: construindo novos dispositivos transdisciplinares” - em

parceria com a Universidade Federal Fluminense – assim como as oficinas

Saúde e Direitos Humanos. Nesse período, a Equipe do GTNM/RJ

desenvolveu, em conjunto com entidades de países do cone sul, Argentina,

Chile, Uruguai, projeto de qualificação de profissionais de saúde, produzindo

as três publicações78.

O GTNM/RJ reitera a sua ligação com instâncias internacionais, pois

é filiado ao SOS Torture, com sede em Genebra, à FEDEFAM, com sede em

Caracas, e à Red Salud com apoio do IRCT.

O Projeto Clínico-Grupal abarca uma proposta de desnaturalização da

prática clínica, no qual a perspectiva da neutralidade não seria cabível, em

que se separa “indivíduo e atos político-sociais, a cidadania da análise, a

análise da política e a política dos acontecimentos” (COIMBRA, C et al.,

2002: 118).

A não-naturalização é claramente uma premissa do Projeto e a

proposta do dispositivo “grupo” extremamente fundamental:

“(...) Enquanto dispositivo, o grupo visa articular o domínio das

formas instituídas com o das forças instituintes, de tal modo que

a realidade estabelecida como dada, como natural, como definitiva

se desestabilize, fazendo aparecer seu próprio engendramento”.

Nesse sentido, a subjetividade é entendida dentro do contexto das

78 O Projeto Clínico-Grupal, além de proporcionar assistência e capacitação para profissionais de saúde, realizar intercâmbios com instituições de saúde e universidades, objetiva também ser um locus de publicação de material científico.

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produções sociais. Sem o embasamento de uma estrutura psíquica universal,

os sujeitos são capazes de buscar caminhos diferenciados, instituir padrões

dominantes ou rompê-los. “Em oposição às subjetividades que uniformizam e

assujeitam, sabemos que o desejo pode ser revolucionário” (COIMBRA, C et

al., 2002).

Segundo Vera Vital Brasil (2005):

“O projeto foi elaborado para assistência e também apontava que

a formação dos profissionais aqui no Brasil tinha sido durante a

ditadura bastante comprometida com a perspectiva tecnicista, em

detrimento dos aspectos políticos, sociais que envolvem

certamente uma formação universitária e uma formação no campo

da saúde”.

Desse modo, a prática clínica abarca o ser social em todas as suas

dimensões, o seu complexo de relações sociais, o seu papel como sujeito

protagonista de uma determinada época histórica. Uma história que não é

somente individual, mas social, do conjunto dos seres humanos. Ademais, o

Projeto tem estreita ligação com a defesa dos direitos humanos, haja vista

a sua ligação intrínseca com o Grupo Tortura Nunca Mais/RJ e os objetivos

da sua prática clínica.

“E o fato de eles estarem ligados a um grupo que milita nesse

campo é fundamental, porque isso não cria só um campo teórico,

mas você tem uma forma de atuação na sociedade” (UMA DAS

PACIENTES DO PROJETO, EX-MILITANTE DO PC DO B, 58

ANOS).

Ainda de acordo com a fala de uma ex-militante do PC do B:

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“(...) o pessoal do Projeto é engajado politicamente. A visão deles

é diferente, é uma visão que... eu encontro eco nas coisas que eu

falo (...) Não é uma terapia que seja individualista, (...) ela é

inserida num contexto social, então uma coisa mais abrangente, a

terapia como uma coisa maior (...) [que] te leva a pensar, a fazer

relações pequenas, grandes, de passado e de presente, uma coisa

mais dinâmica, uma coisa sociológica e histórica ao mesmo tempo” .

Como afirma a profissional do Projeto Clínico-Grupal:

“(...) privilegia-se o grupo como um espaço não só de interlocução,

mas também de produção de subjetividades muito importante em

contraponto a uma perspectiva individual (...) o grupo tem uma

potência de diferença que o trabalho individual tem em menor

escala. No grupo, a gente tem componentes heterogêneos que vão

sendo o tempo todo misturados e a composição que daí advém é

muito enriquecedora”.

A proposta de desnaturalização consiste em apontar o caráter

histórico da produção de subjetividades. A busca pelos processos de

singularização se dá com o intuito de indicar que, mesmo sob a intensa

produção de subjetividades dominantes79, ainda existem espaços para a

singularização, outras subjetividades que vão de encontro ao instituído, por

meio de uma intencionalidade político-ética, dispensando-se a técnica

neutra. O desafio que se põe está na criação de dispositivos criativos de

diversos sentidos, reapropriados ou inventados, para favorecerem as

singularizações. Esta é a “vocação da clínica”, “afirmar sua potência de

dispositivo, isto é, de produtor de efeitos de sentidos variados”

79 Coimbra (2001) destaca o papel extremamente significativo dos meios de comunicação de massa na produção, reprodução e fortalecimento das subjetividades hegemônicas presentes no cotidiano.

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(BENEVIDES, R., 2002: 137).

Essa perspectiva problematiza a concepção vítima. A construção da

vítima contribui para a sua despotencialização política e a transformação de

fenômenos sociais em problemáticas individuais que favorecem o isolamento

e o silêncio. De acordo com Coimbra, C et al. (2002: 120), a “violência que

ameaça a sobrevivência acaba por transformar a vivência em sobrevida”,

uma alternativa à morte. Seria importante que essa noção de vida fosse

questionada pelos sobreviventes e pelos profissionais. “As lutas pela vida

(...) apontam para muito mais: para uma vivência absolutamente possível,

potente, prazerosa e inventiva” (idem).

Huggins, Haritos-Fatouros e Zimbardo (2006:75) pensam que a

construção da dicotomia vítima/perpetrador pode limitar o alcance de

pesquisas. O abandono dessa divisão binária pode ajudar na investigação "da

gama de papéis associados a esses status". De acordo com a mesma, nesse

processo dicotomizante, "as vítimas tradicionais são, muitas vezes,

atomizadas, individualizadas e tornadas passivas, enquanto aos

'perpetradores' tradicionais - uma condição 'outra' limitada em

contraposição à 'vítima' tradicional - outorga-se excessivo poder" 80.

