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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS NATHALIA SOBRAL DE SOUZA AS REPRESENTAÇÕES DO ENVELHECIMENTO FEMININO NAS OBRAS DE CLARICE LISPECTOR Fortaleza 2009

AS REPRESENTAÇÕES DO ENVELHECIMENTO FEMININO NAS OBRAS DE CLARISSE LISPECTOR

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Monografia apresentada ao curso deCiências Sociais da UniversidadeFederal do Ceará como pré-requisitoparcial para a obtenção do título deBacharel.

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Page 1: AS REPRESENTAÇÕES DO ENVELHECIMENTO FEMININO NAS OBRAS DE CLARISSE LISPECTOR

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

NATHALIA SOBRAL DE SOUZA

AS REPRESENTAÇÕES DO ENVELHECIMENTO FEMININO NAS OB RAS

DE CLARICE LISPECTOR

Fortaleza

2009

Page 2: AS REPRESENTAÇÕES DO ENVELHECIMENTO FEMININO NAS OBRAS DE CLARISSE LISPECTOR

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAS

AS REPRESENTAÇÕES DO ENVELHECIMENTO FEMININO NAS OB RAS

DE CLARICE LISPECTOR

Monografia apresentada ao curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará como pré-requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel.

NATHALIA SOBRAL DE SOUZA

Orientador: Prof. Dr. Antonio Crístian Saraiva Paiv a

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Fortaleza, 15 de dezembro de 2009

NATHALIA SOBRAL DE SOUZA

AS REPRESENTAÇÕES DO ENVELHECIMENTO FEMININO NAS OB RAS

DE CLARICE LISPECTOR

Monografia apresentada ao curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará como pré-requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel.

Aprovada em: ___/___/_____. Conceito Obtido: ___________

BANCA EXAMINADORA:

_____________________________________________________

Prof. Dr. Antonio Crístian Saraiva Paiva (Orientador)

_____________________________________________________

Prof. Dr. Alexandre Fleming Câmara Vale (UFC)

_____________________________________________________

Profa. Dra. Andréa Borges Leão (UFC)

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4

Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,

assim calmo, assim triste, assim

magro,

nem estes olhos tão vazios,

nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,

tão paradas e frias e mortas;

eu não tinha este coração

que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,

tão simples, tão certa, tão fácil:

- Em que espelho ficou perdida a

minha face?

(Cecília Meireles)

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5

AGRADECIMENTOS

São muitas pessoas que merecem, aqui, o meu agradecimento,

assim como são muitos os motivos para tal. Tive o prazer de vários encontros

(e também desencontros) até chegar aqui, alguns rápidos, porém marcantes,

outros nem tanto, mas tive, principalmente, e é a esses que agradeço desde o

primeiro momento, encontros (e reencontros) que me transformaram.

Primeiramente, agradeço aos meus pais, Roberto e Heliana, pela

vida e por me darem liberdade de escolher e ajuda para construir meu próprio

caminho. Pai, obrigada pela segurança e exemplo de honestidade. Mãe,

obrigada pela paciência e carinho nos dias mais difíceis e também pelo

exemplo de bondade e amor com o próximo. Felipe, meu irmão amado,

também agradeço a você. Obrigada pelo companheirismo e cumplicidade de

todos esses anos. Devo a vocês três a melhor parte de mim.

Agradeço as minhas amigas, que fazem a minha vida mais

interessante a cada momento. Especialmente Gabriella e Bruna. A Gabi, pela

cumplicidade, sinceridade e exemplo de dignidade. A Bruninha, pelo carinho e

apóio incondicional nos momentos mais difíceis e por me deixar fazer parte dos

seus bons momentos quando eu mais precisei. Amo demais vocês duas.

Às outras amigas, que me ajudaram a fazer esse percurso mais

alegre e tranquilo. À Rita, pelo exemplo. À Carol, Danielle, Thaynara,

Fernanda, Eudênia, Tatiane, Aládia, Katiana, Karina, Mayara, Márcia Paula,

pelo o carinho e amizade. Ao meu querido João Ernesto, um dos meus

melhores encontros, que mesmo distante, continua aquecendo meu coração

com sua amizade e alegria.

Ao meu orientador Prof. Crístian Paiva, que transformou

completamente minha vida acadêmica, me apresentando um grandioso e

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6

fascinante mundo do conhecimento e suas oportunidades, e a quem devo todo

respeito, admiração e carinho.

Aos professores Paulo Linhares e, principalmente, Alexandre

Fleming, pelo prazer das boas aulas e pelo carinho, respeito e confiança que a

mim dedicaram. Tenho por vocês dois uma admiração imensa.

Aos meus avós, pelos exemplos de vida, e aos meus tios e primos,

pelas maravilhosas horas juntos, pelo apoio e incentivos de sempre, e pelas

palavras de amor e conforto que sempre me dedicam.

Agradeço, em especial, a minha tia Erlênia, por quem tenho amor

indescritível, pela generosidade de dividir comigo suas inquietações de vida.

Pela cumplicidade e confiança que me oferece. Sempre foi muito mais que tia.

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RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo uma análise das

representações do envelhecimento feminino nas sociedades atuais, tentando

compreender a relação entre identidade de gênero e identidade de geração,

para entender como se configuram as contradições vividas por mulheres nessa

fase da vida, a partir das relações com o corpo, sexualidade e vida familiar.

Tomamos como objeto central da investigação as figurações literárias sobre a

mulher velha nas obras de Clarice Lispector, buscando perceber como a vida

social é reconstituída nas narrativas ficcionais.

Palavras-chaves : velhice, mulher e representação literária.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 09

1.VELHICE,MULHER E LITERATURA................................................................. 12

1.1 Velhice e Envelhecimento......................................................................... 12

1.2. Velhice em tempos de incerteza e insegurança ....................................... 18

1.3. Gênero, Estudos sobre Mulheres e Ciências Sociais ............................... 22

1.4. Literatura e vida social: o feminino nas narrativas .................................. 26

1.5. O uso da literatura como objeto de pesquisa sociológico ........................ 28

2. AS AFLIÇÕES DE EXISTIR NUM CORPO VELHO: CORPO E SEXUALIDADE

NA VELHICE ........................................................................................................... 32

2.1. A vida social como sistema de significados............................................ 32

2.2. O que quer dizer um símbolo................................................................... 34

2.3. O corpo como estrutura simbólica .......................................................... 36

2.4. Corpo, gênero e sexualidade ................................................................... 39

2.5. As mulheres... ......................................................................................... 41

2.6. Tentando entendê-las... Inquietações... ................................................... 45

3. VELHICE E VIDA FAMILIAR .......................................................................... 53

3.1. Família e reprodução social ................................................................... 54

3.2. Os papéis masculinos e femininos na família......................................... 56

3.3. Velhice e vida familiar ........................................................................... 57

3.4. As mulheres... ........................................................................................ 60

3.5. As Inquietações... .................................................................................. 62

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 66

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 70

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INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é estudar as representações acerca do

envelhecimento feminino na sociedade contemporânea, tentando compreender

como se configuram as experiências, expectativas e contradições de viver essa

fase da vida. Tomamos como objeto central da investigação as figurações

literárias sobre a mulher velha nas obras de Clarice Lispector, entendendo por

“figurações literárias” uma modalidade de representação através da qual a vida

social é reconstituída nas narrativas ficcionais.

Pensando a articulação dos estudos entre representação literária e

representação social, tomo as personagens velhas claricianas como

personagens conceituais para acessar o imaginário social sobre o envelhecer

feminino1. Assim, as categorias de gênero e geração são os “conceitos chaves”

para tal investimento. Aqui, é de nosso interesse estudar a velhice feminina a

partir dos seguintes recortes analíticos: 1. relação com o corpo (ideal somático

contemporâneo: saúde, beleza e juventude); 2. representações sobre a

sexualidade; 3. família e conflitos geracionais.

Meu interesse pelo estudo da literatura como fonte de pesquisa em

sociologia surgiu quando fui convidada pelo Professor Crístian Paiva a

participar do projeto de pesquisa PIBIC-CNPq intitulado: Envelhescências:

figurações do envelhecimento no contexto do feminino e da homossexualidade

em narrativas literárias, do qual fui bolsista de iniciação cientifica.

A pesquisa tinha como objetivo investigar as representações acerca

da velhice em curso em nossas sociedades atuais, aprofundando teoricamente

a relação entre as categorias de geração e gênero (envelhecimento e feminino,

envelhecimento e homossexualidade), vinculado-as à discussão sobre corpo e

processos de subjetivação, articuladas ao conceito de “envelhescência”, que

nos possibilita fazer interrogações sobre as transformações na atual

distribuição social das idades e as redescrições dos territórios do casamento,

1 Sobre a noção de personagens conceituais, ver Deleuze/Guattari (1992) e Paiva (2009).

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da família do parentesco. A parte específica com que me ocupei, no âmbito

dessa pesquisa, foi a relativa ao envelhecimento feminino a partir de figurações

literárias clariceanas. Essa experiência foi fundamental para a elaboração da

presente monografia.

O trabalho que agora apresentamos terá a seguinte estruturação:

O capítulo I, intitulado “Velhice, mulher e literatura’, tem como

objetivo trazer uma primeira discussão sobre o que caracteriza a velhice dentro

da vida social; logo depois, uma breve apresentação do conceito de gênero; e,

por último, uma explanação sobre a apropriação da literatura como campo

empírico para pesquisa em ciências sociais.

