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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO DA ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
ORIENTADORA: SUELY SOUZA DE ALMEIDA
ORIENTANDA: CAMILA PIMENTEL FREIRE
“AS MARCAS DA TORTURA ENGENDRADA
PELA DITADURA MILITAR BRASILEIRA”
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2
RESUMO
Este trabalho investigou o terror de Estado, um dos instrumentos por excelência de violação dos direitos humanos, assim como os mecanismos ideológicos, materiais e culturais que legitimaram a ditadura militar brasileira. Ademais, privilegiaram-se as marcas visíveis e invisíveis/invisibilizadas deixadas pela tortura engendrada nesse período de barbárie da recente história brasileira, na subjetividade de ex-presos políticos. A discussão da tortura foi central: a sua singularidade, a brutalidade de seus métodos, de suas técnicas e a legitimidade alcançada em um determinado sistema político.
Palavras-chave: Ditadura Militar; Tortura; Direitos Humanos.
ABSTRACT
This work investigated the terror of State, one of the instruments for excellence of breaking of the human rights, as well as the ideological mechanisms, material and cultural that had legitimized the Brazilian military dictatorship. And also, the visible and invisible marks had been privileged left by the torture produced in this period of barbarity of recent Brazilian history, in the subjectivity of former-prisoners politicians. The discussion of the torture was central: its singularity, the brutality of its methods, its techniques and the legitimacy reached in one determined system politician.
Word-key: Military Dictatorship; Torture; Human rights.
3
SUMÁRIO
Apresentação--------------------------------------------------------------------7
Introdução----------------------------------------------------------------------11
Capítulo 1 - Heranças da Ditadura Militar: Resistência e Memória---------34
Capítulo 2 –As Marcas Visíveis e Invisíveis da Tortura----------------------57
2.1- O Paradoxo da Tortura---------------------------------------------------80
2.2- Considerações sobre Legitimidade da Ditadura Militar Brasileira-----85
Capítulo 3- Projeto Clínico-Grupal/Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de
Janeiro: a clínica articulada à política----------------------------------------93
3.1- A Produção de Subjetividades e a Prática Clínica do Projeto Clínico-
Grupal--------------------------------------------------------------------------98
Considerações Finais---------------------------------------------------------120
Anexo A- Métodos de Tortura Utilizados pela Repressão Estatal---------128
Anexo B- Red Latinoamericana y Del Caribe de Instituciones de La Salud
Contra La Tortura, La Impunidad y Otras Violaciones a Los Derechos
Humanos-----------------------------------------------------------------------133
Anexo C- Proposta de Roteiro para Entrevista com Paciente do Projeto
Clínico-Grupal-----------------------------------------------------------------137
Anexo D- Proposta de Roteiro para Entrevista com Profissionais do Projeto
Clínico-Grupal-----------------------------------------------------------------140
Anexo E- Filmes e Vídeos----------------------------------------------------142
Anexo F- Relação dos Entrevistados----------------------------------------148
4
Dedico esta dissertação àqueles que me cercam
com seu amor: meus pais,
José Marcos e Ana Lúcia.
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço profundamente aos meus pais que, em todas as ocasiões, me
presentearam com seu apoio e carinho.
Ao meu marido Fábio, pelo incentivo e compreensão.
À Suely Almeida, orientadora por excelência.
À Victoria Grabois, pois sua trajetória de vida despertou-me para a
recente história brasileira que até então desconhecia.
À Adriana Freitas, pela amizade verdadeira.
À Vera Vital Brasil, sempre disponível, importante mediadora entre
mim e o Projeto Clínico-Grupal.
A todos aqueles que partilharam suas histórias de vida, seus projetos
e a sua dor por meio das entrevistas, fundamentais para a realização desta
dissertação.
6
“Eu quase nada sei,
mas desconfio de muita coisa”
Guimarães Rosa1.
1 ROSA, J. Guimarães. “Grande Sertão: veredas” In: João Guimarães Rosa. Ficção Completa. Vol. 2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p. 16.
7
APRESENTAÇÃO
No curso de Serviço Social, foram abordadas questões que
despertaram, como estudante da graduação, a iniciação da construção de um
futuro projeto profissional. A profissão tem como um dos pilares de seu
projeto ético-político a defesa dos direitos humanos e a negação do
autoritarismo, e dessa forma, aponta como compromisso uma intervenção
com vistas a fortalecer o acesso aos direitos civis, sociais e políticos.
O Código de Ética Profissional do Assistente Social, aprovado em 13
de março de 1993, pelo Conselho Federal de Assistentes Sociais (C.F.A.S.),
tem como uma de suas prerrogativas a defesa intransigente dos direitos
humanos.
No movimento das ações no campo dos direitos humanos como
perspectiva de enfrentamento da questão social, o Serviço Social tem um
grande desafio político. A profissão que, historicamente, teve sua
constituição fundamentada na “questão social”, como expressão máxima do
conflito capital-trabalho, tem um papel fundamental com relação ao
combate à violação dos direitos humanos, tão duramente conquistados pela
"classe" trabalhadora2.
2 Um ponto pertinente a ser ressaltado é a questão da indivisibilidade dos Direitos Humanos. Embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos tenha apontado a universalidade de tais direitos, os direitos econômicos, sociais e culturais passaram a ter uma maior atenção das convenções legais a partir da I Conferência Mundial de Direitos Humanos, de Teerã (1968) e, com maior ênfase, na II Conferência Mundial de Direitos Humanos, de Viena (1993). Esta conferência reafirmou a universalidade dos Direitos Humanos, seu caráter de totalidade e interdependência. No Brasil, “o debate sobre a necessária articulação entre as denominadas primeira e segunda gerações de direitos consubstanciou-se na Constituição Brasileira de 1988” (Almeida, 2001). Embora, no plano do discurso, os direitos sociais tenham sido incorporados, no campo das ações, a maioria das organizações e dos militantes ainda se restringe à defesa dos direitos
8
O interesse pelo tema iniciou-se com a minha inserção como bolsista
de iniciação científica no núcleo GECEM – Gênero, Etnia e Classes – Estudos
Multidisciplinares –, por meio da pesquisa “Violência Estatal e Lutas Sociais:
a Constituição de Sujeitos”, que tem como objeto de estudo a violência
perpetrada por agentes de Estado: na ditadura militar contra protagonistas
da resistência ao regime, em um primeiro momento da pesquisa; e a violência
estatal direcionada a camadas menos favorecidas da sociedade brasileira,
de corte classista e racista, na segunda fase do processo de pesquisa.
Através de algumas das atividades desenvolvidas no âmbito da pesquisa,
como a atuação em entrevistas, a elaboração de relatórios, o estudo de
casos e a própria aproximação com a bibliografia referente ao tema, o
desejo de aprofundar elementos da discussão passou a ser crescente. A
interlocução com as histórias de vida, concretas, de atores vivos,
representantes da história como forma de resistência, somente confirmou a
escolha.
A violência estatal tem sido camuflada, caracterizando um quadro de
impunidade fortemente presente. Ocultam-se momentos violentos da
trajetória social e política brasileira, assim como a experiência de
resistência à violência sistemática do poder estabelecido. As instituições
estatais e seus agentes ainda estão perpassados por práticas ditatoriais,
especialmente no que concerne ao tratamento de presos e de moradores de
áreas menos favorecidas, principalmente os jovens pobres e negros.
Ademais, percebi a importância de pesquisar a temática, pois está
fortemente presente na atualidade, em função do recrudescimento da
violência estatal.
Durante o período de pesquisa, foram entrevistados sujeitos -
civis e políticos, não visualizando o seu formato indivisível e limitando o seu espaço de atuação.
9
inseridos no Projeto Clínico-Grupal do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ
(GTNM/RJ) - atingidos pela tortura institucionalizada no regime militar. O
Projeto Clínico-Grupal criou uma abordagem inovadora, no que diz respeito
ao apoio médico-psicológico aos direta ou indiretamente atingidos pela
repressão estatal. O trabalho de campo foi complementado por meio de
entrevistas com profissionais que atuam no referido grupo, nas quais se
buscou elaborar um mapeamento das diversas experiências dos envolvidos,
portadores de níveis diferenciados de apropriação do espaço político. Para a
dissertação, foram utilizadas duas entrevistas realizadas com profissionais
do Projeto Clínico-Grupal do GTNM/RJ e cinco entrevistas com usuários do
referido Projeto, sendo que duas delas fazem parte do acervo da Pesquisa
intitulada “Violência Estatal e Lutas Sociais: a constituição de sujeitos”. As
demais entrevistas fazem parte do processo de pesquisa desta dissertação.
Nas entrevistas realizadas exclusivamente para esta dissertação, foram
escolhidos profissionais e usuários do Projeto Clínico-Grupal. A perspectiva
profissional trouxe um debate acerca da prática clínica hegemônica e
daquela adotada pelo Projeto; os usuários relataram o impacto do Projeto
em suas vidas e como reelaboraram a questão da tortura a partir de então.
Embora os entrevistados, especialmente os usuários, possuam diferentes
inserções políticas no que diz respeito à resistência ao regime militar,
partilham da experiência de participarem do Projeto, o que para a pesquisa
era suficiente e enriquecedor.
A fim de orientar o pensamento e captar a singularidade do fenômeno
estudado, foram construídas categorias, que, por meio do processo do
conhecimento, levaram à explicitação das contradições presentes no objeto
de estudo. Os dados obtidos pela pesquisa foram confrontados com as
categorias de análise à luz de um corpo teórico pré-existente e selecionado
(GOHN: 1984).
10
Através da análise dos relatos obtidos nas entrevistas – ainda que,
muitas vezes, as falas sejam demasiadamente explícitas - buscou-se captar
as dimensões do fenômeno, almejando-se a ruptura com o senso comum e
suas representações.
No capítulo 1, procurar-se-á estudar o terror de Estado, um dos
instrumentos por excelência de violação dos direitos humanos e investigar
os mecanismos ideológicos, materiais e culturais que legitimaram a ditadura
militar, utilizando-se da violência/da tortura como prática
institucionalizada. Nesse sentido, busca-se estabelecer uma tentativa de
recuperação da memória coletiva, fundamental para a caracterização da
história como um espaço por excelência de gestação das condições de
reprodução política e social dos seres humanos.
No capítulo 2, investigar-se-ão as marcas visíveis e invisíveis
deixadas pela tortura engendrada na ditadura militar brasileira, na
subjetividade de ex-presos políticos. Ademais, buscar-se-á estudar os
efeitos e as (re)elaborações realizadas por esses protagonistas no espaço
público e privado. Nessa segunda etapa, será redimensionada a prática da
tortura no campo da política; a sua singularidade, a brutalidade de seus
métodos, de suas técnicas e a legitimidade alcançada em um determinado
sistema político.
No capítulo 3, será realizado o debate de uma prática clínica que traz
um viés inovador, em que se articula política e clínica, através de um
trabalho realizado pelo Projeto Clínico Grupal do Grupo Tortura Nunca Mais
do Rio de Janeiro, que propõe uma prática clínica diferenciada das
intervenções “psi” hegemônicas. Nesse sentido, será feita uma análise de
como os sujeitos inseridos no Projeto Clínico-Grupal elaboram suas
apropriações da situação de extrema violência a que foram submetidos.
11
INTRODUÇÃO
Embora em um cenário da chamada “transição democrática” em que
avanços no campo da democracia formal foram conquistados, como por
exemplo, a Constituição Federal de 1988, que traz em seu bojo a afirmação
de uma série de direitos, as práticas de tortura se repetem cotidianamente,
especialmente nas instituições do Estado.
Chauí (2006)3 apresenta a democracia como uma forma sócio-política
definida pelo princípio da isonomia, da legitimidade do conflito e dos
direitos como conquista e espaço constitutivo da luta por novos direitos.
Dessa forma, Chauí afirma que a democracia surge como um regime
político singular, na medida em que carrega na sua própria constituição a
abertura para o novo.
Entretanto, a forma hegemônica de democracia no bojo da sociedade
capitalista é aquela em que se preconiza a sua definição liberal. Nesta
concepção, a democracia é reduzida a um “regime político eficaz, baseado na
idéia de cidadania organizada em partidos políticos, e se manifesta no
processo eleitoral de escolha dos representantes, na rotatividade dos
governantes e nas soluções técnicas para os problemas econômicos e
sociais” [grifos originais] (idem).
Paoli e Telles afirmam que na década de 90 já se presenciava a
consolidação da democracia:
“(...) entramos nos anos 90 com uma democracia consolidada,
3 CHAUÍ, Marilena. Educação em Direitos Humanos: memórias e desafios no contexto das sociedades contemporâneas. In: Congresso Interamericano de Educação em Direitos Humanos. Educação em Direitos Humanos nas Sociedades contemporâneas. Brasília, 2006. Anais eletrônicos. Disponível em: http:www.planalto.gov.br/sedh. Acesso em: 01. nov. 2006.
12
aberta ao reconhecimento formal dos direitos sociais, garantias
civis e prerrogativas cidadãs reivindicados, mas que convive
quotidianamente com a violência e a reiterada violação dos
direitos humanos – um mundo que encena o avesso da cidadania e
das regras de civilidade, um mundo que (...) garante os direitos
políticos democráticos mas não conseguem fazer vigorar a lei, os
direitos civis e a justiça no conjunto heterogêneo da vida social,
subtraídos que são por circuitos paralelos de poder que obliteram
a dimensão pública da cidadania, repõem a violência e o arbítrio na
esfera das relações privadas, de classe, gênero e etnia, e tornam
o Estado cada vez mais ineficaz em tornar efetivas suas próprias
regulações” [grifos meus] (2000: 103).
Coutinho discute essa noção de democracia anterior de Paoli e Telles,
apesar de afirmar que, na atualidade, podem ser encontrados elementos
democráticos nas instituições brasileiras. Entretanto, como pensar
efetivamente em democracia no Brasil, enquanto os sujeitos não possuem
igual acesso a informação, enquanto práticas de usurpação de direitos
fundamentais são abstraídas da memória social e histórica do país e
enquanto estas se apresentam recorrentes, ainda hoje, no cotidiano das
instituições estatais?
Coutinho (1997) debate a contraposição entre “democracia burguesa”
e “democracia proletária”. Para o autor, seria um reducionismo pensar que
somente seria proletária a “democracia direta, participativa, baseada nos
conselhos ou sovietes (...) também os institutos da democracia
representativa tal como hoje existem – parlamentos eleitos por sufrágio
universal através do embate de partidos políticos de massa – são uma
conquista dos trabalhadores, ou, em outras palavras, são resultado de um
processo de lutas que ampliou o estreito horizonte teórico e prático do
liberalismo burguês originário” (p. 154-155).
13
Segundo o autor, a ampliação da cidadania constitui um “processo
progressivo e permanente de construção dos direitos democráticos que
caracteriza a modernidade – termina por se chocar com a lógica do capital”
(p. 158). Esse encontro, afirma Coutinho, é contraditório e acaba por
caracterizar o processo de recuo do próprio capitalismo, obrigando-o a
fazer concessões. Para o autor, existe uma tendência nesse processo: a
“ampliação progressiva das vitórias da economia política do trabalho sobre a
economia política do capital (para retomarmos a expressão de Marx), ou
seja, a introdução cada vez maior de novas lógicas não mercantis na
regulação da vida social” (p. 159).
De acordo com Coutinho, o antagonismo entre cidadania plena e
capitalismo remete a uma outra contradição: cidadania e a existência da
classe social4. Palavras do autor: “(...) só uma sociedade sem classes - uma
sociedade socialista pode realizar o ideal da plena cidadania, ou, o que é o
mesmo, o ideal da soberania popular e, como tal, da democracia” (idem).
Chauí (2006) observa que justamente pelo princípio da isonomia,
característico da versão não-liberal da democracia, é que se põe a
contradição da vigência da democracia em uma sociedade de classes: como
conciliar igualdade e liberdade com as desigualdades sociais?
A vigência da democracia plena no Brasil pode também ser
questionada por meio de algumas ações políticas dos recentes governos
brasileiros. Após 31 anos do golpe militar e 16 da aprovação da Lei da
Anistia, o Estado Brasileiro, por meio do governo Fernando Henrique
Cardoso, se “propôs” a resolver o caso dos mortos e desaparecidos
políticos5, decretando, em dezembro de 1995, a Lei nº 9.140, cuja principal
4 O limite entre as classes sociais representa uma barreira inegável para a afirmação da democracia. 5 Uma figura criada pela ditadura brasileira na década de 70 e utilizada por outros regimes
14
medida é o pagamento de indenização às famílias. O governo apresentou
esta proposta em decorrência da pressão de familiares e de entidades
nacionais e internacionais de Direitos Humanos. Assim, foi reconhecida
formalmente a responsabilidade da União pela morte de 136 desaparecidos
políticos entre o período de 02/09/1961 e 15/08/19796 e, posteriormente,
devido à resistência, foram incluídos na listagem prevista pela lei, aqueles
que durante o regime militar foram publicamente reconhecidos como
mortos7.
Entretanto, a Lei 9.140/95 apresentava três problemas
fundamentais: 1) eximia o Estado e seus agentes de responsabilizar-se pela
morte e desaparecimento dos opositores políticos no período do governo
militar; 2) não assumia a responsabilidade plena pela apuração das
circunstâncias das mortes e desaparecimentos, cabendo aos familiares
obter a documentação capaz de fornecer elementos para desvendar cada
caso. Dessa forma, recaía sobre as famílias o ônus da comprovação das
denúncias. Ademais, não determinava a abertura incondicional de todos os
arquivos do aparato repressivo daquela época, sob jurisdição do Estado; 3)
estabelecia a exclusão de muitos brasileiros que morreram lutando pela
liberdade, aceitando assim a versão difundida pela ditadura militar, não
ditatoriais da América Latina. São considerados desaparecidos políticos as pessoas desaparecidas em virtude de envolvimento, ou acusação de envolvimento, em atividades políticas. A referência se dá em relação aos que militavam no período do regime ditatorial. 6 Segundo o Relatório Azul, publicação anual da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos, 283 formas de tortura foram utilizadas pelo regime militar entre 1964 e 1979, este último, o "ano da Anistia". O Relatório também apresentou que 1.918 presos políticos disseram ter sofrido algum tipo de tortura nesse período. RONIGER, Luis; SZNAJDER, Mario. O Legado de Violações dos Direitos Humanos no Cone Sul. Tradução: Margarida Goldsztajn. São Paulo: Perspectiva, 2004. 7 Ainda em relação ao número de militantes assassinados em nome da Doutrina de Segurança Nacional e não contemplados pela lei, estão: os mortos em tiroteios e emboscadas; os brasileiros desaparecidos em outras ditaduras latino-americanas (139 no Brasil, 7 na Argentina, 5 no Chile e 1 Bolívia); e os opositores argentinos desaparecidos no Brasil após o ano de 1979.
15
contemplando todos os opositores do regime assassinados por agentes da
repressão, ou mesmo, os “desaparecidos” no período de 1979 a 1985.
A Lei 9.140/95 trazia em seu bojo uma importante questão: a das
indenizações8. “Círculos militares e a própria mídia têm tentado reduzir a
luta pelo reconhecimento do que ocorreu nos anos 60 e 70 a uma simples
indenização” (COIMBRA, 1997). Isto já era previsto pelo fato de as
próprias fontes governamentais priorizarem as indenizações, em detrimento
do esclarecimento das circunstâncias dos assassinatos e mortes cometidos
pelos agentes da repressão – como, onde, quando e por quem. Além deste
aspecto, estão os atestados de óbito, que seriam um não-reconhecimento,
pois não contêm informações caracterizadoras das mortes. Os dados foram
fornecidos pelos próprios familiares, e esses atestados não esclarecem
como se deram as mortes, nem os locais onde foram enterrados.
Em todos os anos de luta contra a barbárie engendrada pelo regime
militar brasileiro, em nenhum momento fora solicitado por familiares e
entidades algum tipo de reparação pecuniária pela perda sofrida ou mesmo
pelas perseguições e humilhações. Para Coimbra (1997), a indenização é um
direito, pois dentro do sistema capitalista é por meio dela que o Estado
reconhece sua responsabilidade. Porém, para a autora, representa apenas
um efeito. Nesse sentido, a luta teria como objetivo o total esclarecimento
8 O governo argentino oferece 240 mil dólares por cada desaparecido político. A posição das Mães da Praça de Maio quanto a esse mecanismo é de oposição total. “Nós, as mães, não aceitamos a reparação econômica, ninguém vai colocar preço na vida de nossos filhos. De nenhum jovem, não tem dinheiro que pague uma vida (...) pretendem que a vida de nossos filhos tenha um preço (...) Há 30 mil que estão na lista dos desaparecidos, que levaram de nossas casas, comparar um filho com uma geladeira” (Hebe Bonafini: 2001). Quanto às famílias brasileiras, atingidas pelo Estado militarizado repressor, diferentes posicionamentos foram observados acerca da referida lei. A filha de um opositor assassinado pelo regime e considerado como morto aceita a indenização como algo positivo, mas insuficiente: “com esse projeto, com a indenização que eles ofereceram eu me sinto humilhada e porque eu acho que a gente tá nesse sistema capitalista e o que incomoda é dinheiro. Então eu acho que pra me indenizar, tem que ser muito dinheiro, alguma coisa que incomode, entendeu? O dinheiro que eles deram foi um cafezinho, entendeu?” .
16
dos crimes cometidos pelos agentes do Estado.
O Brasil e outros países têm obrigações a serem cumpridas perante
os organismos internacionais, por terem ratificado Convenções, Tratados e
Pactos de respeito aos direitos humanos.
Entre as recomendações proferidas recentemente pelo Relator das
Nações Unidas, está a de que “as mais altas lideranças políticas federais e
estaduais precisam declarar de forma inequívoca que não tolerarão a
tortura ou outras formas de maus tratos por parte de funcionários públicos
(...)” (TORTURA NO BRASIL, 2004)9.
Após a visita do Relator Especial da ONU e a publicação de seu
relatório, o governo brasileiro sob a presidência de Fernando Henrique
Cardoso, lançou o Plano Nacional de Combate à Tortura, em 2001. Também
foi lançada a Campanha Nacional Contra a Tortura10, por meio de um
9 O Relator das Nações Unidas sobre Tortura, na época sir Nigel Rodley, esteve no Brasil em 2000, convidado pelo governo nacional, entre os dias 20 de agosto e 12 de setembro. O Relator visitou Brasília e cinco capitais do país: São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco e Pará.. Em todas as visitas, com exceção da primeira, sir Rodley conheceu instituições carcerárias, centros de detenção - pré-julgamento e para meninos em conflito com a lei - e ainda penitenciárias (2004). 10 Segundo a denúncia da diretoria do GTNM/RJ: “(...) operação de marketing preparada e agora montada pelo governo brasileiro – através da Campanha Nacional Contra a Tortura – para favorecer sua imagem de defensor dos direitos humanos dentro do país e fora dele”.. O Grupo Tortura Nunca Mais/RJ ainda relembra o episódio: “Já em 1989, o Brasil assinava a Convenção Contra a Tortura da ONU, tendo que entregar, no ano seguinte, um Relatório sobre a situação desta prática em nosso país. Somente dez anos depois, em 2000, este documento foi encaminhado para as Nações Unidas. Naquele mesmo ano, pressionado internacionalmente pelas entidades de direitos humanos devidos às torturas que ocorriam cotidianamente no país, o governo federal convidou para visitar o Brasil, o Relator Especial da ONU Contra a Tortura. O Relatório Rodley, tornado público em abril de 2001, faz uma série de recomendações ao governo brasileiro, afirmando que o uso da prática da tortura no país é ‘generalizado e sistemático’. A partir daí, o governo FHC iniciou a montagem de sua operação de marketing anunciando uma Campanha Nacional Contra a Tortura” (Campanha Nacional Contra a Tortura: qual o propósito? GTNM/RJ–www.torturanuncamais-rj.org.br). O GTNM/RJ ainda fez importante denúncia: “Com o objetivo de dar legitimidade e credibilidade a esta Campanha o governo tentou seduzir e cooptar algumas importantes entidades brasileiras de direitos humanos. Entendemos que tal fato é extremamente perigoso e nefasto, pois com isto se está servindo e respaldando um governo que tem
17
convênio entre o Ministério da Justiça – Secretaria de Estado dos Direitos
Humanos – e a Sociedade de Apoio aos Direitos Humanos, órgão de
representação do Movimento Nacional dos Direitos Humanos (MNDH). A
Campanha teve como objetivo “implantar uma Rede Nacional de Combate à
Tortura e uma Central Nacional, (...) encarregada de receber e tratar os
casos de tortura e tratamento cruel, desumano e degradante, repassando-
os às Centrais Estaduais, que ficaram responsáveis por dar andamento às
denúncias perante as autoridades, articulando esforços para garantir apoio
e proteção às vítimas, testemunhas e suas famílias” (TORTURA NO
BRASIL, 2004).
Na época de seu lançamento, algumas entidades de direitos humanos
e combate à tortura criticaram o Governo, sinalizando que a iniciativa seria
marketing de quem vinha sistematicamente violando normas e tratados
ratificados pelo Brasil. Ainda salientavam que o SOS Denúncia tiraria do
Estado a responsabilidade da denúncia, investigação e punição, pois caberia
ao indivíduo a denúncia do crime de tortura11.
Outras questões foram levantadas. Segundo o Movimento Nacional de
demonstrado não só ineficácia na área dos direitos humanos, como sua falta de vontade política para pensar seriamente sobre estas questões” (idem).
11 “O S.O.S. Tortura, espetacularmente veiculado nos meios de comunicação de massa, responsabiliza o indivíduo – afetado ou não – pela denúncia do crime de tortura, não provendo meios de controle sobre tal prática. Assim, retira do Estado e de seus agentes o ônus da denúncia e mesmo da investigação e penalização desse crime” (Campanha Nacional Contra a Tortura: qual o propósito? GTNM/RJ– www.torturanuncamais-rj.org.br). No Brasil, existe uma lei específica sobre a tortura: a Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997, conhecida como “Lei da Tortura”:“constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa e c) em razão de discriminação racial ou religiosa” (...) submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo” (...) Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal” (§ 1º).
18
Direitos Humanos – MNDH –, o Ministério Público apresentou uma grande
resistência em receber as denúncias, visto que eram anônimas, logo,
incompletas. O Programa de Capacitação de Operadores de Direito para a
Prevenção da Tortura (voltada para integrantes do Judiciário, Defensorias
e Ministério Público) também não foi implementado.
O Governo Luís Inácio Lula da Silva, com início no ano de 2003,
embora tenha apresentado elementos mais progressistas, inclusive com a
presença de sujeitos da história de resistência do período ditatorial no mais
alto escalão de representação do governo, persistiu na mesma lógica do
governo anterior, do pacto entre as elites12.
O então Secretário Especial de Estado de Direitos Humanos,
Nilmário Miranda, no governo Luís Inácio Lula da Silva, afirmou a sua
pretensão de erradicar a tortura no Brasil. Na Resolução Nº 10, de
fevereiro de 2003, foi criada uma Comissão Especial, inserida no Conselho
de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, a fim de acompanhar denúncias e
formular sugestões. Em um período posterior, pela Resolução Nº 29, foi
12 O governo de Luís Inácio Lula da Silva assinou o Decreto nº 4.850, de 02 de outubro de 2003, instituindo uma Comissão Interministerial com o objetivo de adquirir informações que levem apenas à localização dos restos mortais de participantes da Guerrilha do Araguaia. Decisão que já se anunciava quando a Advocacia Geral da União recorreu da sentença histórica dada pela juíza federal, Dra. Solange Salgado, que determinou a abertura de todos os arquivos das Forças Armadas, inclusive a intimação dos militares de quaisquer patentes envolvidos para prestarem depoimento. Apesar das insistentes solicitações dos familiares de mortos e desaparecidos políticos, o governo federal continuou a afirmar o seu posicionamento de não-esclarecimento dos acontecimentos ocorridos durante o regime militar. A Comissão Interministerial representou um retrocesso na luta pelo direito à justiça e à verdade dos fatos, estruturalmente governamental - sem a presença de representantes da sociedade civil; enquanto outros países latino-americanos que passaram por ditaduras militares também sangrentas, instalam comissões com maior independência do Estado e transparência. A comissão totalmente sigilosa – selecionando os fatos que poderiam ter visibilidade pública - reproduz uma prática adotada durante o tempo em que os militares se encontraram no poder.
19
criado o Grupo Móvel13, que se deslocaria a instituições policiais, prisionais
e unidades de cumprimento de medidas sócio-educativas a partir de
denúncias de prática de tortura, para tomar depoimentos de vítimas,
testemunhas e realizar entrevistas com os próprios policiais e com agentes
penitenciários”14.
Em junho de 2003, foi assinado o Protocolo de Ação Contra a
Tortura, com o intuito de estabelecer um pacto de combate à tortura no
território nacional: entre o Superior Tribunal de Justiça; a Procuradoria
Geral da República, Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão;
Ministérios Públicos dos Estados representados pelo Conselho Nacional de
Procuradores Gerais de Justiça; Ordem dos Advogados do Brasil; Ministério
da Justiça e Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da
República, entre outros (TORTURA NO BRASIL, 2004).
O Protocolo previu a criação de oficinas de trabalho, onde seriam
trocadas experiências e se constituiriam espaços multi e interdisciplinares.
Porém, o Protocolo somente reiterou os acordos firmados na Campanha
Nacional Contra a Tortura.
A Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da
República – SEDH/PR, por meio da Portaria nº. 102/2005, instituiu a
Comissão Permanente de Combate à Tortura e à Violência Institucional. A
Comissão é composta por servidores da Ouvidoria-Geral da Cidadania e da
Coordenação-Geral de Combate à Tortura.
Dentre as ações pretendidas pela Comissão estão: a realização de um
módulo sobre direitos humanos e tortura para ser aplicado em escolas de
formação de policiais e de agentes penitenciários, incluindo cursos de
13 Segundo o Relatório Tortura no Brasil, até o momento de sua publicação, o Grupo Móvel “não teve a atuação relevante que a gravidade do problema requer” (2004:18). 14 Disponível em: www.presidencia.gov.br/sedh. Acesso em: 12 Mai 2006.
20
capacitação para os instrutores policiais e penitenciários; a criação de um
Disque Direitos Humanos, aproveitando os avanços alcançados pelo SOS
Tortura e corrigindo suas falhas, analisando a experiência do Disque Abuso
e Exploração Sexual e de sistemas semelhantes de recebimento e
encaminhamento de denúncias e reclamações sobre as instituições do
Sistema de Justiça Criminal existentes em outros países; a ratificação do
Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e
outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotado
pela Assembléia Geral da ONU em 18 de dezembro de 2002, assinado pelo
Brasil, mas ainda não ratificado (TORTURA NO BRASIL, 2004).
Nessas medidas, incluem-se também ações voltadas para a
responsabilização de agressores: a criação de ouvidorias independentes
para receber denúncias de tortura e acompanhar as investigações; a criação
de corregedorias específicas do Sistema Policial e do Sistema Penitenciário;
a capacitação dos profissionais da saúde que atuam no sistema prisional para
o registro e encaminhamento legal dos casos de tortura e de maus tratos a
que forem submetidos os presos; a adoção de medidas que tornem mais
rápidas as apurações das denúncias de tortura e maus tratos e que levem à
demissão do pessoal envolvido (ibidem)15.
O campo dos direitos humanos avança: iniciativas surgem a partir da
articulação e pressão de movimentos que pressionam o Estado. Entretanto,
alguns setores da sociedade, em sintonia com outros pólos da opinião
pública,
ainda tratam a questão dos direitos humanos com um discurso
extremamente conservador e estigmatizante. Portanto, são necessários
intensos estudos comprometidos com o desvelamento do processo histórico
15 As medidas que a Comissão pretende implementar são amplas e demandam um trabalho a longo prazo, por essa razão, ainda não é possível realizar uma avaliação.
21
de constituição e perpetração do fenômeno da violência, ressaltando a
questão dos direitos humanos como uma conquista gerada pelas lutas sociais.
O crescimento da sociedade civil, como espaço de busca e efetivação
de direitos, tem polemizado a discussão em torno do papel do Estado e seus
investimentos no cenário público. Observa-se que a maioria das organizações
que abarca o tema dos direitos humanos ainda se limita à denúncia de
violação dos direitos civis e políticos, o que é absolutamente necssário,
conquanto insuficiente.
Segundo Acanda (2006), a sociedade civil é apresentada como a
“terra prometida, a solução de todos nossos problemas, um espaço no qual
existem e se desenvolvem, de forma espontânea, apenas boas qualidades.
Sua simples menção funciona como uma invocação mágica capaz de exorcizar
as potências do Mal, dissipar as angústias e convocar todas as forças
positivas contidas no social” (p. 16). O autor destaca, a partir da obra de
Adam Seligman (The Idea of Civil Society. Nova York: The Free Press,
1992), três usos da idéia de sociedade civil. O primeiro seria a sua
utlilização como slogan político; o segundo é o seu uso como conceito
sociológico referente a formas de organização social; o terceiro como
conceito filosófico vinculado à esfera dos valores e das crenças.
Acanda (2006) afirma que as experiências da luta política fizeram
com que estudiosos da América Latina questionassem o conceito de
sociedade civil. Segundo o autor, considera-se a importância de seu uso no
que concerne à mobilização de setores sociais, mas rejeita-se a sua
utilização como instrumento teórico. De acordo com o mesmo: “(...) o fato de
prevalecer a interpretação neoliberal, que identifica a sociedade civil com
as relações de mercado, faz sua utilização ocultar o caráter específico dos
22
conflitos sociais das últimas décadas na América Latina (p. 38)16.
Acanda (2006) traz também a discussão sobre o fortalecimento da
ideologia dominante por meio de alguns sentidos incorporados ao discurso da
sociedade civil. Primeiramente, a contraposição mecanizada Estado-
sociedade civil pretende que a emancipação social seja somente possível
fora do Estado; o emprego da noção “sociedade civil” quando encobre
fenômenos determinantes como, por exemplo, a existência de classes
sociais; e por fim, um outro aspecto significativo seria que a “personificação
privilegiada” da sociedade civil, as ONGs - consideradas por muitos como o
espaço puro, livre da influência do Estado – mascaram o seu real interesse
(instrumentos do grande capital ou comprometidas com as organizações
populares). Assim, percebe-se como a concepção de sociedade civil pode ser
utilizada tanto para justificar um Estado cada vez mais restrito no que diz
respeito aos direitos sociais quanto para designar um espaço de busca por
ampliação de direitos.
“[a expressão sociedade civil] disseminou-se largamente, colando-
se ao senso comum, ao discurso político e ao imaginário das
sociedades contemporâneas: empregam-na tanto a esqueda
histórica quanto as novas esquerdas, tanto o centro liberal quanto
a direita fascista” (NOGUEIRA, 2004: 216)17.
16 Nesse sentido, Acanda (2006) ressalta que as ditaduras militares perpetradas nessa região não se empenharam para eliminar todas as associações independentes do regime, somente aquelas que expressavam os interesses dos “setores mais pobres”. 17 Nogueira (2003) problematiza três concepções de sociedade civil: a gramsciana, um espaço de embates direcionado política e eticamente, de formação de vontades coletivas e de construção de projetos societários globais; a sociedade civil liberal, privada e oposta ao Estado; e por fim, a sociedade civil social, de orientação supra-estatal, em que há um choque entre o social e o institucional, pois acredita-se na sua “ética superior”, o que leva também a um distanciamento do Estado. NOGUEIRA, Marco Aurélio. As três idéias de sociedade civil, o Estado e a politização. In: Ler Gramsci, entender a realidade. COUTINHO, C.N.; TEIXEIRA. A. de Paula (Org.) Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 215-233.
23
Ao campo dos direitos humanos, assim como ao debate da sociedade
civil é atribuída uma polissemia de sentidos: esfera dos direitos universais e
indivisíveis; configuração dos direitos civis e políticos ou dos direitos
econômicos, sociais e culturais; justificativa por parte de alguns setores da
sociedade brasileira para o aumento da violência na contemporaneidade;
dentre diversas outras interpretações.
Contudo, o poder público que deveria zelar pelo cumprimento dos
compromissos firmados pelas inúmeras convenções e tratados ratificados
pelo Brasil, ao longo de sua história, atua como agente violador dos próprios
direitos humanos.
Autoridades políticas reforçam as práticas de tortura ou outras
formas de maus tratos por parte de funcionários públicos. O prefeito do Rio
de Janeiro, César Maia, defendeu em fevereiro de 2003, em notícia
veiculada pelo jornal “O Globo”, que a polícia “matasse quem tivesse que
matar”, afirmando ainda: “o bandido tem que ter medo da polícia, deve-se
pensar em direitos humanos para os que respeitam a lei”18.
Para Coimbra (2001: 61):
“(...) cotidianamente, os meios de comunicação nos fazem
crer que se a grande massa excluída de nossa população age
diferentemente das elites é porque vive e, portanto, pensa,
percebe e sente diferentemente de nós. Por isso não pode
receber o mesmo tratamento”.
A sensação permanece nos corações e mentes: são violados, de forma
18 Segundo a fala de um leitor do jornal O Estado de São Paulo, na década de 90: “O Brasil se transformou numa verdadeira lata de lixo e, para limpá-la, são necessários garis especiais”. Grifos originais (apud Coimbra, 2001: 105).
24
sistemática e bastante cruel, direitos de seres humanos. Segundo a ótica de
alguns setores da sociedade, estes perdem a sua condição humana por
ocuparem um determinado território, por situarem em uma determinada
classe social, por infringirem a lei ou mesmo por seu pertencimento étnico-
racial. Essas características se aliadas, tornam-se perfeitas para justificar,
perante as subjetividades dominantes, o seu extermínio.
O então secretário de Segurança Pública do Estado do Rio de
Janeiro, Anthony Garotinho, em maio de 2003, “comemorou a morte de mais
de cem criminosos antes de completar 15 dias no cargo e prometeu
endurecer ainda mais com os bandidos” (TORTURA NO BRASIL, 2004: 20).
Na mesma época, o secretário “convidou para assumir o mando do 22º
Batalhão da Polícia Militar (BPM) (...) um Tenente Coronel que fora
condenado a 1 ano e 10 meses – com direito a gozar a pena em liberdade –
por comandar uma sessão de espancamento na Cidade de Deus, Zona Oeste
do Rio de Janeiro, num episódio que ficou conhecido como ‘Muro da
Vergonha’” (idem).
A concepção de segurança pública acima reflete a questão da
segurança tratada como uma guerra a ser travada contra o crime. A polícia,
que detém o monopólio da violência governamental, deve introjetar a noção
de inimigo e, conseqüentemente da necessidade de exterminá-lo. Observa-
se aí uma inversão da função da polícia, que de administradores de conflitos
passam a ser juízes, pois decidem quem deve morrer ou sobreviver nessa
“guerra” cotidiana.
O discurso recorrente é de que os defensores dos direitos humanos
são considerados defensores de “bandidos”, uma das estratégias de
descaracterizar a militância pelos direitos humanos. Esta associação teve
25
sua origem durante o governo Leonel Brizola19, especialmente difundida no
estado do Rio de Janeiro, pela tentativa do governo de implementar
políticas que visavam à humanização das prisões. Esta associação remete
também à relação estabelecida na sociedade entre violência e pobreza. O
argumento depreciativo utilizado serve como justificativa de casos de
intimidação e agressão desses defensores. Nesse quadro, passam a ser
atingidos pelo estigma de que são alvos aqueles que defendem, ou seja, além
das violações serem naturalizadas pela sociedade20, uma “segunda” violação
é permitida: a direcionada aos sujeitos que lutam contra a impunidade.
“A população considera que “métodos humanitários e o respeito à
lei por parte da polícia contribuíram para o aumento do crime (...)
[e] tem exigido punições mais pesadas e uma polícia mais violenta
e não direitos humanos” 21(Caldeira, 2000: 349).
19 O livro “Elite da Tropa” relata sobre o plano de assassinar Leonel Brizola, idealizado por alguns membros do BOPE – Batalhão de Operações Policiais Especiais. Em um dos diálogos transcritos na obra, retrata-se o momento em que um dos membros pensa em desistir: “- (...) meu caro, sendo missão de segurança máxima, quem hesitar, dança. Não vamos recuar nem aceitar defecções. Qualquer defecção será tratada como alta traição. Você sabe muito bem o que isso significa” (grifos meus). SOARES, Luiz Eduardo; BATISTA, André; PIMENTEL, Rodrigo. Elite da Tropa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. 314 p. 20 Conforme levantamento realizado em 1997, pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER) e pelo instituto independente de pesquisa Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro constatou que 63,4% dos brasileiros entrevistados acreditam que os criminosos são indivíduos que perderam os respectivos direitos por não respeitarem os direitos alheios. Cerca de 40% dos entrevistados consideram aceitável o uso de tortura pela polícia para obter confissões de suspeitos e número idêntico considera o linchamento de supostos transgressores errado mas compreensível. 21 Caldeira na sua obra “Cidade de Muros – crime, segregação e cidadania em São Paulo” aborda sobre o aumento da violência na cidade, o fracasso das instituições estatais frente ao seu combate e a criação de novas formas de discriminação social. A autora, em um dos capítulos do livro, faz uma discussão sobre a concepção dos direitos humanos como privilégio de bandidos. A obra ainda faz referência ao episódio ocorrido em 1992 na “Casa de Detenção”, onde uma grande parcela da sociedade apoiou a ação sanguinária do Estado.
26
A associação imediata entre violência e pobreza tem como um de seus
pressupostos a idéia de que moradores de periferia ou de baixa renda
possuem uma aliança direta ou indireta com o narcotráfico. Essa vinculação
obscurece a cumplicidade de setores significativos do Estado -
representado pelos seus agentes -, “incluindo o aparato de segurança
pública e o Judiciário, com os sistemas de corrupção política e financeira”
(ALMEIDA, 2004:56).
O estudo elaborado pelo Centro de Estatística Religiosa e
Investigações Sociais – CERIS - diz que não há consistência analítica nos
argumentos que conectam criminalidade e pobreza. Alguns estudos
priorizam a questão: a violência, nesse sentido, é isolada e focalizada nas
áreas pobres, o que contribui para a sustentação de hipóteses
mistificadoras (ALMEIDA, op. cit.).
O estigma imputado às classes consideradas perigosas acaba por
repercutir na vida desses sujeitos: nos seus processos de subjetivação, ao
internalizarem sua “condição” inferiorizante; na sua auto-
apresentação/representação como portadores de direitos ou não; e também
nas suas possibilidades de circulação entre as diversas instâncias da
sociedade.
Os casos de violação dos direitos humanos são, em especial, apoiados
por setores expressivos da sociedade, quando se trata de pessoas
empobrecidas ou com um dado pertencimento étnico-racial. A questão da
vinculação ao trabalho também representa um elemento significativo; os que
estão inseridos no mercado de trabalho - embora carreguem consigo as
características anteriormente abordadas - possuem uma maior
“credibilidade” por parte da sociedade, entretanto, não perdem sua
condição de possíveis suspeitos (COIMBRA, 2001).
Entretanto, é preciso não absolutizar todas as tentativas de defesa
27
dos direitos humanos. Seria importante atentar para o fato de que algumas
iniciativas pela defesa dos direitos humanos ao não se articularem com
estratégias mais globais, universais, acabam, muitas vezes, por fragilizar
esse campo ou mesmo por representar ações conformadas pelo heroísmo
(Almeida, 2004). Relações precárias de trabalho nesse campo ou mesmo
práticas voluntaristas, solidárias e heróicas podem fragilizar ainda mais os
setores que “vivem e lutam no tênue limite entre a banalização da vida e a
naturalização da morte” (ALMEIDA, 2004: 63).
De acordo com Coimbra (2001: 91):
“Os pobres considerados ‘viciosos’, por sua vez, por não
pertencerem ao mundo do trabalho – uma das mais nobres
virtudes enaltecida pelo capitalismo – e viverem no ócio, são
portadores de delinqüência, são libertinos, maus pais e vadios.
Representam um ‘perigo social’ que deve ser erradicado;
justificam-se, assim, as medidas coercitivas, já que são criminosos
em potencial. Essa periculosidade também está presente nos
‘pobres dignos’, que por força da sua natureza – a pobreza –
também correm os riscos das doenças”.
Os que se posicionam contra os direitos humanos apóiam-se em
categorias e estigmas, “articulam seus discursos com base nas categorias
estereotipadas associadas à oposição do bem contra o mal” (idem). Para a
autora em questão, estes sujeitos utilizam algumas estratégias. Uma delas
seria a construção simbólica do criminoso como ser perverso, a “essência do
mal”, desprovido de qualquer condição humana22.
22 Nos exercícios diários, o Batalhão de Operações Policiais Especiais – BOPE – enaltece seus “cantos de guerra”: “‘Homem de preto, qual é sua missão? É invadir favela e deixar corpo no chão’ ‘Você sabe quem eu sou? Sou o maldito cão de guerra. Sou treinado para matar. Mesmo que custe minha vida, a missão será cumprida, seja ela onde for – espalhando violência, a morte
28
Após o fim da ditadura militar, as práticas de tortura no Brasil
passaram a ser, em grande parte, direcionadas a pessoas de baixa-renda,
moradoras de regiões menos favorecidas, de origem afro-brasileira23 ou
indígena24.
Segundo a fala de Afanasio Jazadji, um dos radialistas mais
e o terror’. ‘Sou aquele combatente, que tem o rosto mascarado; uma tarja negra e amarela, que ostento em meus braços me faz ser incomum: um mensageiro da morte. Posso provar que sou forte, isso se você viver. Eu sou (...) herói da nação’ ‘Alegria, alegria, sinto no meu coração, pos já raiou um novo dia, já vou cumprir minha missão. Vou me infiltrar na favela com meu fuzil na mão, vou combater o inimigo, provocar destruição’ Se perguntas de onde venho e qual é minha missão: trago a morte e o desespero. E a total destruição’ ‘Sangue frio em minhas veias, congelou meu coração, nós não temos sentimentos, nem tampouco compaixão, nós amamos os cursados e odiamos pés-de-cão’. Cursados são os próprios membros do BOPE; pés-de-cão são os policiais militares comuns. ‘Comandos, comandos e o que mais vocês são? Somos apenas malditos cães de guerra, somos apenas selvagens cães de guerra’”. SOARES, Luiz Eduardo; BATISTA, André; PIMENTEL, Rodrigo. Elite da Tropa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. As “canções” acima demonstram a barbárie que reina na Polícia Militar. Sem ética nenhuma e sem uma política pública de segurança efetiva, ficamos entregues a esses sujeitos que, na imensidão de sua ignorância e de seu próprio abandono, carregam sua “filosofia” de guerra: é matar ou morrer. 23 “Conforme levantamento da população carcerária realizado em São Paulo, cujo documento foi fornecido pela FUNAP (Fundação de Amparo ao Preso) – órgão vinculado à Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo -, a maior parte da população carcerária é constituída por não-brancos. Desta pesquisa, baseada no censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2000, destaca-se que a população do Estado de São Paulo é 70% constituída por brancos e na proporção de 30%, não-brancos. Ainda que a grande maioria da população do estado seja composta por brancos, aproximadamente 47% dos homens e mulheres presos são brancos, enquanto que aproximadamente 53% dos homens e mulheres presos são não-brancos. Tendo em vista que as torturas são praticadas no país, via de regra, na população sob custódia do Estado, pode-se destacar que esta prática teria principal incidência sobre a população negra ou parda” (TORTURA NO BRASIL, 2004).
24 Relatório elaborado por entidades de defesa dos direitos humanos - iniciativa do dhInternacional, parceria do MNDH - Movimento Nacional de Direitos Humanos - com o GAJOP – Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares, 2001. O Programa dhINTERNACIONAL é uma iniciativa do MNDH e do GAJOP, com o intuito de proporcionar o acesso às entidades de direitos humanos do Nordeste brasileiro aos sistemas global e interamericano de proteção dos direitos humanos. Disponível em: www.gajop.org.br . Acesso em: 01 dez. 2006.
29
populares de São Paulo:
“Tinha que pegar esses presos irrecuperáveis, colocar todos num
paredão e queimar com lança-chamas (...) Eles não têm família,
eles não têm nada, não têm com que se preocupar, eles só pensam
em fazer o mal; e nós vamos nos preocupar com eles? (...) esse tipo
de gente... gente? Tratar como gente!, estamos ofendendo o
gênero humano!” (Programa na Rádio Capital em 25 de abril de
1984).
Uma outra tentativa de deturpar a luta pelos direitos humanos é a
responsabilização do processo de democratização pelo aumento da violência.
Seria pertinente mencionar que enquanto a legalidade do Estado Repressor
caía por terra, cresciam os organismos de perpetuação da violência privada
como os esquadrões da morte, aparentemente não-estatais25.
Os defensores dos direitos humanos se voltam também para as
tentativas de reformar os sistemas penitenciário e judiciário. Uma grande
parcela dos que se contrapõem à defesa ignoram a ordem legal e legitimam a
vingança privada, travada por grupos de extermínio, os abusos de
autoridade, ou mesmo, as execuções sumárias por parte das autoridades
policiais, como também ações violentas de sujeitos individuais26.
A Representante do Alto Comissariado das Nações Unidas para
Execuções Sumárias, a Sra. Asma Jahangir, em missão oficial no Brasil em
outubro de 2003, confirmou a participação dos policiais em crimes com teor
25 Para uma leitura sobre os esquadrões da morte, consultar a passagem da obra de Huggins, Haritos-Fatouros e Zimbardo (2006: 164). 26 Nesse quadro, encontramos setores da sociedade brasileira favoráveis à aplicação da pena de morte no país. Na tensão existente entre pena de morte e direitos humanos, existem duas visões da punição, como afirma Caldeira (2000). Segundo a autora, a primeira abrangeria a lei, o sistema judiciário e a justiça. A segunda teria como perspectiva a vingança privada, em que a dor seria protagonista na aplicação da punição, tendo como justificativa a ineficiência do sistema judiciário.
30
de violência e até a sua inserção em grupos de extermínio. Segundo a
mesma, no Brasil:“a polícia mata e goza da maior impunidade”.
Para compreendermos os mecanismos de legitimação dessas ações,
faz-se necessário elucidarmos algumas representações acerca dos
instrumentos propagadores da violência. A banalização da dor leva à
discussão dos métodos de tortura utilizados para a obtenção das
“confissões”. A tortura é relacionada à verdade, uma “técnica” eficiente de
produzir resultados frente a outras, que seriam consideradas ineficientes.
Nesse quadro, a violação dos direitos humanos é considerada mecanismo de
conhecimento e manutenção da ordem.
“Mas espera um pouquinho: o que é tortura, e o que é que vocês
esperam da polícia? A polícia não tem bola de cristal (...) Você tem
que tirar aquilo de uma forma ou de outra (...) Como é que você faz
pra tirar a verdade do cara? Não existe. É na pancada, mesmo!
Não existe persuasão, não existe interrogatório, não existe, não
existe (...) Então veja só, existe a tortura, mas existe mesmo. Ela,
infelizmente, é necessária” (AFANASIO JAZADJI em entrevista
no dia 20 de dezembro de 1990).
Como salienta Caldeira, a aceitação do uso da dor pauta-se na
centralidade do corpo na punição, sendo utilizada em práticas disciplinares
contra os possíveis criminosos e também contra as categorias que
necessitam de um “controle especial”, os “subalternos”, principalmente as
crianças, as mulheres, os pobres e os loucos.
Para Caldeira (2000:375), “por meio da punição violenta e do crime, os
brasileiros articulam uma forma de resistência às tentativas de expandir a
democracia”. A fala da autora faz referência à insurgência dirigida ao
primeiro governador eleito em São Paulo após o fim da ditadura, em que
31
foram realizados ataques violentos contra os direitos humanos.
Destaca-se aqui a fala de Caldeira (2000:375):
“A elaboração do preconceito na fala do crime, a recriação
simbólica de desigualdades, (...) o apoio à violência policial e às
medidas privadas e ilegais de lidar com o crime, a construção de
muros na cidade, o enclausuramento e o deslocamento dos ricos, a
criação dos enclaves fortificados e as mudanças no espaço público
rumo a padrões mais explicitamente separados e não-
democráticos, o desrespeito aos direitos humanos e sua
identificação com “privilégios de bandidos” e a defesa da pena de
morte e das execuções sumárias são todos os elementos que vão
na direção oposta e muitas vezes contestam a democratização e a
expansão de direitos”.
Portanto, pode-se observar que assim como foi engendrada uma
resistência contra as práticas violentas protagonizadas pelos militares e que
resultou na constituição do campo dos Direitos Humanos no Brasil, foram
também produzidas, na história político-social brasileira, tentativas de
impedir a democratização do país, buscando-se retroceder às conquistas
efetuadas a partir das lutas sociais. Isso pode ser claramente observado
nos discursos conservadores, com o intuito de modificar a legislação
existente, assim como na descaracterização da luta pela defesa dos direitos
humanos.
Em muitos países, homens, mulheres e crianças "desapareceram",
depois de detidos oficialmente. Outras pessoas foram assassinadas, sem
disfarce algum de legalidade: foram "escolhidas" e mortas por agentes de
seu próprio governo. Tais abusos – que ocorrem em diversos países – exigem
uma resposta internacional. A Anistia Internacional, assim como outras
organizações contemporâneas que vislumbram a defesa dos Direitos
32
Humanos, contribuem para formar um campo de tensão, ou porque não, de
pressão, viabilizando alguns avanços no que diz respeito à efetivação desses
direitos. A Anistia, como uma organização transnacional, contribuiu para a
denúncia das práticas fortalecidas e oficialmente utilizadas durante o
regime ditatorial e sua atuação estende-se até os dias atuais.
O debate travado no campo dos direitos humanos não se restringe ao
âmbito nacional. A partir da publicização e da transposição das fronteiras
no que diz respeito às denúncias de violação dos direitos humanos, a
concepção originária do direito internacional vem sofrendo transformações,
como “direito exclusivo dos Estados e suporte da soberania nacional”
(GÓMEZ, 1997: 33). Dessa forma, os indivíduos, governos e organizações
têm sido submetidos a novos sistemas de regulação formal que transcendem
o Estado-Nação. Com essas mudanças, põe-se o questionamento da
soberania do Estado no debate político mundial, e nesse intuito, a temática
dos direitos humanos ganha centralidade por ser uma questão global, que
ultrapassa fronteiras e territórios nacionais.
Nesse processo, o campo dos direitos humanos vem ganhando espaço
no contexto internacional, sendo legitimado, progressivamente, através da
sua normalização no plano jurídico-formal. Representam marcos
fundamentais desse processo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos
das Nações Unidas (1948), a Convenção Européia para a Proteção dos
Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (1950) assim como as
conferências realizadas desde então, em especial a II Conferência Mundial
de Viena (1993), em que foi reafirmada a universalidade, indivisibilidade e
interdependência dos direitos humanos.
Fontana (2004), ao pensar na relação entre a história e as classes
dominantes, afirma que os governos sempre tentaram controlar a produção
historiográfica e os próprios conteúdos históricos transmitidos pelo ensino.
33
O autor traz a noção das “guerras da história” e defende que as classes
dominantes não temem a história, mas procuram difundir o “tipo de história
que lhes convém” (p. 343).
Fontana (ibidem) tenta reconstruir uma concepção historiográfica
que não se paute em uma concepção linear da evolução humana, recuperando
assim a memória coletiva, que na totalidade histórica desempenhou funções
sociais, muitas vezes contraditórias: legitimar a ordem política e social
vigente, assim como preservar as esperanças coletivas pela própria ordem
estabelecida.
A história que é contada e propagada no decorrer dos tempos sempre
irá representar uma versão, ou seja, nunca terá completa veracidade. A
manipulação da história por parte de alguns setores da sociedade será
sempre “necessária” para fundamentar a sua legitimação ou mesmo a sua
supremacia, no sentido do pensamento de Gramsci - termo que unifica
hegemonia e dominação, consenso e coerção, direção e ditadura. Nesse
sentido, a ocultação faz-se necessária para que alguns fatos não cheguem ao
conhecimento de outros setores, também protagonistas dessa “mesma”
história.
CAPÍTULO 1- HERANÇAS DA DITADURA MILITAR: RESISTÊNCIA E
MEMÓRIA
34
No início dos anos 60 do século XX, presenciava-se uma grande
efervescência da esquerda e dos movimentos culturais. O governo João
Goulart representava uma direção política mais alinhada com as bases de
esquerda e, por essa razão, despertava progressivamente um número
significativo de oposicionistas; evidenciava-se o clamor popular pelas
reformas de base, dentre elas a reforma agrária27. Nesse contexto
nacional, foram criados o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), o Centro
Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE), o Movimento
de Cultura Popular (MCP), o Programa Nacional de Alfabetização (PNA),
inspirado no método Paulo Freire, dentre outros, extremamente
significativos.
Os setores conservadores deram início a uma ofensiva contra as
reformas que estavam em curso, com apoio do governo norte-americano.
Dentre as estratégias dessas forças estavam: a divulgação de que a criação
de uma central sindical demonstrava a intenção de uma revolução comunista
no Brasil; a organização de passeatas no Rio de Janeiro e São Paulo, com o
intuito de imobilizar os setores de esquerda da sociedade – “Marcha da
Família com Deus pela Liberdade” – reunindo, nas duas cidades cerca de um
milhão de pessoas.
Em 1º de abril de 1964, o golpe foi consolidado, não como uma
rebelião qualquer de um setor da sociedade brasileira, mas sim
representando o triunfo de um movimento histórico que vinha se
estruturando desde a década de 50. De acordo com Netto (2001), o golpe
ilustrou um movimento reacionário, que “resgatou precisamente as piores
tradições da sociedade brasileira”. Além da necessidade de reverter o
“processo de democratização”, que estava em curso no período pré-64,
27 Segundo Jacob Gorender (1987), o governo apresentava duas tendências: uma seria a aliança com a burguesia nacional e a outra, a ênfase na aliança com as forças populares.
35
tinha-se também de adequar as instituições ao novo padrão de
desenvolvimento da época.
Diversos tipos de resistência ao regime foram engendrados, como por
exemplo, o ideário hippie. Segundo Coimbra (1995: 28), de um lado a geração
que entra na clandestinidade e/ou na militância armada; de outro, os hippies,
ligados, em muitos casos, às produções alternativas e aos movimentos
contraculturais originados nos Estados Unidos e na Europa durante os anos
60 e 70.
Segundo o relato de uma ex-integrante da ALN, na época uma jovem
militante:
“Acho que foi uma época tão interessante, tão importante... como
teria sido difícil pra eu viver com 18, 20 anos hoje. Era uma
efervescência cultural e política aberta... aberta em termos,
porque a gente tava numa ditadura... mas ainda era ditadura
velada, as coisas ainda não tavam muito explícitas. Nesse meio
tempo eu acho que eu participei de todas as passeatas, todos os
movimentos, todos...”.