Questionando a noção de vítima, a ex-militante da ALN, diz que:

“(...) em determinado momento, eu, um grupo e uma parte da minha

geração nós tínhamos certeza que queríamos lutar contra a

ditadura e queríamos um mundo melhor, em várias nuances, com

várias tônicas diferentes (...) muita gente assim não entendia

aquela violência toda porque eram simpatizantes, porque tinham

80 "Tudo isso aponta para o fato de que pode haver interseção ou sobreposição de categorias carregadas de valor, tais como 'vítima' e 'perpetrador'sendo que gabaritos políticos e morais variados - muitas vezes só implicitamente aceitos - moldam a consciência social quanto a quem se encaixa 'adequadamente' em cada uma das categorias" (Huggins, Haritos-Fatouros e Zimbardo (2006:75).

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acolhido um amigo, porque tinham sido simpáticos à causa e era

uma violência brutal, e... e eu não, eu era militante, eu tinha idéia

do que se tratava (...) Então, eu não me considero vítima, eu me

considero uma sobrevivente” .

O sentido que se pretende é de escapar de supostas classificações,

em que são produzidas dicotomias como patriota e subversivo, herói e

vítima, onde as experiências vividas são transformadas em processos de

vitimização.

O silêncio estabelecido sobre a violência deixou marcas profundas

que acabaram por tornar-se “pedaços de tempo e de vida privatizados”.

(BRASIL, 2002: 156). Romper o isolamento possibilita que outros fluxos

possam penetrar, novas formas de experimentação da vida.

As leituras da psicanálise que até então reforçavam as estruturas

dominantes levaram ao isolamento e ao receio quanto às práticas clínicas:

“Me lembro exatamente quando eu fui fazer essa terapia lá na

Associação Sociedade não sei o quê de Psicanálise (...) Um belo dia

eu to na sala de espera, tava demorando e eu (...) impaciente. E um

senhor me perguntou:”O minha filha, você tá aflita, você tem

algum parente aí, né, doente”. Aí eu falei: “Não, eu tô fazendo

tratamento”. -“Você tá fazendo terapia? Você é tão novinha. Você

pode ter algum problema?”.. -“Bom, se o senhor acha que é pouco,

né, o meu pai foi preso, foi barbaramente torturado”. Aí eu fui

contando (...) e o cara começou a passar mal (...) Aí veio o meu

terapeuta indignado (...) O cara tinha sido um milico torturador e

estava em terapia, porque ele foi atingindo também pela tortura,

pelo fato dele presenciar (...) dele ser conivente (...)” (FILHA DE

DESAPARECIDO POLÍTICO).

Várias experiências tornaram-se frustrantes; ainda o relato da

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mesma mulher:

“Aí arranjaram outra, que foi aqui, que era grupo jovem, aquele

monte de garotinhos e garotinhas da minha idade né, 21 anos (...) E

sabe qual eram os problemas? (...) briguei com o namorado, não sei

o quê na festa (...) os dramas eram o de todo jovem dessa idade

normal, normal, normal. Aí eu não tava mais agüentando aquilo,

porque eu não falava nunca. Tudo pra mim era proibido falar né. Aí

eu tive outro ataque de verborragia, e na hora que me coube falar,

eu falei. Aí a terapeuta me ignorou ali (...) eu considerei que ela me

botou pra fora do grupo. -“Olha, vocês não se preocupem. Porque

isso que ela ta falando, não acontece, não existe. Aqui no Brasil

não tem tortura. Não se faz isso aí que ela ta falando. Isso aí é o

seguinte: ela se desentendeu com os pais. Ela tem dificuldade com

os pais... ela fantasia que os pais estão sofrendo uma situação

dessa, que assim ela não se sente culpada”.

Acabou a terapia também né. Quer dizer, quando eu mais precisei,

todas as vezes que eu precisei de terapia, eu não tinha terapia.

Porque eu só tinha esse tipo de terapia” .

Nos dias atuais, a mesma participa do Projeto Clínico-Grupal e relata

a sua nova experiência:

“(...) agora eu faço terapia pelo Projeto Clínico Grupal do Grupo

Tortura Nunca Mais. Que tem toda uma visão do problema, sabe.

Tem condições de ajudar porque entende, porque sabe, porque não

tapa o sol com a peneira, não ignora a realidade, porque conhece

essa realidade (...) é um espaço onde eu sei se eu quiser falar

disso eu falo e vou ser escutada (...) Vou ser pelo menos ouvida,

não vão mandar eu calar a boca (...) [dizer] que não houve, que não

aconteceu, que é impossível”.

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Assim podem-se observar os seguintes relatos:

“As outras terapias queriam apagar a minha história sem a minha

permissão” (Clínica e Política, 2002).

“Não passava roupa. E só há pouco tive coragem de mexer com fio

elétrico de novo” (ibidem).

Segundo a profissional do Projeto Clínico-Grupal:

“Outras pessoas passaram por experiências em que alguns

psicoterapeutas, psicanalistas negavam a existência da tortura e

assassinato (...) desconheciam ou mesmo negavam”.

“Algumas pessoas disseram que, pela primeira vez, estavam sendo

escutadas nessa dor que tava relacionada ao desaparecimento de

seus familiares”.

Vera Vital Brasil expressa o posicionamento do Projeto Clínico-Grupal

no que se refere ao atendimento de torturadores81:

81 “Esta no constituye una situación del pasado, ya que también en el caso de los torturadores y los implicados en la represión dictatorial, están presentes los efectos a mediano y largo plazo de dichos hechos. Es así que actualmente muchas de estas personas solicitan tratamientos en diferentes servicios hospitalarios, creándose en los equipos profesionales un clima de tensión, de inquietud, en cuanto a la actitud a asumir. Frecuentemente estas personas quedan sin ser asistidas, no tanto por la decisión activa del equipo profesional sino por vía de los hechos consumados. Muchos de los jóvenes profesionales que están a cargo de consultorios externos de psicopatología no vivieron en forma directa como adultos, la represión, sino que les fue contada. En otros casos, no participaron de los debates que atravesaron intensamente el ámbito profesional alrededor de estos temas hace unos años. Constituye para ellos parte de un pasado social traumático que no han llegado a metabolizar claramente y se desconciertan al tener que abordar en la práctica clínica problemas derivados del mismo. A su vez, en virtud de la memoria histórica construida y de la profundidad del desgarramiento social sufrido, esta cuestión referida a la atención psicoterapéutica de torturadores se les plantea como un conflicto de difícil