No capítulo II, “As aflições de existir num corpo velho: corpo e

sexualidade na velhice”, tomamos como eixos principais duas perspectivas: o

corpo como estrutura simbólica e a experiência da sexualidade como

construção social, tentando fugir, nas duas dimensões, do caráter biologizante

e disciplinador que normalmente regulam estas instâncias do viver. Articulada a

essa discussão, elaboramos um pequeno corpus constituído por textos de

Clarice Lispector. Assim, os contos escolhidos para esse capítulo foram

“Ruídos de passos”, “Mas vai chover”, ambos do livro A via crucis do corpo

(1998), e “A procura de uma dignidade”, do livro Onde estivestes de noite

(1999).

No capítulo III, Vida familiar e velhice, nos propomos a fazer

discussão inicial sobre a condição de vida dos mais velhos dentro da estrutura

familiar, percebendo as contradições nos discursos que tratam a família como o

lugar mais seguro para os idosos, bem como entrar na discussão dos papeis

de gênero, feito pela teoria feminista, que mostram como as trajetórias e

identidades de geração dessas mulheres está completamente ligada às suas

trajetórias e identidades de gênero. Os contos escolhidos para esse capítilo

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foram “Feliz Aniversário”, do livro Laços de Família (1998) e a “As maniganças

de Dona Frozina”, do livro Onde estivestes de noite (1999)2.

2 Os livros de Clarice Lispector referidos foram originalmente publicados nas seguintes datas: Laços de Família em 1960; A via crucis do corpo e Onde estivestes de noite, em 1974.

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CAPÍTULO I: VELHICE, MULHER E LITERATURA.

1. 1. Velhice e Envelhecimento .

O que reprovam à velhice?

Pensando bem, vejo quatro razões possíveis para acharem a velhice

detestável. 1) Ela nos afastaria da vida ativa. 2) Ela enfraqueceria nosso corpo.

3) Ela nos privaria dos melhores prazeres. 4) Ela nos aproxima da morte. (...)

A velhice afasta da vida ativa e subtrai dos assuntos públicos? De

quais? Daqueles que, sozinho, um homem jovem e vigoroso pode enfrentar?

Não há assuntos públicos que, mesmo sem força física, os velhos podem

perfeitamente conduzir graças à sua inteligência? Porventura restava de braços

cruzados Quinto Máximo? De braços cruzados também Lúcio Paulo, o

Macedônio, teu próprio pai, o sogro do excelente homem que foi meu filho? E

os outros velhos, os Fabrício, Cúrio ou Coruncânio, quando punham sua

sabedoria e sua autoridade a serviço do Estado, nada faziam?3

Marco Túlio Cícero, 44 a. C, preocupado com os inconvenientes da

velhice, desejava, na verdade, poder não ter de carregar este fardo, mas como

o envelhecimento é inerente à condição humana, se preocupou em mostrar a

velhice como suportável, como mais uma fase da vida, que quando se tem

sabedoria, pode ser doce e harmoniosa. Obviamente, estamos situados noutro

contexto espaço-temporal, e conseqüentemente as formas através das quais o

envelhecimento e a velhice são posicionados no laço social são bastante

distintas daquele quadro pintado por Cícero. Mas a nossa preocupação não é a

de tratar desses traços distintivos: o que nos interessa é a atualidade dos

questionamentos sobre a condição dos velhos na sociedade.

3 Trecho retirado do livro Saber Envelhecer de Cícero, 44 a. C.

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Não deixa de ser surpreendente, porém, que as questões levantadas

por Cícero possuem certa atualidade se evocamos os problemas do envelhecer

na contemporaneidade. Primeiro, ainda é muito presente a acusação da velhice

como tempo de “morte social” (BAUDRILLARD, 1996), não sendo os velhos

sujeitos ativos socialmente, incapazes de acompanhar o ritmo frenético das

sociedades da satisfação imediatas; segundo, a experiência corporal, assim

como a relação com o prazer, na velhice, é encarada com preconceito e

desconfiança, deixando apenas para os mais jovens o direito à beleza e ao

gozo. Por último, porém, poderia ser a primeira das questões, a proximidade do

fim, da morte trazida pela velhice. Questões que pretendo desenvolver no

decorrer do texto.

Os estudos sobre velhice e envelhecimento vêm da necessidade de

compreender esse momento da vida para além dessas pré-concepções. Vem

da urgência, como disse Simone de Beauvoir (1990), “de quebrar a

conspiração do silêncio” sobre essa etapa da vida. No Brasil, principalmente a

partir da década de 1980, as pesquisas interessadas no estudo sobre velhice,

trazem importantes transformações na visão dada à velhice até então. Os

estudos sobre velhos passaram a ser temas privilegiados com os debates

sobre os novos desafios que a sociedade contemporânea enfrentará ao

repensar a participação do idoso em assuntos como políticas públicas, novos

mercados de consumo e formas de lazer, fazendo desse “novo idoso” um ator

presente na sociedade (DEBERT, 2004).

A velhice, desde as mais antigas sociedades4, foi motivo de

inquietação para pensadores. Por ser, inegavelmente, um fenômeno biológico,

com características peculiares e não passiveis de dominação imediata, os

resultados dessas inquietações sempre estavam limitados ao biologismo e a

uma homogeneização da experiência dos mais velhos. Tratavam-se, até o

século XV, de tratados de higiene. Produzindo técnicas de correção do corpo

envelhecido, como a produção de próteses dentárias e lentes de aumento para

melhorar a visão (BEAUVOIR, 1990).

4 Já no Egito e em todos os povos da Antiguidade procuravam-se, com a medicina, a filosofia e a metafísica religiosa disponíveis, as causas para o envelhecimento.

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Nos séculos seguintes, até o século XIX, as obras sobre velhice

giravam em torno de especulações a respeito da fisiologia, devido ao grande

interesse da medicina da época pela anatomia humana. O corpo é aí tratado

como uma máquina, que pode funcionar por bastante tempo, mas que se

desgasta violentamente com ele. É nessa busca da medicina em entender o

funcionamento do corpo na velhice e aprender os cuidados necessários, assim

como a pediatria tem com a infância, que o americano Ignatz Leo Nascher5, em

meados de 1990, cria a geriatria, ramo da medicina específico para o estudo da

senescência.

A velhice, nesse momento, é reconhecida como o momento da

degeneração do corpo e da conseqüente perda de relevância no desempenho

de papeis sociais, o que acarreta uma produção de imagens negativas sobre o

envelhecer, mas que ao mesmo tempo legitima a necessidade da criação de

direitos especiais para os velhos.

Só a partir dos anos de 1930, como afirmou Beauvoir (1990), e

pensando isso em ternos históricos podemos considerar como muito recente,

os trabalhos sobre velhos apareceram na biologia, na psicologia e na

sociologia, agora privilegiando o aspecto social da experiência do envelhecer,

assim como a expansão do entendimento do aspecto social da experiência

corporal na velhice. Passa-se, daí, a compreender as conseqüências corporais,

psicológcias e sociais do envelhecer heterogêneo. O heterogêneo, aqui, se

refere à possibilidade de pensar varias formas de viver a velhice, em

detrimento de uma forma única ver e pensar a vida na velhice. Não

poderíamos mais pensar em uma definição última para a velhice, pois esta

possui uma infinidade de características que não se reduzem umas as outras.

Mas se a velhice, enquanto destino biológico, é uma realidade que

transcende a história, não é menos verdade que este destino é vivido de

maneira variável segundo o contexto social; inversamente: o sentido ou não

5 NASCHER, Ignatz Leo. Geriatrics. Philadephia, 1914.

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sentido de que se reveste a velhice no seio de uma sociedade coloca toda

uma sociedade em questão, uma vez que, através dela, desvenda-se o

sentido ou o não sentido de qualquer vida anterior. (BEAUVOIR, 1990, pág.

16)

Categorias como: classe social, relações familiares, conflitos

geracionais, saúde, corpo, sexualidade, trabalho, visibilidade social, etc.,

passam a compor os estudos sobre o assunto, procurando refutar

determinismos que mascarassem a multiplicidade e complexidade das

vivências nessa fase da vida.

Foi a pesquisa sócio-antroplógica, aqui no Brasil, que primeiro se

preocupou em tornar esse assunto objeto de investigação, mas lembrando que

a questão da velhice ganhou visibilidade social com o crescimento populacional

dos mais velhos. A pergunta “O que fazer com esses “novos” sujeitos?”

passou, agora, a compor o quadro de preocupações sociais. Mas explicar a

visibilidade e importância desses estudos apenas pelo viés demográfico não

nos permitiria ver as modificações nas representações sociais sobre o

envelhecimento, como estão se organizando as divisões das idades, bem como

as novas concepções e imagens do “envelhecimento adequado” (DEBERT,

2004). Assim, o que esses novos estudos propõem é um novo olhar para as

mudanças culturais, que fazem repensar as formas de perceber e agir nas

experiências cotidianas dos idosos.

Quando a sociologia e a antropologia se ocupam dos estudos sobre

velhice, essas disciplinas se detêm, principalmente, nas construções sobre as

relações entre as diferentes idades e interpretam a velhice como um produto

dessas relações. Segundo Alves (2006), esse enfoque “revela um ponto

essencial do envelhecimento contemporâneo: a fragmentação da experiência

da velhice”. A categoria de geração é, aqui, fundamental para essa

compreensão.