A “geração de 68” produziu novos padrões de comportamento e
conseqüentemente valores distintos daqueles conservados pelas gerações
anteriores. As relações entre homens e mulheres foram pensadas de uma
outra forma, apesar das limitações existentes no campo, também impostas,
por exemplo, pelos próprios companheiros de militância28. A monogamia,
virgindade, a reprodução, que até então eram questões de sacra importância
na sociedade, em especial, no tocante ao comportamento feminino, passaram
a ser discutidas por alguns de seus segmentos. Essa nova discussão
28 As mulheres, mesmo representando figuras significativas no interior das organizações, ainda sofriam “pré-conceitos” de seus companheiros do sexo masculino e, muitas vezes, ficavam limitadas a tarefas “secundárias”.
36
carregava um teor menos preconceituoso e menos conformador de
comportamentos (COIMBRA, 1995).
As falas abaixo ressaltam a importância da mudança de
comportamento dos sujeitos no período de intensas transformações
políticas:
“A geração de 68, que é produzida junto com o movimento
tropicalista, traz, portanto, a marca dos movimentos
contraculturais, quando há a possibilidade de se fazer uma série
de sincretismos e de misturas. Abandonam-se os antigos modos de
vestir, de falar, de morar, de comer” (ibidem: 13).
“a imagem que eu tenho assim desse período onde várias
tentativas, várias iniciativas de caráter revolucionário tomaram
lugar com uma coisa que... que teve uma abrangência maior na
sociedade (...) um momento também de revolução dos costumes, de
liberação da mulher, liberação sexual, drogas, e enfim, várias
coisas de mudanças grandes nos costumes (...) no Brasil teve
também esse caráter, diferente de outros países da América
Latina, eu acho, com as suas especificidades” (filha de um
militante considerado morto político, 2001).
O golpe de 1964 não somente representou um contra-movimento às
transformações culturais/políticas, mas também possuía um objetivo claro e
específico: implantar legitimamente uma política de terror, com vistas ao
aprofundamento do capitalismo monopolista.
Dreifuss (1981) menciona que a implantação do golpe teria por
objetivo a conquista da hegemonia, da fração multinacional-associada da
burguesia. O autor afirma que as elites foram capazes de assegurar os
poderes econômico e administrativo, transformando o aparelho do Estado
37
em um componente dos interesses monopolistas predominantes.
De acordo com as palavras do próprio autor:
“O poder de classe dos interesses multinacionais e associados foi
expressado, depois de abril de 1964, através da hegemonia por
eles estabelecida dentro do aparelho de Estado, do controle
direto das agências de formulação de diretrizes políticas e de
tomada de decisão e da presença pessoal dos representantes
desses interesses econômicos na administração em geral”
(1981:419).
O autor afirma que a queda do governo ocorreu devido a um
movimento civil-militar e não por um golpe das Forças Armadas no então
presidente João Goulart. O Complexo IPES/IBAD (Instituto de Pesquisas e
Estudos Sociais/Instituto Brasileiro de Ação Democrática) no âmbito das
Forças Armadas teria como objetivo a “neutralização do dispositivo popular
de João Goulart e a minimização do apoio militar a diretrizes políticas
socialistas ou populistas” (p.362). A “elite orgânica” ficou com a incumbência
de articular a campanha antipopular e logicamente anti-João Goulart.
As estratégias de busca de legitimação e de suporte da sociedade
como um todo chegaram ao extremo.
O DOPS, em 1969, distribuiu em várias instituições, escolas,
residências, um folheto chamado Decálogo de Segurança que instruía os
seus leitores:
“Antes de formar uma opinião, verifique várias vezes se ela é
realmente sua, ou se não passa de influência de ‘amigos’ que o
envolveram. Não estará sendo você um inocente útil numa guerra
que visa destruir você, sua família e tudo o que você mais ama
nesta vida?
38
Se você for convidado, ou sondado, para conversas sobre assuntos
que lhe pareçam estranhos ou suspeitos, finja que concorda e
cultive relações com a pessoa que assim o sondou e avise a Polícia
ou o quartel mais próximo. As autoridades lhe dão todas as
garantias, inclusive de anonimato.
Há muitas linhas telefônicas cruzadas. Sempre que encontrar uma
delas mantenha-se na escuta e informe logo a Polícia ou o quartel
mais próximo (...) Quando um novo morador se mudar para o seu
edifício ou para o seu quarteirão, avise logo a Polícia ou o quartel
mais próximo” (CHIAVENATO, 2004: 152-153).
Segundo Tavares (2005), o “alcagüete só não foi elevado à condição
de ‘herói patriótico’ (como na Alemanha de Hitler, na Itália fascista e na
URSS de Stalin) porque o sarcasmo público o reduziu a uma expressão
satírica: o ‘dedo-duro’” (p. 182).
Outras instituições como a Igreja Católica, foram importantes
instrumentos de construção do oposicionismo ao governo de Jango. Segundo
Chiavenato (2004), a campanha religiosa contra o governo foi desencadeada
no Rio de Janeiro, pelo cardeal dom Jaime de Barros Câmara. Na
perseguição aos comunistas, o cardeal trouxe das Filipinas o padre Patrik
Peyton, um agente da CIA – Central Intelligence Agency, “um especialista
em ‘levantar’ as massas católicas contra o ‘comunismo ateu’, em nome da
Virgem Maria” (p.45). Na década de 70, foram descobertas que as
passeatas promovidas em 1964 por associações católicas foram financiadas
por empresas e pelo Departamento de Estado dos EUA.
Gorender (1987), centrado na concepção de que o regime militar não
esteve calcado em bases consensuais, afirma que Dreifuss estaria incidindo
em aplicação equivocada da teoria de Gramsci. Segundo Gorender, de acordo
com o pensamento gramsciano, para a obtenção da hegemonia, precisam
39
estar aliados consenso e coerção, um não pode substituir o outro. A
ditadura militar não podia ter hegemonia, no sentido gramsciano;
entretanto, necessitava de legitimidade.
Para Gorender, o golpe partiu de vários focos conspiradores
desconexos. Entretanto, o autor afirma também que a Escola Superior de
Guerra (ESG) e o IPES – o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais - foram
grandes articuladores do golpe, pois estabeleceram vínculos ”entre o grande
empresariado e a alta oficialidade das Forças Armadas, que permitiram a
unificação de idéias e ações na montagem da operação de derrubada do
Governo Goulart” (p. 52).
Segundo Carvalho (2005), foram estabelecidas diversas tentativas de
atribuir ao golpe de 1964 a sua inevitabilidade. Para o autor, a maioria
dessas tentativas surgiu no seio da própria esquerda, como uma justificativa
para seus “erros políticos”. Ainda de acordo com Carvalho, a explicação mais
difundida foi a de que o golpe resultou de uma conspiração por parte do
imperialismo norte-americano.
Carvalho (idem) afirma que o golpe foi conseqüência das estratégias
dos agentes políticos no período. Considerando as muitas explicações de
cunho econômico, Carvalho afirma: “O golpe e sua rápida vitória não fora
determinado pela presença da fortuna, mas pela ausência de virtù “ (p. 120).
Carvalho (ibidem) insiste: “Explicadas ou não as surpresas de 1964,
reafirmo a convicção de que o desfecho se deveu muito mais a ações e
omissões de agentes políticos, à "virtù"¸do que a grandes causas sociais, à
fortuna”. Segundo o autor, os atores políticos se desviaram das reformas
em nome de ilusórias mudanças radicais, conseqüência de uma errônea
avaliação da correlação de forças presente no período.
Carvalho (2005) também ressalta a explicação - de cunho econômico -
para a inevitabilidade do golpe. A implantação de um regime autoritário
40
aparece como indispensável para a manutenção da superexploração do
trabalho num sistema de dependência econômica. Outra vertente explicativa
argumentava que o golpe - e conseqüentemente o regime autoritário –
representava uma exigência do aprofundamento do capitalismo. Ainda
dentro do universo da economia, mais uma vertente: o golpe seria necessário
para o restabelecimento da capacidade do país de “poupar, retomar o
investimento e recuperar o ritmo de crescimento econômico paralisado
desde 1962” (p. 120).
Várias vertentes para o “surgimento” do golpe foram trabalhadas no
debate político-social. Contudo, sugere-se que o golpe de 1964 é fruto de
vários fatores, em conjunto, de precedência política, econômica e ideológica.
As estratégias de legitimação e perpetuação da ditadura militar
foram perfeitamente concernentes ao aprofundamento do capital
internacional no país. O apoio norte-americano, inclusive no que diz respeito
ao aparato repressivo montado à época do regime (este apoio não se
restringia às relações econômicas), abrangia também a prática militarizada
repressiva: fornecendo cursos/equipamentos de tortura para os possíveis
torturadores da época, técnicas que, infelizmente, acabaram por ser
exportadas para outras ditaduras latino-americanas.
Segundo o relato de Tavares (2005):
“(...) descarregam de novo sobre nós o ‘Doutor Volts’, aquela
máquina em que sobressai uma inscrição em relevo, ‘Donated by
the people of United States’29 e, logo abaixo, a insígnia da
Aliança para o Progresso, com duas mãos entrelaçadas”.
Ibarra (2000) afirma:
29 Tradução para o português: “Doado pelo povo dos Estados Unidos”.
41
“Nunca la violencia que ejerce el Estado contra aquellos que se le
oponen, es solamente esfuerzo estatal. En el seno de la sociedad
civil existen amplias porciones que en no pocas ocasiones, apoyan
activa o pasivamente las infâmias má inauditas. En efecto, en no
pocas ocasiones, amplias porciones de ciudadanos justifican la
ejecución extrajudicial o la desaparición forzada” (p. 15).
Arendt (2004) discute que, as ditaduras provocam um enxugamento
do poder decisório, pois os mecanismos de controle do poder executivo –
instituições e órgãos – são abolidos.
Nesse sentido, de acordo com Tavares (1999), o Ato Institucional nº
5 (AI-5) de 1968 representou a perda da vergonha da ditadura. Em outros
termos: perde-se a roupagem de regime envergonhado, sendo a tortura um
método e uma via de permanência no poder. Gaspari (2002) argumenta que a
ditadura, ao perder a vergonha, passou a exibir um regime com
características anárquicas e violência nas prisões, período que designa como
os anos de chumbo. Gorender (1987) sinaliza que a medida repressiva
“consumou o fechamento completo da ditadura militar” (p. 71), e Netto
(2001) indica que representou a militarização das relações sociais.
Manoel Conceição Santos, um líder camponês, afirma:
“Nas cidades as praças ficaram vazias, as fábricas vigiadas pela
polícia, centenas de sindicatos sob intervenção, suas diretorias
destituídas, grêmios estudantis fechados, teatros invadidos,
músicas, filmes e peças teatrais censuradas, parlamentares
cassados, jornalistas e intelectuais amordaçados, a imprensa sob
censura prévia, e as prisões lotadas de brasileiros opositores do
regime. Quase todos torturados e muitos assassinados. O “milagre
econômico” dos militares precisava de um Brasil amorfo e sem
42
resistência à nova etapa de brutal acumulação capitalista no país”
(Carta à Comissão Especial da Lei Estadual 10.726/2001, a fim de
requerimento de indenização, em 02 de julho de 2002).
A perseguição às lideranças nacionalistas e aos comunistas foi
implacável; predominava o clima de terror, pessoas que se opunham ao
regime eram presas, torturadas ou assassinadas nas dependências dos DOI-
CODIs (Destacamento de Operações Internas/ Centro de Operações de
Defesa Interna)30, o mais terrível órgão oficial implantado em escala
nacional.
O sistema DOI-CODI foi inspirado pela Operação Bandeirantes
(OBAN)31. Lançada em 1969, era uma organização que dispunha de apoio
oficial. Entretanto, não estava normatizada legalmente. “A OBAN era um
órgão de análise, de informações, de interrogatório e de combate” (FICO,
2001).
De acordo com a fala de uma ex-militante do PC do B:
“Depois eles fizeram o interrogatório com todo tipo de pressão
psicológica possível, gritos, simulação de... eu acho que eles tavam
treinando parecia que entravam aquele montão, bonzinhos,
30 O DOI-CODI, localizado na rua Barão de Mesquita, tinha na sua entrada uma placa de metal que continha a seguinte informação: “Aqui não tem Deus nem direitos humanos” (VIANNA, 2003). 31 “Tendo em vista combater o processo revolucionário que estava assumindo proporções alarmantes no Estado de São Paulo e, particularmente, nesta cidade, resolveu o Exmo. Sr. Gen. Cdt. do II Exército, maior autoridade federal na área, adotar medidas urgentes e práticas para pôr cobro às ações subversivas que se processavam. Assim, criou a chamada Operação Bandeirante, cuja finalidade precípua era a de proporcionar uma forma de trabalho comum, obtido pela integração dos diversos órgãos com encargos de sustentáculos de defesa interna. Este grupamento de trabalho, coordenado pelo II Exército, compor-se-ia de elementos das FFAA desta secretaria (DEOPS/PM) E SNI/ASP” Documento reservado. Informação sobre a Operação Bandeirante. Secretaria de Estado dos Negócios da Segurança Pública. Coordenação de Informações e Operações. Gabinete do Secretário Cel. Ex. Danilo Cunha Lima. São Paulo, 2/06/1970 (VIANNA, 2003).
43
sentavam, saíam, chegavam os maus. Era treino para a Operação
OBAN, depois, pra aperfeiçoar e tudo chefiado pela Polícia Civil,
(...) eles que tinham experiência em tortura, a milicada não tinha,
depois que ficou com experiência”.
Os CODI tinham como atribuições o planejamento, a coordenação, o
controle e a execução das medidas de defesa interna. Os DOI, “unidades
militares comandadas”, mais flexíveis, poderiam mudar sua composição de
acordo com as exigências de cada operação. As principais equipes eram a
dos captores e dos interrogadores” (FICO, 2001: 124).
A prática militarizada repressiva encontrava na Doutrina de
Segurança Nacional32, a sua base ideológica. Segundo Netto (2001: 17), “na
frente externa, a militância anticomunista encorpava-se na tese das
‘fronteiras ideológicas’ e no compromisso com o alinhamento automático a
Washington; na frente interna, com a síndrome da segurança total e a
criminalização do dissenso político (o ‘inimigo interno’)”.
Aliada a outras medidas repressivas, surge com o regime militar, o
Serviço Nacional de Informação – SNI. Tendo como seu fundador o General
Golbery do Couto e Silva, o SNI assumiu a função de uma agência central de
informação e também de um “conselho de assessoria para formulação de
diretrizes políticas nacionais”. Abarcando todas as áreas da vida social,
política e militar brasileira, estabeleceu uma “rede de informações” dentro
dos ministérios, órgãos do governo, movimentos da classe operária,
estudantil, dentre outros (DREIFUSS, 1981). O significado do SNI vai além
da instrumentalização para a manutenção da repressão, ou mesmo da
32 Alguns autores atribuem seu “nascimento” à data de 1947, com a Doutrina Truman, que deu origem à Guerra Fria, “justificada como doutrina de defesa da civilização ocidental e cristã, a partir do pressuposto da existência de uma guerra oculta, permanente e ideológica contra o comunismo internacional” (PASCUAL, Alejandra Leonor. Terrorismo de Estado: a Argentina de 1976 a 1983. Brasília: Universidade de Brasília, 2004).
44
implantação da Doutrina de Segurança Nacional. As Forças Armadas,
caracterizadas pelas normas e hierarquia institucional, não eram dotadas da
flexibilidade necessária para o envolvimento político. Para isso fazia-se
necessário um outro órgão, não subordinado diretamente às Forças
Armadas, capaz de perpetuar sua existência “mesmo depois que (...)
voltassem aos quartéis” (DREIFUSS: 423), funcionando como “um foco de
apoio (...) e como um agente da manipulação da organização política da
sociedade” (FICO, 2001:124).
O SNI, em 1970, aprovou o seu “Plano Nacional de Informações”
(PNI), confeccionado com a colaboração de diversas pessoas, inclusive civis.
O Sistema Nacional de Informações (SISNI), instituído a partir deste
mesmo ano, tinha a função de assegurar o funcionamento do “sistema”,
inclusive a “execução de atividades de informações, normatizando,
supervisionando e fiscalizando todos os órgãos participantes, a fim de que
um fluxo constante de informações mantivesse o governo informado de
tudo” (FICO, 2001: 80). Segundo o órgão, havia dois tipos de informações: a
informação propriamente dita e a contra-informação, isto é, “a tentativa de
neutralizar as atividades de informações dos ‘inimigos’” (ibidem).
Fico (2001) aponta que, a partir de 1968, as demandas por
informações, inicialmente planejadas pelo General Golbery, ultrapassaram os
dados necessários às tomadas de decisões presidenciais, e tinham de
interagir com a “polícia política”, atingindo a particularidade da vida dos
cidadãos.
No confronto com o terror de Estado, as organizações de esquerda
resistiram aos ataques militares e, segundo algumas vertentes,
apresentaram práticas de violência. Para o entendimento aqui presente, não
se pode justificar ou mesmo igualar lados tão nitidamente opostos:
opositores políticos e repressores políticos. Para Gorender (1984: 235), “é
45
perda de tempo discutir sobre a responsabilidade de quem atirou primeiro.
A violência original é a do opressor, porque inexiste opressão sem violência
cotidiana incessante. A ditadura militar deu forma extremada à violência do
opressor. A violência do oprimido veio como resposta”33.
Nos anos 60, no âmbito da esquerda, diferentes projetos societários
se articulavam e se confrontavam. A militância em oposição à ditadura
militar brasileira não foi homogênea, daí o surgimento de inúmeros partidos
políticos e movimentos, de diversas orientações político-ideológicas. Mas em
um sentido esses projetos se tocavam: o ideal de transformar a sociedade
vigente naquele período.
Uma ex-militante da ALN discute a ideologia dos tempos de
resistência:
“Mas você com vinte anos acha que vai fazer mesmo a revolução,
que não há nada na frente que possa impedir... o socialismo vem, a
vida vai ser melhor para todos, é uma onipotência total (...) a gente
tinha uma certa arrogância histórica, era tanta certeza de que as
coisas iam dar certo (...)” (EX-MILITANTE DA ALN, 2005).
Tavares (2005) faz uma crítica à posição assumida por alguns
militantes desse período:
“Tudo era a ‘causa’. E esse tudo fazer pela ‘causa’ se tornara uma
obsessão, uma razão de viver que nos cegava a tudo mais. Não
jogávamos fora a ética, e era por estar nela que fazíamos da
33 Nessa discussão, Gorender (1984: 236) acredita que a “violência revolucionária não deve ir além do necessário à anulação da violência do inimigo (...) a violência revolucionária nunca pode ser um fim em si mesma. Não pode ser absoluta e incondicionada. Os revolucionários praticam a violência não somente dentro de determinadas condições políticas, mas também conforme os princípios de um código de ética que visa a preservá-los da contaminação pela corrupção moral da classe dominante”.
46
‘causa’ a única causa e conseqüência de tudo. Mas, ao ser a razão
única do nosso mundo, a ‘causa’ nos retirava do mundo e da vida” .
Uma militante pela anistia na década de 70 apresenta uma visão mais
romântica sobre a luta daquele período:
“que eu aprendi é que há gente boa, gente que luta, gente que sabe
se sacrificar em benefício de outros, em benefício de um ideal né,
que pode passar privações nessa luta em prol de alguma coisa
melhor pra sociedade (...) teria sido uma vida muito mais sem
graça, isso aí... é um dos motivos da gente sentir vontade de viver,
é justamente estar nessa luta né (...) teria sido uma coisa muito
mais sem graça mesmo, viver sem ta participando, eu vejo muita
gente que passa pela vida e nunca teve envolvimento nenhum”.
Porém, puderam ser percebidas diferentes posições em face da
mesma realidade. Nem todos se apropriaram da militância esquerdista ou
mesmo da luta armada. Muitos (em especial aqueles que pensavam a
transformação da sociedade por meio de reformas processuais)
acreditavam que, através do pacifismo, poderiam recuperar sua legalidade.
O PCB estabeleceu, em um determinado momento histórico, com a
Declaração Política de Março de 58, a resolução da nova linha política do
partido, onde a revolução brasileira seria alcançada em duas etapas:
primeiramente uma revolução nacional e democrática, com base
antiimperialista; como uma segunda etapa, a revolução socialista. Nem todos
os componentes do partido aceitavam tal concepção etapista, já que a
declaração teve voto contrário de dois membros da Comissão Executiva na
época: João Amazonas e Maurício Grabois (GORENDER, 1987).
Segundo Ferreira (1996), a partir da intensificação da repressão,
algumas organizações políticas mantiveram o “projeto de transformação”,
47
porém, incorporaram a luta armada “como forma de enfrentamento e de
manutenção das condições para a ação transformadora” (p.58).
O projeto de um setor significativo da esquerda, que fez a opção pela
luta armada e clandestina, está relacionado diretamente com o seu campo
de possibilidades (ibidem). Portanto, para o entendimento de que sujeitos
específicos, em um determinado momento histórico, tenham subordinado ou
mesmo conjugado o seu projeto individual com um projeto coletivo, é preciso
que se compreenda a força simbólica e política de tal projeto, pois a adesão
dos militantes não está dissociada do “processo de individualização de suas
trajetórias”. Ademais, nesse processo são compartilhados significados,
construídas identidades que conferem legitimidade a tais atos34.
Nesse sentido, a clandestinidade, como recurso do campo de
possibilidades, atendia tanto à expectativa de sobrevivência, como também
à proteção contra práticas violentas da repressão. Os militantes, nessa
perspectiva, tiveram de assumir, de acordo com Ferreira (1996:60), uma
nova forma de identificação, uma “identidade ad hoc”, representando “um
papel que não foi construído através de trajetórias de vida nem das
interações estabelecidas ao longo de seu percurso”.
Em contraponto à Ferreira, pode-se argumentar que as identidades
ad hoc carregavam consigo, de forma contraditória, marcas da trajetória
dos sujeitos, pois não estavam completamente desconectadas e alheias ao
percurso vivido. Nesse sentido, essas identidades estabeleciam-se na
34 Para Sontag (2005), “a argumentação contra a guerra não depende de informações sobre quem, quando e onde; o caráter arbitrário do morticínio implacável constitui prova suficiente (...) Para um judeu israelense, uma foto de uma criança estraçalhada no atentado contra a pizzaria Sbarro no centro de Jerusalém é, antes de tudo, uma foto de uma criança judia morta por um militante suicida palestino. Para um palestino, uma foto de uma criança estraçalhada pelo tiro de um tanque em Gaza é, antes de tudo, uma foto de uma criança palestina morta pela máquina de guerra israelense. Para o militante, a identidade é tudo” (p. 14). SONTAG, Susan. Diante da Dor dos Outros. Susan Sontag; tradução Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 107 p.
48
tensão com as identidades “originais” e a sua aceitação/rejeição seria
configurada de acordo com as apropriações realizadas pelos próprios
sujeitos acerca das mesmas.
Telles (1994) ressalta a importância de se qualificar as práticas de
resistência, atentando para não reduzi-las à sobrevivência política. A autora
considera esta redução oriunda de uma “visão instrumental que se priva de
elucidar o significado desses e outros espaços de ação, no que foram
capazes de produzir, em termos de fatos e eventos” (p.227).
Para se caracterizar a resistência vivida naqueles anos marcados pela
dor e pelo extermínio de projetos de vida, sejam eles mais amplos ou
individuais, é preciso que ressaltemos o ano de 1968.
De acordo com Cardoso (1998), 1968 teve uma peculiaridade, uma
internacionalidade quanto à importância dos acontecimentos, apesar de suas
diversas “singularidades históricas”. Em muitos países do mundo,
simultaneamente ocorrem significativos episódios que mudariam o devir
histórico. No Brasil, os anos que seguiram este período foram marcados
pelos vestígios da violenta repressão, por uma certa “normalização da
sociedade e da política” que levou, de acordo com a autora, ou ao
“esquecimento do acontecimento (...) pela própria dimensão inercial do
tempo (...) ou a imposição mesma, pela força, do esquecimento”.
Paralelamente aos episódios protagonizados pelo terror de Estado no
território brasileiro, em um contexto internacional irrompia a crise dos
valores socialistas.
O “regime de silenciamento” se perpetua de forma geracional.
Primeiramente, direcionado aos opositores do regime; em um segundo
momento, sendo transferido diretamente para suas famílias e companheiros
sobreviventes, que viveram a dor da perda e a impossibilidade de alcançar
justiça; e, posteriormente, aos militantes que lutam para que esse período
49
da história não seja negado ou distorcido, como é usualmente feito pelas
práticas dominantes.
Alguns discursos remetem à idéia de um vazio deixado pela repressão
pós-64. O ocultamento de focos resistentes à ditadura mascara também a
verdade histórica. Para Telles, chega-se “a ponto de eliminar todo e
qualquer vestígio de prática social e histórica (...) como se a história
estivesse subsumida à racionalidade objetiva das transformações
econômicas, políticas e institucionais em curso no país” (p.221).
Parte da sociedade brasileira não tomou conhecimento das
atrocidades cometidas durante a ditadura militar, inclusive contribuindo
para sua legitimação. Através de mecanismos ideológicos, como a criação da
figura do subversivo ou mesmo a idéia difundida de terrorismo associada
aos comunistas, contribuiu-se para tal mascaramento. No campo das ações
mais concretas, diversos outros instrumentos foram implementados no
período: as mobilizações das camadas burguesas, como por exemplo, as
Marchas, as manifestações de repúdio ao comunismo, a manipulação e
censura dos meios de comunicação. Aliado ao aparato repressivo montado
pelo regime, estava todo o suporte ideológico, fundamental para a
manutenção da ditadura militar. Essas estratégias representaram
mecanismos ideológicos que não findaram com a queda do regime, e que
acabaram por perpetuar o quadro de impunidade hoje presente. Dessa
forma, pode-se perceber a reprodução do “poder de um status quo que visa
ao esquecimento como impedimento da memória”35.
Para Irene Cardoso (2001), a história não foi esquecida, ela não foi
reconhecida, ou seja, não foi compartilhada coletivamente. Segundo a
35 FRANCISCO, Sônia de Abreu; JORGE, Marco Aurélio; MOURÃO, Janne Calhau. Violência organizada, impunidade e silenciamento. In: Clínica e Política: Subjetividade e Violação dos Direitos Humanos. Equipe Clínico Grupal, Grupo Tortura Nunca Mais/RJ. Rio de Janeiro: Instituto Franco Basaglia/Editora TeCorá, 2002. p.55.
50
autora, isto ocorre pela própria imposição da ditadura militar, o
impedimento da circulação e apropriação das informações. A autora discute
sobre a estratégia de implantação do terror. De acordo com suas palavras:
“O terror político assume a forma de uma técnica de produção do silêncio,
desde a censura, passando pelo silenciamento da sociedade através do
medo, até o limite máximo de sua expressão, quando ‘mata a própria morte’,
no procedimento do desaparecimento” (p.156).
Segundo Cardoso (1998), a normalização da sociedade e da política
significou “ou o esquecimento do acontecimento, como diluição na memória,
pela própria dimensão inercial do tempo (...) ou a imposição mesma, pela
força, do esquecimento”36 (p. 7).
A “produção do inexistencialismo” (idem) teve relação direta com o
fato de que a transição da ditadura militar a um regime dito democrático no
Brasil ocorreu sob a tutela das Forças Armadas; a impunidade dos
torturadores também foi fator contribuinte, tendo sido legitimada pela Lei
da Anistia, conhecida como a auto-anistia.
A lei de anistia concede seus benefícios “a todos quantos, no período
compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979,
cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que
tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração
Direta e Indireta, de Fundações vinculadas ao Poder Público, aos servidores
dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos militares e aos dirigentes e
representantes sindicais, com fundamento em Atos Institucionais ou
Complementares”. Ademais, a lei considera, ainda, conexos, para os seus
efeitos, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos
36 “No Brasil de 78, 68 foi caracterizado pelo silêncio ou foi objeto de contracomemoração, o que pode ser evidenciado pela imprensa da época, cuja manchete mais simbólica daquele momento, num caderno especial do jornal O Estado de São Paulo, foi “Maio de 68 – A Primavera do Nada” (Cardoso, 1998: 7).
51
ou praticados por motivação política.
Hélio Bicudo, revisando a concepção existente de que a Lei da Anistia
beneficiava torturadores, acredita que os juristas puderam utilizar esse
dispositivo para beneficiar muitos que torturaram e mataram em nome do
Estado terrorista. Ainda de acordo com Bicudo, “ao que tudo indica,
encontrou-se nessa interpretação a razão para equiparar-se, para seus
efeitos, torturadores e torturados (...) uma solução incompatível com o
próprio instituto da anistia”37.
Méndez (2003) faz uma discussão sobre as políticas de silenciamento
produzidas pelos Estados na América Latina:
“Una constante de los gobiernos de transición a la democracia en
Latinoamérica ha sido la mantención de políticas de olvido
pasivo38, las que se han llevado a cabo principalmente a través de
dos mecanismos: primero, por medio del silenciamiento opresivo,
como ignorancia forzada y, segundo, por el establecimiento de una
política de ‘reconciliación’ para una ‘adecuada convivencia nacional’
sobre la base de la amnistía hacia los responsables de las
violaciones a los derechos humanos” .