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“Quanto a não atendermos torturadores, desde o início do projeto

temos este posicionamento (...) Viemos de uma experiência crítica

em relação à posição de "neutralidade" do analista, tão comum em

certas épocas, principalmente no período da ditadura. Os

perpetradores, torturadores, jamais nos procuraram pelo projeto,

pelo que sei. Estavam respaldados pelo poder, e os que se

sentiram culpabilizados não temos notícias deles. Possivelmente

existem, pois esta experiência é devastadora e ninguém sai

incólume dela”82.

resolución personal” (LAGOS, Darío; KORDON, Diana. Etica, Impunidad y Practica Profesional). 82 “Uma experiência relatada na Argentina caracteriza a particularidade do tema: En el año 1986, en el Hospital Borda un médico psiquiatra, el Dr. Villardebo advirtió que un paciente que le había sido derivado para psicoterapia de pareja había participado de la represión política. R. de 32 años, retirado de una fuerza de seguridad en 1980, había sido tratado en el Hospital Neuropsiquiátrico arriba mencionado desde 1978 hasta abril de 1986 por diferentes personas. El paciente había tenido ideas suicidas. No podía soportar a sus hijos llorando o gritando. Sentía que estaba siendo perseguido por alguien cuando caminaba por la calle. Fue diagnosticado y tratado con medicación y psicoterapia individual durante ocho años. A comienzos de 1986 le fue indicado un tratamiento de pareja y concurrió con su esposa. A solas con su terapeuta, en una parte de la entrevista le comunicó acerca de su participación activa en la represión, tortura y muerte de opositores. Dijo: "yo no puedo hablar esto con nadie. Ni con mis amigos, ni con mi mujer. Cuando vine aquí, pude hablar y me sentí aliviado". De acuerdo al Dr. Villardebo, quien fue asignado para tratar la terapia de la pareja indicada, el objetivo principal para R era vivir sin sentirse angustiado por su historia y por la Justicia, y llegar a lograr la desaparición de sus síntomas. Enfrentando aquella situación, en una segunda y última entrevista con la pareja, el Dr. Villardebo marcó sus objetivos: - Clarificar el significado de la deuda social no pagada. - Hablar de la existencia de historias secretas en la pareja. - Su incapacidad para afrontar asistencia psicológica si los items arriba mencionados permanecen irresueltos. Decidió llevar el caso a un Ateneo en el que sus colegas apoyaron su criterio, coincidiendo en que no correspondía atenderlo, ya que si no tenía un castigo social, es decir, si no era juzgado, y castigado por su participación en crímenes, no se cumplirían condiciones básicas para no favorecer una alianza perversa entre paciente, terapeuta e institución hospitalaria” (LAGOS, Darío; KORDON, Diana. Etica, Impunidad y Practica Profesional). No referido artigo é realizada uma análise acerca das implicações do pacto de silêncio estabelecido entre teraupeuta/paciente e a importância das determinações sociais/institucionais que

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Os possíveis traumas em torturadores - envenenados pelo seu

“próprio veneno” - ainda é um tema polêmico:

“Embora esses operários da violência continuassem em geral

entusiasmados por servir o governo brasileiro, quer militar quer

em processo de democratização, em [alguns] casos o trabalho

violento prejudicou visivelmente a saúde mental e física dos

policiais. O trabalho ininterrupto na repressão tornava quase

impossível a interação com a família e com os amigos não

policiais. Os policiais manifestaram sintomas relacionados com o

estresse, tais como insônia, hipertensão, medo e depressão;

passaram por conflito conjugal e divórcio” (HUGGINS,

HARITOS-FATUROS E ZIMBARDO, 2006: 60)83.

Existe um debate em torno da questão sobre o atendimento de

torturadores. Percebem-se alguns posicionamentos. Alguns profissionais,

muitos deles jovens, que se encontram no atendimento clínico nos dias

atuais, podem desconhecer a história recente da humanidade. Dessa

maneira, o próprio desconhecimento do profissional pode atuar como um

fator que dificulte a sua escolha pessoal/política. Como já foi dito

anteriormente, não existe um debate claro e aberto acerca dessa história.

incidem direta e indiretamente sobre as atitudes dos indivíduos. Ainda é discutido como um sujeito pode obter uma cura individual se não tem de responder/esclarecer seus atos perante a sociedade. “Es decir en estos casos, la ética social es necesaria, previa y aún constitutiva de la elaboración individual. Pensamos que para que un tratamiento sea efectivo, debe producirse algo en el orden social mismo, más allá de la relación terapéutica en el que ésta quede inscripta. El desconocimiento de estos factores implica una concepción del sujeto ahistórica y asocial. Es por esto que la demanda de justicia es aún hoy texto mismo del acto terapéutico” (idem).

83 Como afirma Huggins, Haritos-Fatouros e Zimbardo (2006: 388), pesquisas sobre o impacto da violência em perpetradores, não podem ser acusadas de estarem desculpando torturadores. Para a autora, o debate sobre o job burnout seria um meio de levar à tona os riscos físicos e psicológicos da violência profissional.

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Ademais, a opção por atender ou não torturadores, pode derivar claramente

do seu posicionamento ético-político ou mesmo do grupo ao qual está

inserido.

As marcas deixadas pela repressão ultrapassam gerações:

“Quando o meu filho mais velho tinha 5 anos, se perdeu numa

praça e foram preciso três bombeiros para dominá-lo. Ele se

assustou com os uniformes”84.

“Quando eu ia visitar meu pai, diziam que a OBAN era um hospital.

Mas eu não via ninguém de branco”85.

Vera Vital Brasil destaca:

“Se até então essas vivências eram apreendidas como carentes de

sentido, envoltas em uma configuração privada, intimamente

familiarista, intimista e culpabilizante, abriu-se a possibilidade de

incorporação de uma outra via (...) ao serem incluídas na análise a

multiplicidade de forças em ação nos acontecimentos e (...) as

violências concretas e simbólicas do presente e do passado,

desencadearam-se (...) possibilidades que rompem com o

confinamento dessas questões no âmbito do familiarismo

privatista, alargando as fronteiras entre o público e o privado”

(BRASIL, 2002: 160).