O conceito de geração pode ser assim definido (Debert, 1998:60): apesar de

suas conotações variadas, a idéia de geração implica um conjunto de

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mudanças que impõem singularidades de costumes e comportamentos a

determinadas gerações. [...] A geração não se refere às pessoas que

compartilham idade, mas às que vivenciaram determinados eventos que

definem trajetórias passadas e futuras (ALVES. Pág. 68, 2002).

Os principais estudos de referência para essas novas pesquisas

eram os que privilegiavam a temática da relação entre indivíduo e sociedade. O

estudo da identidade social ganha importante impulso com as pesquisas na

área urbana, associadas à Escola de Chicago, principalmente com as

discussões sobre desvio social e estigma, com Erving Goffman e Howard

Becker. A etnografia tem, aqui, papel fundamental na compreensão dos

sistemas simbólicos e de significados que configuram as experiências e ações

da vida social. Nesse contexto, caberia referir como representantes mais

importantes da análise cultural Clifford Geertz e Marshall Sahlins (BARROS,

2006).

Apropriando-nos das categorias de Goffman (1982) de “identidade

social” e “estigma”, teremos acesso a um maior entendimento na análise do

imaginário social sobre a velhice. Utilizando a definição de Goffman,

“identidade social” é um conjunto de atributos considerados comuns e naturais

que a sociedade estabelece como meio para categorizar as pessoas. Essas

categorias encontram-se pré-concebidas, sem atenção ou reflexão, em

ambientes sociais onde as relações com os “outros” se estabelecem. A rotina

que se constrói nessas relações com os outros, transforma essas pré-

concepções em “expectativas normativas”, “em exigências apresentadas de

modo rigoroso”. Porém, não nos damos conta, imediatamente, que fazemos

tais exigências.

Esperamos de um estranho, que queira fazer parte do nosso grupo,

atributos/características concordantes com as que cremos “normais” a nós, que

atendam às nossas expectativas. Goffman denomina essa imputação feita a

esse estranho como identidade social virtual, e as características que ele prova

ter, na realidade, como identidade social real. Quando esta identidade real é

muito divergente com a esperada, essa divergência pode tornar o indivíduo

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uma pessoa menor, incapaz para compor tal grupo - “algumas vezes

considerado um defeito, uma fraqueza, uma desvantagem” (GOFFMAN, 1982,

pág. 12). A(s) característica(s), considerada(s) negativa(s), depreciativa(s),

constitui(em) um estigma.

Possuir um estigma é carregar uma marca de rejeição. Goffman

determina três diferentes formas principais de estigma: 1) “as abominações do

corpo”; 2) “as culpas de caráter individual” e 3) “os estigmas tribais de raça,

nação e religião”. A velhice traz consigo as marcas da degeneração do corpo, e

é percebida primeiramente por isso, e compõem, segundo a tipologia das

estigmatizações de Goffman, uma modalidade de abominação do corpo. Não

acordamos um belo dia nos sentindo velhos – “pronto, agora sou um velho!” –

passamos, na verdade, por um longo processo de modificações corporais, que

estão relacionadas àquelas estigmatizações, assunto que discutirei mais

adiante.

Essas modificações não permitem que reconheçamos mais a total

capacidade de produção social e individual do sujeito. Este passa a ser

rejeitado devido à sua condição de velho, de pessoa próxima ao fim. É possível

perceber essa rejeição também dentro de grupos que se acreditavam

homogêneos. Como exemplo, podemos pensar os próprios velhos. Acreditava-

se que ser velho era sempre do mesmo jeito, tanto na forma se sentir a velhice

como na forma de viver essa velhice, mas o que percebemos na realidade são

incontáveis formas de rotinas na velhice. Hoje, as exigências feitas aos velhos

é que permaneçam “jovens” o máximo de tempo que conseguirem,

trabalhando, viajando, namorando, saindo para festas, etc., mas tudo isso

respeitando os limites impostos como adequados aos pudores que a

sociedades exige, claro! Estamos falando de velhos.

Os sujeitos que se adequam a esses parâmetros passam a rejeitar

aqueles que não se adequam, com o discurso de que a velhice só é ruim para

aqueles que não sabem como vivê-la, sendo, por exemplo, as agruras do corpo

e a solidão uma responsabilidade desses sujeitos que não aprenderam como

“conservar” suas vidas. Mas tudo é muito ambíguo, pois essas atividades, que

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18

primeiramente não deveriam se distanciar muito da juventude – sendo muitas

vezes cópias das exigências feitas aos mais jovens – são repletas de sanções

para que eles (velhos) não esqueçam da sua condição. Podem sim sair para se

divertirem, mas em ambientes próprios para sua idade; podem sim viajar, mas

nos pacotes direcionados a “melhor idade”, e até pode namorar, mas sem

grandes escândalos, nada de ficar se exibindo nem falando de sexo, não é

apropriado!

Tudo isso também é muito perceptível nas terminologias usadas para

se referirem aos velhos6. Os termos refletem os estigmas que essas pessoas

carregam. Chamá-los de velhos parece, agora, uma agressão. O termo traz

consigo tudo o que deveria ficar escondido, tudo o que não deve ser lembrado.

Então passamos a usar termos como “terceira idade”, “melhor idade”,

“maturidade” como forma de mascarar os preconceitos de idade, o problema é

que com a invenção de tantas nomenclaturas e a dúvida de como usá-las,

assim como o constrangimento que algumas delas causam, elas se tornam

reveladoras de preconceitos com os velhos.

1. 2. Velhice em tempos de incerteza e insegurança

As incertezas em relação a definições unívocas sobre o

envelhecimento e a velhice, definições que se referem a roteiros sócio-sexuais,

afetivos, etc., evidentemente estão relacionadas às incertezas e inseguranças

que caracterizam os modos de vida dos indivíduos nas sociedades modernas,

constituindo um caso exemplar daquilo que o sociólogo inglês Anthony Giddens

(2002) chama de “insegurança ontológica”.

A modernidade rompe com a segurança social e individual existentes

nas sociedades da tradição. As expectativas de existência dos sujeitos eram

pautadas pela ordem tradicional passadas de geração a geração. Os papeis

sociais eram bem definidos e delimitados. As mulheres, por exemplo, tinham

6 Sobre as discussões acerca das novas noções de se referir a experiência do envelhecer, ver Debert (2004), Barros (1998); Britto da Motta (1997; 2004).

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suas opções de vida já traçadas desde a infância – eram criadas para casar e

procriar ou servirem a Deus – não tinham o direito de escolha ou de modificar

essas determinações, assim como, ao ficarem velhas tinham que assumir o

papel da avozinha querida, assexuada, sensível e compreensiva com todos a

sua volta.

Com a modernidade, ou a alta modernidade, como definiu Giddens

(2002), os sujeitos passam a ser obrigados a “encontrar-se a si mesmos”: com

os processos de individuação, a construção de si passa, agora, por riscos e

perigos. Perde-se a “segurança ontológica” do ser, pois os papeis sociais bem

demarcados não fazem mais sentido na sociedade contemporânea, o que

causa, devido a esses riscos, uma enorme ansiedade em relação à aceitação

ou não aceitação das escolhas feitas. A construção de si passa a ser uma

preocupação e escolha individuais, assim como suas conseqüências. A ordem

pós-tradicional com suas conexões sociais de grande amplitude faz da

construção do eu “um processo reflexivo” (GIDDENS. 2002).

A construção de si está muito ligada aos planos de vida que os

sujeitos devem fazer e executar durante suas trajetórias. Para muitos, na

velhice esses planos já não fazem mais sentido, pois ficaram ligados aos

planos e expectativas de juventude. Acredito ser por esse motivo que se escuta

muito que aos velhos resta apenas a memória, não entendida como uma

reconstrução de si e da história vivida, mas como nostalgia de tempos que não

voltam e como significado de impotência quando comparado ao “tempo de

atividade”, de produção. É verdade que com as novas exigências corporais, às

quais os velhos são obrigados a se adequar, e com a idéia de proximidade do

fim ainda mais latente – todos nós, principalmente nas grandes metrópoles,

convivemos com a proximidade da morte diariamente, mas é na velhice que a

sentimos mais perto, vivemos nos enganando que é só nela que devemos nos

preocupar com o fim – os projetos ficam parecendo delírio.

Nesse contexto, percebemos que as atuais práticas de denominação

do envelhecimento, sob o controle do discurso politicamente correto, impõem

severas restrições de como se deve tratar e falar da velhice. As técnicas de

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20

controle comportamental dos velhos, que negam as antigas imagens

associadas à velhice, fazem dessa “boa velhice” uma responsabilidade e forma

de opção de vida de cada sujeito. Essas novas cenas não oferecem

instrumentos para enfrentar a decadência das habilidades cognitivas e controle

físico e emocional necessários para o reconhecimento do indivíduo que

envelhece como um ser capaz de exercer seus direitos como cidadão.

Essa “reflexividade do eu”, apontada por Giddens, é instrumento

fecundo para questionarmos vários aspectos da vida dos mais velhos ao nível

de sua intimidade, principalmente. Família, sexualidade, corpo,

relacionamentos, trabalho, etc. são construídos e vividos, atualmente, sob a

responsabilidade desses sujeitos. Entender como se processa, individual e

socialmente, essas responsabilidades da construção de si torna mais

compreensível alguns conflitos de gerações, que podem ser frutos de um

desencontro de perspectivas de como conduzir as escolhas de vida.