“La lucha contra el olvido se há centrado principalmente em la
constituición de uma memória colectiva, lo más cercana posible a
la realidad de los hechos acontecidos. Tarea difícil para quienes
han emprendido esta iniciativa, ya que sin el apoyo de políticas
gubernamentales claramente orientadas a este objetivo, se corre
37 Parecer sobre a anistia- www.torturanuncamais-rj.org.br. 38 “Enfrentar y elaborar la vivencia colectiva (olvido activo), que implica reconocer y colectivizar lo sucedido, reparar integralmente a las víctimas y sus descendientes, y castigara todos los responsables; o realizar acciones tendientes a omitir lo sucedido y esperar a que todo se olvide, ‘dando vuelta la página’ en pos de la ‘unidad y reconciliación nacional’ (olvido pasivo)”. Pode-se perceber que a maioria dos governos dos países que sofreram ditaduras militares, optou pelo “olvido pasivo”, pela política de reconciliação mascarada.
52
el riesgo de que la ‘verdad’ vivida por miles de personas no se
incorpore a los contenidos que se transmitirán a las futuras
geraciones, quedando fuera de la llamada memoria histórica
nacional. Situación de suma relevancia, pues es la memoria la que
articula la historia de los pueblos y configura la identidad de los
grupos y la identidad nacional”.
A impunidade, marcante na cultura política brasileira, tem grande
influência na produção da subjetividade dos atingidos. Desamparados pelo
fato de que perpetradores da violência continuam impunes, muitas vezes
condecorados em nossa sociedade, ou, ainda mais grave, ocupando cargos
públicos, estes atingidos apresentam muitas lacunas em suas trajetórias de
vida. Em face do não-esclarecimento das mortes, a própria imaterialidade
da vida em decorrência da impossibilidade de fazer luto frente a seus
mortos, no caso específico dos familiares dos atingidos pelo regime
ditatorial, estes são condenados a uma outra clandestinidade: arrastar suas
histórias de vida como se fossem unicamente pessoais/privadas, sem lugar
na “história oficial”39.
Por não terem tido acesso aos corpos de seus mortos, uma parcela
dos sujeitos que vivenciou esse período da história, compartilharia de uma
“nostalgia fechada”, que, segundo Cardoso (1996), “se caracterizaria por um
congelamento do tempo, uma retenção do tempo”, em decorrência da perda,
da imaterialidade da vida.
O profissional do Projeto Clínico-Grupal faz um comentário sobre as
formas pelas quais as marcas da tortura refletem na subjetividade dos
sujeitos:
39 FRANCISCO, Sônia de Abreu; JORGE, Marco Aurélio; MOURÃO, Janne Calhau. Violência organizada, impunidade e silenciamento. In: Clínica e Política: Subjetividade e Violação dos Direitos Humanos. Equipe Clínico-Grupal, Grupo Tortura Nunca Mais – RJ. Instituto Franco Basaglia/Editora TeCorá.. Rio de Janeiro: 2002.
53
“Há importantes efeitos-subjetividade que verificamos na clínica
com esses pacientes: insegurança, medo, depressão, sentimento
persecutório, dentre outros. A vida profissional é muitas vezes
comprometida, sendo que em alguns casos houve mesmo uma
incapacitação. Quanto à vida política, em alguns casos há um
distanciamento repulsivo, isto é, o ex-militante torna-se avesso à
prática política. No entanto, não temos aqui uma regra, pois há
formas variadas da violência de Estado e a tortura gerarem
efeitos-subjetividade” .
A filha de um desaparecido político fala sobre a perda sofrida, que a
afetou não só emocionalmente como paralisou algumas esferas de sua vida:
“E não só acabaram com a vida daqueles que eles (...) Acabaram
com aqueles que sobraram também porque a minha mãe teria outra
qualidade de vida se não tivesse passado a dor que ela passou
(emociona-se), entende? E eu que com certeza (emociona-se),
teria condições de estudar, de me profissionalizar melhor. Eu
sempre fiquei... na mediocridade por falta total de condições. Meu
pai era... se ele fosse vivo...ele...nossa, nós teríamos outra, outra
vida. Não só economicamente menos prejudicada, mas assim, de...
riqueza, de conhecimento, eu teria estudado, teria feito uma
faculdade, estaria profissionalizada. Ah! Eu poderia proporcionar
também uma vida melhor para os meus filhos”.
“Eu nem gosto de falar sobre mim não (...) filha biológica de Mário
Alves. Eu comungo as mesmas idéias, mas não sou é... assim... a
intelectual a altura de ser de a filha do Mário Alves. Muitos filhos
ai, fizeram as biografias de seu pai, eu não consigo fazer uma
resumida se quer um folderzinho, é difícil pra mim. Até porque
vocês viram eu sou prolixa, e pra mim tudo é pouco, eu começo a
falar dele e vai rolando.... entende? E tem mais e mais....Então,
54
eu... me considero assim com relação ao meu pai e minha mãe é...
não é inadequada, é não corresponde ao que eles mereciam ao que
agora estivesse fazendo pela memória deles. Porque eu poderia
estar fazendo mais com certeza. Eu poderia ter feito mais
também pra mim mesma. Eu realmente em muitos momentos me
acomodei, porque foi tanta dificuldade, tanta dificuldade, tanta
luta, tanta adversidade que teve momentos que me permitir
relaxar parar de estudar, parar de trabalhar, ficar curtindo uma
de mãe é.... tal. E nisso claro, usei esse tempo muito que bem, fui
uma supermãe. Mas deixei de evoluir, de me aperfeiçoar e tudo
mais”.
A partir da noção de “imaterialidade da vida” trazida por Cardoso
(2001), pode-se pensar em que medida a imaterialidade não se faz da vida,
mas da morte. A impossibilidade do luto - de um referencial - a
inacessibilidade à matéria corpórea, ou seja, a inexistência do ritual do luto
acaba por deixar um vazio, que caracteriza a imaterialidade da morte.
A prática dos desaparecimentos utilizada pela ditadura militar
representava essa imaterialidade. De acordo com Cardoso (idem): “O
desaparecimento configura uma experiência de morte sem sepultura, ou
seja, uma experiência de morte que se carrega em vida. A impossibilidade da
realização do ritual do luto – a sepultura – configura uma situação de perda
em que não se consegue renunciar ao objeto perdido, o que produz a
melancolia” (p. 139-140).
Por outro lado, Cardoso (2001) também apresenta a “nostalgia
aberta”. Segundo a autora, essa nostalgia enquanto movimento da memória
que instaura mudanças espaciais e temporais, pode levar a uma
problematização do tempo presente, a uma análise histórica que possibilite
expor os limites impostos e a forma de ultrapassá-los, permitindo dessa
forma, uma re-invenção, um fazer-se outro (p. 131).
55
Nessa última concepção “a memória é um acontecer nostálgico; como
força de evocação e de produção de lugares e de figurações, a força de
nominação não é uma força que fixa, mas uma força que imprime um tornar-
se, produtora de mudanças de lugares, que são também mudanças de tempo”.
A partir da dor, retorna-se, representando uma etapa que tem por objetivo
avançar para um outro lugar, a priori desconhecido, mas potencializador40.
De acordo com a fala da filha de um militante considerado morto
político:
“A minha tese de mestrado foi dedicada ao meu pai. E a
dedicatória era assim: a Lincoln Bicalho Roque, meu pai, a quem a
ditadura Militar fez isenção de liquidar, mas só fez transferir a
sua vida orgânica em potência transformadora que não cessa de
me fortalecer. Aí essa foi a dedicatória da tese de mestrado. Eu
acho bonito, porque eu vivi essa história durante muito tempo:
transformar essa questão da morte do meu pai numa potência,
numa força revolucionária. Tudo que eu fazia, eu tinha que mudar
o mundo, tinha que ser muito diferente, tinha que ser muito
especial” .
É contra o “inexistencialismo” citado por Cardoso que Fontana (2004)
nos convida a desvendar em “A História dos Homens”, para que seja
permitida a compreensão do porquê do cenário político atual, as suas
manifestações, a sua degradação, a atomização, o individualismo, o vazio de
projetos coletivos.
Na busca que vai de encontro ao vazio, acredita-se ser extremamente
importante, apesar de também intensamente doloroso, trazer ao debate a
40 Cardoso (2001:128) considera a nostalgia como “um tipo de memória, como um trabalho de reminiscência e de imaginação, que pela sua força de evocação, fabrica, produz os lugares da memória”.
56
prática que, dentre outras coisas, caracterizou a longa ditadura militar
brasileira como um período de terror.
CAPÍTULO 2- AS MARCAS VISÍVEIS E INVISÍVEIS41 DA TORTURA
“(...) Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
41 De acordo com a discussão realizada sobre o silenciamento e a produção do esquecimento imputados à recente história brasileira, no que diz respeito às extremas violações dos direitos humanos ocorridos na época da ditadura militar, podemos pensar em marcas “invisibilizadas”. KOLKER, T.; MOURÃO, J. C.. Marcas invisíveis ou invisibilizadas? (Clínica e Política, 2002).
57
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
Pai,
afasta de mim esse cálice
afasta de mim esse cálice
de vinho tinto de sangue”
(Chico Buarque/ Gilberto Gil/ 1973)
Nas suas prisões, durante a década de 70, o lavrador Manoel
Conceição Santos foi submetido à tortura de forma brutal:
“Somente fui saber o meu destino quando o avião pousou no Rio de
Janeiro e fui entregue ao Comando do I Exército e levado para o
quartel da Polícia do Exército, no bairro da Tijuca. Arrancaram a
minha perna mecânica e fui colocado nu dentro da “cela geladeira”,
onde era alimentado apenas com pão e água, defecava e urinava no
mesmo local em que me encontrava (...) Fui torturado inicialmente
na cadeira de dragão, que é uma cadeira de ferro, com braços e
um buraco no assento. Depois de amarrado na cadeira, os
torturadores enfiavam uma barra de ferro, viravam para que
ficasse como se fosse um “pau de arara”. Nessa posição era
espancado com cassetete e recebia choques elétricos nos órgãos
genitais e por todo o corpo. Depois me retiravam da cadeira do
dragão e me espancavam com palmatória, cassetete de borracha,
murros e golpes de caratê em todas as partes do meu corpo. Nu e
sem a perna mecânica eu não resistia em pé, e caia (...)
Numa outra vez eles me colocaram num carro e levaram para um
local que tinha uma piscina, onde fui amarrado com os braços
atado às pernas, como um porco, jogaram-me três vezes na água e
quase morri afogado. Nesse mesmo local colocaram-me grudado
num poste entremeado aos braços, com as mãos algemadas e sem
a perna mecânica, onde fui espancado durante horas. Quando fui
58
retirado, estava roxo de espancamentos, palmatórias e golpes de
caratê. Tive que ser hospitalizado, e me davam banho de gelo para
espalhar o sangue coagulado no corpo.
Depois fui entregue ao CENIMAR42 (...) Logo que cheguei
amarraram-me os testículos, fui arrastado pelo meio da sala e em
seguida dependurado pelos órgãos genitais (...) Uma vez ligaram
fios de uma bateria de avião no meu pênis, testículos, nariz e
ouvido, e aplicaram tantas cargas elétricas que quase me
enlouqueceram. (...) Como se tudo isso não bastasse fui crucificado
pelos órgãos genitais: os torturadores levantaram meus braços
com cordas amarradas ao teto, colocaram meu pênis e os
testículos em cima da mesa e com uma sovela fina de agulhas de
costurar pano deram mais de trinta furadas. Depois bateram um
prego no meu pênis e o deixaram durante horas pregado na mesa.
Após tudo isso, me derrubaram no chão e ameaçaram arrancar os
intestinos pelo reto.
Por causa desse tipo de tortura fiquei durante semanas urinando
somente através de sonda, e impotente durante anos. E assim
continuaram as torturas durante os sete meses que fiquei
desaparecido no Rio de Janeiro, quando os torturadores
ameaçavam me colocar num avião e jogar em alto mar ou nas
montanhas.
No período que fiquei no CENIMAR era sempre interrogado pelo
“Dr. Cláudio”, que vim saber depois se tratar do inspetor Solemar
Moura Carneiro, agente do órgão de informação da Marinha e
especialista em Ação Popular, que assistia a tortura e orientava os
torturadores”43.
O aparato de repressão montado comportou diversos procedimentos:
o caso do PARA-SAR (que planejou ações de seqüestro e de eliminação da
42 CENIMAR: Centro de Informações da Marinha. 43 Carta de Manoel Conceição Santos à Comissão Especial da Lei Estadual 10.726/2001, a fim de requerimento de indenização, em 02 de julho de 2002.
59
população civil); as invasões de domicílio em que se buscavam suspeitos,
familiares, inclusive crianças; a atuação do Esquadrão da morte, combatendo
clandestinamente “a criminalidade na repressão política”; a presença de
organizações paramilitares, grupos clandestinos de repressão (“Voluntários
da Pátria” no nordeste e o “Braço Clandestino da Repressão” em São Paulo),
que contribuíram para o aumento dos desaparecimentos; as prisões
clandestinas - “Casa dos Horrores” em Fortaleza, “Casa de São Conrado” no
Rio de Janeiro, “Casa de Petrópolis”, “Colégio Militar de Belo Horizonte”,
“Fazenda 31 de Março”, em São Paulo (CARDOSO, 1997).
Os diversos mecanismos utilizados eram: torturas com casais;
ameaças aos familiares; falsos seqüestros também de entes queridos; entre
outros44.
Uma ex-militante da ALN afirma:
“eles entraram, pegaram a mamãe e a minha irmã que tinha
quatorze anos, seqüestraram, levaram pro CODI, pra ser
interrogada, pra dizer onde eu tava (...) aterrorizaram bastante,
diziam quem eu era, terrorista que ia ser morta, que eles iam
matar e a minha irmã realmente passaram a mão nela... uma menina
de quatorze... pra apavorar, aterrorizar. Ela passou décadas, mal
fala disso, não consegue falar direito” .
Nesse sentido, a tortura como uma prática por excelência da
44 Ana Joaquina relata: “Eu ouvia meu pai gritar e gritava. Um senhor de cor, enorme, acho que o carcereiro, tapava minha boca com a mão. Mas eu queria minha mãe, que estava numa cela ao lado e eu e minha irmã sozinhas. Então eu gritava. Eu querendo ir para o colo de minha mãe e não podendo. E meu pai gritando” (apud VENTURA). Ana Joaquina é filha de Domingos Simões, então proprietário do sítio Murundu, em que se realizava o XXX Congresso da UNE, conhecido como o fracassado Congresso de Ibiúna, que resultou na prisão de aproximadamente 1.500 estudantes. Ana Joaquina tinha três anos quando foi presa com seu pai, sua mãe e sua irmã Maria da Glória. VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
60
violência - estabelecendo uma analogia com o pensamento de Vásquez (1977)
– tem como alvo imediato o ser corpóreo, mas objetiva atingir o ser social.
Vásquez discute a violência ressaltando as relações sociais, pois
afirma que o seu objeto é formado por seres que são sujeitos dessas
relações e que as corporificam. Palavras do autor: “(...) as ações humanas
que se exercem sobre eles não se dirigem tanto ao que têm de seres
corpóreos, físicos e sim a seu ser social (...) o corpo é o objeto primeiro e
direto da violência, mesmo que esta, a rigor, não se dirija em última
instância ao homem como ser meramente natural, e sim como ser social e
consciente. A violência visa a dobrar a consciência, obter seu
reconhecimento, e a ação que se exerce sobre seu corpo dirige-se, por isso,
a ela” (idem: 379-380).
A tortura desencadeia inúmeros processos de subjetivação e de
objetivação nas diversas esferas social, cultural, política, que se pode
pensar em um continuum: "Jorge, membro de uma equipe assassina que
ingressou na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro em 1979, lembra-se
que, quando tinha seis ou sete anos, sua família foi vítima de [uma limpeza]
(...) Jorge recorda a invasão da casa de sua família (...) a mãe de Jorge,
violentada pelos soldados, ficou aterrorizada com a possibilidade de ser
assassinada naquele momento ou depois (...) O pai de Jorge era francês e
supostamente 'subversivo', acabou indo para as instalações de tortura
'Barão de Mesquita' (...) [foi] deportado para a França como 'indesejável'.
Jorge nunca mais viu o pai. Sua mãe 'não aguentando a situação' de ter sido
violentada e o rapto do marido, sofreu derrame que a deixou inutilizada. Os
funcionários da assistência à infância do governo militar determinaram que
sua mãe 'não tinha mais condições psicológicas para criar os filhos'"
(HUGGINS, HARITOS-FATOUROS e ZIMBARDO, 2006). Jorge e seus
três irmãos foram internados na FEBEM. Na instituição, foi submetido a
61
torturas. Após dois anos de serviço militar, ingressou na Polícia, passando
depois para o DOI/CODI. Ironicamente, como agente do órgão de
repressão, levaria muitos de seus presos à rua Barão de Mesquita.
De acordo com Coimbra (2004), a tortura é uma “viagem ao inferno: o
dos suplícios físicos e psíquicos, dos sentimentos de desamparo, solidão,
medo, pânico, abandono, desespero”.
“Eu passei... é como o Elio Gaspari diz... por todo receituário de
porão. Choque elétrico, porrada a torto e à direita, pau de arara o
tempo todo, o médico vinha pra ver se você estava em bom estado
pra apanhar mais, soro da verdade, delegacia clandestina, CODI,
aí fui parar no hospital, aí volta pro hospital, fica sem dormir, sem
comer, enfim, o que foi dramático assim pra mim é... a tortura
física você tem que ir agüentando até onde pode, mas o dramático
é que esse negócio de não dormir, não comer e a tensão de “agora
vem mais porrada, quem vai ser agora, será que eles vão... né, o
que vai acontecer... a tua cabeça não pára de funcionar, acho que
foi o mais próximo possível que eu tive de um surto...” (EX-
MILITANTE DA ALN).
A tortura inflige um efeito tão devastador sobre a constituição mais
íntima daquele que é torturado, que, em um determinado momento, o corpo,
até então parte integrante do ser em questão, volta-se contra o seu próprio
eu, na medida em que exige uma ação imediata, com o intuito de paralisar a
situação de tortura. Nesse sentido, pode-se pensar até que ponto o
torturador, nessa condição, não ganha um aliado em potencial. A tortura
acaba por transformar o corpo, a princípio alvo de sua ação, em algoz do
sujeito torturado.
“A tortura transforma nosso corpo – aquilo que temos de mais
62
íntimo – em nosso torturador, aliado aos miseráveis que nos
torturam. Esta é a monstruosa subversão pretendida pela tortura.
Ela nos parte ao meio (...) O corpo na tortura nos aprisiona (...) ele
se volta contra nós, na medida em que exige de nós uma
capitulação (...) O corpo que é torturado, nos tortura, exigindo de
nós que o libertemos da tortura, a qualquer preço. Ele se torna,
portanto (...) o porta-voz dos torturadores, aliado a estes na
sinistra tarefa de nos alunar (...), transformando-nos em objeto”
(PELLEGRINO, 1988).
A tortura é sistemática, não existe ao acaso. Portadora de uma
intencionalidade específica e de uma fundamentação política, não
caracteriza uma forma de violência simples. Sua estrutura é complexa, na
medida em que representa a violência na sua forma mais sofisticada, porque
elege seus alvos, os classifica, possui seus próprios instrumentos45 e de
acordo com seus objetivos, deixa marcas visíveis ou
invisíveis/invizibilizadas, de modo que o seu eleito tenha de conviver com ela
durante toda a sua vida.
Baeza (2000) afirma:
“La tortura y sus consecuencias se diferencian nítidamente de
otros actos de violencia, por perversos y brutales que ellos sean.
Ella es un acto humano integral, no solo porque tiene intención,
porque es racional, porque es elegida, sino también porque tiene
causas, motivos, aprendizajes, objetivos, marcos de referencia
ideológica, técnicas específicas de realización, pericia, códigos
simbólicos, lugar social definido, personal especial para aplicarla y
porque su fin no es solo destruir al sujeto que la sufre sino que
paralizar, mediante el terror, a toda la sociedad” (p. 30).
45 Vide Anexo A.
63
Para Almeida (1995), devemos considerar que a ação violenta não é
desprovida de uma certa racionalidade, portanto, não é fruto da demência
involuntária. A patologização na análise acaba por isolar o indivíduo,
culpabilizando-o e o responsabilizando-o como ser exclusivo na produção da
violência, retirando assim a dimensão estrutural violenta. Esse tratamento
da violência, conjuntamente com julgamentos morais discriminatórios,
desconecta e desespacializa o fenômeno, das densas relações de poder que
o envolvem.
O ex-militante do PC do B expressa em seu relato a amplitude da
tortura:
“A experiência da tortura se reflete de várias formas na
minha vida. Desde as formas sutis até o fim do sonho
revolucionário, o alinhamento da esquerda mundial ao estilo
burguês eleitoreiro do mundo globalizado, até as formas
mais concretas, fisiológicas, como uma auto-estima
questionável, hipertensão, síndrome pós-traumática,
diagnosticada e tratada tardiamente, aflição e angústia de
se sentir só sem ter interlocutores capazes de sequer
entender sobre o que você está falando, ou pensando, fora
os tradicionais complexo do herói–mártir que te cobra uma
postura revolucionária para sempre e o outro que é o
complexo de não ter morrido na tortura” .
O terror psicológico também tem um papel importante na
desconstrução dos sujeitos. A qualquer momento, poder-se-ia ser o próximo,
assim como vários de seus companheiros já partiram e nunca mais
retornaram:
“Numa madrugada sou retirada da cela, levada para o pátio,
64
amarrada, algemada e encapuzada (...) Aos gritos dizem que vou
ser executada e levada para ser ‘desovada’ como num ‘trabalho’ do
Esquadrão da Morte (...) Acredito (...) Naquele momento morro um
pouco (...) Em silêncio, aterrorizada, urino-me (...) Aos berros,
riem e me levam de volta à cela (...) Parece que nessa noite não
têm muito trabalho a fazer (...) Precisam se ocupar (...)”
(COIMBRA, 2004).
“(...) numa simulação de fuga na estrada (...) mandaram eu fugir (...)
eu fiquei paralisada, também eu tava toda doída, toda
arrebentada, não dava pra correr, eu ia cair logo ali, mas eu fiquei
paralisada e eles começaram a atirar pra baixo, pra cima, pro meio
(...) entre a Rio-São Paulo entraram num bequinho (...) é
fuzilamento simulado... nada não, só uma brincadeirinha”46 (EX
MILITANTE DA ALN).
A intensidade daqueles anos de resistência, heroísmo e dor
proporcionaram momentos ou mesmo um cotidiano de medo e incerteza aos
protagonistas dessa barbárie.
De acordo com o relato de Tavares (2005), um dos prisioneiros da
ditadura militar trocados pelo embaixador norte-americano que fora
transportado para o México pela Força Aérea Brasileira, em 1969:
“Sou o primeiro da fila de prisioneiros sentados de costas para as
janelinhas do avião, ao longo da fuselagem, e só eu ouço a ameaça.
Um calafrio me eriça a pele. Sinto medo, mas, imediatamente, a
fantasia suplanta o temor e eu faço que não escuto. Olho para a
frente, para o largo corredor deserto (...) e penso no meu banco
46 O fuzilamento simulado foi uma prática utilizada desde o início do golpe em 1964 e consistia em um terror psicológico, pois os presos eram, na maioria, vendados ou colocados de costas para o pelotão que simulava seu fuzilamento “com tiros de festim ou disparando rajadas por sobre a cabeça da vítima” (Tiradentes: um presídio da ditadura – Memórias de presos políticos: p. 512).
65
que ficará vazio quando me atirarem pela porta. Mas eu já
conheço esse truque: irão fazer comigo – penso – o que fizeram
com Victor no dia em que fui preso e ele foi levado num
helicóptero da Marinha. Sobrevoaram toda a costa de Angra dos
Reis para que ele apontasse onde era o acampamento do nosso
grupo e, já de entrada, abriram a porta do helicóptero e o
empurraram no ar. Com a perna esquerda amarrada ao aparelho
por uma corda, ele balançou na vertical como um pêndulo, durante
minutos. O helicóptero voava lento, logo parava e se mexia de um
lado a outro, de alto a baixo, e então o prisioneiro voava em
círculos, como aqueles trapezistas voadores dos circos. Depois ele
foi içado a bordo, tonto e desnorteado, sem saber direito o que
queriam dele, se esquartejá-lo vivo nas nuvens ou apenas mostrar
que também se tortura no ar. Devolvido pela Marinha do Exército,
ele ficou imóvel três dias, deitado de bruços e só de tanga – sem
qualquer movimento a não ser um leve piscar de olhos – no chão de
cimento do calabouço, ao lado da minha cela, no quartel da rua
Barão de Mesquita, no Rio” .
O suplício causado pela tortura e os traumas vividos desde então são
tão profundos que as (re)elaborações de alguns sujeitos sobre as diversas
questões inerentes ao cotidiano sofreram uma inversão. As marcas deixadas
pela violência a que foram submetidos são confundidas com experiências
vividas anteriormente. Nesse sentido, corre-se um sério risco: o de
despotencializar a intensidade daquelas ações bárbaras e atribuir traumas,
seqüelas, à incapacidade individual.
Segundo a fala do ex-militante do PC do B:
“Em resumo a tortura objetiva te destruir enquanto pessoa. Não
apenas fisicamente, mas forja em seus neurônios, no seu
metabolismo, na sua memória o medo de conseqüências de você
exercer plenamente aquilo que você é. De forma que fica muito
66
difícil separar diante das dificuldades afetivas ou emocionais que
atributos tiveram origem na tortura, daqueles que tiveram outras
origens, daqueles que já eram ou seriam seus de qualquer jeito.
Numa cela que passei na PE do Rio de Janeiro estava escrito atrás
da porta: as marcas do corpo sumirão, as do espírito nunca” (EX-
MILITANTE DO PC DO B).
A coisificação dos sujeitos se dá de tal forma que a violência se
traduz na “destruição da essência” do torturado. Essa relação mostra-se
contraditória: a coisa é inerte e passiva; porém, o que “o torturador deseja
da coisa é que ela sofra, grite, confesse, fale” (CHAUÍ, 1987).
“A loucura da situação de tortura é esta: deseja-se que, através
da dor e da degradação, um ser humano vire coisa e ao mesmo
tempo permaneça gente para que reconheça no torturador um
outro ser humano, pois se tal reconhecimento não existir, não
pode haver confissão, não pode haver capitulação e sobretudo não
pode haver admissão do poder do torturador” (ibidem).
Ibarra (2000) argumenta: “En la tortura se busca llegar hasta lo más
profundo del objetivo del terror que es la desarticulación de la voluntad. Se
busca transformar resistencia en docilidad. Docilidad en identificación.
Identificación en admiración hacia el carcelero y torturador” (p. 11).
Na relação torturador-torturado, o tempo e o espaço não são
localizáveis pela vítima. Esta, submetida a todo tipo de privações, não
reconhece no torturador um agente da lei, porque na situação de tortura,
não existe uma lei, uma regra específica. Para Cardoso (1997), esta relação
é dual, em que a “onipotência do primeiro se constrói a partir da total
impotência da vítima, pela impossibilidade de sua defesa e pelo sofrimento
do corpo torturado”. Segundo a autora, o reconhecimento do algoz como a
67
figura da lei significaria a incorporação de uma terceira referência, a lei, o
que impossibilitaria o fundamento do funcionamento da tortura - a completa
despersonalização e destruição subjetiva do torturado.
A ausência de legalidade, segundo a autora, continua gerando o
discurso da não-existência formal da tortura política e, é nessa base, que se
perpetua a sua negação pela corporação militar, até os dias atuais.
Na “lógica da clandestinidade do horror”, o torturador revela a
capacidade humana de produzir o horror: “a impressão que eu tinha de uma
parte dos torturadores é que eles não pertenciam ao mesmo grupo humano
que eu” (EX-MILITANTE DA ALN).
De acordo com Maria do Carmo Brito47, ex-militante da Vanguarda
Popular Revolucionária - VPR:
“Na tortura, você rapidamente é colocado cara a cara com um
horror maior que a dor: tem gente de sua mesma espécie, o homo
sapiens – duas pernas, dois braços, uma cabeça – que é um
monstro”.
Na resistência a esse mecanismo perverso, os torturados procuravam
manter a sua lucidez, para evitar que o torturador penetrasse na sua
subjetividade mais profunda. Este não pode ser caracterizado como um ser
humano fora de sua racionalidade. Segundo Arendt (1999: 299): “muitos não
eram pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e
assustadoramente normais”.
Huggins, Haritos-Fatouros e Zimbardo (2006) discorrem sobre os
tipos de torturadores: os racionais, e logo, morais; os irracionais, imorais.
Nessa concepção está a teoria da "proporcionalidade" da tortura: quando os
47 Depoimento retirado da obra: Vianna, Martha. Uma Tempestade como a sua Memória: a história de Lia, Maria do Carmo Brito. Rio de Janeiro: Record, 2003.
68
casos exigissem a prática da tortura (importância e urgência acerca das
informações a serem reveladas, sujeitos elegíveis - aqueles que se negassem
a fornecer informações ou mesmo por seu temperamento "petulante"),
estariam dentro do universo do "descomprometimento moral". A questão da
elegibilidade do torturado, culpabiliza-o em detrimento do agente que
pratica a tortura e este se apresenta como aquele capaz de definir o
tratamento mais adequado para cada caso, o que é excesso de violência ou
não. Quando a tortura era perpetrada para prazer pessoal, a sua prática era
condenada por outros torturadores. Mas como distinguir esses dois níveis?
No processo da tortura, como saber se satisfação individual e
funcionalidade profissional não se mesclam ou se completam? Nesse sentido,
a moral entra como um fator de minimização da culpa e de justificativa das
ações.