“na medida em que se possa encontrar alguns modos de

intervenção, aquilo que lhes parecia pertencer exclusivamente

como se fosse um erro, da sua vida apenas e não como um

84 VENTURA, M. Torturados rompem o silêncio com terapia contra a violência. Jornal do Brasil.. Rio de Janeiro, 28 jul 1996. 85 15 FILHOS. Produção e direção: Martha Nerhing e Maria Oliveira. São Paulo: [s.n.], 1996. 1 videocassete (20 min).

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processo que foi vivido coletivamente, passa a ter um outro

sentido” .

A dor, se trabalhada em uma perspectiva grupal e não individual, que

culpabiliza o indivíduo e o torna solitário na sua experiência, ganha um outro

sentido: o de apropriar-se de si e dos outros para seguir em frente.

Segundo o relato da ex-militante da ALN, paciente do Projeto Cínico-

Grupal:

“Eu passei muito tempo como vários companheiros jogando um

pouco pra baixo do tapete essas coisas e tentando viver a minha

vida, seguir em frente. E isso deu certo durante bastante tempo

eu acho (...) Mas de uns anos pra cá isso não tava mais dando

certo, tinha alergia de cima a baixo (...) não entendia porque, eu

voltei a fazer terapia com o meu antigo terapeuta e não tava

avançando (...) eu tinha alguma coisa dentro de mim que não

conseguia sair e isso me atormentava. E a entrada no Projeto

Clínico... no início foi muito duro né porque falava muito sobre o

assunto, mas a visão dos terapeutas do Grupo é uma visão de

acolhimento tão grande e ao mesmo tempo de falar sobre o

assunto (...) uma coisa que eu tinha deixado de lado, pra mim eu já

tinha feito a minha catarse e ponto final (...) eu ficava revoltada

de eu não ter conseguido ultrapassar essa fase, ter alguma

defasagem, porque pra mim já tinha ficado, eu não precisava falar

mais” (2005).

Desse modo, nesta dissertação, buscou-se recuperar fragmentos da

memória coletiva, presentes nas marcas físicas e psíquicas dos sujeitos que

vivenciaram essa história, na impunidade que se arrasta pelos anos e na

reiteração da sistemática violação dos direitos humanos.

Embora não seja possível falar que essas experiências de dor e

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violência não se repitam no cotidiano e devendo-se admitir que a punição dos

perpetradores ocorre de forma extremamente lenta e penosa para aqueles

que a esperam, considerou-se importante enfatizar as conquistas e as novas

iniciativas que surgem no campo dos direitos humanos, no sentido de se

entender a complexidade desse campo e da reconstituição da sua memória,

como também de identificar elementos, ainda que embrionários, de novos

projetos societários.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nem por um momento, tive a intenção de trabalhar outro tema

durante o meu curso de mestrado. Embora não soubesse com precisão o

objeto a ser trabalhado, esteve sempre presente o sentimento de

aperfeiçoar o conhecimento acerca da temática.

Apesar da importância da discussão nos dias atuais, em função do

recrudescimento de práticas violentas por parte das autoridades estatais, o

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tema ainda apresenta-se de forma bastante velada na sociedade.

Entretanto, esse fato não representou um obstáculo que paralisasse a

caminhada. Pelo contrário, significou um estímulo.

Entrar no universo da tortura, uma prática tão perversa, não foi um

desafio fácil. As entrevistas carregavam consigo um forte teor emocional,

lembranças, memórias, histórias de vida que não pertenciam somente a uma

pessoa, mas a centenas, relatos, pedaços de toda uma geração. E essas

histórias se cruzavam ou mesmo se confundiam. Nomes falsos, identidades

ad hoc. Amores, dilemas. Ideais, esperança. Tortura, dor. Tristeza,

separação. Morte.

Em muitas ocasiões, minhas emoções se misturaram com as dos

entrevistados. Seria inevitável não pertencer também, embora

sentimentalmente, a essa geração de homens e mulheres que dedicaram

suas vidas a um projeto, não particular, mas visionário e emancipatório.

Como não imaginar rostos nas ruas, nos partidos, nos aparelhos, nas prisões?

Como não sentir a dor da separação? Como não sentir medo? Como ser

indiferente a essa experiência tão singular se, para minha profunda

tristeza, as gerações contemporâneas se resumem à busca pelo presente,

pelo nosso miserável presente?

A certeza de que a tortura permanece nos corpos, mentes e corações

foi amplamente confirmada. Sujeitos ainda se vêem envoltos com essa

experiência, seja pela falta, pela dor, pela marca, pela lembrança.

As subjetividades não são inventadas, forjadas pelos sujeitos. São

produções sociais, construções, a forma pela qual elaboram suas concepções

de mundo a partir das experiências vividas. Segundo a afirmação de Jean

Paul Sartre: “o essencial não é o que foi feito do homem, mas o que ele faz

daquilo que fizeram dele”.

Durante o processo de pesquisa e construção do projeto da

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dissertação, foi sendo elaborado o tão procurado objeto. A partir das novas

descobertas e da percepção da profundidade do tema, novos fatores foram

incorporados.

Em um determinado momento da elaboração, em que o envolvimento

para com o objeto já se apresentava demasiadamente intenso, pensei em

como desvelar a lógica da tortura e os seus mecanismos de legitimidade.

A discussão sobre a tortura e a sua inserção no campo da política foi

fundamental para o enriquecimento da análise. A hipótese de situar a

tortura fora do espaço político por meio da discussão do seu paradoxo,

fortaleceu uma via de compreensão da intensidade do estudo proposto.

A dissertação representou mais do que um projeto, uma dissertação

decorrente da conclusão de um curso de pós-graduação stricto sensu..

Significou uma experiência ímpar, que atingiu tanto minha vida pessoal

quanto marcou profundamente a minha trajetória acadêmica.

Obstáculos foram encontrados, mas felizmente não intransponíveis.

No entanto, a dissertação apresenta uma lacuna que não poderia ser

preenchida nessas páginas. Essa lacuna advém do “vazio”, do

“inexistencialismo”, do “esquecimento como impedimento da memória”.

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Tortura no Brasil: implementação das recomendações do relator da ONU.