Berlinck (1998), fazendo uma alusão (um tanto jocosa) à

adolescência, trata da velhice de uma forma menos agressiva. Na

envelhescência, como prefere chamar, os sonhos são reavaliados e

redefinidos, mas não esquecidos. Passa-se a pensar não “no que gostaria de

realizar”, mas “no que posso realizar”. A envelhescência se diferencia de outras

definições de velhice, porque não é em si um estágio, mas um momento desse

processo de desencontro entre a temporalidade do corpo versus a

atemporalidade do desejo e do pensamento, que produz uma significação e

uma subjetivação singulares da velhice, podendo ser o momento de maior

solidão e individualização.

É nesse momento que o envelhescente refaz sua história através da

memória. Esse “refazer-se” é necessário para que ele possa se adequar ao seu

corpo que envelhece, já que uma das frases mais repetidas por pessoas

durante a velhice é “que só seu corpo está velho, pois continua com a alma de

jovem”. Produz, assim, uma forma mais criativa de encarar a velhice. Descobre

que não é uma característica exclusiva da velhice possuir limitações, e que

passou todas as etapas da vida tendo que superar seus limites. Essa

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21

forma/proposta mais otimista de ver a velhice permite que os sujeitos tenham

mais consciência da sua reflexibilidade, e que em todos os momentos da vida

existem suas boas e más situações (BERLINCK, 1998).

Embora a velhice ainda seja tratada como imprópria para

planejamentos, pesquisas mostram (MOTTA, 2006), que, ao encará-la como a

última fase da vida, eles, os velhos, fazem dela o momento de planejar e

executar o que desejam realmente, pois não possuem mais tempo para ficarem

só sonhando. Berlinck propõe quase um “tratado” de “recriação do eu” diante

das exigências de cuidados especiais que o corpo pede, adaptando o cotidiano

a esses, criando uma arte de viver a velhice.

Negri (2001), indo também na contramão da visão negativa do

envelhecer, não entende esse momento como “uma diminuição da potência de

agir”, mas sim como uma ampliação da capacidade de agir. Para ele “o

envelhecimento não é uma cessação, mas, ao contrário, é uma extensão suave

e apaziguada da capacidade de agir” (Negri. Pág. 49, 2001). Essa forma

“suavizada” de entender a finitude pode nos ser fecunda para pensarmos como

um contraponto à agressão que, na maioria das vezes, cerca a velhice.

Agressão essa vinda do repúdio que os indícios da velhice causam nas

pessoas.

Norbert Elias estudando o processo civilizador, nos mobiliza a

acompanhar a forma como a finitude da vida é tratada pelas sociedades

modernas. Temos uma tendência de afastar (reprimir) tudo que nos lembre que

nossos entes queridos e nós mesmos um dia não existiremos mais. Desse

modo, afastar a idéia indesejada do fim e conservar a falsa “crença inabalável

(fantasias) da imortalidade” faz parte dos esforços da sociedade

contemporânea. A associação da velhice com o fim da vida faz com que os

mais jovens queiram manter afastados de si os moribundos e os velhos. Torna

a velhice um “signo premonitório” da morte (Elias, 2001). A morte, hoje, assim

como a doença, é extremamente higienizada. Os mortos e os doentes não

ficam mais sob os cuidados dos parentes, mas sim de especialistas e de uma

equipe de peritos a princípio estranhos e anônimos.

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22

É também preocupação do autor identificar como nas sociedades

industrializadas os sujeitos são altamente individualizados e como “sua

capacidade e liberdade de agir são motivos de orgulho”, situação bem

demarcada a partir da segunda metade do século XIX. É, necessariamente,

importante traçarmos um diálogo com a visão sobre o idoso desse ponto de

vista. Aqui a decadência física, assim como a morte social, é de inteira

responsabilidade dos sujeitos.

1. 3. Gênero, Estudos sobre Mulheres e Ciências Soc iais.

Após essa breve e preliminar discussão sobre conceitos

relacionados à categoria de geração7, julgamos importante abordar

analiticamente o conceito/categoria de gênero.

O conceito de gênero tal como é tratado na academia, diferente das

definições dos dicionários, tem sua origem nas primeiras lutas feministas, que

tinham como alvo a discriminação feminina e também dar visibilidade a

situação em que as mulheres se encontravam. Essas lutas não eram travadas

só com os campos político e privado, mas também na produção acadêmica,

elevando a discussão ao nível do respaldo científico. As militantes feministas

levaram para a academia e escolas, mobilizadas pela paixão política, os

questionamentos sobre a imposta inferioridade social feminina, dando origem,

assim, aos estudos da mulher. Esses estudos deram visibilidade política e

acadêmica às mulheres, tornando-as Sujeitos (LOURO, 2003).

Esses primeiros estudos, ao darem visibilidade as contradições de

gênero e tornar essas mulheres Sujeitos, tentavam desligar a figura da mulher

7 Podemos referir, no campo da sociologia, como autor principal que tratou teoricamente dessa categoria o pensador húngaro, de cultura alemã, Karl Mannheim, que escreveu um ensaio em 1928, intitulado “O problema das gerações”, que se encontra parcialmente traduzido em Mannheim (1982). Sobre esse ensaio, ver os comentários de Domingues (2002) e Weller (2007).

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23

do mundo doméstico, do mundo dos afetos e sentimentos distante da

racionalidade (que era “coisa de homem”), tentando desmontar uma “essência

feminina” construída pela dominação masculina para legitimar sua

superioridade.

No Brasil, uma maior efervescência do movimento feminista tem

inicio, principalmente, nos movimentos contestatórios a partir dos anos 60 e é

nos anos de 1970 com a participação feminina no enfrentamento à ditadura

militar que o feminismo, aqui, recebe maior dinâmica e visibilidade. A discussão

estava centrada no domínio do político e seus limites conceituais, ligado à

esfera pública e nas relações estabelecidas a partir do que se entendia como

domínio do mundo público. Recolocam, assim, a esfera do privado nas pautas

de discussões, tentando quebrar com a dicotomia “público x privado”. Para elas

era necessário demonstrar que o “privado” tem uma tessitura social, sendo,

portanto, relevante para a tematização do político. Ao enfatizar esse

entrelaçamento entre privado e político, assim conseguiriam desmascarar as

contradições vividas no domínio do privado, contradições especialmente

experimentadas pelas mulheres.

Com a presença feminista na vida política, que era até então de

domínio do masculino, é que as contestações sobre a submissão da mulher

passam a fazer parte da vida pública, principalmente relacionado à

problemática ligação com a igreja e com os resquícios do pensamento

patriarcal.

Essas lutas sociais contra a opressão masculina às mulheres,

em um segundo momento, deixam de ser um movimento puramente social

para serem também construções teóricas feitas por feministas que se

encontravam também na academia. Teremos, assim, a construção dos

“estudos sobre mulheres”, carregados da “paixão política” que moviam as

acadêmicas militantes.

Aos poucos esses estudos sobre a vida das mulheres vão exigir que

outros fatores sejam agregados, como trabalho, escolarização, corpo, lazer,

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24

etc., mostrando que somente fazer a denúncia ou descrição minuciosa dessas

vidas não era suficiente. Serão agregadas as teorizações marxistas,

psicanalítica, feministas radicais, etc.

Os primeiros estudos/discussões sobre mulheres são inspirados

pelas feministas marxistas e no trabalho de Simone de Beauvoir, O Segundo

Sexo (originalmente publicado em 1949). Beauvoir, ao perguntar “o que é uma

mulher?” desestabiliza a visão entendida como normal sobre o que era ser

mulher e o que era ser homem. “Todo ser humano do sexo feminino não é,

portanto, necessariamente mulher; Cumpre-lhe participar dessa realidade

misteriosa e ameaçada que é a feminilidade” (Beauvoir, 1970, pág. 07).

A autora parte do questionamento do masculino como tipo humano

absoluto, o que torna essa humanidade masculina, pois o homem a pensa a

partir de si. O homem é, aqui, o Sujeito, o Absoluto; a mulher é o Outro.

Entender a categoria Outro, para ela, é fundamental para que possamos

compreender o pensamento humano, já que a alteridade/Outro é tão original

quanto à própria consciência. Era de interesse de Beauvoir entender as teias

entre o Um e o Outro para procurar os motivos pelos quais as mulheres não se

rebelavam contra a autoridade dos machos.

Nenhum sujeito se coloca imediata e espontaneamente como inessencial,

não o Outro que definindo-se como o Outro define o Um; ele é posto como

Outro pelo Um definindo-se como Um. Mas para que o Outro não se

transforme no Um é preciso que se sujeite a este ponto de vista alheio. De

onde vem essa submissão feminina? (BEAUVOIR, 1970, pág. 12).

O objetivo das teorizações sobre o lugar que ocupavam as mulheres

era mostrar que não é diferenciação biológica entre os sexos que define os

papeis sociais, mas sim a forma como essas características são construídas e

representadas socialmente. Assim era necessário uma nova linguagem que

desse conta do que era estabelecido socialmente sobre homens e mulheres.

Nesse sentido é que se recorre ao conceito de gênero.