A lucidez ou a tentativa de mantê-la, mesmo que de forma
fragmentada, representava uma significativa estratégia de sobrevivência:
“Toda vez que eu ouvia alguém sendo torturado, fechava as mãos
com força, cravando as unhas na palma da mão.
Foi então que (...) a francesa me salvou. Ela dizia que eu não
deveria fazer isso porque você endurece e perde a sensibilidade,
e que a sensibilidade tinha que ser mantida a qualquer custo. Ela
me ensinou que eu não podia cair em desespero, e disse uma coisa
esquisitíssima, que na época eu demorei uns dois dias para
entender: - Você não pode dizer ‘eu sofro’; tem que dizer ‘eu sou o
sofrimento’. Porque ‘eu sofro’ é insuportável; ‘eu sou o sofrimento’,
não.
Porque, assim como tinha morrido Juares, devia haver milhares de
mulheres vietnamitas cujos maridos estavam morrendo naquela
mesma ocasião, que a humanidade sempre sofreu horrores, as
mulheres sobretudo, e que tudo isso era suportável. Eu enfim
69
entendi, e assimilei isso para o resto da vida” (VIANNA, 2003).
Outro aspecto fundamental é a teatralização da tortura. Nessa
situação-limite, o sentimento de irrealidade é um fator constitutivo: seja
pelo aparato técnico-científico da tortura, seja pelos “espectadores”, ou
propriamente pela inteira exposição. Além desses fatores, essa
teatralização é clandestina, “na qual o poder se apresenta como absoluto
porque sem nome, sem lugar e sem rosto, revela um dos aspectos mais
impressionantes da tortura: os torturados sentem-se sem direitos, mas os
torturadores confessam-se sem poderes” (CHAUÍ, 1987). Segundo os
torturados, essa situação tem um grande risco: a identificação desses dois
atores; aquele que é vítima, o torturado, e aquele que tem o poder, o
torturador, daí a tamanha perversidade desse mecanismo. Contudo, o que os
identifica, “é a instância que os domina e que deles escapa, a máquina do
próprio poder” (ibidem).
“(...) tem a intimidade com o torturador que é muito complicada e
tem um que faz papel de bonzinho, isso tudo te confunde de uma
maneira assim enlouquecida, talvez se fosse agora eu não me
confundisse, mas com 21 anos me confundia” (EX-MILITANTE DA
ALN).
Tavares (2005) por sua vez afirma:
“O choque elétrico nos faz perder a percepção concreta. Ouço
vozes, mas não sei o que dizem nem se me interrogam ou falam
comigo. Logo, a máquina do choque elétrico pára. Em poucos
segundos, entendo que procuram as chaves das algemas e se faz
uma pausa. Ouço, então, uma voz: - Isto é uma irresponsabilidade!
Na ilusão do náufrago à espera de um salva-vidas, entendo que
70
alguém – talvez o comandante do quartel – aparece em minha
defesa e chama de ‘irresponsabilidade’ o que estão fazendo
comigo. Só mais tarde vim a entender a verdade:
‘irresponsabilidade’ era não terem me tirado as algemas antes do
primeiro choque elétrico, pois assim – com as mãos unidas pelo
metal – a corrente, embora aplicada no lado direito, passava
diretamente ao coração e o preso podia morrer ali mesmo. O
choque elétrico não se aplica com intenções assassinas, mas para
triturar o prisioneiro, esmigalhá-lo, reduzindo-o a uma condição de
inferioridade e impotência absoluta, física e psicológica. Eles não
pretendiam matar, nem nos matar. Só nos aniquilar em vida,
destruir-nos vivos como numa fogueira em que Joana D’Arc
queimasse e queimasse sem jamais se extinguir nas chamas, para
sofrer ainda mais com a dor multiplicada”.
Entre torturador e torturado é impensável a criação de uma relação
de igualdade. A tortura pode ser protagonizada em alguns momentos pelo
torturador, quando pratica a sua “função” de algoz com todos os tipos de
métodos possíveis. Isto não quer dizer que esta situação não possa ser
transformada, na medida em que o torturado consiga se desviar dos
objetivos inicialmente estabelecidos pelo torturador. A mutação referida
não significa a inversão dos papéis - mas a resistência, física, psicológica e
ideológica frente àquele mecanismo tão perverso e desigual - como nos
casos em que militantes resistiram até a morte para não delatar seus
companheiros48.
A relação descrita anteriormente é bastante complexa, no sentido de
48 Para Huggins, Haritos-Fatouros e Zimbardo (2006: 72), na pesquisa com relatos de histórias de vida, existe o perigo de se enfatizar a resistência e minimizar a importância do "poder estrutural". Dessa forma, pode-se passar a impressão de que torturadores e torturados encontram-se em igualdade nesse momento extremo de violência, colocando em segundo plano o impacto do poder estrutural.
71
que a tortura não é impessoal, como o assassinato, por exemplo. Este é
rápido e não pressupõe uma relação mais duradoura. Porém, a tortura pede
um "compromisso com a vítima", mesmo que seja a concretização da tortura
propriamente. O assassinato não exige uma preparação, a tortura sim.
De acordo com Huggins, Haritos-Fatouros e Zimbardo (2006):
"Os torturadores devem desenvolver um relacionamento
'emocional' manipulativo consciente com suas vítimas, tratando-as
como indivíduos sem sentir empatia por elas (...) precisam dominar
técnicas para obter informações rápida e habilmente sem matar as
vítimas (...) o trabalho do torturador é relativamente lento e
metódico, enquanto o do assassino freqüentemente é rápido e
espontâneo. O trabalho do torturador nunca se completa, enquanto
o do assassino está temporariamente cumprido cada vez que
alguém é assassinado".
A “infinitude” da tortura também se mostra nas marcas que os
sujeitos carregam consigo e que refletem nas diversas esferas de suas
vidas.
Também podemos fazer um recorte de gênero, pois de acordo com os
relatos de mulheres torturadas, a tortura direcionada à mulher é
extremamente machista, sem contar o fato de que, na sociedade brasileira,
com fortes traços moralistas, à mulher é atribuído o espaço privado e
familiar. Dessa forma, a sua inserção política, aliada a sua aparente
fragilidade física e a sua condição de “mulher” (supostamente desejada pelo
homem), eram fatores favoráveis para a perpetração da tortura.
De acordo com o relato de Cecília Coimbra, ex-presa política e
militante do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ:
“Logo que sou levada ao DOI-CODI/RJ, depois de três dias no
72
DOPS, um pouco antes de ser iniciada a tortura, recebo na cela
onde me encontro uma estranha ‘visita’: Amílcar Lobo que se diz
médico, tira minha pressão e pergunta se sou cardíaca. Ou seja,
prepara-me para a tortura (...) para que esta possa ser mais eficaz
(...) Geralmente eram as mulheres que recebiam essa ‘visita’, com o
objetivo de terem suas resistências avaliadas para que a
repressão pudesse saber até que ponto poderiam agüentar as
torturas, sem atrapalhar as informações que precisavam tirar
delas. Colocam-me nua e acontecem as primeiras sevicias (...) Os
guardas que me levam, freqüentemente encapuzada (...) percebem
minha fragilidade (...) constantemente praticam vários abusos
sexuais (...) Os choques elétricos no meu corpo nu e molhado são
cada vez mais intensos (...) Eu me sinto desintegrar: a bexiga e os
esfíncteres sem nenhum controle (...) ‘Isso não pode estar
acontecendo: é um pesadelo (...) Eu não estou aqui (...)’, penso eu. O
filhote de jacaré com sua pele gelada e pegajosa percorrendo meu
corpo (...) ‘E se me colocam a cobra, como estão gritando que
farão?’ (...) Perco os sentidos, desmaio (...)” (2004).
A obra Brasil: Nunca Mais – um relato para a história traz inúmeros
relatos de aborto e de estupros direcionado a mulheres:
“A qualquer hora do dia ou da noite sofria agressões físicas e
morais. ‘Márcio invadia minha cela para ‘examinar’ meu ânus e
verificar se ‘Camarão’ havia praticado sodomia comigo. Este
mesmo ‘Márcio’ obrigou-me a segurar seu pênis, enquanto se
contorcia obscenamente. Durante esse período fui estuprada duas
vezes por ‘Camarão’ e era obrigada a limpar a cozinha
completamente nua, ouvindo gracejos e obscenidades, os mais
grosseiros” (INÊS ETIENNE ROMEU, 198549).
49 BRASIL: NUNCA MAIS – UM RELATO PARA A HISTÓRIA. Prefácio: D. Paulo Evaristo Arns. Rio de Janeiro: Vozes, 1985.
73
O aparato montado pelo regime de terror contava com a significativa
participação de profissionais - entre eles médicos e enfermeiros – que
reanimavam presos ou davam o aval para que os torturadores prosseguissem.
De acordo com o ex-soldado Adaílton Vieira Bezerra, 50 anos, que atuou
junto ao aparato repressivo nos porões da Guerrilha do Araguaia como
"enfermeiro" do Exército:
"Preparavam a lama de fezes e urina. Colocava-se uma tábua, duas
latinhas, a pessoa ficava em cima e tinha um fio para segurar. O
fio tinha trechos desencapados. Aquele cabo recebia corrente
elétrica vinda da bateria ou do gerador (...) Era quando a pessoa
tinha medo de falar. Ela continuava apanhando, continuava a
tortura, até ficar escornada, vazando sangue pela boca, pelo
ouvido. Os interrogatórios eram retomados. Nova sessão de
tortura e nós trabalhávamos de novo para reanimar”50.
“No Rio ou em Montevidéu e em qualquer parte, esses médicos-
monstros eram os únicos com poder sobre os torturadores. Os
únicos com capacidade de ordenar que parassem”51 (TAVARES,
2005).
Os traumas psíquicos deixados pela tortura são de grande
intensidade, como o mostra o relato de uma ex-militante da ALN:
“o psiquiatra do CODI me disse... Amílcar Lobo... ele foi me
50 Folha de São Paulo, 01 de maio de 2005. “Ex-militares relatam tortura do Exército contra guerrilha”. 51 Flávio Tavares refere-se ao Rio de Janeiro, local em que foi preso pela ditadura militar brasileira, e a Montevidéu, Uruguai, já no exílio, onde foi seqüestrado e acusado de espionagem.
74
examinar, eu tava muito ferida, choques elétricos, e ele soltou
assim muito tranqüilamente: -“você tem o útero retrovertido
infantil, nunca vai poder ter filhos”. Eu tinha 21 anos, eu fiquei...
os quase quatro anos que eu fiquei presa, eu só pensava isso, “não
vou poder ter filhos, será que eu posso ter filhos?” era uma forma
de tortura... eu não entendi na época que isso era tortura... mas
foi... pra uma mulher de 21 anos era uma forma de tortura assim...
leve na forma e brutal no conteúdo”52 .
“o médico, não me lembro o nome do cara, era urologista do
hospital do Exército, do hospital geral do Exército, “nós aqui
temos dois critérios: um é o senso de dever como médico e o
outro é o amor pela pátria, pelo que você fez você não merece
consideração” Aí virou pros quatro caras da OBAN que tavam me
levando (...) provavelmente do Estado, do DOPS sei lá, todos eles
andavam juntos, trabalharam juntos e falou “esta moça deve
beber muito líquido e não deve apanhar no rim, o resto é com
vocês”.
As saídas utilizadas pelos atingidos frente ao terror de Estado
chegavam a “transpor” a própria realidade:
“Aí eu fiquei muito doente mesmo (...) eu via um monstro, o tempo
todo ele me acompanhava, eu fiquei tão ruim que pra não
enlouquecer de vez, eu tinha o tal monstro que ficava felizmente
fora de mim. Então era um adolescente, com síndrome de Down,
que ficava a uma certa distância de mim e olhava pra mim com um
sorriso que era enigmático. Eu não sabia se ele ia me atacar, se ele
52 A tortura sexual tem início com a nudez forçada, a fim de elevar ao limite a situação de vulnerabilidade e humilhação. A possibilidade de um abuso, estupro ou sexo anal é constante e potencial. O preso pode ser colocado nu na frente de parentes e estranhos ou mesmo forçado a abusar sexualmente um do outro. Aliado à questão física e intrinsecamente psíquica está o medo de uma possível gestação, da perda da masculinidade, de não ser mais capaz de ter filhos.
75
não ia me atacar, ele era forte, ele me acompanhava em todo
lugar, então eu tava ficando completamente louca” (UMA EX-
MILITANTE DO PC DO B).
Gaspari (2002) considera que a tortura tornou-se rotineira no
interior da máquina de repressão do regime militar pela associação de dois
conceitos - um seria a concepção absolutista da segurança da sociedade e o
outro se associa à funcionalidade dessa prática, que representava uma
forma eficaz de acabar com os terroristas, papel atribuído aos opositores
políticos do período.
A implantação do terror no regime militar, para Ibarra (2000), não
representa um indício de sua monstruosa força, mas sim de sua profunda
debilidade. Para o autor, um Estado que se assenta no uso da força é fraco e
um Estado que se assenta no consenso é forte.
Ibarra (2000) afirma:
“La ejecución extrajudicial y la desaparición forzada son
solamente medios que buscan la intimidación y en el caso de la
segunda, información. A su vez intimidación e información,
también son solamente medios que facilitan la liquidación de
opositores y subversivos. Es la obtención de la estabilidad política
del Estado, el verdadero objetivo del terror” (p.7).
De acordo com Gaspari, a tortura é filha do poder e não da maldade
desumana dos seres humanos, pois ela tem um sentido para aqueles que a
sofrem e outro para aqueles que a fazem funcionar. Para o torturado, resta
a dor e para os torturadores a certeza da eficácia do método. Para os
últimos “o crime não está na tortura, mas na conduta do prisioneiro. É o
silêncio, acreditam, que lhe causa os sofrimentos inúteis que podem ser
76
instantaneamente suspensos através da confissão” (2002: 20).
A confissão passa pela capacidade de o sujeito resistir àquele
mecanismo de extrema coerção. Para Gorender (1987), “são mais aptos a
resistir à tortura os militantes que interiorizaram a ideologia socialista e
fizeram dela sua norma moral” (p. 261). A ex-dirigente da ALN, Zilda
Xavier, chamou de covardes os simpatizantes da organização envolvidos na
cilada em que Marighella, o chefe da organização, foi assassinado.
Segundo Gaspari (2002: 39), esse julgamento “subverte o problema
moral da tortura, transferindo-se à vítima a responsabilidade pela conduta
do algoz”. Portanto, percebe-se uma polêmica quanto à questão dos
interrogatórios e da resistência à tortura53. Nesse sentido, de absoluto
acordo com Gaspari e de encontro ao pensamento de Gorender, acredita-se
que a culpabilização - daqueles que não conseguiram, por qualquer razão,
desviar-se dos objetivos dos torturadores - constitui uma forma de
remeter ao indivíduo a responsabilidade por uma prática [a tortura] que vem
no seio de um projeto político, de forma a lhe conferir legitimidade e a
perpetuá-lo. Dessa forma, a ditadura militar brasileira seria absolvida,
enquanto alguns sujeitos seriam “endeusados” e outros seriam
“crucificados”.
De acordo com a fala de uma ex-militante da ALN:
“Era assim: ou você não fala nada ou você é traidor, e não é
nenhuma coisa nem outra, eles estão ali pra te destruir, pra te
quebrar, pra te destruir como pessoa, é isso... é pra quebrar tua
espinha dorsal, pra você se deprimir, se desapontar, não acreditar
em mais nada, pra você se confundir com os teus dias, com o que
53 Segundo Maria do Carmo Brito, ex-militante da VPR: “Na verdade, nunca achei que quem fala é um monstro, um traidor. Sempre pensei que cada um tem o seu limite, que isto é da condição humana. Nunca fui sectária. Mas é diferente quando é com você. A gente sempre acha que deveria ter sido mil vezes melhor do que foi” (VIANNA, 2003).
77
você pensa e com isso eles conseguiam todas as informações que
eles querem e ainda se você sobrevivesse fisicamente que eu digo
é... você vai sobreviver muito mal psicologicamente. Eu acho que a
intenção é essa, é... destruir o teu eu”.
“Pra começar toda aquela empáfia nossa que a gente tava
preparado... foi uma tremenda de uma falácia. Ninguém nas nossas
condições poderia estar preparado pra levar porrada e do jeito
que foi. Morrer, talvez, é mais rápido, mas ser torturado, não, a
gente não tinha preparo” .
De acordo com Gaspari (2002), existe uma confusão entre o
interrogatório e o suplício. No primeiro existem perguntas e respostas. No
suplício, busca-se a submissão. Quando os presos respondem, suas falas são
resultado de uma submissão única e exclusiva à vontade do torturador.
A tortura leva a diferentes níveis de dor. O sofrimento é comandado
pelo torturador e, nesse sentido, este possui o controle do corpo do
torturado. Num determinado momento, o preso prefere a morte à confissão,
que se torna um aspecto irrelevante. “A dor destrói o mundo do torturado
ao mesmo tempo que lhe mostra outro, o do torturador, no qual não há
sofrimento, mas o poder de criá-lo” (GASPARI, 2002).
A teoria da funcionalidade e da necessidade da tortura para obter
confissões camufla a verdadeira busca pela sua inimputabilidade, argumento
que vem embasando os discursos que pretendem manter a impunidade no
país.
Na situação de tortura, os agentes que a praticam podem tentar
justificar suas ações ao alegarem a obediência a ordens superiores. Nesse
sentido, pode-se fazer uma analogia ao pensamento de Arendt (2004):
“faria muito mais sentido considerar o funcionamento dos ‘dentes da
78
engrenagem’ (...) em termos do apoio global a um empreendimento comum do
que em termos habituais de obediência aos superiores” (p. 110).
Nesse sentido, Arendt (ibidem) avança, pois ao considerar
“empreendimento comum” está se referindo a uma dimensão mais ampla, em
que remove a discussão agentes/tortura do espaço unicamente
individual/particular para o debate em torno da noção de projeto, formado
por um coletivo.
Para Maria Rita Kehl (2002): “o mal, em centenas de casos como o de
Eichmann, foi praticado não por razões essencialmente perversas – por
exemplo, como um ódio pessoal contra os judeus, movido por sentimento de
extrema intolerância , mas por motivos banais: obediência, oportunismo,
vontade de fazer deslanchar uma carreira medíocre. A idéia de que o maior
mal possa ser praticado de um modo banal pelo mais insignificante e servil
dos homens deve nos alertar para isto: que o fundamento de todo Desejo
não é nada além do desejo masoquista de sujeição a um Outro absoluto (...) a
banalidade do mal nasce do vazio de pensamento” (p. 90) .
Pode-se realizar também uma discussão estrita sobre a questão da
obediência. Esta tem direta relação com a questão do descomprometimento
moral da violência (HUGGINS, HARITOS-FATOUROS E ZIMBARDO,
2006). Trata-se de seres humanos que, desempenhando funções, sujeitos a
normas e ordens superiores, declaram-se desprovidos de sua
responsabilidade na perpetração de atrocidades.
A retirada da noção da individualidade para o sentimento e status de
pertencimento ao grupo modelava as novas identidades desses sujeitos
obedientes - instrumentos da barbárie que eles mesmos perpetravam54.
54 O treinamento de militares recém-chegados à instituição tem esse propósito: todos "pagam" pelo erro de um, não existe individualidade, mas somente a identidade esquadrão, tropa, pelotão.
79
Coimbra (2001:221) afirma que profissionais de psicologia têm
procurado encontrar características psicopatológicas em pessoas
protagonistas de regimes de terror. De acordo com a autora, uma
pesquisadora americana surpreendeu-se ao final de sua pesquisa que, ao
examinar sete criminosos de guerras nazistas, não encontrou personalidades
“desajustadas”.
Na questão da responsabilidade como parte da coletividade pode-se
fazer uma ligação com a impunidade. Os responsáveis/culpados que
lideraram a execução e a manutenção dos mecanismos de legitimação do
regime militar não foram punidos legalmente e nem moralmente. A anistia,
abrangendo atingidos e agentes repressivos ao mesmo tempo, acabou por
responsabilizar atingidos e torturadores, camuflando a culpa pertencente a
grupos específicos da sociedade brasileira.
2.1 O PARADOXO DA TORTURA
Pretende-se expor, nessa reflexão sobre as características dessa
forma brutal de violência, a seguinte hipótese: a tortura é um mecanismo
tão perverso que, ao mesmo tempo em que representa a impossibilidade de
se fazer política, mostra-se um instrumento de afirmação de um projeto
político, determinado historicamente. Daí a denominação “o paradoxo da
tortura”.
Para tal exposição, trataremos de distintas concepções sobre
política, mas que, no nosso entendimento, convergem na direção desse
paradoxo. Dessa forma, trabalhar-se-á com as concepções de Hannah
Arendt, Marilena Chauí e Antonio Gramsci.
Para Arendt (1994), o poder corresponde à habilidade humana para
80
agir em coletividade, nunca representando a propriedade de um indivíduo. O
poder seria resultante do consenso entre iguais55, baseado na vontade
comum e não no simples convencimento. De acordo com essa concepção, a
política somente pode ser pensada por meio da ação comunicativa, em que os
sujeitos envolvidos nessa relação de poder/política são semelhantes e
ativos, no sentido de que trazem elementos de igual equivalência.
A violência diferencia-se pelo seu caráter instrumental, pois depende
da justificação pelo fim que quer alcançar. Segundo a autora, “jamais existiu
governo exclusivamente baseado nos meios da violência. Mesmo o domínio
totalitário, cujo principal instrumento de dominação é a tortura, precisa de
uma base de poder – a polícia secreta e sua rede de informantes”56 (p. 40).
Arendt afirma que a violência e a brutalização da política encontram-
se na esfera do não-político. Para Arendt (1994:44), o poder é a essência de
todo governo, mas a violência não. Esta está imersa na possibilidade de
destruir aquele; a perda do poder abre espaço para a violência. De acordo
com a mesma: “Poder e violência são opostos; onde um domina
absolutamente, o outro está ausente. A violência aparece onde o poder está
em risco, mas, deixada a seu próprio curso, ela conduz à desaparição do
poder”. Entretanto, acredita-se, não quer negar que, no interior da esfera
do poder, possa existir a prática da violência; Arendt apenas aponta para a
potencialidade que esta tem de destruí-lo. Nesse sentido, pode-se pensar
que a violência pode estabelecer uma relação de paralelismo com o exercício
do poder, na medida em que este encontra uma oposição que possa ameaçá-
lo.
Segundo Chauí (1987), diferentemente da tradição liberal, no golpe
55 Não se pretende no presente estudo, discutir sobre os sujeitos iguais de que trata Arendt em sua obra. 56 Seria necessário frisar que a mesma faz uma distinção entre os regimes totalitários e os governos ditatoriais, que será abordada posteriormente.
81
de 1964, entende-se que “à moda do terror, do nazi-fascismo e da
monarquia medieval, a representação sofreu uma inversão profunda: é por
que se governa que se é representante” A autora ressalta:“Em outros
termos, recuperam do terror e da monarquia absoluta o direito de vida e
morte sobre toda a sociedade. É essa inversão fantástica que designei como
impossibilidade da política” (CHAUÍ, 1987).
Chauí (ibidem) traz para a discussão a questão da impossibilidade da
política. Acredita-se que a “impossibilidade da política” pensada por Chauí e
o conceito da esfera do não-político de Arendt trazem aspectos
importantes para o entendimento da questão.
A concepção ampla de política gramsciana atenta para a importância
da política na constituição dos seres sociais. A escolha teórica anterior
reitera o fato de que as idéias de Gramsci norteiam a concepção de política
desta dissertação.
O conceito de política gramsciano abrange duas concepções. Em seu
sentido “amplo”, como “catarse”, a política é um elemento que atravessa
todas as esferas do ser social. E como “catarse”, indica a passagem do
momento meramente econômico para o momento político e ético,
identificado com a liberdade. Nessa concepção, a política é concebida como
instrumento de criação, de elaboração de consciência para que a "classe
social" possa se tornar hegemônica na sociedade57 (COUTINHO, 2003).
No sentido restrito, o conceito aparece como o “conjunto de práticas
e de objetivações que se referem diretamente ao Estado, às relações de
poder entre governantes e governados. Se, em sua primeira acepção a
57 A acepção restrita gramsciana de “política” a apresenta como algo transitório no decorrer da história, que “será superada dialeticamente, (...) elevada a nível superior na sociedade comunista” (COUTINHO, 2003). O caráter histórico e, por essa razão, transitório, tem origem na divisão da sociedade em classes e tem seu fim com o advento da sociedade comunista e a conseqüente extinção das classes sociais.
82
política pode ser considerada um momento ineliminável da estrutura
ontológica do ser social, nessa segunda acepção ela aparece, ao contrário,
como algo historicamente transitório” (COUTINHO, 2003: 93).
Gramsci, diferentemente de Marx, Engels e Lenin, presenciou a
intensificação dos “processos de socialização da participação política”. A
formação de novos sujeitos políticos possibilitou a Gramsci a ampliação da
teoria de Estado elaborada anteriormente por esses pensadores.
Gramsci, ao ampliar o conceito de Estado, pensa o termo sociedade
política representado pelo Estado-coerção aliado à sociedade civil, esta
formada pelas diversas organizações sociais e coletivas autônomas em
relação àquela. No pensamento gramsciano, a supremacia seria o momento
em que a hegemonia e a dominação, o consenso e a coerção, a direção e a
ditadura são unificados, mas a disputa pela supremacia dependeria da
autonomia das esferas superestruturais e do grau de correlação de forças
entre as classes sociais.
De acordo com Acanda (2006), a teoria da hegemonia de Gramsci tem
como ponto de partida a questão da relação entre política e cultura. Com o
significado gnosiológico do princípio da hegemonia, Gramsci ressalta a sua
ruptura com a concepção liberal e afirma a dialética da sua interpretação
sobre política58 - a relação orgânica entre política e cultura, entre poder e
saber. Nesse sentido, Gramsci pensa os processos de dominação e o poder,
analisando-os também na esfera cultural.
A teoria gramsciana sobre o poder apresenta-se em contraposição às
concepções liberal e marxista economicista da II Internacional. Na
concepção liberal, o poder é considerado um bem, uma mercadoria que
58 Segundo Coutinho (2003), no pensamento gramsciano existe uma centralidade da política, pois se tende a relacionar todas as esferas do ser social com o campo político, ”a política como elemento real ou potencial ineliminável” (p. 91).
83
concebe a figura de um “sujeito primário, dotado de direitos naturais e
poderes” (idem, 202). O poder é visto como algo negativo, veículo da
repressão. Na concepção marxista também se presencia a negatividade do
poder, pois se enfatiza o seu caráter de repressão e violência. O poder é
concebido como o Estado, e a sua função seria apenas a manutenção das
relações econômicas existentes.
Acanda (2006: 203) afirma:
“Gramsci nos confronta com um poder que é sempre imanente ao
meio em que é exercido (...) O poder não é visto como uma coisa
que se adquire ou se perde. Seu estatuto não é o de ‘ente objeto’,
mas de uma relação. Por isso, não é possível identificá-lo apenas
com a ação repressiva, com uma barreira que impede a
possibilidade de uma ação diferente. Ao interpretá-lo como
hegemonia, Gramsci destaca sua positividade, seu modo operante
e também (principalmente) produtivo, criador de possibilidades. O
poder é relação de forças, é atividade”.
O poder na situação de tortura se despe de sua condição de relação e
criação. A política pensada por Gramsci em um sentido amplo, generoso,
deforma-se na sua essência. A tortura, ao anular o outro, apresenta-se
concretamente como a impossibilidade da política - daí a analogia com o
pensamento de Chauí (1987) - e distancia-se inimaginavelmente da
concepção arendtiana de espaço de comunicação entre os sujeitos.
Nesse intuito é que pretendemos pensar como a política, momento
constitutivo da estrutura ontológica do ser social, “da liberdade, da
teleologia, do dever ser, da iniciativa dos sujeitos” (Coutinho, 2003), pode
ser usurpada de forma drástica dos sujeitos a que a tortura se direciona. A
tortura como instrumento de anulação destrói as potencialidades no
84
momento de sua execução, interrompendo projetos ou destruindo-os em
diferentes proporções.
A tortura como via de total e brutal aniquilação do outro como ser
humano, ultrapassa largamente a noção gramsciana de coerção. Embora se
reconheça a importância da formulação gramsciana, aqui se quer pensar a
prática da tortura como um mecanismo que vai além desses conceitos
elaborados anteriormente sobre o espaço da política. Paradoxalmente, a
mesma tortura representa uma via significativa de afirmação de um projeto
político, pois nessa total anulação esmaga seus opositores, anulados pela sua
perversão e eficácia. Dessa forma, a tortura é fundada nessa contradição,
que lhe dá sentido e legitimidade.
2.2 CONSIDERAÇÕES SOBRE A LEGITIMIDADE DA DITADURA
MILITAR BRASILEIRA
Neuman (1969), ao pensar na função social da ditadura, levanta a
possibilidade de ser uma tentativa de uma classe social ameaçada, que
tentando manter o seu status quo, instaura a ditadura59. Considero ser esse
o caso específico do Brasil, pois o golpe militar foi instaurado em um período
de intensa efervescência política e cultural.
Netto (2001) considera o regime militar instalado no Brasil como uma
59 Franz Neuman caracteriza outras duas possíveis funções sociais para a ditadura: 1) classes sociais que reivindicam o reconhecimento de seus interesses que os políticos no poder se recusam a conceder; 2) classes condenadas que, na tentativa de transformar suas condições sócio-econômicas, instauram um sistema que lhes restitua sua antiga posição (1969: 276).