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PERIÓDICOS

Jornal do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ. Ano 18. Nº 54. Dezembro/05.

ANEXO A – ALGUNS MÉTODOS DE TORTURA UTILIZADOS PELA

REPRESSÃO ESTATAL

Dentre os diversos instrumentos de tortura, brutais e extremamente

covardes, alguns serão expostos de forma mais descritiva.

O “pau-de-arara” é originalmente nacional, utilizado desde o período

da escravidão: “o pau-de-arara era uma estrutura metálica, desmontável,

(...) que era constituído de dois triângulos de tubo galvanizado em que um

dos vértices possuía duas meias-luas em que eram apoiados e que, por sua

vez, era introduzida debaixo de seus joelhos e entre as suas mãos que eram

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amarradas e levadas até os joelhos” (José Milton Ferreira de Almeida, 31

anos, engenheiro, Rio; auto de qualificação e interrogatório, 1976: Brasil

Nunca Mais nº 43, v.2., p. 421-430).

De acordo com a obra Tiradentes: um presídio da ditadura –

Memórias de presos políticos, o pau-de-arara consistia em uma “barra

móvel, geralmente de ferro (podendo ser de madeira), e dois suportes

paralelos e da mesma altura – quase sempre cavaletes (mas podiam ser

improvisados até mesmo com duas mesas) – sobre os quais é colocada a

barra com o(a) preso(a) pendurado(a). A vítima é totalmente despida e

amarrada da seguinte maneira: as pernas são flexionadas nos joelhos, sob os

quais passa-se a barra; seus braços são puxados por baixo da barra, como se

abraçassem coxas e tornozelos, e seus pulsos são amarrados um ao outro

por uma corda. Em seguida a barra é levantada e cada uma das

extremidades posta sobre um dos suportes. O corpo da vítima gira no

momento em que ela é suspensa, provocando um forte impacto nos pulsos e

tornozelos que se acomodam à nova posição, bem como na coluna vertebral,

que forma um U no ar. O ânus e o sexo (testículos e pênis, no caso dos

homens, e vagina, no caso das mulheres) ficam expostos e a cabeça tomba

para baixo. O(a) preso(a) é mantido(a) nessa posição por horas a fio, quando

lhe são infligidos outros tipos de suplício: afogamento, açoitamento, choques

elétricos em todo o corpo e provenientes de diferentes geradores de

energia, empalamento por bastões e cassetetes e surras com porretes,

cassetetes ou barras de ferro” (p. 515).

A prática do telefone consistia em um espancamento com as duas

mãos em formato de concha, simultaneamente, nos dois ouvidos do

torturado, provocando tontura, lesões ou mesmo a perda de sentidos.

Geralmente, acontecia no momento em que as vítimas ficavam imobilizadas

numa cadeira durante o interrogatório.

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O empalamento uma das formas mais cruéis de tortura é conhecido

desde a Antigüidade e “consiste na introdução de objetos geralmente

pontiagudos no ânus da vítima até estourar seus intestinos e outras

vísceras” (idem: 511) Esta prática também foi aplicada em mulheres, através

da vagina, como foi o caso da militante da ALN – Ação Libertadora Nacional

- Sônia Angel, morta em 1973, aos 27 anos.

O coroa de cristo era um aro de metal “que se colocava como uma

coroa na cabeça do(a) preso(a) e cujo diâmetro ia diminuindo mediante

sistema de torniquete e comprimindo o crânio da vítima até que seus olhos

saltassem das órbitas a caixa craniana fosse esmagada” (ibidem: 508). O

instrumento tem origem na Europa desde a Idade Média e também foi

utilizado durante a Idade Moderna, pela Inquisição. A expressão coroa de

cristo é inspirada na tradição cristã – em que Jesus Cristo foi torturado

com uma coroa de espinhos na cabeça. O caso brasileiro emblemático foi o

da opositora Aurora Maria do Nascimento Furtado – a Lola – militante da

ALN, morta por esse método no final do ano de 1972, aos 26 anos de idade,

no Rio de Janeiro.

A cadeira do dragão consistia “numa cadeira com braços de estrutura

em madeira ou metal e assento, encosto e parte superior dos braços

necessariamente de metal, com uma trava móvel entre as duas pernas

dianteiras, de modo a permitir que as pernas da vítima fossem presas para

trás e imobilizadas, e tirantes nos braços, com os quais eram atados e

também imobilizados, pelos pulsos, os braços da vítima” (Tiradentes: um

presídio da ditadura – Memórias de presos políticos: 503). O objetivo era

aplicar os choques elétricos por meio de tomadas elétricas, telefones de

campanha (de 110 ou 220 volts) ou por televisores capazes de emitir cargas

de até 1200 volts de baixa amperagem. Para aumentar a condutibilidade os

corpos das vítimas eram molhados. Sua origem também está na Inquisição e

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seus sinônimos são: cadeira elétrica e trono-do-dragão.

A asfixia foi um método tão utilizado que possui um codinome

espanhol “submarino”, parte do vocabulário dos direitos humanos. O

“submarino seco” pode ser realizado pressionando uma corda ao redor do

pescoço, cobrindo a cabeça com um saco, forçando aspiração de poeiras,

cimento, dentre outros. O “submarino molhado” pode ser feito com a

imersão forçada em água contaminada. Os efeitos desse método podem ser

pneumonia, o sangramento nasal ou pelo ouvido, infecções e problemas

respiratórios agudos e crônicos (Clínica e Política: 341).

O pentotal sódico, mais conhecido como o soro da verdade, tinha sua

aplicação feita sob a forma de injeção venenosa, posterior à imobilização

total do torturado. “À medida que o pentotal é injetado, o torturado vai

entrando em estado de terror, ao mesmo tempo em que os torturadores o

bombardeiam com perguntas e ameaças de morte” (Vianna, 2003). Esse

método leva a uma total inconsciência do torturado, que se contrapõe a sua

tentativa de permanecer consciente. As reações possíveis a essa droga são:

náuseas, vômitos, tonturas, dentre outros.

A palmatória também consistia em um método de tortura. Monteiro,

fiel companheiro de Lamarca, foi submetido a diversos tipos de tortura e

resistiu a todos. Entretanto, quando a polícia descobriu que Monteiro tinha

sido criado em um orfanato público, aplicou a palmatória. A partir de então,

ele começou a dar informações, pois esse método lembrava a sua infância no

orfanato e, assim, a polícia política havia descoberto seu limite (Vianna,

2003).