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25

O conceito não nega a biologia, não nega a diferença dos corpos

sexuados, mas pretende entender como esses corpos diferentes são

entendidos sócio-historicamente, como são elaborados os arranjos sociais que

diferenciam homens e mulheres. É a desnaturalização do pensar homens e

mulheres, negando uma essência feminina e masculina a priori.

Um estudo fundamental e também um dos pioneiros foi o de Gayle

Rubin, Tráfico de Mulheres (1975), que apresenta o conceito de gênero como

um sistema que “possui um conjunto de arranjos pelo qual a sociedade

transforma a sexualidade biológica [...] as relações de gênero não resultam da

existência de dois sexos. Sim de um sistema sexo/gênero”.

As interpretações feitas a partir do sistema sexo/gênero de Rubin

não abandonam a dicotomia entre o biológico e o cultural. As diferenças

sexuais corpóreas causariam determinações sociais. Os estudos (e o conceito)

de Rubin fizeram rupturas com o pensamento que entendia a diferença de

gênero como o meio para garantir a reprodução social. Assim, indo além dos

determinismos sociais, revoluciona a forma de compreender as construções

sociais de gênero, classe e raça.

Autoras como Maria Luiza Heilborn, utilizam o conceito de estruturas

simbólicas, que determinam os papeis sociais dos sujeitos, para compreender

o gênero. Estes sujeitos não teriam forças para romper com essas

determinações. As relações sociais possuem uma estruturação que de tanto

serem repetidas acabam parecendo naturais. Com as relações de gênero não

foi diferente. Seria, nesse caso, o conceito de gênero que iria permitir

compreender esses sistemas construídos pelas estruturas sociais (PEREIRA,

2004).

No entanto, feministas mais contemporâneas como Joan Scott,

Donna Haraway, Judith Buther, entre outras, fazem a crítica a esse sistema.

Haraway, por exemplo, diz que as feministas ficaram tão preocupadas em

argumentar contra o “determinismo biológico” que acabaram caindo em um

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“construcionismo social”, e que não foram capazes de questionar o domínio

que a biologia tem sobre a construção e conhecimento do corpo/sexo. A

construção social dessas identidades de gênero não historiciza o sexo e a

natureza, não conseguindo fugir desse par biológico “homem/mulher”, e que

pode acabar caindo em perigosas identidades essenciais (masculino e

feminino). O problema, para ela, é que esse modelo binário constitui o gênero

como identidade global. É necessário mexer nesse corpo dominado apenas

pela biologia, como se o sujeito fosse um dado biológico utilizado pelo social

para desempenhar essas identidades.

A apropriação do conceito de identidade de gênero é realmente

muito importante para entender a identidade geracional. As trajetórias sociais

de gênero das mulheres determinam, muitas vezes, as vivências e sentimentos

dessas mulheres na velhice. As avaliações, nessa etapa da vida, em relação às

realizações, possibilidades, liberdade são colocadas de forma diferenciada

para homens e mulheres (MOTTA, 1999).

1. 4. Literatura e Vida Social: o feminino nas narr ativas.

“Sempre fomos o que os homens disseram que nós éramos.

Agora somos nós que vamos dizer o que somos”.

(As meninas, Lygia Fagundes Telles)

Kehl (2000, 1998), ao tentar compreender a constituição do sujeito

feminino na modernidade, faz um contraponto com a literatura moderna, que

segundo ela, foi fundamental para entender a constituição de uma

“subjetividade feminina”. Essa literatura tem como característica principal

contar histórias de homens e mulheres “comuns”, que tentam dar sentido e um

lugar para suas vidas dentro de uma sociedade cada vez mais instável, que

exige dos sujeitos uma consciência e segurança que vão a desencontro com as

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estruturas sociais oferecidas a eles. Assim, é no romance moderno que

encontramos a voz da diferença, da divergência e do desamparo (KEHL, 2000).

A experiência da leitura, principalmente para as mulheres do final do

século XIX – com os limites domésticos e familiares ainda muito determinantes

e opressores –, autoriza essa mulher a reconhecer sua diferença, pois mesmo

sendo um ato solitário, a leitura cria um campo de experiência compartilhada,

dando a elas um referencial simbólico em resposta à crise na relação do

indivíduo com a tradição.

É pensando nessas mulheres “comuns”, que nos revelam essa

divergência entre o que se sente e quer para si e o que é oferecido e esperado

socialmente, que escolhi seis personagens velhas claricianas, que me puseram

em funcionamento o exercício de questionar a condição da velhice feminina,

com suas culpas e lutas cotidianas no enfrentamento ou resignação da

situação que se encontra e da forma como são julgadas.

Investi na escrita de Clarice Lispector para minha investigação sobre

o universo feminino, por ela ser reconhecida na literatura brasileira como

importante interlocutora da escrita feminina. Reconhecer a importância da

escrita de mulheres sobre mulheres, mesmo que algumas autoras não se

identifiquem assim, como é o caso de Clarice, é dar voz a esse “outro”, que

durante muito tempo permaneceu nos “bastidores sociais” por não serem

reconhecidos como sujeitos da ação.

O mundo feminino sempre foi pensado como fútil, ligado à emoção,

natureza, desrazão, por este motivo, tratou-se, nos primórdios, a escrita

feminina como sem valor literário. Era preciso encontrar uma legitimidade da

escrita sem que ela fosse relacionada a lamento ou como querendo tomar o

lugar do masculino. Daí que, podemos arriscar, a literatura feita por mulheres é

sim uma “literatura outra”, não pelo simples fato de ser produzida por mulher,

mas sim por sua intencionalidade política de quebrar com o androcentrismo na

literatura. Era preciso escrever como mulher. O discurso literário masculino se

impôs sócio-culturalmente como escrita do gênero humano sem precisar de

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uma nomeação ou invenção. Por esse motivo muitas autoras, inicialmente,

“imitaram” a produção masculina (algumas vezes usando pseudônimos

masculinos) para obterem reconhecimento literário.

As obras claricianas são reconhecidas pela consciência/denúncia,

apresentada pela autora, dos dramas da condição humana, numa

compreensão de si e do outro, onde podemos reconhecer as lutas diárias pelas

mudanças julgadas necessárias para a mudança de reconhecimento/condição.

1. 5. O uso da literatura como objeto de pesquisa s ociológica

O primeiro questionamento quando se estuda literatura na sociologia

é como fazer da criação literária objeto de estudo para pensar as

representações sociais, sendo o grande desafio para o cientista social não cair

em meros “reducionismos do sociológico”, como ilustração de argumentos já

reconhecidos, mas sim captar a potência/força da obra literária, diferenciando-a

de um simples reflexo do social.

Assim, é necessário não ver a obra literária apenas como espelho do

social, cuidando, por outro lado, de não considerá-la totalmente independente

dele. No argumento de Cândido (2008), essas duas vertentes “se combinam

como movimentos necessários do processo interpretativo”. Não devemos

esquecer, também, a relação arbitrária e deformante com a realidade que o

artista pode desenvolver em seu trabalho. Isto constitui sua liberdade e

genialidade. Não devemos questionar a veracidade ou não da narrativa, mas

sim o que ela nos representa como figuração do social. Que tipos de imagens

os personagens e seus conflitos põem em funcionamento sobre determinado

tema, pois esse mesmo artista não é fruto do acaso, e sim produto e produtor

de interação social. Por isso, sua criação não pode ser considerada alheia à

vida social.

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Antônio Cândido (2008) em seu estudo sobre literatura e vida social,

apresenta como objetivo para este tipo de pesquisa, focalizar aspectos sociais

que envolvem a vida artística e literária nos seus diferentes momentos,

chegando as seguintes perguntas: a) qual a influência exercida pelo meio

social sobre a obra de arte? b) qual a influência exercida pela obra de arte

sobre o meio social?

Numa tentativa de superar a dualidade – reflexo social vesus criação

pura – é necessário perceber que a linguagem e a significação são elementos

indissociáveis do próprio processo social, envolvidos permanentemente na

produção e na reprodução da vida material. A obra literária deve ser entendida,

por esse ponto de vista, como parte ativa dentro de um processo histórico, não

sendo nem absolutamente autônomo, muito menos uma projeção secundária.

A arte interessa, aqui, ao sociólogo por ser um sistema simbólico de

comunicação inter-humana e, como toda comunicação, pressupõe um

comunicante (artista), um comunicado (obra), e um comunicando (público), que

juntos definem um quarto elemento fundamental para essa comunicação: o

efeito. Por isso não se deve separar a feitura da obra de sua repercussão. A

obra literária surge na confluência entre iniciativa individual e condições sociais,

indissoluvelmente ligados (CANDIDO, 2008).

Para romper com a concepção idealista que a literatura é uma esfera

a parte da vida social, autônoma da produção da vida material e somente fruto

da intuição e sensibilidade do seu autor, considerado como gênio, foi

necessário que a criação literária fosse percebida como criação interessada e

reprodutora de disputas sociais. Neste aspecto, temos as contribuições de

Bourdieu (1996) e de Elias (1995), que abordam a relação autonomia x

determinação da criação e do campo artístico8 (Cf. MARTINS, 2004).

8 Para Bourdieu, deve-se relacionar o exercício da atividade literária às suas condições sociais e aos tipos de constrições estruturais que pesam sobre elas. O conceito principal do autor, para essa discussão, é a sua sociologia dos campos. Campos, definido brevemente pelo próprio autor, são “espaços estruturados de posições (ou de postos) cujas propriedades dependem das posições nestes espaços, podendo ser analisados independentemente das características de seus ocupantes [...]. Há leis gerais dos campos: campos tão diferentes como o campo da política, o campo da filosofia, o campo da religião possuem leis de funcionamento invariantes (BOURDIEU, 1983, p.89).