85
ditadura militar-fascista. O autor discute que, até a implementação do AI-
5, a ditadura se apresentava como basicamente reacionária, na qual ainda
cabiam mediações de corte democrático. Nesse sentido, destacando o
momento posterior a este Ato Institucional, o mesmo caracteriza o
momento como “genuíno” para a autocracia burguesa, pois “converte-se num
regime político de nítidas características fascistas” (p.38 – grifos originais).
Touraine (1989) destaca que as formas de controle utilizadas nas
ditaduras militares latino-americanas eram bastante diferenciadas daquelas
usadas pelos regimes fascistas. Segundo o mesmo, nas ditaduras latino-
americanas, houve maior teor repressivo do que propriamente ideológico,
diferentemente do que ocorreu no fascismo60 .
Seria importante grifar, de acordo com Netto (2001), que a
hegemonia nunca saiu das mãos da burguesia. Na contracorrente do
processo ditatorial, não se engendraram núcleos capazes de trazer
propostas “aptas a transcender os quadros da ordem burguesa” (p.44).
Gorender (1987) não concorda com a tese de uma ditadura militar
identificada com o fascismo, pelo fato de a direção estatal não ter sido
monopolizada por um partido fascista. Dessa forma, o autor opta pela idéia
de militarização do Estado.
Coutinho (2000), indicando que a ditadura instalada no país não
representou uma ditadura fascista clássica, pois não dispunha de bases de
massa organizadas, acredita que “o regime militar não foi capaz de
subordinar totalitariamente (...) [a] crescente sociedade civil ao Estado” (p.
89). Dessa forma, prefere o termo autoritarismo61, pelo fato de que o
60 TOURAINE, Alain. Palavra e Sangue: política e sociedade na América Latina. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Trajetória Cultural, 1989. 598 p. 61 Norbert Lechner designa os regimes militares instalados no Brasil, na Argentina e Chile como um novo autoritarismo (LECHNER, Norbert. La crisis de Estado en América Latina. Revista Mexicana de Sociología. México, v.39, nº 2, p.389-426, abr/jun. 1977).
86
regime se restringiu a domesticar (pelo aparato legal) e reprimir (pela via do
terrorismo de Estado) a sociedade civil, ou seja, teve de certa forma, que
conviver com ela. Contrapondo-se à noção de autoritarismo abordada por
Coutinho, Netto (2001) aponta que este termo tem “funcionado como
panacéia descritiva e compreensiva, que, pela sua indeterminação, é aplicável
a qualquer ‘objeto’ e vale para as mais díspares conjunturas históricas”
(p.39).
Para Neuman (1969), o que distingue o totalitarismo politicamente é a
existência de um partido estatal monopolista, porque os instrumentos de
coação já utilizados não são suficientes para controlar a sociedade e porque
a fidelidade das burocracias e das forças armadas pode ser em alguns casos
duvidosa. Com a máquina do Estado controlada, o partido envolve “um
aspecto sócio-psicológico que pertence ao que chamamos comumente de
sociedade de ‘massa’ (...) o grupo totalitário tem que assumir a forma de um
movimento democrático (...) embora [despido] de toda a sua verdadeira
substância” (p.269). Nesse caso, refere-se à ditadura totalitária62.
Arendt (2004) faz uma importante diferenciação entre os regimes
ditatoriais e os totalitários. Nas ditaduras, a autora considera que se tem a
supressão da liberdade política, enquanto que a vida privada não é afetada.
Nos governos totalitários todas as esferas da vida são afetadas, logo, a
dominação não se estende somente à esfera da política. Nesse sentido, a
autora faz uma distinção clara entre as duas formas de governo63.
62 Neuman (1969) na sua “tipificação” das ditaduras aborda também a ditadura simples e a ditadura cesarista. A primeira, para ser mantida, necessita exercer controle sobre “instrumentos clássicos de domínio: o exército, a polícia, a burocracia e o Judiciário”. Segundo o autor, essas ditaduras ocorrem em países onde as massas não são politizadas e a política está centralizada nas mãos de setores específicos. Na ditadura cesarista entra um novo elemento: a questão da legitimação popular. 63 Arendt (2004) argumenta: “(...) em qualquer ditadura, quanto mais numa ditadura totalitária, o número relativamente pequeno de homens capazes de tomar decisões – que num governo normal ainda podem ser nomeados – encolhe para Um, enquanto todas as
87
Para Ibarra (2000), uma ditadura – diferentemente do totalitarismo
- tem suas limitações em sua própria natureza. Existe a necessidade
irreversível de “reprimir para governar”. A informação é vital para eliminar
a oposição ou a subversão, assim como o desaparecimento forçado busca
apropriar-se da corporeidade e do psi da "vítima"64.
De acordo com Ibarra (idem), nas ditaduras, a violência como ato de
dominação se converte no eixo fundamental das relações entre o Estado e a
sociedade. Nas ditaduras “abertas” as ações violentas encontram amparo em
um corpo jurídico que supostamente daria legalidade ao terror. Ibarra
acredita que “el terror busca crear en el seno de la sociedad, la sensación
de que el poder del estado es invencible, de que cualquier forma de
resistencia es una estúpida e inútil osadía, que solamente conduce a la
muerte, a la tortura y a la cárcel” (p.6).
Entretanto, podemos pensar em que medida, nas ditaduras militares,
a vida privada mantém-se imune aos mecanismos de repressão. No que diz
respeito aos militantes opositores ao regime, constantes ameaças e
seqüestros eram direcionados a familiares. A supressão de direitos e a
exacerbação das práticas violentas, em especial com o AI-5 no caso
brasileiro, também provocaram importantes rearranjos no âmbito privado,
limitando a inserção desses sujeitos no espaço das relações sociais e
estreitando laços com companheiros que se encontravam na mesma situação
de clandestinidade e vulnerabilidade. Entretanto, a militância em si e todas
as suas conseqüências consistem em uma opção político-ideológica e não uma
imposição direta do regime, embora o aparato repressivo seja o propulsor
da supressão das liberdades individuais.
instituições e órgãos que começam a controlar ou ratificam a decisão executiva são abolidos” (p. 92). 64 Mais uma vez Ibarra (2000) refere-se à noção de vítima, a qual não pretendo aprofundar.
88
Os traumas psíquicos deixados nos torturados podem também chegar
à perda do sentido do espaço privado, como mostra a seguinte fala:
“(...) eu tenho coisas persecutórias, por exemplo, a casa pra mim,
essa casa, eu moro aqui há 26 anos, não é um lugar seguro, pra
todo mundo a casa é um lugar seguro, não é? (...) O lugar que você
podia ser presa era na sua casa. Enquanto você tava na rua era
difícil de você ser preso. O território mais perigoso era a sua
casa, era um lugar fixo. Então a casa sempre representou pra mim
um perigo (...) Até hoje não gosto de casa. Até hoje não gosto de
dar meu nome, meu endereço, meus dados, eu tenho uma
restrição” (UMA EX-MILITANTE DO PC DO B).
Em face do exposto acima, pode-se perceber que a invasão da esfera
privada não estava restrita às relações sociais, com companheiros de luta ou
mesmo com familiares. A perda de sentido dos espaços público/privado
chega ao ponto de uma sobreposição entre eles, em que se confundem ou se
alteram os sentidos de referência, segurança, confiabilidade, estabilidade.
Para Gaspari (2002), a tortura não pode viver enclausurada, ela
acaba por transbordar para outras áreas da atividade pública. Nessa rede,
encontra-se a cumplicidade do Judiciário65, a fim de prevenir possíveis
denúncias e anular confissões obtidas. Aliados também são encontrados em
65 Na obra Brasil: Nunca Mais (1985), discute-se sobre a “subversão do direito” como mais um dos instrumentos do regime militar. Em 1974, João Henrique Ferreira de Carvalho foi condenado a um ano de reclusão. A sua condenação foi fundamentada apenas nos autos do Inquérito Policial Militar (IPM). Entretanto, segundo o Código de Processo Penal Militar, a finalidade do IPM é fornecer subsídios ao representante do Ministério Público para propor a ação penal. João Henrique interpôs recurso, mas não obteve sucesso. Os ministros do Superior Tribunal Militar entenderam que: “De acordo com o princípio do livre convencimento, alicerçado no exame do conjunto de provas, é legítima a condenação que se funda na instrução policial não infirmada pela prova colhida na instrução judicial, porque o convencimento do julgador se inspira na realidade dos fatos apurados com isenção, e não no lugar onde se faz a colheita das provas” (p. 193). Para uma consulta acerca da participação do Judiciário na ditadura militar brasileira, recorrer à obra.
89
hospitais, médicos e legistas dispostos a contribuir para fraudar autópsias e
autos de corpo de delito.
De acordo com Gorender (1984), a rotinização da tortura contribuiu
para minimizar a deterioração da imagem pública das Forças Armadas. Para
o autor, a fase inicial da tortura não era sofisticada, era brutal para que os
militantes fossem obrigados a delatar seus companheiros – “a maioria das
quedas ocorreu em pontos de rua e em aparelhos denunciados” (p.228).
Ainda, segundo Gorender, a segunda fase contou com um certo refinamento,
o objetivo não era única e exclusivamente arrancar confissões mais
urgentes, mas “alargar o círculo das informações, de completar confissões
e rechear os fichários trabalhados pelos analistas de interrogatórios”
(ibidem). Dessa forma, a tortura apresenta-se também como dispositivo de
controle social: por meio da imposição do medo, era obtida a conivência com
o regime.
Os torturadores recebiam do Centro de Informações do Exército
uma condecoração meritória, a Medalha do Pacificador – a mais alta
premiação do Exército, que registrava o reconhecimento pelos serviços
prestados. Ao mesmo tempo mantinham uma situação falsa de que
interrogadores deveriam respeitar leis, diretrizes e um mundo clandestino,
onde a prática da tortura era usual e legítima. Uma das exemplares
comprovações desse aparato clandestino construído pela ditadura militar foi
um Manual de Tortura encontrado nos arquivos do DOPS/Paraná, pela
professora Derley Catarina de Luca (apud COIMBRA, 2001: 223). Além de
ser propriamente um manual de interrogatório, também fornecia
informações sobre os sintomas por ele produzidos:
“o interrogatório é uma arte e não uma ciência (...) o fator que
decide o resultado de um interrogatório é a habilidade com que
90
interrogador domina o indivíduo, estabelecendo tal advertência
para que ele se torne um cooperador submisso (...) o objetivo de
um interrogatório de subversivos não é fornecer dados para a
justiça criminal processá-los; seu objetivo real é obter o máximo
possível de informações. Para conseguir isso será necessário
recorrer a métodos de interrogatório que, legalmente, constituem
violência (...) se o prisioneiro tiver de ser apresentado a um
tribunal para julgamento, tem de ser tratado de forma a não
apresentar evidências de ter sofrido coação em suas confissões
(...) fraquezas de caráter, como medo, hábitos nervosos ou
inversamente excesso e confiança, podem ser usados com
vantagem pelo interrogador (...) um homem que esteja obviamente
em estado de terror, deve ser conservado em condições que
aumentem sua apreensão (...) como resultado das pressões (...) o
indivíduo pode experimentar alguns sintomas: fadiga mental e
física; (...) aumento da consciência culpada (...) neste estágio, o
indivíduo por necessidade do conforto físico e mental, tornar-se-á
cada vez mais dependente do interrogador (...)”.
Para Gaspari, a tortura não pode ser justificada em defesa da
sociedade, pois representa um instrumento do Estado contra ameaças a fim
de atingir objetivos específicos. Segundo o autor, quando a tortura é levada
para dentro das instituições hierarquizadas criadas pela máquina,
caracterizadas pela forte disciplina contida nelas, produz-se uma burocracia
da violência. Nesse sentido, para que esse mecanismo tenha eficácia, faz-se
necessária a recompensa funcional, através das gratificações e/ou
promoções dirigidas a esses torturadores.
Como afirma Gaspari (2002), em alguns casos, o “combate ao
terrorismo” provoca a suspensão de garantias constitucionais mesmo em
regimes democráticos, como ocorreu na Itália e na Irlanda. Entretanto,
nesses casos a repressão existiu paralelamente à manutenção da ordem
91
constitucional. No caso brasileiro, a tortura sistemática, sancionada a partir
de 1968, “tornou-se inseparável da ditadura”. Na concepção do autor,
diferentemente de Hanaah Arendt e Marilena Chauí, a tortura é
transformada em mais um elemento do jogo político e, enquanto prática dos
porões, faz com que uma parte dos sujeitos perca todas as suas garantias,
inclusive a percepção da sua própria condição de cidadania.
Neste capítulo, estabeleceu-se uma tentativa de problematizar como
uma prática tão bárbara pode legitimar e/ou ultrapassar o universo da
política - como espaço de comunicação e embates entre os seres humanos –
na medida em que também promove a sua afirmação. Eis o paradoxo da
tortura. No próximo capítulo, será realizada uma discussão sobre a
possibilidade de trabalhar os efeitos da tortura a partir de uma prática
clínica diferenciada, articulando-se direta e necessariamente política e
clínica. Para tal, introduzir-se-á a militância do Grupo Tortura Nunca Mais
do Rio de Janeiro, espaço por excelência do debate que se quer apresentar.
92
CAPÍTULO 3 – PROJETO CLÍNICO-GRUPAL/ GRUPO TORTURA
NUNCA MAIS DO RIO DE JANEIRO: A CLÍNICA ARTICULADA À
POLÍTICA
“Quem cala sobre o teu corpo
Consente na tua morte
(...)
Quem grita, vive contigo!”
(MILTON NASCIMENTO/ RONALDO BASTOS)
Dentre as organizações que trabalham em prol dos direitos humanos,
o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro – GTNM/RJ vem se
caracterizando como um movimento social de destaque na luta travada
desde os anos 80.
Fundado em 1985, por familiares juntamente com ex-presos políticos
e pessoas comprometidas com a defesa dos direitos humanos, concentra-se
nos seguintes aspectos: impedimento de que torturadores sejam
condecorados, ou ainda mais grave, ocupem cargos públicos; esclarecimento
das circunstâncias em que ocorreram centenas de assassinatos e tortura de
opositores do regime militar, além do julgamento e punição de seus
perpetradores; e ainda denúncia das violações atuais dos direitos humanos.
A origem do grupo foi vinculada a um episódio ocorrido no Rio de
Janeiro, no início do mesmo ano. Naquele momento, no mês de abril, no
93
governo Leonel Brizola, a imprensa veiculava a nomeação do coronel Walter
Jacarandá para o cargo de Comandante do Corpo de Bombeiros do Rio de
Janeiro. A partir da sua fotografia, exibida juntamente com a notícia, o
coronel foi identificado por diversas pessoas, dentre elas o Secretário
Estadual de Transportes, Brandão Monteiro, como um de seus torturadores.
A reação do Comando do Corpo de Bombeiros foi inocentar o militar.
Outra denúncia teve uma grande repercussão na época. O coronel
José Halfed Filho66, que havia indicado Jacarandá, também foi acusado de
ter sido mais um agente repressor do regime militar. Este ocupava o cargo
de secretário de Estado de Defesa Civil e, por essa razão, era membro do
Conselho Estadual de Justiça, Segurança Pública e Direitos Humanos
(CEJSPDH). Ou seja, um protagonista da violação dos direitos humanos, que
tinha direito de voto em questões referentes à defesa da pessoa humana.
Nesse quadro de nomeações de torturadores e denúncias, familiares
de atingidos pela ditadura e cidadãos ligados à defesa dos Direitos Humanos
se reuniram, pediram o afastamento dos torturadores67 e analisaram a
postura dos órgãos oficiais em relação a esse cenário. Dessa forma, criaram
a “entidade civil cujas finalidades primeiras são a denúncia e o
esclarecimento de todo e qualquer crime contra a pessoa humana – ontem,
hoje e sempre – e a postura firme e consciente contra a impunidade”
66O coronel José Halfed Filho, mesmo com todas as denúncias, permaneceu no cargo público, filiando-se posteriormente a um partido considerado de “esquerda”, o Partido Socialista Brasileiro, PSB. 67 Anteriormente à formação do grupo, familiares de mortos e desaparecidos políticos e defensores dos Direitos Humanos fizeram um abaixo-assinado exigindo o afastamento do coronel José Halfed Filho do CEJSPDH: “AO CONSELHO DE JUSTIÇA, SEGURANÇA PÚBLICA E DIREITOS HUMANOS Nós, diretamente atingidos pela repressão política e pela tortura, na década de 70, e demais pessoas e entidades que lutam pela defesa dos Direitos Humanos, vimos protestar contra a presença do coronel José Halfed Filho, do Corpo de Bombeiros, neste Conselho, até que esteja devidamente esclarecida sua participação, ou não, no esquema repressivo. Consideramos indispensável a abertura de processo que esclareça os fatos (...) (Seguem-se as assinaturas)” (ELOYSA, B. I Seminário do Grupo Tortura Nunca Mais, 1987).
94
(ELOYSA, B. I Seminário do Grupo Tortura Nunca Mais, 1987).
Ademais, seria importante ressaltar que não se trata de uma
organização não-governamental – ONG – e sim de uma organização cujos
integrantes são militantes, sem qualquer vinculação profissional.
Coimbra assinala: “Com todo respeito que a gente tem às ONGs, a
gente faz questão de dizer que (...) é um grupo de militante; que a gente
sobrevive do nosso trabalho sem desonra nenhuma dos que vivem dessa
militância”68 .
Algumas conquistas realizadas pelo Grupo são muito significativas
para a luta contra a impunidade, como os julgamentos nos Conselhos de
Medicina, de médicos que contribuíram ou atuaram diretamente na
repressão ditatorial; o impedimento da nomeação de torturadores; o
afastamento de torturadores de cargos públicos; entre outros.
Apesar das vitórias alcançadas pelo Grupo serem parciais, já
representam importantes conquistas. Paoli e Telles destacam:
“Construídas na interface entre Estado e sociedade, essas arenas
públicas permitem tornar a gestão publica permeável às
aspirações e demandas emergentes da sociedade civil, retirando
do Estado o monopólio exclusivo da definição de uma agenda de
prioridades e problemas pertinentes à vida em sociedade. E isso
significa um outro modo de se construir uma noção de interesse
público: uma noção plural e centralizada, capaz de traduzir a
diversidade e a complexidade da sociedade, rompendo por isso
mesmo, com sua versão autoritária, solidamente enraizada na
política do país, sinonimizada com a razão do Estado e identificada
com a imposição autoritária da lei” (2000: 121).
68 Seminário “Violência, gênero e subjetividade” realizado em 13 de agosto de 2001 pelo núcleo de pesquisa GECEM da Escola de Serviço Social UFRJ – mesa “Conjunturas políticas distintas e produções de violência”.
95
Observa-se a atualidade da entidade: tanto pelas marcas ainda
visíveis nos sujeitos que viveram concretamente os anos de chumbo, quanto
pelas feridas engendradas na atualidade, pois a tortura continua a ser
perpetrada pelos agentes do Estado, de forma sistemática e naturalizada.
Esses agentes conhecem a tortura já no período de treinamento,
como o caso que será relatado. O cadete Márcio Lapoente da Silveira foi
torturado, aos 18 anos, em um treinamento, no dia 9 de outubro de 1990,
realizado na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), em Resende,
Rio de Janeiro. O pelotão comandado pelo tenente Antônio Carlos De Pessoa
praticava exercícios demasiadamente intensos, quando Márcio sentiu-se mal
e foi impossibilitado pelo oficial de se recuperar. No meio de insultos e
pontapés, inclusive de coturno e fuzil, Márcio desmaiou. Enquanto era
torturado, outros oficiais assistiam como a um espetáculo. Márcio foi
colocado em uma maca permanecendo horas sem atendimento, sendo
removido em uma ambulância desprovida de equipamentos e oxigênio. O
cadete chegou ao Hospital Central do Exército – HCE - no Rio de Janeiro
morto, quando poderia ser atendido em um hospital em Resende. Diagnóstico
no HCE: meningite. A autópsia foi assinada pelo legista Rubens Pedro
Macuco Janine, médico atuante na ditadura militar, onde assinava laudos
falsos de presos políticos assassinados. Por essa razão, teve seu registro de
médico cassado pelo Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de
Janeiro, em 200069.
Em um treinamento da Polícia Militar, alunos eram submetidos à
“Eucaristia”: o oficial instrutor oferecia o líquido da “Eucaristia” a cada um,
que com o corpo nu era obrigado a rolar na vala de óleo, a rastejar por um
69 COIMBRA, Cecília. Tortura nas Forças Armadas. Disponível em: www.dhnet.org.br/denunciar/brasil_2001/capi_tortura.htm. Acesso em: 15 Mai 2006.
96
fosso de esgoto e em um túnel escuro sem entrada de ar. Durante o
“percurso”, eram lançadas bombas de gás lacrimogêneo. Aqueles que não
finalizavam a cerimônia de “batismo”, eram punidos com novos trotes ou
expulsos da instituição.
Outro caso que ilustra como essa prática é usual, mesmo dentro dos
quartéis: o cabo da Aeronáutica, Nazareno Kleber de Mattos Vargas, 29
anos à época da prisão, acusado de seqüestro, ficou preso, inicialmente, na
76ª Delegacia Policial, em Niterói, 1997. Na Delegacia, foi torturado com
choques elétricos e espancamentos. Sua mulher também foi torturada na
mesma prisão, obrigando-o a assinar sua confissão de seqüestro.
Posteriormente foi levado para o Batalhão de Infantaria da Aeronáutica
(BINFA) do III Comando Aéreo/RJ (COMAR), onde foi torturado durante
dois anos e meio, até 1999, quando foi transferido para a Clínica Psiquiátrica
Bela Vista, em Jacarepaguá (RJ) por ordem judicial. “Durante os dois anos e
seis meses em que ficou preso foi, quase que diariamente, torturado com
espancamentos (chutes, socos, pontapés, joelhadas, tapas), choques
elétricos, sevícias sexuais (introdução de dedos e cassetete em seu ânus),
palmatórias nas palmas das mãos e solas dos pés. De um modo geral, esses
suplícios aconteciam à noite. Freqüentemente, era algemado para receber
choques elétricos e ser espancado. A cela que ocupou com mais três outros
presos era insalubre, com condições sub-humanas de higiene, com ratos,
lacraias e baratas. Muitas vezes, após ser torturado, era colocado na cela
despido e no meio de suas próprias fezes”. Seus torturadores sempre se
apresentavam encapuzados. Diversas vezes Nazareno tentou o suicídio70.
Dessa forma, percebe-se a importância da entidade no que concerne
à luta pela não-violação dos direitos humanos.
70 COIMBRA, Cecília. Tortura nas Forças Armadas. Disponível em: www.dhnet.org.br/denunciar/brasil_2001/capi_tortura.htm. Acesso em: 15 Mai 2006.
97
3.1- A PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES E A PRÁTICA CLÍNICA DO
PROJETO CLÍNICO-GRUPAL
Na década de 1970, período em que a ditadura militar intensificou
seu aparato repressivo, no universo das práticas psi predominava uma
leitura hegemônica da psicanálise, marcada pela “neutralidade científica”
totalmente dissociada do campo político. Nesse sentido, o inconsciente era
reduzido à dimensão “familiarista-edipiana”, onde “todo sentimento de mal-
estar existencial passa a ser remetido para o território da falta” (Brasil,
2002: 152). Essa postura da prática clínica a caracteriza como um dos
instrumentos de reprodução e naturalização das subjetividades dominantes.
Para Birman (1994), a tradição stalinista recusava o saber
psicanalítico como uma totalidade, caracterizando-o “como um discurso
constituidor de falsa consciência”. Segundo o autor, que chega a mencionar
o “terrorismo anti-subjetivo”:“A psicanálise seria uma ideologia pequeno-
burguesa e, para a política do proletariado, seria um obstáculo à revolução
por ter a sua preocupação centrada na questão da subjetividade. Nesta
perspectiva, a relação da psicanálise e da política seria de exclusão
absoluta: ou a psicanálise, ou a política” (p. 101). A suposta neutralidade da
psicanálise, seria para Birman (ibidem), a revelação de sua postura
política:“a sua ‘neutralidade’ seria a assunção de um lugar definido no campo
político e indicaria a sua ideologia” (p. 97).
Segundo Costa (1986), contrariando a concepção de que na psicanálise
o político estava ausente, elaborada por Luciano Martins, os indivíduos que
procuraram a psicanálise estavam conscientes “de que tratamento
psicanalítico não é nem nunca foi substituto de ação política (...) muitos
98
deles experimentaram o processo psicanalítico como uma maneira de
resolver conflitos pessoais, a fim de melhor desempenharem suas atividades
políticas” [grifos originais] (p. 131).
Ainda de acordo com Costa (1986), acredita-se que uma relação
causal entre autoritarismo e subjetivismo deixa de lado “mediações sociais
imprescindíveis”. Ademais, por duas razões: faz do autoritarismo um
“fenômeno genérico, a causa específica de um fenômeno restrito, o
subjetivismo” (p. 131); e, por outro lado, não explica o surgimento do
subjetivismo, não apontando de que forma esse subjetivismo se distingue de
outros períodos históricos.
Portanto, para adentrarmos no universo psi, primeiramente,
pretende-se situar ainda que muito sinteticamente, antes de apresentar a
perspectiva adotada pelo Projeto Clínico Grupal, algumas tendências do
debate na área das Ciências Humanas e Sociais, optando por aquelas que
apresentam uma concepção crítica no sentido de pensar a produção das
subjetividades no contexto das relações sociais.
Marilena Chauí (1997) pensa a subjetividade como:
“(...) uma estrutura de experiências significativas e significantes
que não começam nem terminam na consciência de si de um
sujeito, uma teia de sentidos tecida na relação intercorporal e no
diálogo com o outro (...) a subjetividade é um nó de ações
corporais e simbólicas originariamente intercorporais e
intersubjetivas, das quais a consciência de si enquanto sujeito é
um dos aspectos, não a definição”. (p.19)
Marilena Chauí (1997) afirma que são nas novas formas de
sociabilidade que a subjetividade é “modelada e plasmada”.
Segundo Mezan (1997), a subjetividade pode ser identificada em
99
três planos: o singular, o particular e o universal. O singular é aquele que é
único do indivíduo, marca a sua existência como um ser humano diferente de
todos os outros. O universal representa aquilo que é compartilhado por
todos os indivíduos, a própria condição humana podendo ser um exemplo. O
particular significa o que é próprio de um determinado grupo de indivíduos,
mas não de outros.
Para Birman (1994), no pensamento freudiano, o sujeito se constitui a
partir de sua relação com o outro, portanto, a cultura seria um elemento
presente na construção de subjetividades.
Ainda segundo Birman (1994: 102):
“A formulação freudiana em o Mal-estar na civilização se
constitui a partir desta problemática central da interpretação
psicanalítica do sujeito, estando este definitivamente posicionado
como um impossível ponto de articulação absoluta entre a
natureza e a cultura. Então, o sujeito é condenado ao ‘mal-estar’
que a sua existência cultural lhe coloca, sendo isso o que define a
dimensão trágica do pensamento freudiano. Enfim, se esta tese
não define com clareza uma política psicanalítica freudiana, ela
implica, contudo, afirmar incisivamente a impossibilidade de
harmonia absoluta entre o sujeito e a cultura, relação esta sempre
destinada ao conflito para o sujeito”71.
Para Castoriadis (1999), quando se propõe a estudar a “produção de
efeitos-subjetividades”, significa pensar sobre uma dimensão particular do
sujeito, tentando-se traduzir a processualização dos significados e o
sentido de sua própria existência.
71 “(...) o mal-estar na cultura que se incrementa com o desenvolvimento civilizatório e impõe renúncias crescentes à subjetividade”. Birman ainda afirma: “o desenvolvimento histórico da civilização, pelas demandas crescentes que impõe às individualidades, promove o incremento do conflito psíquico pelas renúncias que exige do corpo pulsional” (1994: 131).
100
Castoriadis (1999:45) ressalta:
“Tal sujeito não é uma realidade, é um projeto, em parte realizado
pelos indivíduos, em parte, sobretudo, a ser realizado também em
função de uma transformação que se refere não apenas aos seres
humanos na sua singularidade, mas à sociedade em seu conjunto”.
Como afirma Castoriadis (1999), é na dimensão particular da vida
social do sujeito, que as subjetividades são processadas, visto que a
subjetividade é construída socialmente, não é algo imanente ao indivíduo.
Segundo a concepção anterior, a dimensão da particularidade é
fundamental para se entender o período histórico estudado, os efeitos que
foram produzidos nos sujeitos a partir de suas experiências de dor e
sofrimento, as novas – ou velhas - elaborações que foram realizadas por
esses sujeitos como estratégias de manutenção da vida na sua totalidade.
Nos anos 80, as atividades dos movimentos sociais têm grande
repercussão e fazem emergir novas questões. Esse cenário de mudanças
também pode ser observado nas práticas psi com a “segunda geração de
psicanalistas argentinos” que trazem uma nova leitura da psicanálise. Assim,
são introduzidas as “contribuições da Análise Institucional de origem
francesa; (...) [o] pensamento de Guattari, Deleuze e Foucault, o que passa a
produzir movimentos de desnaturalização das demandas então produzidas e
a possibilidade de pensar as subjetividades como produções histórico-
sociais” (idem).