O éter era aplicado em doses variáveis, sob a forma de injeção

intradérmica. Os seus efeitos são, além de dores terríveis e desmaios

prolongados, um sofrimento permanente que impossibilitava o torturado de

caminhar, provocando necroses irreversíveis das partes afetadas. Arquivo

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DEOPS, São Paulo. Documento da Resistência (ibidem).

O piano ou pianinho, instrumento semelhante à maquininha, de

produção industrial, tinha procedência norte-americana. A principal

diferença entre o pianinho e a maquininha seria que esta era acionada por

meio de uma manivela, já o pianinho possuía um sistema de teclas que,

pressionadas, produziam a descarga elétrica cuja intensidade variava de

acordo com a tecla acionada (idem).

O “colgamiento” ou “penduração” é a elevação do sujeito até o ponto

que seus pés não consigam tocar o solo. Segundo Tavares (2005):

“tortura profunda que não deixa nem marcas nem cicatrizes, mas

destrói. No início, parece um brinquedo bobo. Aos poucos, porém,

uma dormência nos braços se expande pelo corpo como uma

gangrena seca, progressiva. Primeiro a mão, logo o braço esquerdo,

depois o direito, mais adiante o ombro, tudo se gangrena, como

milhões de agulhas picando o tecido amortecido ou já morto.

Essa sensação de necrose só chega ao corpo. A mente continua

lúcida. Não se perde o raciocínio – como no choque elétrico – e e aí

que a “penduração” alcança o requinte: o preso sabe que está

sendo destruído, que o corpo e as forças se esvaem, pouco a

pouco. E sente o impacto da morte, como eu senti”.

Um dos métodos mais utilizados pela ditadura militar, o choque

elétrico, nesse período ganhou requintes de perversão:

“Começa na mão direita, e isso já bastaria como crueldade, pois o

efeito recorre todo o corpo e o prisioneiro cai. Os pontapés e os

gritos obrigam o preso a levantar-se e tudo recomeça. Aos poucos,

surgem as variantes do sadismo: molham o chão para que o efeito

se amplie da planta dos pés à cabeça, num tremor profundo, e,

logo, o cabo metálico chega ao rosto e ao contorno dos olhos, aos

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ouvidos, às gengivas e à língua. Na sala de torturas, o prisioneiro

está sempre nu ou seminu (só de cuecas ou calcinhas) e isto, que

em si mesmo já é uma humilhação, facilita o requinte maior do

choque elétrico: nos homens, amarrar os fios no pênis, e nas

mulheres,introduzir o cabo metálico na vagina. E em ambos, como

alternativa final, o choque elétrico no ânus” (TAVARES, 2005).

ANEXO B

RED LATINOAMERICANA Y DEL CARIBE DE INSTITUCIONES DE LA

SALUD CONTRA LA TORTURA, LA IMPUNIDAD Y OTRAS

VIOLACIONES A LOS DERECHOS HUMANOS

Los Centros y su sitio en Internet

Sigla País Institución

ACAT México Acción de los Cristianos para la Abolición de la Tortura

[email protected]

www.acatmexico.org

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ATYHA Paraguay Centro de Alternativas en Salud Mental

[email protected]

AVRE Colombia Apoyo a Víctimas Pro-Recuperación Emocional

[email protected]

CAPS Perú Centro de Atención Psicosocial

[email protected]

www.caps.org.pe

CINTRAS Chile Centro de Salud Mental y Derechos Humanos

[email protected]

www.cintras.tie.cl

CDHES El Salvador

Comisión de Derechos Humanos de El Salvador

[email protected]

CPTRT Honduras Centro para la prevención, Tratamiento y Rehabilitación de Víctimas de Tortura y sus Familiares

[email protected]

EATIP Argentina Equipo Argentino de Trabajo e Investigación Psicosocial

www.eatip.org.ar

[email protected]

GAM Guatemala Fundación Grupo de Apoyo Mutuo

[email protected]

www.gam.org.gt

GTNM/RJ Brasil Grupo Tortura Nunca Mais, Río de Janeiro. Equipo Clínico Grupal Tortura

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Nunca Mais

[email protected]

www.torturanuncamais-rj.org.br

INREDH Ecuador Fundación Regional de Asesoría en Derechos Humanos

[email protected]

www.derechos.org.ec

ITEI Bolivia Instituto de Terapia e Investigación sobre las Secuelas de la Tortura y la Violencia Estatal

[email protected]

ODHAG Guatemala Oficina Derechos Humanos Arzobispado de Guatemala, Área Salud Mental

[email protected]

PRIVA Ecuador Fundación para la Rehabilitación Integral de Víctimas de Violencia

[email protected]

RED DE APOYO

Venezuela Red de Apoyo por la Justicia y la Paz

[email protected]

[email protected]

www.redapoyo.org

SERSOC Uruguay Servicio de Rehabilitación Social

[email protected]

ECAP Guatemala Equipo de Estudios Comunitarios y

Acción Psicosocial

[email protected]

[email protected]

GAJOP Brasil Gabinete de Asesoría Jurídica para

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Organizaciones Populares

[email protected]

www.gajop.org.br

GTNM/RJ Brasil Grupo Tortura Nunca Mais, Río de

Janeiro. Equipo Clínico Grupal Tortura Nunca Mais

[email protected]

www.torturanuncamais-rj.org.br INREDH Ecuador Fundación Regional de Asesoría en

Derechos Humanos

[email protected]

www.derechos.org.ec

ITEI Bolivia Instituto de Terapia e Investigación

sobre las Secuelas de la Tortura y la Violencia Estatal

[email protected]

ODHAG Guatemala Oficina Derechos Humanos

Arzobispado de Guatemala, Área Salud Mental

[email protected]

PRIVA Ecuador Fundación para la Rehabilitación

Integral de Víctimas de Violencia

[email protected]

RED DE

APOYO Venezuela Red de Apoyo por la Justicia y la Paz

[email protected]

[email protected]

www.redapoyo.org

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SERSOC Uruguay Servicio de Rehabilitación Social

[email protected]

ANEXO C - PROPOSTA DE ROTEIRO PARA ENTREVISTA COM

PACIENTE DO PROJETO CLÍNICO-GRUPAL

Objetivo: Conhecer a produção de efeitos-subjetividade na vida de

sujeitos que foram marcados pela tortura, direta ou indiretamente.