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Mais especificamente, neste estudo interessa o conceito de campo

literário, que pode ser definido como espaço social que reúne diferentes grupos

de literatos, romancistas e poetas, que mantêm relações determinadas entre si

e também com o campo do poder. Assim a tarefa a que o autor se propôs, ao

analisar o romance de Gustav Flaubert, era mostrar que a estrutura social na

qual o personagem estava inserido era também a estrutura social que estava

inserido o seu autor. Desmistificando também a genialidade do autor, Bourdieu

negou a existência de um talento inato do artista, o que podia ser observado,

na verdade, era o funcionamento de um habitus que mediava as condições

objetivas de funcionamento de uma sociedade e as aptidões subjetivas dos

membros dessa.

Essa forma de análise empregada por Bourdieu é salutar para

romper com a mística em torno da obra literária, que impossibilitava tratá-la

sociologicamente. Porém, é necessário que não nos deixemos cair numa outra

ingenuidade: a de que a obra é pura e simplesmente fruto do seu tempo, não

tendo nenhuma característica atemporal ou transcendente. É preciso que o

analista social perceba a potência significativa da estética para não reduzi-la

apenas como espelho do social.

A literatura tem nos mostrado várias formas possíveis de interpretar

as representações acerca da questão de gênero e geração. Numa tentativa de

quebrar os estereótipos, as personagens velhas que eu já tive contato são,

muitas vezes, figurações dessas contradições na construção do imaginário

social sobre o feminino e a velhice. Autoras que fogem da escrita politicamente

correta, usando palavras consideradas malditas para representarem o

envelhecimento, com mulheres que “escancaram” as angústias cotidianas

diante das demandas de “bom comportamento”. Outro aspecto que é pertinente

nas narrativas de Clarice Lispector são as outras escolhas possíveis de viver a

velhice apresentadas pelas personagens. Escolhas essas sempre carregadas

de culpas, pos estarem, muitas vezes, desobedecendo as “regras do jogo de

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envelhecer”, mas que denunciam as muitas arbitrariedades dos discursos

homogeneizadores da velhice.

Não se trata de romantizar a velhice, ou negar discursos, mas sim de

perceber e tentar compreender outras maneiras de pensar e viver a velhice

com todas as negociações necessárias e realizadas por essas “mulheres

fictícias” para darem dignidade a essa etapa da vida. Portanto, fazer sociologia

do texto literário, como nos esclarece Leão (2009), “é, antes de tudo, a

compreensão de seu funcionamento social, dos valores e das representações

que mobiliza nos atores sociais envolvidos com o trabalho de criação”.

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CAPÍTULO II:

AS AFLIÇÕES DE EXISTIR NUM CORPO VELHO: CORPO E

SEXUALIDADE NA VELHICE.

2. 1. A vida social como sistema de significados.

A vida social como sistema de significados, explicada assim desde

os fundadores da sociologia, principalmente na era moderna, quando se

efetivam os estudos sobre a sociedade com caráter científico, é caracterizada

pela compreensão da relação dos indivíduos com os outros indivíduos, e

desses com a sociedade. A vida social é aqui entendida como um sistema de

elementos significantes – sua razão de ser – e a produção de significação pela

relação entre esses elementos: “As relações sociais envolvem crenças, valores

e expectativas tanto quanto interações no espaço e no tempo. A sociedade é

uma entidade provida de sentido e significação” (RODRIGUES, pág. 18, 2006).

A vida coletiva, assim como a vida individual, se faz através das

representações produzidas nesses sistemas de significações. A cultura, afirma

RODRIGUES (2006), é entendia, aqui, como um “mapa” que orienta o

comportamento humano dentro desse jogo de significados, que são produto e

produtores, ao mesmo tempo, do comportamento dos indivíduos que estão

nesse jogo. As representações sociais tanto nascem das relações entre os

sujeitos como também são as reguladoras dessas relações. As pessoas, ao

passarem pelo processo de socialização, têm essas representações

introjetadas em si pela educação que recebem conforme a organização de sua

cultura. O conceito de cultura que é pensado aqui é o mesmo a que Clifford

Geertz se atém:

O conceito de cultura ao qual eu me atenho não possui referentes múltiplos

nem qualquer ambiguidade fora de comum, segundo me parece: ele denota

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um padrão de significados transmitidos historicamente, incorporado em

símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas

simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e

desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida

(GEERTZ, 1989, pág. 103).

A condição básica/primeira para o entendimento do que seja cultura

é a sua oposição à natureza. Esta é caracterizada como tudo aquilo que não

tem relação com o que é construído por e para a tradição social. Sendo assim,

é de nosso interesse tentar compreender o que são as representações sociais

(e especificamente as representações produzidas pelo texto de ficção, as

figurações literárias), bem como o que elas significam quando tentamos

compreender os processos de significação sobre a velhice na nossa sociedade,

em geral, neste capítulo, especialmente, no âmbito da experiência corporal e

sexualidade. Para isso pretendo entrar na discussão do corpo como estrutura

simbólica e como se dá a apropriação desse corpo no envelhecimento e

também sobre como se caracteriza a experiência da sexualidade na velhice.

2. 2. O que quer dizer um símbolo.

A presença de símbolos em todas as sociedades é sempre, por isso

é sempre alvo de interpretações nas mais diferentes disciplinas que se ocupam

do homem e suas relações sociais. A definição mais simplória de símbolo,

encontrada em qualquer dicionário, é de Objeto físico a que se dá uma

significação abstrata; Figura ou imagem que representa alguma coisa;

Qualquer signo convencional figurativo; Fig. Sinal, divisa, emblema, marca,

indícioReligião Sinal externo de um sacramento; Psicologia Idéia consciente

que revela ou mascara outra, inconsciente9.

9 Definição retirada do Dicionário On-line Aurélio, disponível em: http://www.dicionariodoaurelio.com/dicionario.php?P=Simbolo.

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É a partir desse reducionismo do símbolo a uma mera representação

imediata, muito comum nas sociedades contemporâneas, que devemos pensar

no que se transformou a imagem simbólica depois de tanto investimento

científico para descaracterizá-la.

Os estudos sociológicos sobre simbologia, que podemos remontar a

Durkheim, com seu estudo sobre o significado totêmico, que definia o totem

como expressão material; forma exterior; sensível de alguma coisa maior (a

sociedade) se dedicam as representações sociais, ou coletivas que esses

símbolos carregam. Encontramos muitas formas de perceber o que significa

um símbolo, desde a forma mais simplória - como representação imediata de

algo ausente – até abstrações mais complexas – como, por exemplo, a

interpretação dada por Gaston Bachelard em A Poética do Devaneio, quando

pensa o devaneio sobre as palavras. Palavras símbolos! Sócio-

antropologicamente a definição mais investida é a mesma usada por Geertz

(1989), em seu estudo sobre a religião como sistema cultural, a saber: o

símbolo é usado para qualquer objeto, ato, acontecimento, qualidade ou

relação que serve como vínculo a uma concepção – a concepção é o

“significado” do símbolo (GEERTZ, 1989, pág. 105).

Um símbolo não é construído a partir do nada. Gilbert Durand (1998)

escrevendo sobre a imaginação simbólica lamenta a desvalorização da

imaginação nas sociedades ocidentais. Ele define de forma, assumida por ele,

simplória, que existem duas formas da consciência representar o mundo. A

forma direta, quando o próprio objeto parece estar presente na mente, e a

forma indireta, quando por algum motivo o objeto não pode se apresentar à

sensibilidade de forma objetiva.

Ele define símbolo como pertencente à categoria do signo, que pode

ser arbitrário ou alegórico (personagem; figura). Também como sinal ou índice;

palavra (conceito); ícones (placas); emblemas; apologia (narração da

representação de um conjunto de idéias). Pode-se descrever um símbolo como

um signo concreto que representa alguma coisa que não está presente ou que

não seja percebível. É em si mesmo, uma imagem capaz de produzir idéias. A

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imagem simbólica é transfiguração de uma representação concreta através de

um sentido para sempre abstrato (DURAND, pág. 15, 1989).

Durand (1988) afirma que o gênio de Bachelard vem da sua

capacidade de resgatar nas imagens e nos símbolos a inocência na simbólica,

inocência esta perdida pelas ciências que reduziram os símbolos a meras

representações associativas10. Paul Ricoeur, citado por Durand, diz que todo

símbolo autêntico é ao mesmo tempo, cósmico, onírico e poético, e sendo

poético recorre para a linguagem.

2. 3. O Corpo como Estrutura Simbólica.

“Subtraído do homem que encarna à maneira de um

objeto, esvaziado de seu caráter simbólico, o corpo

também é esvaziado de qualquer valor.”

(Le Breton, Antropologie du corps

et modernité, 1990).

As sociedades contemporâneas tendem a um organicismo, um

reducionismo biologizante da esfera corporal. Como se corpo e indivíduo

fossem duas coisas opostas, um da ordem do natural e o outro do cultural.

Porém, um segmento da sociologia e antropologia, a sócio-antropologia do

corpo, se dedica à compreensão do corpo como fenômeno social, motivo

simbólico, objeto de representações sociais.