Profissionais envolvidos com esses novos questionamentos elaboraram
um Projeto com um viés inovador, o Projeto Clínico-Grupal, de apoio médico-
psicológico, direcionado aos direta ou indiretamente atingidos pela
repressão estatal. Destacando-se dos demais serviços de saúde, aliou a
perspectiva clínica aos componentes político-sociais e éticos engendrados na
101
nossa história.
Segundo Vera Vital Brasil (2005), a proposição do Projeto Clínico
representa:
“uma outra concepção de trabalho clínico, já crítico em relação às
práticas que estavam sendo hegemônicas naquela época - que era
uma concepção que privilegiava muito a história familiar em
detrimento das outras produções sociais que estão em curso o
tempo todo”.
O profissionais do Projeto Clínico-Grupal considera que:
“(...) o projeto clínico-grupal tem uma escuta atenta para os
efeitos-subjetividade resultados da experiência da violência.
Consideramos importante a posição dos pacientes na reconstrução
da narrativa dessas experiências”.
De acordo com a profissonal do Projeto Clínico Grupal:
“Uma experiência de ruptura com a psicanálise tradicional, de um
rompimento com a IPA que é a instituição internacional de
psicanálise (...) a perspectiva grupalista tinha leitura de outros
teóricos e principalmente da análise institucional francesa. Essas
leituras vieram críticas em relação à psicanálise (...) já
introduzindo na época o pensamento da diferença, que é o
pensamento trazido por Deleuze, Guatarri (...)”.
A perspectiva da Análise Institucional Socioanalítica redefine a
noção clássica de instituição, pensada a partir de então como um locus de
“produção constante de modos de legitimação das práticas sociais”.
102
Segundo Benevides (2002), a clínica da diferença presente na
proposta do Projeto é aquela que abrange o conhecimento na sua forma
transformadora, que nos convida a criar novas formas. A clínica como
produtora de diversos sentidos.
Vera Vital Brasil afirma:
“(...) Marcada em sua história pelo intimismo e pelo privado, a
clínica tem produzido efeitos perversos: silêncio, omissão sobre
os processos, sobre os acontecimentos na cena clínica”72.
Em contraponto, Benevides (2002) ressalta: “não se trata de
representação de características particulares de indivíduos e/ou grupos.
Estas só nos levam a lugares absolutizados e separados do campo onde se
trava a luta contra as forças que nos estagnam frente à composição de
novas cartografias subjetivo-sociais” (p. 136).
Benevides (2002:136) afirma uma concepção transversalista da
subjetividade em que redes de fluxos se cruzam, onde as diferenças são
ressaltadas, dando origem a outros modos de existência, outros devires.
Para a autora, essa noção “conforma uma outra clínica, clínica da intervenção
e da experimentação de práticas que são sempre sociais. O indivíduo e o
social aqui só aparecem como formas, expressão de fluxos que se cortam
incessantemente, fluxos coletivos”.
Para o entendimento aqui presente, os processos de subjetivação não
são pertencentes somente ao indivíduo, mas são produzidos no grupo -
social, político, etc. - no qual está inserido. Nesse sentido, podem-se
verificar alguns discursos semelhantes acerca da mesma experiência social
72 VITAL, Vera. Subjetividade e Violência: a produção do medo e da insegurança. Tema 1: Psicanálise, Política e Estado. Estados Gerais da Psicanálise: Segundo Encontro Mundial, Rio de Janeiro 2003.
103
e histórica ou a negação dessa mesma experiência73. Entretanto, não se
pode descartar a dimensão da particularidade como parte constituinte do
processo de produção da realidade. Juntamente com o singular e o universal,
conformam os níveis de apreensão dessa realidade.
A profissional do Projeto Clínico-Grupal assim se refere à proposta
do Projeto Clínico-Grupal:
“A gente acredita que pode dar um outro sentido para essas
marcas [da tortura]; sentidos que não tinham sido dados
anteriormente por essas experiências, quer tenham essas pessoas
passado por outras experiências clínicas ou não, muitas vezes
porque a própria esquerda recusava a análise, a terapia [porque]
isso era coisa da burguesia, a questão era outra: a luta, o
enfrentamento” .
O profissional do Projeto Clínico-Grupal afirma:
“(...) A intervenção clínica se impunha imediatamente como
intervenção político-institucional não só pela natureza da demanda
que nos chegava, mas também pelo procedimento de intervenção
que acionávamos: no lugar de nos atermos à narrativa pessoal ou
ao sofrimento individual, buscávamos a dimensão coletiva na base
do processo de instituição da violência relatada. Neste sentido,
entendíamos que a intervenção possuía essa fórmula: devolver ao
coletivo ou ao plano de produção uma realidade configurada ou
instituída como pessoal e individual. A dimensão da política se
impunha para nós como esse plano de produção, sempre coletivo,
envolvendo uma dimensão pública da existência. Estávamos,
portanto, às voltas com esse limite tênue entre a experiência
73 A formulação presente não pretende, em nenhum momento, a homogeneização da produção de subjetividades.
104
individual e a experiência do coletivo. Tratava-se, então, de
encontrar um dispositivo clínico-político-institucional apropriado
para garantir a transversalização desses domínios. O grupo se
mostrou a nós como esse dispositivo por excelência”.
O referido Projeto recebeu apoio do Fundo Voluntário das Nações
Unidas para as Vítimas de Tortura - FVNUVT, em 1991. Em 1996 e 1997, o
Projeto passou a ser financiado também pela Comunidade Européia, o que
permitiu a oferta de novas modalidades terapêuticas e a inserção de
segmentos da sociedade atingidos pela violência contemporânea. No período
de 2000 a 2002, ainda subsidiada pela União Européia, a Equipe do Tortura
Nunca Mais do Rio de Janeiro desenvolveu projeto conjunto com “entidades
similares de países do cone sul - Argentina, Chile, Uruguai - com ações de
assistência, qualificação de profissionais de saúde e produção de três
publicações”74. O resultado dessa articulação foram as publicações: o livro
Clínica e Política: Subjetividade e Violação de Direitos Humanos – que reúne
artigos de membros da equipe do Projeto Clínico-Grupal, além de outros
estudiosos do tema, e que contém o Protocolo de Istambul75, traduzido
pela primeira vez em português; a publicação Paisajes del Dolor, Senderos
de Esperanza: Salud Mental y Derechos en el Cono Sur; e II Seminario
latinoamericano: Violencia, impunidad y producción de subjetividad
juntamente com o IRCT - International Rehabilitation Council for Torture –
organização internacional com sede na Dinamarca.
74 PROJETO: “Qualificação de profissionais de saúde para suporte médico-psicológico, reabilitação física e social e assistência jurídica a vítimas de tortura e violência institucionalizada” - Projeto Clínico Grupal, GTNM/RJ. 75 O Protocolo de Istambul consiste em um Manual para a Efetiva Investigação e Documentação da Tortura e Outros Tratamentos ou Punições cruéis, Desumanas ou Degradantes, que foi concluído em 1999 e contou com a participação de defensores de direitos humanos, dentre vários profissionais, que representaram quarenta instituições de vários países.
105
A articulação com entidades da América Latina e a preocupação com a
contínua pesquisa e qualificação dos profissionais voltados para a prática
clínica potencializam o trabalho desenvolvido e reiteram a vinculação
histórica desses países, haja vista as suas experiências marcantes no que
diz respeito às violações de direitos humanos.
“A idéia de potencializar profissionais da saúde é que eles possam
ter mais recursos [teóricos e metodológicos] para poder atender
melhor as pessoas que eles recebem” (VERA VITAL BRASIL,
2005).
Em 12 de dezembro de 1997, foi proclamado pela Assembléia Geral
das Nações Unidas, o Dia Internacional de Apoio às Vítimas da Tortura - 26
de junho –, pelo fato de que nessa mesma data entrou em vigor a Convenção
das Nações Unidas Contra a Tortura. A campanha internacional para a
comemoração dessa data tem sido coordenada pelo IRCT, uma organização
de profissionais de saúde que promove e dá suporte à reabilitação dos
atingidos pela tortura. Esta organização foi estabelecida em 1985 e
atualmente abarca aproximadamete 200 centros de reabilitação. Na
América Latina, estes centros e outras entidades de direitos humanos
conformam a Red Latinoamericana y Del Caribe de Instituiciones de Salud
contra la Tortura, la impunidad y otras violaciones a los Derechos
Humanos/Red Salud (www.redsalud-ddhh.dm.cl)76.
O Projeto, produtor de uma prática clínica em que há a presença
marcante da perspectiva dos direitos humanos, preocupa-se não somente
76 “La Red SaludDH está conformada por instituciones de la región que atienden la problemática de personas afectadas por la tortura, la impunidad y otras violaciones a los derechos humanos, así como la prevención y las consecuencias biopsicosociales de estas prácticas. Además, está considerada como un espacio plural y democrático, abierto a otras instituciones regionales que trabajen en este campo y que se identifiquen con sus metas” (www. redsalud-ddhh.dm.cl).
106
com a assistência aos protagonistas de situações de violência, mas também
com a formação de profissionais atuantes no Projeto ou em instituições de
saúde como um todo. Nesse sentido, o trabalho volta-se para a crítica ao
processo de formação profissional ocorrido durante a ditadura militar e
para a formação contemporânea, que ainda carrega traços conservadores. O
Projeto, a partir da difusão de sua experiência e da capacitação de
profissionais, tem o objetivo de ampliar e qualificar o atendimento aos
atingidos pela violência organizada.
“O profissional de saúde não está, em geral, suficientemente
capacitado a perceber as manifestações da violência, seja pelas
limitações de uma formação excessivamente técnica, seja por
estar mais voltado para aspectos intrapsíquicos, excluindo os de
cunho político-social, seja pelas precárias condições de trabalho
que enfrenta”77.
A formação acadêmica desses profissionais apresenta-se como uma
barreira no que diz respeito ao enfrentamento dos desafios existentes na
rede pública de assistência. Dessa forma, percebe-se de forma explícita a
necessidade da inclusão na trajetória acadêmica do debate acerca dos
componentes políticos, sociais e éticos encontrados no cotidiano
profissional.
A experiência de formação - treinamento ou capacitação - para
profissionais de saúde e estudantes universitários vem sendo desenvolvida
77 Projeto: Qualificação de Profissionais de Saúde para Suporte Médico-Psicológico, Reabilitação Física e Social e Assistência Jurídica a Vítimas de Tortura e Violência Institucionalizada. “O projeto tem como finalidade capacitar os profissionais de saúde da rede pública em Saúde Mental e Direitos Humanos para que melhor atendam os usuários destes serviços, fornecendo-lhes ferramentas clínicas e jurídicas que possibilitem identificar e lidar com as situações de tortura experimentadas pelos pacientes”. Projeto enviado para a Suíça. Projeto Clínico-Grupal/Grupo Tortura Nunca Mais/Rio de Janeiro, 2004.
107
desde a criação do Projeto, em 1991.
Nos anos de 2000 a 2002, com o apoio financeiro da União Européia,
foi criada a pesquisa “Produção de Violência e Subjetividade
Contemporânea: construindo novos dispositivos transdisciplinares” - em
parceria com a Universidade Federal Fluminense – assim como as oficinas
Saúde e Direitos Humanos. Nesse período, a Equipe do GTNM/RJ
desenvolveu, em conjunto com entidades de países do cone sul, Argentina,
Chile, Uruguai, projeto de qualificação de profissionais de saúde, produzindo
as três publicações78.
O GTNM/RJ reitera a sua ligação com instâncias internacionais, pois
é filiado ao SOS Torture, com sede em Genebra, à FEDEFAM, com sede em
Caracas, e à Red Salud com apoio do IRCT.
O Projeto Clínico-Grupal abarca uma proposta de desnaturalização da
prática clínica, no qual a perspectiva da neutralidade não seria cabível, em
que se separa “indivíduo e atos político-sociais, a cidadania da análise, a
análise da política e a política dos acontecimentos” (COIMBRA, C et al.,
2002: 118).
A não-naturalização é claramente uma premissa do Projeto e a
proposta do dispositivo “grupo” extremamente fundamental:
“(...) Enquanto dispositivo, o grupo visa articular o domínio das
formas instituídas com o das forças instituintes, de tal modo que
a realidade estabelecida como dada, como natural, como definitiva
se desestabilize, fazendo aparecer seu próprio engendramento”.
Nesse sentido, a subjetividade é entendida dentro do contexto das
78 O Projeto Clínico-Grupal, além de proporcionar assistência e capacitação para profissionais de saúde, realizar intercâmbios com instituições de saúde e universidades, objetiva também ser um locus de publicação de material científico.
108
produções sociais. Sem o embasamento de uma estrutura psíquica universal,
os sujeitos são capazes de buscar caminhos diferenciados, instituir padrões
dominantes ou rompê-los. “Em oposição às subjetividades que uniformizam e
assujeitam, sabemos que o desejo pode ser revolucionário” (COIMBRA, C et
al., 2002).
Segundo Vera Vital Brasil (2005):
“O projeto foi elaborado para assistência e também apontava que
a formação dos profissionais aqui no Brasil tinha sido durante a
ditadura bastante comprometida com a perspectiva tecnicista, em
detrimento dos aspectos políticos, sociais que envolvem
certamente uma formação universitária e uma formação no campo
da saúde”.
Desse modo, a prática clínica abarca o ser social em todas as suas
dimensões, o seu complexo de relações sociais, o seu papel como sujeito
protagonista de uma determinada época histórica. Uma história que não é
somente individual, mas social, do conjunto dos seres humanos. Ademais, o
Projeto tem estreita ligação com a defesa dos direitos humanos, haja vista
a sua ligação intrínseca com o Grupo Tortura Nunca Mais/RJ e os objetivos
da sua prática clínica.
“E o fato de eles estarem ligados a um grupo que milita nesse
campo é fundamental, porque isso não cria só um campo teórico,
mas você tem uma forma de atuação na sociedade” (UMA DAS
PACIENTES DO PROJETO, EX-MILITANTE DO PC DO B, 58
ANOS).
Ainda de acordo com a fala de uma ex-militante do PC do B:
109
“(...) o pessoal do Projeto é engajado politicamente. A visão deles
é diferente, é uma visão que... eu encontro eco nas coisas que eu
falo (...) Não é uma terapia que seja individualista, (...) ela é
inserida num contexto social, então uma coisa mais abrangente, a
terapia como uma coisa maior (...) [que] te leva a pensar, a fazer
relações pequenas, grandes, de passado e de presente, uma coisa
mais dinâmica, uma coisa sociológica e histórica ao mesmo tempo” .
Como afirma a profissional do Projeto Clínico-Grupal:
“(...) privilegia-se o grupo como um espaço não só de interlocução,
mas também de produção de subjetividades muito importante em
contraponto a uma perspectiva individual (...) o grupo tem uma
potência de diferença que o trabalho individual tem em menor
escala. No grupo, a gente tem componentes heterogêneos que vão
sendo o tempo todo misturados e a composição que daí advém é
muito enriquecedora”.
A proposta de desnaturalização consiste em apontar o caráter
histórico da produção de subjetividades. A busca pelos processos de
singularização se dá com o intuito de indicar que, mesmo sob a intensa
produção de subjetividades dominantes79, ainda existem espaços para a
singularização, outras subjetividades que vão de encontro ao instituído, por
meio de uma intencionalidade político-ética, dispensando-se a técnica
neutra. O desafio que se põe está na criação de dispositivos criativos de
diversos sentidos, reapropriados ou inventados, para favorecerem as
singularizações. Esta é a “vocação da clínica”, “afirmar sua potência de
dispositivo, isto é, de produtor de efeitos de sentidos variados”
79 Coimbra (2001) destaca o papel extremamente significativo dos meios de comunicação de massa na produção, reprodução e fortalecimento das subjetividades hegemônicas presentes no cotidiano.
110
(BENEVIDES, R., 2002: 137).
Essa perspectiva problematiza a concepção vítima. A construção da
vítima contribui para a sua despotencialização política e a transformação de
fenômenos sociais em problemáticas individuais que favorecem o isolamento
e o silêncio. De acordo com Coimbra, C et al. (2002: 120), a “violência que
ameaça a sobrevivência acaba por transformar a vivência em sobrevida”,
uma alternativa à morte. Seria importante que essa noção de vida fosse
questionada pelos sobreviventes e pelos profissionais. “As lutas pela vida
(...) apontam para muito mais: para uma vivência absolutamente possível,
potente, prazerosa e inventiva” (idem).
Huggins, Haritos-Fatouros e Zimbardo (2006:75) pensam que a
construção da dicotomia vítima/perpetrador pode limitar o alcance de
pesquisas. O abandono dessa divisão binária pode ajudar na investigação "da
gama de papéis associados a esses status". De acordo com a mesma, nesse
processo dicotomizante, "as vítimas tradicionais são, muitas vezes,
atomizadas, individualizadas e tornadas passivas, enquanto aos
'perpetradores' tradicionais - uma condição 'outra' limitada em
contraposição à 'vítima' tradicional - outorga-se excessivo poder" 80.
Questionando a noção de vítima, a ex-militante da ALN, diz que:
“(...) em determinado momento, eu, um grupo e uma parte da minha
geração nós tínhamos certeza que queríamos lutar contra a
ditadura e queríamos um mundo melhor, em várias nuances, com
várias tônicas diferentes (...) muita gente assim não entendia
aquela violência toda porque eram simpatizantes, porque tinham
80 "Tudo isso aponta para o fato de que pode haver interseção ou sobreposição de categorias carregadas de valor, tais como 'vítima' e 'perpetrador'sendo que gabaritos políticos e morais variados - muitas vezes só implicitamente aceitos - moldam a consciência social quanto a quem se encaixa 'adequadamente' em cada uma das categorias" (Huggins, Haritos-Fatouros e Zimbardo (2006:75).
111
acolhido um amigo, porque tinham sido simpáticos à causa e era
uma violência brutal, e... e eu não, eu era militante, eu tinha idéia
do que se tratava (...) Então, eu não me considero vítima, eu me
considero uma sobrevivente” .
O sentido que se pretende é de escapar de supostas classificações,
em que são produzidas dicotomias como patriota e subversivo, herói e
vítima, onde as experiências vividas são transformadas em processos de
vitimização.
O silêncio estabelecido sobre a violência deixou marcas profundas
que acabaram por tornar-se “pedaços de tempo e de vida privatizados”.
(BRASIL, 2002: 156). Romper o isolamento possibilita que outros fluxos
possam penetrar, novas formas de experimentação da vida.
As leituras da psicanálise que até então reforçavam as estruturas
dominantes levaram ao isolamento e ao receio quanto às práticas clínicas:
“Me lembro exatamente quando eu fui fazer essa terapia lá na
Associação Sociedade não sei o quê de Psicanálise (...) Um belo dia
eu to na sala de espera, tava demorando e eu (...) impaciente. E um
senhor me perguntou:”O minha filha, você tá aflita, você tem
algum parente aí, né, doente”. Aí eu falei: “Não, eu tô fazendo
tratamento”. -“Você tá fazendo terapia? Você é tão novinha. Você
pode ter algum problema?”.. -“Bom, se o senhor acha que é pouco,
né, o meu pai foi preso, foi barbaramente torturado”. Aí eu fui
contando (...) e o cara começou a passar mal (...) Aí veio o meu
terapeuta indignado (...) O cara tinha sido um milico torturador e
estava em terapia, porque ele foi atingindo também pela tortura,
pelo fato dele presenciar (...) dele ser conivente (...)” (FILHA DE
DESAPARECIDO POLÍTICO).
Várias experiências tornaram-se frustrantes; ainda o relato da
112
mesma mulher:
“Aí arranjaram outra, que foi aqui, que era grupo jovem, aquele
monte de garotinhos e garotinhas da minha idade né, 21 anos (...) E
sabe qual eram os problemas? (...) briguei com o namorado, não sei
o quê na festa (...) os dramas eram o de todo jovem dessa idade
normal, normal, normal. Aí eu não tava mais agüentando aquilo,
porque eu não falava nunca. Tudo pra mim era proibido falar né. Aí
eu tive outro ataque de verborragia, e na hora que me coube falar,
eu falei. Aí a terapeuta me ignorou ali (...) eu considerei que ela me
botou pra fora do grupo. -“Olha, vocês não se preocupem. Porque
isso que ela ta falando, não acontece, não existe. Aqui no Brasil
não tem tortura. Não se faz isso aí que ela ta falando. Isso aí é o
seguinte: ela se desentendeu com os pais. Ela tem dificuldade com
os pais... ela fantasia que os pais estão sofrendo uma situação
dessa, que assim ela não se sente culpada”.
Acabou a terapia também né. Quer dizer, quando eu mais precisei,
todas as vezes que eu precisei de terapia, eu não tinha terapia.
Porque eu só tinha esse tipo de terapia” .
Nos dias atuais, a mesma participa do Projeto Clínico-Grupal e relata
a sua nova experiência:
“(...) agora eu faço terapia pelo Projeto Clínico Grupal do Grupo
Tortura Nunca Mais. Que tem toda uma visão do problema, sabe.
Tem condições de ajudar porque entende, porque sabe, porque não
tapa o sol com a peneira, não ignora a realidade, porque conhece
essa realidade (...) é um espaço onde eu sei se eu quiser falar
disso eu falo e vou ser escutada (...) Vou ser pelo menos ouvida,
não vão mandar eu calar a boca (...) [dizer] que não houve, que não
aconteceu, que é impossível”.
113
Assim podem-se observar os seguintes relatos:
“As outras terapias queriam apagar a minha história sem a minha
permissão” (Clínica e Política, 2002).
“Não passava roupa. E só há pouco tive coragem de mexer com fio
elétrico de novo” (ibidem).
Segundo a profissional do Projeto Clínico-Grupal:
“Outras pessoas passaram por experiências em que alguns
psicoterapeutas, psicanalistas negavam a existência da tortura e
assassinato (...) desconheciam ou mesmo negavam”.
“Algumas pessoas disseram que, pela primeira vez, estavam sendo
escutadas nessa dor que tava relacionada ao desaparecimento de
seus familiares”.
Vera Vital Brasil expressa o posicionamento do Projeto Clínico-Grupal
no que se refere ao atendimento de torturadores81:
81 “Esta no constituye una situación del pasado, ya que también en el caso de los torturadores y los implicados en la represión dictatorial, están presentes los efectos a mediano y largo plazo de dichos hechos. Es así que actualmente muchas de estas personas solicitan tratamientos en diferentes servicios hospitalarios, creándose en los equipos profesionales un clima de tensión, de inquietud, en cuanto a la actitud a asumir. Frecuentemente estas personas quedan sin ser asistidas, no tanto por la decisión activa del equipo profesional sino por vía de los hechos consumados. Muchos de los jóvenes profesionales que están a cargo de consultorios externos de psicopatología no vivieron en forma directa como adultos, la represión, sino que les fue contada. En otros casos, no participaron de los debates que atravesaron intensamente el ámbito profesional alrededor de estos temas hace unos años. Constituye para ellos parte de un pasado social traumático que no han llegado a metabolizar claramente y se desconciertan al tener que abordar en la práctica clínica problemas derivados del mismo. A su vez, en virtud de la memoria histórica construida y de la profundidad del desgarramiento social sufrido, esta cuestión referida a la atención psicoterapéutica de torturadores se les plantea como un conflicto de difícil
114
“Quanto a não atendermos torturadores, desde o início do projeto
temos este posicionamento (...) Viemos de uma experiência crítica
em relação à posição de "neutralidade" do analista, tão comum em
certas épocas, principalmente no período da ditadura. Os
perpetradores, torturadores, jamais nos procuraram pelo projeto,
pelo que sei. Estavam respaldados pelo poder, e os que se
sentiram culpabilizados não temos notícias deles. Possivelmente
existem, pois esta experiência é devastadora e ninguém sai
incólume dela”82.
resolución personal” (LAGOS, Darío; KORDON, Diana. Etica, Impunidad y Practica Profesional). 82 “Uma experiência relatada na Argentina caracteriza a particularidade do tema: En el año 1986, en el Hospital Borda un médico psiquiatra, el Dr. Villardebo advirtió que un paciente que le había sido derivado para psicoterapia de pareja había participado de la represión política. R. de 32 años, retirado de una fuerza de seguridad en 1980, había sido tratado en el Hospital Neuropsiquiátrico arriba mencionado desde 1978 hasta abril de 1986 por diferentes personas. El paciente había tenido ideas suicidas. No podía soportar a sus hijos llorando o gritando. Sentía que estaba siendo perseguido por alguien cuando caminaba por la calle. Fue diagnosticado y tratado con medicación y psicoterapia individual durante ocho años. A comienzos de 1986 le fue indicado un tratamiento de pareja y concurrió con su esposa. A solas con su terapeuta, en una parte de la entrevista le comunicó acerca de su participación activa en la represión, tortura y muerte de opositores. Dijo: "yo no puedo hablar esto con nadie. Ni con mis amigos, ni con mi mujer. Cuando vine aquí, pude hablar y me sentí aliviado". De acuerdo al Dr. Villardebo, quien fue asignado para tratar la terapia de la pareja indicada, el objetivo principal para R era vivir sin sentirse angustiado por su historia y por la Justicia, y llegar a lograr la desaparición de sus síntomas. Enfrentando aquella situación, en una segunda y última entrevista con la pareja, el Dr. Villardebo marcó sus objetivos: - Clarificar el significado de la deuda social no pagada. - Hablar de la existencia de historias secretas en la pareja. - Su incapacidad para afrontar asistencia psicológica si los items arriba mencionados permanecen irresueltos. Decidió llevar el caso a un Ateneo en el que sus colegas apoyaron su criterio, coincidiendo en que no correspondía atenderlo, ya que si no tenía un castigo social, es decir, si no era juzgado, y castigado por su participación en crímenes, no se cumplirían condiciones básicas para no favorecer una alianza perversa entre paciente, terapeuta e institución hospitalaria” (LAGOS, Darío; KORDON, Diana. Etica, Impunidad y Practica Profesional). No referido artigo é realizada uma análise acerca das implicações do pacto de silêncio estabelecido entre teraupeuta/paciente e a importância das determinações sociais/institucionais que
115
Os possíveis traumas em torturadores - envenenados pelo seu
“próprio veneno” - ainda é um tema polêmico:
“Embora esses operários da violência continuassem em geral
entusiasmados por servir o governo brasileiro, quer militar quer
em processo de democratização, em [alguns] casos o trabalho
violento prejudicou visivelmente a saúde mental e física dos
policiais. O trabalho ininterrupto na repressão tornava quase
impossível a interação com a família e com os amigos não
policiais. Os policiais manifestaram sintomas relacionados com o
estresse, tais como insônia, hipertensão, medo e depressão;
passaram por conflito conjugal e divórcio” (HUGGINS,
HARITOS-FATUROS E ZIMBARDO, 2006: 60)83.
Existe um debate em torno da questão sobre o atendimento de
torturadores. Percebem-se alguns posicionamentos. Alguns profissionais,
muitos deles jovens, que se encontram no atendimento clínico nos dias
atuais, podem desconhecer a história recente da humanidade. Dessa
maneira, o próprio desconhecimento do profissional pode atuar como um
fator que dificulte a sua escolha pessoal/política. Como já foi dito
anteriormente, não existe um debate claro e aberto acerca dessa história.
incidem direta e indiretamente sobre as atitudes dos indivíduos. Ainda é discutido como um sujeito pode obter uma cura individual se não tem de responder/esclarecer seus atos perante a sociedade. “Es decir en estos casos, la ética social es necesaria, previa y aún constitutiva de la elaboración individual. Pensamos que para que un tratamiento sea efectivo, debe producirse algo en el orden social mismo, más allá de la relación terapéutica en el que ésta quede inscripta. El desconocimiento de estos factores implica una concepción del sujeto ahistórica y asocial. Es por esto que la demanda de justicia es aún hoy texto mismo del acto terapéutico” (idem).
83 Como afirma Huggins, Haritos-Fatouros e Zimbardo (2006: 388), pesquisas sobre o impacto da violência em perpetradores, não podem ser acusadas de estarem desculpando torturadores. Para a autora, o debate sobre o job burnout seria um meio de levar à tona os riscos físicos e psicológicos da violência profissional.
116
Ademais, a opção por atender ou não torturadores, pode derivar claramente
do seu posicionamento ético-político ou mesmo do grupo ao qual está
inserido.
As marcas deixadas pela repressão ultrapassam gerações:
“Quando o meu filho mais velho tinha 5 anos, se perdeu numa
praça e foram preciso três bombeiros para dominá-lo. Ele se
assustou com os uniformes”84.
“Quando eu ia visitar meu pai, diziam que a OBAN era um hospital.
Mas eu não via ninguém de branco”85.
Vera Vital Brasil destaca:
“Se até então essas vivências eram apreendidas como carentes de
sentido, envoltas em uma configuração privada, intimamente
familiarista, intimista e culpabilizante, abriu-se a possibilidade de
incorporação de uma outra via (...) ao serem incluídas na análise a
multiplicidade de forças em ação nos acontecimentos e (...) as
violências concretas e simbólicas do presente e do passado,
desencadearam-se (...) possibilidades que rompem com o
confinamento dessas questões no âmbito do familiarismo
privatista, alargando as fronteiras entre o público e o privado”
(BRASIL, 2002: 160).
“na medida em que se possa encontrar alguns modos de
intervenção, aquilo que lhes parecia pertencer exclusivamente
como se fosse um erro, da sua vida apenas e não como um
84 VENTURA, M. Torturados rompem o silêncio com terapia contra a violência. Jornal do Brasil.. Rio de Janeiro, 28 jul 1996. 85 15 FILHOS. Produção e direção: Martha Nerhing e Maria Oliveira. São Paulo: [s.n.], 1996. 1 videocassete (20 min).