1História de vida

2Inserção no Projeto Clínico-Grupal

3Rearranjos nas diversas esferas da vida

1-Conhecimento da vida do entrevistado

1)Fale um pouco sobre você:

nome, idade, escolaridade, profissão, contexto familiar

2)Você poderia falar um pouco sobre a sua trajetória de vida?

2-A Experiência da tortura e o seu sentido

3)De que forma a experiência vivida se refletiu nas diversas

esferas da sua vida?

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4)Que sentido você atribui à violência sofrida?

5)Que sentido você atribui à tortura sofrida?

3-As Estratégias Elaboradas pelos Sujeitos

6)Que estratégias foram utilizadas para conviver/superar essa

experiência?

7)Como se deu a sua relação com o espaço público - instituições

as quais você era integrante - a partir de então?

8)Como se deu a sua relação com a esfera política – instâncias

onde você realizava sua militância - a partir de então?

4-A Repercussão do Projeto Clínico-Grupal do Grupo Tortura Nunca

Mais/RJ

9)Por que e como se deu a sua inserção no Projeto Clínico-

Grupal?

10)De que forma o Projeto Clínico-Grupal repercute na sua

vida?

5-A Perpetuação da Violência/Tortura nos Dias Atuais

11)De que maneira você vê a violência/tortura nos dias atuais?

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12) Como você vê o papel dos meios de comunicação na

divulgação dos episódios de violência?

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ANEXO D - PROPOSTA DE ROTEIRO PARA ENTREVISTA COM

PROFISSIONAIS DO PROJETO CLÍNICO-GRUPAL

Objetivo: Conhecer as dimensões do trabalho realizado no Projeto

Clínico-Grupal

1Histórico do Projeto Clínico-Grupal

2A prática clínica e o trabalho com os usuários

3Os efeitos da tortura na subjetividade

1)Qual é a dinâmica de trabalho do Projeto Clínico-Grupal?

2)Quais são as principais atividades realizadas?

3)Os pacientes direta ou indiretamente atingidos pela tortura

têm apresentado respostas significativas em relação à prática

clínica desenvolvida?

4)Como são avaliadas as necessidades de cada paciente?

5)Os pacientes atendidos pelo projeto já tinham experiências

anteriores em serviços de prática clínica?

6)Se afirmativo, esses serviços tinham uma discussão mais

ampla e política do cenário político-social? Já foram relatadas

experiências em que, nesses serviços, suas histórias de vida

foram negadas?

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7) De que forma as marcas da tortura refletem na

subjetividade desses sujeitos – na sua vida, pessoal,

profissional e política?

8) Foram necessários rearranjos nesses espaços?

9)Se esses rearranjos ocorreram, eles persistem ainda hoje?

Sofreram transformações perceptíveis com o trabalho do

Projeto Clínico-Grupal?

10)Qual a concepção de subjetividade do projeto?

ANEXO E - FILMES E VÍDEOS

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1) 15 FILHOS

(Documentário, 1996 – Brasil)

DIREÇÃO: Maria Oliveira e Marta Nehring

SINOPSE: O vídeo relembra os horrores cometidos durante a

ditadura militar, quando milhares de pessoas, contrárias ao regime,

morreram ou desapareceram sem deixar pistas. A narrativa cabe aos filhos

dos presos políticos, que contam traumas nunca superados. Entre os relatos,

alguns fatos são comuns: a incerteza quanto ao nome verdadeiro dos pais; o

mundo dividido entre o bem e o mal; o período em que passaram presos; e a

impossibilidade de compartilhar os acontecimentos com os demais membros

da família. Entre os depoimentos, gravados em preto e branco, imagens

coloridas da queda do presidente Salvador Allende, no Chile; e das

dependências da delegacia de polícia, no bairro paulistano do Tatuapé, onde

ficavam presas as famílias dos torturados políticos.

2) O QUE É ISSO COMPANHEIRO?

(1997 – Brasil)

DIREÇÃO: Bruno Barreto

SINOPSE: Em 1964, o golpe militar derruba o governo democrático

brasileiro e, posteriormente, é promulgado em dezembro de 1968 o Ato

Constitucional nº 5, que nada mais era que o golpe dentro do golpe, pois

acabava com a liberdade de imprensa e os direitos civis. Neste período

vários estudantes abraçam a luta armada, entrando na clandestinidade, e em

1969 militantes do MR-8 elaboram um plano para seqüestrar o embaixador

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dos Estados Unidos (Alan Arkin) para trocá-lo por prisioneiros políticos, que

eram torturados nos porões da ditadura.

ELENCO: Alan Arkin, Fernanda Torres, Pedro Cardoso, Cláudia

Abreu, Nélson Dantas, Matheus Natchergaele Marco Ricca , Maurício

Gonçalves, Luís Fernando Guimarães, Caio Junqueira, Selton Mello, Du

Moscovis, Caroline Kava, Fernanda Montenegro, Lulu Santos, Alessandra

Negrini, Antônio Pedro, Mílton Gonçalves e Othon Bastos.

PRODUÇÃO: Lucy Barreto e Luiz Carlos Barreto

ROTEIRO: Leopoldo Serran, baseado no livro de Fernando Gabeira

3) QUASE DOIS IRMÃOS

(2004, Brasil)

ARGUMENTO, PRODUÇÃO E DIREÇÃO: Lucia Murat

DIREÇÃO DE FOTOGRAFIA E CÂMERA: Jacob Sarmento

Solitrenick

ROTEIRO: Lucia Murat e Paulo Lins

MÚSICA: Naná Vasconcelos

CO-PRODUTORES: Adrian Sólar, Milena Polyo, Giles Sacuto

PRODUÇÃO EXECUTIVA: Ailton Franco Jr e Branca Murat

ELENCO: Brunno Abrahão, Silvia Buarque, Werner Shünemann, Luiz

Melodia, Fernando Eiras, Pablo Ricardo Belo, Janaina Carvalho, Antônio

Pompêo, Caco Ciocler, Fernando Alves Pinto, Paulo Hamiltonn, Bruce

Gomlevsky, Flávio Bauraqui, Maria Flor, Marieta Severo, Jerusa Franco,

Charles Fricks, Jandir Ferrari, Tonico Pereira, Lucia Alves, Renato de

Souza, Erick Oliveira e Babu Santana.