10 Durand faz referência aqui ao que Bachelard (2006) chama de devaneio de um sonhador de palavras, ao perceber as maravilhas (ou graças) das palavras femininas (anima - devaneio) em oposição à rudeza das palavras masculinas (animus - sonhos). Para o autor, a imaginação se manifesta de três formas: através do devaneio, no plano consciente; do sonho, no plano do inconsciente; e do delírio, que seria a loucura. O devaneio seria uma espécie de animação e companhia para a alma. A anima se sobrepõe ao animus formando uma consciência sonhadora, fazendo com que as imagens se juntem formando um diálogo harmonioso.

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36

É na corporeidade que o homem se relaciona com o mundo. É na

dimensão corporal que o existir para o outro ganha significado, sendo o corpo o

seu lugar de “estar no mundo”, o seu limite da expressão da individualidade, o

“ponto de convergência”, o “lugar” da relação entre “natureza orgânica e

natureza social”, entre “cultura e natureza”, entre “grupo e indivíduo”, mas essa

“existência física” só pode ser entendida dentro do conjunto de sistemas

simbólicos da comunidade na qual esse corpo existe.

Segundo David Le Breton (2007), é investido ao sujeito, desde seus

primeiros anos, “um processo de socialização da experiência corporal” para

que aquele possa realmente se inserir num determinado espaço social e

cultural. A expressão do corpo é sócio-culturalmente construída e modificada,

mesmo que cada indivíduo sinta e use essa expressão de forma particular.

Marcel Mauss (2003), em As técnicas do corpo de 1934, entendendo

essa expressão como as maneiras pelas quais os homens, de sociedade a

sociedade, de uma forma tradicional, servem-se de seus corpos, entende os

comportamentos corporais como uma hexis aprendida socialmente, que vai

muito além de apenas hábito adquirido por imitação. Para ele, as atitudes

corporais nos são ensinadas. Nossas atitudes nos são permitidas ou não. A

transmissão dessa técnica corporal só é possível por ser tradicional e eficaz,

sendo essa transmissão impossível sem a tradição, já que é exatamente essa

característica humana que nos diferencia dos animais, a saber, a transmissão

de técnicas, principalmente pela via oral (MAUSS, 2003).

Esses ‘hábitos’ variam não simplesmente com os indivíduos e suas

imitações, variam, sobretudo com as sociedades, as educações, as

conveniências e as modas, os prestígios. É preciso ver as técnicas e a obra

da razão prática coletiva e individual, lá onde geralmente se vê a alma e suas

faculdades de repetição (MAUSS, 2003, pág. 404).

Seguindo a afirmação de Durkheim segundo o qual o corpo é um fator

de “individualização”, Le Breton define o corpo como fronteira, como limite

entre o indivíduo e os outros, mas também faz denuncia à noção dualista de

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37

senso comum que distingue o corpo do indivíduo, como se esse corpo pudesse

ser analisado isoladamente, sem a presença do sujeito e da cultura em que ele

está inserido, que também tem referência em Durkheim quando afirmou que a

corporeidade é da ordem do orgânico e por isso não pode ser de interesse das

ciências sociais.

O corpo como elemento isolável da pessoa a quem dá fisionomia só é

possível em estruturas societárias de tipo individualista, nas quais os atores

estão separados dos outros, relativamente autônomos com relação aos

valores e iniciativas próprias. O corpo funciona como se fosse uma fronteira

viva para delimitar, em relação aos outros, a soberania da pessoa (LE

BRETON, 2007, pág.30).

É no início do século XX, com Freud e o desenvolvimento da

psicanálise, que o processo de ruptura com o positivismo do século XIX dá à

corporeidade sua libertação. Freud ao introduzir o relacional ao corpo, como

expressão dos desejos individuais e das relações sociais, torna o corpo uma

estrutura simbólica.

O problema das primeiras teorias sociológicas sobre o corpo são as

ambigüidades que elas carregam. As pesquisas privilegiavam as ações do

corpo e não o referente “corpo”. Então estava na hora de questionar se o

próprio corpo não estaria envolvido nas teias das relações sociais. O corpo não

é uma natureza inquestionável, não se vê corpos andando por aí. Na verdade

são homens e mulheres que exibem corpos operados diariamente para

fazerem parte de uma cultura.

As representações sobre o corpo são mutáveis de uma sociedade

para outra. As imagens que o representam, os ritos e os símbolos que o fazem

aceito são infinitamente variáveis e contraditórias, até o conhecimento

biomédico ocidental que tenta possuir uma verdade sobre o corpo é uma

dessas construções sociais. Diante desse quadro extremamente heterogêneo,

Le Breton propõe como tarefa para a sociologia e a antropologia a

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38

compreensão da corporeidade enquanto estrutura simbólica, e assim, destacar

as representações, os imaginários, os desempenhos e os limites que aparecem

infinitamente diferentes conforme as sociedades e as épocas.

Portanto, entender a apropriação social da corporeidade é o caminho

para “o desvendar” desse “tabu do corpo” (RODRIGUES, 2006). Corpo que

durante muito tempo foi mantido intocado e inquestionável pela crença em uma

natureza corporal que transcendia a vida social e que mascarava a “pressão”

que a sociedade faz aos seus indivíduos para determinarem os usos de seus

corpos. Assim, não podemos cair na ingenuidade de que um dia se vivenciou

um corpo totalmente da ordem do natural. Por essa razão Foucault (1996)

afirma que “em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes

muito apertados, que lhe impõe limitações, proibições ou obrigações”

(FOUCAULT, Pág. 127, 1996).

2. 4. Corpo, gênero e sexualidade.

Michel Bozon (2004) aposta na necessidade de uma sociologia da

sexualidade, não para que se produza “mais uma verdade” sobre a sexualidade

humana, e sim para que se compreenda seu caráter não-natural. A sexualidade

é construída sócio-culturalmente, sendo uma esfera específica do

comportamento humano, seu significado vem sempre do não-sexual,

buscando, assim, fazer uma sociologia das representações sociais da vida

sexual. A possibilidade de fazer essa sociologia do sexual representa a

desnaturalização da ordem do sexual e implica afastar o entendimento sobre a

sexualidade como subordinada à biologia, à reprodução.

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39

No entanto, a sexualidade não é um estudo novo ou inédito nas

ciências sociais contemporâneas, pelo contrário, existem muitas etnografias

clássicas sobre o assunto mas que, ao tentarem entender as diferentes

modalidades de organização nas mais diversas sociedades, investigavam a

sexualidade, assim como as relações de parentesco, produção, religião, etc.

assim sendo, aquela não constituía objeto de um estudo autônomo.

Para o estudo da sexualidade é fundamental a sua compreensão em

relação à ordem do mundo, tendo o referencial binário e hierarquizante como

organizador dos papéis sexuais do feminino e do masculino dentro da

sociedade. Dentro dessa lógica o feminino sempre esteve do lado inferior,

subordinado, garantindo/assegurando o bom funcionamento da ordem. O

masculino é sempre exaltado nas suas práticas sexuais, assumindo o papel

ativo e legítimo do gozo e do poder, ficando relegado à mulher o papel passivo.

Os estudos sobre sexualidade ganharam maior efervescência a partir

explosão dos estudos feministas que tinha como principal alvo o essencialismo,

que acreditava em uma natureza sexual humana inerente, submetida à

fisiologia, a reprodução e a uma satisfação instintiva dos homens.

As relações de gênero e as sexualidades eram tomadas sob o telos

da ordem da procriação, da submissão feminina (sendo o receptáculo do

homem e não possuindo o direito nem sobre seus corpos nem sobre o gozo), o

afeto não passava por esta ordenação. Com as transformações por que

passaram (e ainda passam) as sociedades, principalmente durante a “transição

demográfica” – controle da natalidade/ revolução contraceptiva – a sexualidade

deixa de ser exclusividade dos discursos de procriação e passa a ter um

sentido próprio, ligado, agora, a uma “vontade de saber” sobre as técnicas que

disciplinavam e controlavam os corpos e sexo. Essa produção é possível na

sociedade ocidental no final do século XX, que já pensava essa sexualidade na

dimensão da vida privada, entrando ai a dimensão afetiva e a construção de

sujeitos individualizados como projeto reflexivo na modernidade (GIDDENS,

2002).

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40

Com esse novo olhar sobre a vida sexual, a sexualidade tornou-se

mais independente e passou a referir-se à construção subjetiva do sujeito,

criando uma necessidade de novas formas de controle das condutas

individuais, que depois do desligamento (parcial) da reprodução, ficou sob os

cuidados da pedagogia, da psiquiatria, da psicologia, da higiene e da medicina,

discursos encarregados da definição do que era normal e o que era anormal na

conduta sexual. Nesse dispositivo de saberes e práticas relativos à vida sexual,

aprendemos com Foucault (1984), dentre outros, que as mulheres e as

crianças foram os maiores alvos de interesse, já que era necessário criar

outras formas de dominação e normalização do social, onde família e

sexualidade são eixos privilegiados de ação e intervenção (BOZON, 2004).

No que se refere à nossa pesquisa, interessa-nos como são

figuradas essas relações entre corpo, gênero e sexualidade na produção da

subjetividade da mulher velha na prosa de ficção clariciana.

2. 5. As Mulheres...

2. 5. 1. Ruído de Passos

“Tinha a vertigem de viver.”