117
processo que foi vivido coletivamente, passa a ter um outro
sentido” .
A dor, se trabalhada em uma perspectiva grupal e não individual, que
culpabiliza o indivíduo e o torna solitário na sua experiência, ganha um outro
sentido: o de apropriar-se de si e dos outros para seguir em frente.
Segundo o relato da ex-militante da ALN, paciente do Projeto Cínico-
Grupal:
“Eu passei muito tempo como vários companheiros jogando um
pouco pra baixo do tapete essas coisas e tentando viver a minha
vida, seguir em frente. E isso deu certo durante bastante tempo
eu acho (...) Mas de uns anos pra cá isso não tava mais dando
certo, tinha alergia de cima a baixo (...) não entendia porque, eu
voltei a fazer terapia com o meu antigo terapeuta e não tava
avançando (...) eu tinha alguma coisa dentro de mim que não
conseguia sair e isso me atormentava. E a entrada no Projeto
Clínico... no início foi muito duro né porque falava muito sobre o
assunto, mas a visão dos terapeutas do Grupo é uma visão de
acolhimento tão grande e ao mesmo tempo de falar sobre o
assunto (...) uma coisa que eu tinha deixado de lado, pra mim eu já
tinha feito a minha catarse e ponto final (...) eu ficava revoltada
de eu não ter conseguido ultrapassar essa fase, ter alguma
defasagem, porque pra mim já tinha ficado, eu não precisava falar
mais” (2005).
Desse modo, nesta dissertação, buscou-se recuperar fragmentos da
memória coletiva, presentes nas marcas físicas e psíquicas dos sujeitos que
vivenciaram essa história, na impunidade que se arrasta pelos anos e na
reiteração da sistemática violação dos direitos humanos.
Embora não seja possível falar que essas experiências de dor e
118
violência não se repitam no cotidiano e devendo-se admitir que a punição dos
perpetradores ocorre de forma extremamente lenta e penosa para aqueles
que a esperam, considerou-se importante enfatizar as conquistas e as novas
iniciativas que surgem no campo dos direitos humanos, no sentido de se
entender a complexidade desse campo e da reconstituição da sua memória,
como também de identificar elementos, ainda que embrionários, de novos
projetos societários.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nem por um momento, tive a intenção de trabalhar outro tema
durante o meu curso de mestrado. Embora não soubesse com precisão o
objeto a ser trabalhado, esteve sempre presente o sentimento de
aperfeiçoar o conhecimento acerca da temática.
Apesar da importância da discussão nos dias atuais, em função do
recrudescimento de práticas violentas por parte das autoridades estatais, o
119
tema ainda apresenta-se de forma bastante velada na sociedade.
Entretanto, esse fato não representou um obstáculo que paralisasse a
caminhada. Pelo contrário, significou um estímulo.
Entrar no universo da tortura, uma prática tão perversa, não foi um
desafio fácil. As entrevistas carregavam consigo um forte teor emocional,
lembranças, memórias, histórias de vida que não pertenciam somente a uma
pessoa, mas a centenas, relatos, pedaços de toda uma geração. E essas
histórias se cruzavam ou mesmo se confundiam. Nomes falsos, identidades
ad hoc. Amores, dilemas. Ideais, esperança. Tortura, dor. Tristeza,
separação. Morte.
Em muitas ocasiões, minhas emoções se misturaram com as dos
entrevistados. Seria inevitável não pertencer também, embora
sentimentalmente, a essa geração de homens e mulheres que dedicaram
suas vidas a um projeto, não particular, mas visionário e emancipatório.
Como não imaginar rostos nas ruas, nos partidos, nos aparelhos, nas prisões?
Como não sentir a dor da separação? Como não sentir medo? Como ser
indiferente a essa experiência tão singular se, para minha profunda
tristeza, as gerações contemporâneas se resumem à busca pelo presente,
pelo nosso miserável presente?
A certeza de que a tortura permanece nos corpos, mentes e corações
foi amplamente confirmada. Sujeitos ainda se vêem envoltos com essa
experiência, seja pela falta, pela dor, pela marca, pela lembrança.
As subjetividades não são inventadas, forjadas pelos sujeitos. São
produções sociais, construções, a forma pela qual elaboram suas concepções
de mundo a partir das experiências vividas. Segundo a afirmação de Jean
Paul Sartre: “o essencial não é o que foi feito do homem, mas o que ele faz
daquilo que fizeram dele”.
Durante o processo de pesquisa e construção do projeto da
120
dissertação, foi sendo elaborado o tão procurado objeto. A partir das novas
descobertas e da percepção da profundidade do tema, novos fatores foram
incorporados.
Em um determinado momento da elaboração, em que o envolvimento
para com o objeto já se apresentava demasiadamente intenso, pensei em
como desvelar a lógica da tortura e os seus mecanismos de legitimidade.
A discussão sobre a tortura e a sua inserção no campo da política foi
fundamental para o enriquecimento da análise. A hipótese de situar a
tortura fora do espaço político por meio da discussão do seu paradoxo,
fortaleceu uma via de compreensão da intensidade do estudo proposto.
A dissertação representou mais do que um projeto, uma dissertação
decorrente da conclusão de um curso de pós-graduação stricto sensu..
Significou uma experiência ímpar, que atingiu tanto minha vida pessoal
quanto marcou profundamente a minha trajetória acadêmica.
Obstáculos foram encontrados, mas felizmente não intransponíveis.
No entanto, a dissertação apresenta uma lacuna que não poderia ser
preenchida nessas páginas. Essa lacuna advém do “vazio”, do
“inexistencialismo”, do “esquecimento como impedimento da memória”.
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PERIÓDICOS
Jornal do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ. Ano 18. Nº 54. Dezembro/05.
ANEXO A – ALGUNS MÉTODOS DE TORTURA UTILIZADOS PELA
REPRESSÃO ESTATAL
Dentre os diversos instrumentos de tortura, brutais e extremamente
covardes, alguns serão expostos de forma mais descritiva.
O “pau-de-arara” é originalmente nacional, utilizado desde o período
da escravidão: “o pau-de-arara era uma estrutura metálica, desmontável,
(...) que era constituído de dois triângulos de tubo galvanizado em que um
dos vértices possuía duas meias-luas em que eram apoiados e que, por sua
vez, era introduzida debaixo de seus joelhos e entre as suas mãos que eram
127
amarradas e levadas até os joelhos” (José Milton Ferreira de Almeida, 31
anos, engenheiro, Rio; auto de qualificação e interrogatório, 1976: Brasil
Nunca Mais nº 43, v.2., p. 421-430).
De acordo com a obra Tiradentes: um presídio da ditadura –
Memórias de presos políticos, o pau-de-arara consistia em uma “barra
móvel, geralmente de ferro (podendo ser de madeira), e dois suportes
paralelos e da mesma altura – quase sempre cavaletes (mas podiam ser
improvisados até mesmo com duas mesas) – sobre os quais é colocada a
barra com o(a) preso(a) pendurado(a). A vítima é totalmente despida e
amarrada da seguinte maneira: as pernas são flexionadas nos joelhos, sob os
quais passa-se a barra; seus braços são puxados por baixo da barra, como se
abraçassem coxas e tornozelos, e seus pulsos são amarrados um ao outro
por uma corda. Em seguida a barra é levantada e cada uma das
extremidades posta sobre um dos suportes. O corpo da vítima gira no
momento em que ela é suspensa, provocando um forte impacto nos pulsos e
tornozelos que se acomodam à nova posição, bem como na coluna vertebral,
que forma um U no ar. O ânus e o sexo (testículos e pênis, no caso dos
homens, e vagina, no caso das mulheres) ficam expostos e a cabeça tomba
para baixo. O(a) preso(a) é mantido(a) nessa posição por horas a fio, quando
lhe são infligidos outros tipos de suplício: afogamento, açoitamento, choques
elétricos em todo o corpo e provenientes de diferentes geradores de
energia, empalamento por bastões e cassetetes e surras com porretes,
cassetetes ou barras de ferro” (p. 515).
A prática do telefone consistia em um espancamento com as duas
mãos em formato de concha, simultaneamente, nos dois ouvidos do
torturado, provocando tontura, lesões ou mesmo a perda de sentidos.
Geralmente, acontecia no momento em que as vítimas ficavam imobilizadas
numa cadeira durante o interrogatório.
128
O empalamento uma das formas mais cruéis de tortura é conhecido
desde a Antigüidade e “consiste na introdução de objetos geralmente
pontiagudos no ânus da vítima até estourar seus intestinos e outras
vísceras” (idem: 511) Esta prática também foi aplicada em mulheres, através
da vagina, como foi o caso da militante da ALN – Ação Libertadora Nacional
- Sônia Angel, morta em 1973, aos 27 anos.
O coroa de cristo era um aro de metal “que se colocava como uma
coroa na cabeça do(a) preso(a) e cujo diâmetro ia diminuindo mediante
sistema de torniquete e comprimindo o crânio da vítima até que seus olhos
saltassem das órbitas a caixa craniana fosse esmagada” (ibidem: 508). O
instrumento tem origem na Europa desde a Idade Média e também foi
utilizado durante a Idade Moderna, pela Inquisição. A expressão coroa de
cristo é inspirada na tradição cristã – em que Jesus Cristo foi torturado
com uma coroa de espinhos na cabeça. O caso brasileiro emblemático foi o
da opositora Aurora Maria do Nascimento Furtado – a Lola – militante da
ALN, morta por esse método no final do ano de 1972, aos 26 anos de idade,
no Rio de Janeiro.
A cadeira do dragão consistia “numa cadeira com braços de estrutura
em madeira ou metal e assento, encosto e parte superior dos braços
necessariamente de metal, com uma trava móvel entre as duas pernas
dianteiras, de modo a permitir que as pernas da vítima fossem presas para
trás e imobilizadas, e tirantes nos braços, com os quais eram atados e
também imobilizados, pelos pulsos, os braços da vítima” (Tiradentes: um
presídio da ditadura – Memórias de presos políticos: 503). O objetivo era
aplicar os choques elétricos por meio de tomadas elétricas, telefones de
campanha (de 110 ou 220 volts) ou por televisores capazes de emitir cargas
de até 1200 volts de baixa amperagem. Para aumentar a condutibilidade os
corpos das vítimas eram molhados. Sua origem também está na Inquisição e
129
seus sinônimos são: cadeira elétrica e trono-do-dragão.
A asfixia foi um método tão utilizado que possui um codinome
espanhol “submarino”, parte do vocabulário dos direitos humanos. O
“submarino seco” pode ser realizado pressionando uma corda ao redor do
pescoço, cobrindo a cabeça com um saco, forçando aspiração de poeiras,
cimento, dentre outros. O “submarino molhado” pode ser feito com a
imersão forçada em água contaminada. Os efeitos desse método podem ser
pneumonia, o sangramento nasal ou pelo ouvido, infecções e problemas
respiratórios agudos e crônicos (Clínica e Política: 341).
O pentotal sódico, mais conhecido como o soro da verdade, tinha sua
aplicação feita sob a forma de injeção venenosa, posterior à imobilização
total do torturado. “À medida que o pentotal é injetado, o torturado vai
entrando em estado de terror, ao mesmo tempo em que os torturadores o
bombardeiam com perguntas e ameaças de morte” (Vianna, 2003). Esse
método leva a uma total inconsciência do torturado, que se contrapõe a sua
tentativa de permanecer consciente. As reações possíveis a essa droga são:
náuseas, vômitos, tonturas, dentre outros.
A palmatória também consistia em um método de tortura. Monteiro,
fiel companheiro de Lamarca, foi submetido a diversos tipos de tortura e
resistiu a todos. Entretanto, quando a polícia descobriu que Monteiro tinha
sido criado em um orfanato público, aplicou a palmatória. A partir de então,
ele começou a dar informações, pois esse método lembrava a sua infância no
orfanato e, assim, a polícia política havia descoberto seu limite (Vianna,
2003).
O éter era aplicado em doses variáveis, sob a forma de injeção
intradérmica. Os seus efeitos são, além de dores terríveis e desmaios
prolongados, um sofrimento permanente que impossibilitava o torturado de
caminhar, provocando necroses irreversíveis das partes afetadas. Arquivo
130
DEOPS, São Paulo. Documento da Resistência (ibidem).
O piano ou pianinho, instrumento semelhante à maquininha, de
produção industrial, tinha procedência norte-americana. A principal
diferença entre o pianinho e a maquininha seria que esta era acionada por
meio de uma manivela, já o pianinho possuía um sistema de teclas que,
pressionadas, produziam a descarga elétrica cuja intensidade variava de
acordo com a tecla acionada (idem).
O “colgamiento” ou “penduração” é a elevação do sujeito até o ponto
que seus pés não consigam tocar o solo. Segundo Tavares (2005):
“tortura profunda que não deixa nem marcas nem cicatrizes, mas
destrói. No início, parece um brinquedo bobo. Aos poucos, porém,
uma dormência nos braços se expande pelo corpo como uma
gangrena seca, progressiva. Primeiro a mão, logo o braço esquerdo,
depois o direito, mais adiante o ombro, tudo se gangrena, como
milhões de agulhas picando o tecido amortecido ou já morto.
Essa sensação de necrose só chega ao corpo. A mente continua
lúcida. Não se perde o raciocínio – como no choque elétrico – e e aí
que a “penduração” alcança o requinte: o preso sabe que está
sendo destruído, que o corpo e as forças se esvaem, pouco a
pouco. E sente o impacto da morte, como eu senti”.
Um dos métodos mais utilizados pela ditadura militar, o choque
elétrico, nesse período ganhou requintes de perversão:
“Começa na mão direita, e isso já bastaria como crueldade, pois o
efeito recorre todo o corpo e o prisioneiro cai. Os pontapés e os
gritos obrigam o preso a levantar-se e tudo recomeça. Aos poucos,
surgem as variantes do sadismo: molham o chão para que o efeito
se amplie da planta dos pés à cabeça, num tremor profundo, e,
logo, o cabo metálico chega ao rosto e ao contorno dos olhos, aos
131
ouvidos, às gengivas e à língua. Na sala de torturas, o prisioneiro
está sempre nu ou seminu (só de cuecas ou calcinhas) e isto, que
em si mesmo já é uma humilhação, facilita o requinte maior do
choque elétrico: nos homens, amarrar os fios no pênis, e nas
mulheres,introduzir o cabo metálico na vagina. E em ambos, como
alternativa final, o choque elétrico no ânus” (TAVARES, 2005).
ANEXO B
RED LATINOAMERICANA Y DEL CARIBE DE INSTITUCIONES DE LA
SALUD CONTRA LA TORTURA, LA IMPUNIDAD Y OTRAS
VIOLACIONES A LOS DERECHOS HUMANOS
Los Centros y su sitio en Internet
Sigla País Institución
ACAT México Acción de los Cristianos para la Abolición de la Tortura
www.acatmexico.org
132
ATYHA Paraguay Centro de Alternativas en Salud Mental
AVRE Colombia Apoyo a Víctimas Pro-Recuperación Emocional
CAPS Perú Centro de Atención Psicosocial
www.caps.org.pe
CINTRAS Chile Centro de Salud Mental y Derechos Humanos
www.cintras.tie.cl
CDHES El Salvador
Comisión de Derechos Humanos de El Salvador
CPTRT Honduras Centro para la prevención, Tratamiento y Rehabilitación de Víctimas de Tortura y sus Familiares
EATIP Argentina Equipo Argentino de Trabajo e Investigación Psicosocial
www.eatip.org.ar
GAM Guatemala Fundación Grupo de Apoyo Mutuo
www.gam.org.gt
GTNM/RJ Brasil Grupo Tortura Nunca Mais, Río de Janeiro. Equipo Clínico Grupal Tortura
133
Nunca Mais
www.torturanuncamais-rj.org.br
INREDH Ecuador Fundación Regional de Asesoría en Derechos Humanos
www.derechos.org.ec
ITEI Bolivia Instituto de Terapia e Investigación sobre las Secuelas de la Tortura y la Violencia Estatal
ODHAG Guatemala Oficina Derechos Humanos Arzobispado de Guatemala, Área Salud Mental
PRIVA Ecuador Fundación para la Rehabilitación Integral de Víctimas de Violencia
RED DE APOYO
Venezuela Red de Apoyo por la Justicia y la Paz
www.redapoyo.org
SERSOC Uruguay Servicio de Rehabilitación Social
ECAP Guatemala Equipo de Estudios Comunitarios y
Acción Psicosocial
GAJOP Brasil Gabinete de Asesoría Jurídica para
134
Organizaciones Populares
www.gajop.org.br
GTNM/RJ Brasil Grupo Tortura Nunca Mais, Río de
Janeiro. Equipo Clínico Grupal Tortura Nunca Mais
www.torturanuncamais-rj.org.br INREDH Ecuador Fundación Regional de Asesoría en
Derechos Humanos
www.derechos.org.ec
ITEI Bolivia Instituto de Terapia e Investigación
sobre las Secuelas de la Tortura y la Violencia Estatal
ODHAG Guatemala Oficina Derechos Humanos
Arzobispado de Guatemala, Área Salud Mental
PRIVA Ecuador Fundación para la Rehabilitación
Integral de Víctimas de Violencia
RED DE
APOYO Venezuela Red de Apoyo por la Justicia y la Paz
www.redapoyo.org
135
SERSOC Uruguay Servicio de Rehabilitación Social
ANEXO C - PROPOSTA DE ROTEIRO PARA ENTREVISTA COM
PACIENTE DO PROJETO CLÍNICO-GRUPAL
Objetivo: Conhecer a produção de efeitos-subjetividade na vida de
sujeitos que foram marcados pela tortura, direta ou indiretamente.
1História de vida
2Inserção no Projeto Clínico-Grupal
3Rearranjos nas diversas esferas da vida
1-Conhecimento da vida do entrevistado
1)Fale um pouco sobre você:
nome, idade, escolaridade, profissão, contexto familiar
2)Você poderia falar um pouco sobre a sua trajetória de vida?
2-A Experiência da tortura e o seu sentido
3)De que forma a experiência vivida se refletiu nas diversas
esferas da sua vida?
136
4)Que sentido você atribui à violência sofrida?
5)Que sentido você atribui à tortura sofrida?
3-As Estratégias Elaboradas pelos Sujeitos
6)Que estratégias foram utilizadas para conviver/superar essa
experiência?
7)Como se deu a sua relação com o espaço público - instituições
as quais você era integrante - a partir de então?
8)Como se deu a sua relação com a esfera política – instâncias
onde você realizava sua militância - a partir de então?
4-A Repercussão do Projeto Clínico-Grupal do Grupo Tortura Nunca
Mais/RJ
9)Por que e como se deu a sua inserção no Projeto Clínico-
Grupal?
10)De que forma o Projeto Clínico-Grupal repercute na sua
vida?
5-A Perpetuação da Violência/Tortura nos Dias Atuais
11)De que maneira você vê a violência/tortura nos dias atuais?
137
12) Como você vê o papel dos meios de comunicação na
divulgação dos episódios de violência?
138
ANEXO D - PROPOSTA DE ROTEIRO PARA ENTREVISTA COM
PROFISSIONAIS DO PROJETO CLÍNICO-GRUPAL
Objetivo: Conhecer as dimensões do trabalho realizado no Projeto
Clínico-Grupal
1Histórico do Projeto Clínico-Grupal
2A prática clínica e o trabalho com os usuários
3Os efeitos da tortura na subjetividade
1)Qual é a dinâmica de trabalho do Projeto Clínico-Grupal?
2)Quais são as principais atividades realizadas?
3)Os pacientes direta ou indiretamente atingidos pela tortura
têm apresentado respostas significativas em relação à prática
clínica desenvolvida?
4)Como são avaliadas as necessidades de cada paciente?
5)Os pacientes atendidos pelo projeto já tinham experiências
anteriores em serviços de prática clínica?
6)Se afirmativo, esses serviços tinham uma discussão mais
ampla e política do cenário político-social? Já foram relatadas
experiências em que, nesses serviços, suas histórias de vida
foram negadas?
139
7) De que forma as marcas da tortura refletem na
subjetividade desses sujeitos – na sua vida, pessoal,
profissional e política?
8) Foram necessários rearranjos nesses espaços?
9)Se esses rearranjos ocorreram, eles persistem ainda hoje?
Sofreram transformações perceptíveis com o trabalho do
Projeto Clínico-Grupal?
10)Qual a concepção de subjetividade do projeto?
ANEXO E - FILMES E VÍDEOS
140
1) 15 FILHOS
(Documentário, 1996 – Brasil)
DIREÇÃO: Maria Oliveira e Marta Nehring
SINOPSE: O vídeo relembra os horrores cometidos durante a
ditadura militar, quando milhares de pessoas, contrárias ao regime,
morreram ou desapareceram sem deixar pistas. A narrativa cabe aos filhos
dos presos políticos, que contam traumas nunca superados. Entre os relatos,
alguns fatos são comuns: a incerteza quanto ao nome verdadeiro dos pais; o
mundo dividido entre o bem e o mal; o período em que passaram presos; e a
impossibilidade de compartilhar os acontecimentos com os demais membros
da família. Entre os depoimentos, gravados em preto e branco, imagens
coloridas da queda do presidente Salvador Allende, no Chile; e das
dependências da delegacia de polícia, no bairro paulistano do Tatuapé, onde
ficavam presas as famílias dos torturados políticos.
2) O QUE É ISSO COMPANHEIRO?
(1997 – Brasil)
DIREÇÃO: Bruno Barreto
SINOPSE: Em 1964, o golpe militar derruba o governo democrático
brasileiro e, posteriormente, é promulgado em dezembro de 1968 o Ato
Constitucional nº 5, que nada mais era que o golpe dentro do golpe, pois
acabava com a liberdade de imprensa e os direitos civis. Neste período
vários estudantes abraçam a luta armada, entrando na clandestinidade, e em
1969 militantes do MR-8 elaboram um plano para seqüestrar o embaixador
141
dos Estados Unidos (Alan Arkin) para trocá-lo por prisioneiros políticos, que
eram torturados nos porões da ditadura.
ELENCO: Alan Arkin, Fernanda Torres, Pedro Cardoso, Cláudia
Abreu, Nélson Dantas, Matheus Natchergaele Marco Ricca , Maurício
Gonçalves, Luís Fernando Guimarães, Caio Junqueira, Selton Mello, Du
Moscovis, Caroline Kava, Fernanda Montenegro, Lulu Santos, Alessandra
Negrini, Antônio Pedro, Mílton Gonçalves e Othon Bastos.
PRODUÇÃO: Lucy Barreto e Luiz Carlos Barreto
ROTEIRO: Leopoldo Serran, baseado no livro de Fernando Gabeira
3) QUASE DOIS IRMÃOS
(2004, Brasil)
ARGUMENTO, PRODUÇÃO E DIREÇÃO: Lucia Murat
DIREÇÃO DE FOTOGRAFIA E CÂMERA: Jacob Sarmento
Solitrenick
ROTEIRO: Lucia Murat e Paulo Lins
MÚSICA: Naná Vasconcelos
CO-PRODUTORES: Adrian Sólar, Milena Polyo, Giles Sacuto
PRODUÇÃO EXECUTIVA: Ailton Franco Jr e Branca Murat
ELENCO: Brunno Abrahão, Silvia Buarque, Werner Shünemann, Luiz
Melodia, Fernando Eiras, Pablo Ricardo Belo, Janaina Carvalho, Antônio
Pompêo, Caco Ciocler, Fernando Alves Pinto, Paulo Hamiltonn, Bruce
Gomlevsky, Flávio Bauraqui, Maria Flor, Marieta Severo, Jerusa Franco,
Charles Fricks, Jandir Ferrari, Tonico Pereira, Lucia Alves, Renato de
Souza, Erick Oliveira e Babu Santana.
SINOPSE: Nos anos 70, quando o país vivia sob a ditadura militar,
142
muitos presos políticos foram levados para a Penitenciária da Ilha Grande,
na costa do Rio de Janeiro. Da mesma forma como os políticos, assaltantes
de bancos também estavam submetidos à Lei de Segurança Nacional. Ambos
cumpriam pena na mesma galeria. O encontro entre esses dois mundos é
parte importante da história da violência que o País enfrenta hoje. "Quase
Dois Irmãos" mostra como essa relação se desenvolveu e o conflito
estabelecido entre eles. Dessa experiência nasceu o Comando Vermelho, que
mais tarde passou a dominar o tráfico de drogas.
Através de dois personagens, Miguel, um jovem intelectual de classe
média preso político na Ilha Grande, e hoje deputado federal, e Jorge, filho
de um sambista que de pequenos assaltos se transformou num dos líderes do
Comando Vermelho, o filme tem como pano de fundo a história política do
Brasil nos últimos 50 anos, contada também através da música popular, o
ponto de ligação entre esses dois mundos. Hoje, começa um novo ciclo:
Miguel tem uma filha adolescente, que fascinada pelas favelas e pela
transgressão, se envolve com um jovem traficante.
4) O VELHO: a história de Luiz Carlos Prestes
(Brasil, 1997)
DIREÇÃO: Toni Venturi
PRODUÇÃO: RENATO BULCÃO/TONI VENTURI
DURAÇÃO: 105 min
SINOPSE: A história de um homem que virou lenda, um dos
personagens mais perseguidos da história latino-americana do século XX:
Luiz Carlos Prestes. Polêmico líder do Partido Comunista Brasileiro por mais
143
de 35 anos, Prestes carregou ideais e tomou posições polêmicas. O
documentário reúne setenta anos de imagens da História do Brasil: a épica
marcha de 25.000 km da Coluna Prestes nos anos 20; a “revolução
comunista” de 1935; o dramático romance com a judia alemã Olga Benário; o
golpe, a luta armada e a feroz repressão política durante a ditadura militar.
Com depoimentos de jornalistas, familiares, amigos, ex-membros do PCB e
historiadores, e um raro material fílmico de arquivo, este material forma a
primeira cinebiografia de Prestes.
5) Cabra-Cega
(2005, Brasil)
DIREÇÃO: Toni Venturi
DURAÇÃO: 108 min
SINOPSE: Escondidos no apartamento do arquiteto Pedro (Michel
Bercovitch) - num bairro tradicional de São Paulo - Thiago (Leonardo
Medeiros) e Rosa (Débora Duboc), dois jovens militantes da luta armada,
vivem o sonho e as dificuldades de seguir com o projeto revolucionário.
Thiago é o comandante de um "grupo de ação" de uma das organizações
resistente à ditadura. Ferido à bala em uma emboscada da polícia, é
obrigado a se esconder na casa de Pedro. Rosa, uma militante de base e
filha de operário, é o contato de Thiago com o mundo e passa a ser sua
enfermeira. Mateus (Jonas Bloch), o dirigente da organização, trabalha
incansavelmente para salvar o que restou dos seus quadros. Em 1971, a
organização está debilitada e discute o abandono da estratégia armada.
6) Zuzu Angel
144
(2006, Brasil)
DIREÇÃO: Sérgio Rezende
ROTEIRO: Marcos Bernstein e Sérgio Rezende
PRODUÇÃO: Joaquim Vaz de Carvalho
ELENCO: Patrícia Pillar, Daniel de Oliveira, Leandra Leal, Luana
Piovani, Alexandre Borges, Paulo Betti
DURAÇÃO: 110 min
SINOPSE: Brasil, anos 60. A ditadura militar faz o país mergulhar em
um dos momentos mais negros de sua história. Alienada no que diz respeito
a esse processo, Zuzu Angel (Patrícia Pillar), uma estilista de modas, é
reconhecida por seu trabalho no Brasil e no exterior. Seu filho, Stuart
(Daniel de Oliveira), ingressa na luta armada, movimento de resistência
contra o regime militar. As diferenças ideológicas entre mãe e filho eram
profundas. Ela uma empresária, Stuart e Sônia (Leandra Leal), sua mulher,
militantes na luta pela revolução socialista. Zuzu recebe uma informação,
dizendo que "Paulo caiu", ou seja, Stuart tinha sido preso pelos militares. As
Forças Armadas negam. Zuzu recebe uma carta dizendo que Stuart foi
torturado até a morte na Aeronáutica. A partir daí ela começa sua busca:
localizar o corpo do filho e enterrá-lo. Na sua luta incessante pelo corpo de
seu filho, Zuzu vai se tornando uma figura cada vez mais incômoda para a
ditadura, até que um dia ela é “morta” em um “acidente misterioso”.
7) Notícias de uma guerra particular
(Documentário - 1999, Brasil)
DIREÇÃO: JOÃO MOREIRA SALLES E KÁTIA LUND
145
DURAÇÃO: 56 min
SINOPSE: O documentário trata da situação de extrema violência a
qual estão submetidos moradores das favelas, policiais e traficantes. Com
algumas cenas chocantes, mas reveladoras, esse documentário retrata os
bastidores de uma política voltada para a não-política de direitos humanos e
o descaso por parte das autoridades de Estado no que diz respeito à
segurança pública.
ANEXO F – RELAÇÃO DOS ENTREVISTADOS
Ex-militante da ALN- Ana Miranda
146
A ex-militante do PC do B- Tânia Roque
O ex-militante do PC do B- Glauco de Kruse Villas Boas
A profissional do Projeto Clínico-Grupal do GTNM/RJ- Vera Vital Brasil
O profissional do Projeto Clínico-Grupal do GTNM/RJ- Eduardo Passos
Militante pela Anistia- Maria Dolores
Filha de Desaparecido Político- Lúcia Alves
Filha de um militante considerado morto político- Tatiana Roque
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