SINOPSE: Nos anos 70, quando o país vivia sob a ditadura militar,

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muitos presos políticos foram levados para a Penitenciária da Ilha Grande,

na costa do Rio de Janeiro. Da mesma forma como os políticos, assaltantes

de bancos também estavam submetidos à Lei de Segurança Nacional. Ambos

cumpriam pena na mesma galeria. O encontro entre esses dois mundos é

parte importante da história da violência que o País enfrenta hoje. "Quase

Dois Irmãos" mostra como essa relação se desenvolveu e o conflito

estabelecido entre eles. Dessa experiência nasceu o Comando Vermelho, que

mais tarde passou a dominar o tráfico de drogas.

Através de dois personagens, Miguel, um jovem intelectual de classe

média preso político na Ilha Grande, e hoje deputado federal, e Jorge, filho

de um sambista que de pequenos assaltos se transformou num dos líderes do

Comando Vermelho, o filme tem como pano de fundo a história política do

Brasil nos últimos 50 anos, contada também através da música popular, o

ponto de ligação entre esses dois mundos. Hoje, começa um novo ciclo:

Miguel tem uma filha adolescente, que fascinada pelas favelas e pela

transgressão, se envolve com um jovem traficante.

4) O VELHO: a história de Luiz Carlos Prestes

(Brasil, 1997)

DIREÇÃO: Toni Venturi

PRODUÇÃO: RENATO BULCÃO/TONI VENTURI

DURAÇÃO: 105 min

SINOPSE: A história de um homem que virou lenda, um dos

personagens mais perseguidos da história latino-americana do século XX:

Luiz Carlos Prestes. Polêmico líder do Partido Comunista Brasileiro por mais

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de 35 anos, Prestes carregou ideais e tomou posições polêmicas. O

documentário reúne setenta anos de imagens da História do Brasil: a épica

marcha de 25.000 km da Coluna Prestes nos anos 20; a “revolução

comunista” de 1935; o dramático romance com a judia alemã Olga Benário; o

golpe, a luta armada e a feroz repressão política durante a ditadura militar.

Com depoimentos de jornalistas, familiares, amigos, ex-membros do PCB e

historiadores, e um raro material fílmico de arquivo, este material forma a

primeira cinebiografia de Prestes.

5) Cabra-Cega

(2005, Brasil)

DIREÇÃO: Toni Venturi

DURAÇÃO: 108 min

SINOPSE: Escondidos no apartamento do arquiteto Pedro (Michel

Bercovitch) - num bairro tradicional de São Paulo - Thiago (Leonardo

Medeiros) e Rosa (Débora Duboc), dois jovens militantes da luta armada,

vivem o sonho e as dificuldades de seguir com o projeto revolucionário.

Thiago é o comandante de um "grupo de ação" de uma das organizações

resistente à ditadura. Ferido à bala em uma emboscada da polícia, é

obrigado a se esconder na casa de Pedro. Rosa, uma militante de base e

filha de operário, é o contato de Thiago com o mundo e passa a ser sua

enfermeira. Mateus (Jonas Bloch), o dirigente da organização, trabalha

incansavelmente para salvar o que restou dos seus quadros. Em 1971, a

organização está debilitada e discute o abandono da estratégia armada.

6) Zuzu Angel

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(2006, Brasil)

DIREÇÃO: Sérgio Rezende

ROTEIRO: Marcos Bernstein e Sérgio Rezende

PRODUÇÃO: Joaquim Vaz de Carvalho

ELENCO: Patrícia Pillar, Daniel de Oliveira, Leandra Leal, Luana

Piovani, Alexandre Borges, Paulo Betti

DURAÇÃO: 110 min

SINOPSE: Brasil, anos 60. A ditadura militar faz o país mergulhar em

um dos momentos mais negros de sua história. Alienada no que diz respeito

a esse processo, Zuzu Angel (Patrícia Pillar), uma estilista de modas, é

reconhecida por seu trabalho no Brasil e no exterior. Seu filho, Stuart

(Daniel de Oliveira), ingressa na luta armada, movimento de resistência

contra o regime militar. As diferenças ideológicas entre mãe e filho eram

profundas. Ela uma empresária, Stuart e Sônia (Leandra Leal), sua mulher,

militantes na luta pela revolução socialista. Zuzu recebe uma informação,

dizendo que "Paulo caiu", ou seja, Stuart tinha sido preso pelos militares. As

Forças Armadas negam. Zuzu recebe uma carta dizendo que Stuart foi

torturado até a morte na Aeronáutica. A partir daí ela começa sua busca:

localizar o corpo do filho e enterrá-lo. Na sua luta incessante pelo corpo de

seu filho, Zuzu vai se tornando uma figura cada vez mais incômoda para a

ditadura, até que um dia ela é “morta” em um “acidente misterioso”.

7) Notícias de uma guerra particular

(Documentário - 1999, Brasil)

DIREÇÃO: JOÃO MOREIRA SALLES E KÁTIA LUND

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DURAÇÃO: 56 min

SINOPSE: O documentário trata da situação de extrema violência a

qual estão submetidos moradores das favelas, policiais e traficantes. Com

algumas cenas chocantes, mas reveladoras, esse documentário retrata os

bastidores de uma política voltada para a não-política de direitos humanos e

o descaso por parte das autoridades de Estado no que diz respeito à

segurança pública.

ANEXO F – RELAÇÃO DOS ENTREVISTADOS

Ex-militante da ALN- Ana Miranda

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A ex-militante do PC do B- Tânia Roque

O ex-militante do PC do B- Glauco de Kruse Villas Boas

A profissional do Projeto Clínico-Grupal do GTNM/RJ- Vera Vital Brasil

O profissional do Projeto Clínico-Grupal do GTNM/RJ- Eduardo Passos

Militante pela Anistia- Maria Dolores

Filha de Desaparecido Político- Lúcia Alves

Filha de um militante considerado morto político- Tatiana Roque

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