Dona Cândida Raposo, aos 81 anos, quis saber por que “o desejo de

prazer não passava”. Procurou, então, seu ginecologista e com muita

vergonha, mas muita vergonha mesmo, o perguntou de cabeça baixa, o porquê

que ainda vivia aquele inferno, afinal de contas já eram oitenta e um anos.

Como era possível? Porque não passava? Seu médico apenas respondeu que,

infelizmente, não passa nunca, que era assim mesmo. Com espanto, a senhora

o perguntou enfim: “Então era isso a vida, essa falta de vergonha sem fim?”,

em seguida (e com desespero) indagou sobre o que poderia fazer para resolver

esse sofrimento. O que fazer com isso? Procurar alguém?... Mas ninguém vai

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querer – é muito velha! Pagar alguém?... “Dona Cândida, são oitenta e um

anos!”... Se arranjar sozinha?... Pode ser um remédio...

E foi o que a senhora fez! Ao chegar em casa satisfez-se solitária!

“Mudos fogos de artifício” e depois choro! Que vergonha! Que tristeza! E foi

assim que ela continuou... sempre sozinha, sempre triste! Até que a benção da

morte chegasse. A morte! “Pareceu-lhe ouvir ruídos de passos. Os passos de

seu marido Antenor Raposo.”

2. 5. 2. Mas vai Chover

“Teve a ousadia de viver!”

Maria Angélica de Andrade tinha 60 anos e um amante, Alexandre,

de 19 anos. Ele era o entregador de produtos farmacêuticos que um dia bateu

em sua porta. Era jovem, forte, alto e de enorme beleza. Angélica ficou tão

espantada com tanta beleza que não resistiu e o convidou para um café,

mesmo estando assustada com sua ousadia. Ele, claro, hesitou visivelmente

constrangido, mas acabou aceitando uma grossa fatia de bolo e café com leite.

Maria nesse momento já estava apaixonada, mesmo sem saber. E ficaram

assim durante o lanche: ele, hesitante, constrangido, pouco à vontade; ela,

assustada com sua ousadia, mas embevecida, fascinada. “Ele era a força, a

juventude, o sexo há muito tempo abandonado!”. Esse sim, era um homem.

Belo, másculo, com os hormônios fervendo. Ah, os hormônios! Tudo isso a

fazia agir “de forma ridícula”, pois se despediu do rapaz com uma vozinha

cantante e trejeitos de mocinha romântica.

Não demorou muito e ela logo pediu outro remédio para que o

rapaz pudesse voltar, e dessa vez não teve o menor pudor, levou o rapaz até

seu quarto e pediu para lhe dar um beijinho, que para o espanto do rapaz que

lhe ofereceu o rosto, ela devorou sua boca. Muito nervoso o rapaz pediu para

que ela se controlasse, e para uma surpresa ainda maior, ela se declara para

ele e pede para que vá para a cama com ela. Pronto! Estava doida! E foi o que

ele a perguntou: “Tá doida?!”. Foi o que todos passaram a pensar sobre Maria

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Angélica, pois só estando louca para, numa altura dessas da vida, se apaixonar

por um garoto que só aceitou ir para cama com ela em troca de um carro.

O que aconteceu em seguida, para desespero da narradora, foi

horrível. A senhora dava gritinhos na hora do amor enquanto o garoto se

tornava um rebelado para o resto da vida. Tinha nojo do que estava fazendo e

achava que nunca mais poderia dormir com outra mulher. Ficou impotente aos

vinte e sete anos. Tornaram-se amantes. Algumas pessoas tentaram fazer com

que ela desistisse dessa loucura, mas ela o amava e suportou toda a

exploração e abuso para se permitir viver esse amor, já nem ligava mais para

os risinhos e piadas. Alexandre, porém, não teve nenhuma “piedade” com seus

sentimentos, tirou dela tudo o que podia e ainda avisava que o dinheiro era

para viajar com uma moça. Como Angélica sofreu! Sozinha e humilhada era

obrigada a ser penosamente ela mesma. O “golpe final” veio quando ele exigiu

um milhão de cruzeiros para continuar como seu amante. Ela até estava

disposta a pagar, mas não tinha o dinheiro, e assim ele sai de sua vida,

xingando e batendo a porta de casa. Não se prestaria mais às suas sem-

vergonhices.

2. 5. 3. A Procura de uma Dignidade

Sra. Jorge B. Xavier, uma senhora de sessenta anos, teve um de

seus dias de maiores encontro e desencontro, principalmente consigo, narrado

por Clarice Lispector. Sra. Xavier estava perdida dentro do Estádio do

Maracanã, no Rio de Janeiro. Ela não sabia dizer como entrara, mas estava

totalmente sem rumo em meio a tantos corredores que pareciam sem saída. A

senhora buscava uma sala onde encontraria uma aula inaugural, onde

encontraria as pessoas com quem marcara o encontro. O problema é que a

aula já deveria ter começado. Ela sempre se esforçava para não perder nada

que fosse cultural, pois assim se manteria sempre jovem por dentro, já que não

se reconhecia no seu corpo de setenta anos.

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Ao lembrar-se que o encontro não era no Maracanã, mas sim perto

dele e já no auge do seu cansaço, pega um táxi e vai para o endereço certo.

Durante o tempo que a personagem passa perdida ela percebe o quanto seu

corpo não suportava mais tanto esforço. Sentiu o peso da velha cruz. Nessa

altura pouco lhe importava o encontro, na verdade nunca se importara, só

queria continuar sendo vista como se assim pudesse continuar viva

socialmente.

Finalmente ao encontrar o local certo não permaneceu nele por muito

tempo, pois seu corpo não tolerava mais tanta exaustão. Sra. Xavier foi para

casa onde tomou uma pílula e deitou-se nua para descansar. Acabou

adormecendo.

Foi quando despertou, devido ao frio que passava por seu corpo

como uma lâmina fina, que a senhora se deparou com o seu corpo no espelho.

Achou muito curioso uma velha nua. Mas não se prendeu à imagem por muito

tempo e saiu de casa novamente, pois lembrara que havia planejado comprar

uma nova écharpe de lã, mas volta logo para casa.

Por estar em casa sozinha, já que o Sr. Jorge B. Xavier estava

viajando, foi procurar, embaixo da cama, uma letra de câmbio há muito perdida.

Foi quando se percebeu de quatro. Uma posição de cadela, sem nenhuma

nobreza. Perdida a altivez última. Mas a letra não estava lá. Quando deu a

tarefa por encerrada, pois era impossível encontrar a letra de câmbio, a

senhora Xavier a encontrou “sem querer” dentro da gaveta de lenços. E nesse

momento chorou baixinho, quase como um lenga-lenga árabe. Há 30 anos não

chorava, mas agora estava tão cansada.

Nesse momento pensou em forçar o “destino”, em criar um destino

maior para si, pois mesmo sem acreditar pensou que com força de vontade

tudo se consegue. Esses pensamentos vieram porque ela já começara, sem

querer, a pensar em “aquilo”. Mas o pensamento seguinte foi de que já seria

tarde demais para ter um destino, afinal de contas já eram setenta anos e

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nessa altura não é mais possível ser outra pessoa. Ela era ela e pronto. Era

assim que acreditava como certo.

A senhora B. Xavier não suportava sentir “aquilo”. Era como seus

longos corredores sem saída, que consumiam suas entranhas sem nenhum

pudor. Era uma fome que lhe causava uma dor enorme. A fome de ser

possuída pelo inalcançável ídolo da televisão. Não conseguia mais parar de

pensar no rosto de menina-moça de Roberto Carlos, o seu amor.

A mulher foi tomada por um sentimento que julgou juvenil, e por isso

foi olhar-se no espelho para ver se tinha uma expressão bestial, mas o que

encontrou foi um rosto parado que há muito não representava o que sentia.

Tornara-se apenas uma máscara de mulher velha. Continuou olhando-se no

espelho e teve a sensação de ser, por fora, alguma coisa seca, como um figo

seco. Não se sentia esturricada por dentro como era seu corpo por fora11.

Por causa desse desejo por Roberto Carlos, a senhora se deparou

com o segredo mortal das velhas. Porque as outras não lhe contaram que

“aquilo” não tem fim? Estava presa às trevas da matéria. Era como uma fruta

fora da estação. Seu desejo estava fora da estação. Sua idade estava agora

maculada. Como pode uma velha querer essas coisas?... Ao assumir o desejo

por seu Robertinho Carlinhos, cito o texto, a velha senhora dobrou-se

bruscamente sobre a pia do banheiro como se fosse vomitar as vísceras e

interrompeu sua vida com uma mudez estraçalhante: tem! que! haver! uma!

porta! de saiiiiída!

2. 6. Tentando entendê-las... Inquietações...

11 Há um belo conto de Virginia Woolf que narra essa relação problemática entre o espelho e a mulher idosa: “A dama no espelho: reflexo e reflexão”. In: WOOLF, Virginia. Contos completos. São Paulo: Cosac Naif, 2005.

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Uma questão fundamental à construção subjetiva da identidade

sexual da mulher velha é a relação com o corpo. Os atuais discursos,

vinculados à mídia e reforçados pelos saberes que se intitulam legítimos para

indicarem receitas de um corpo saudável e aceitável, fazem do corpo um objeto

de culto. A imagem idealizada é sempre a do corpo jovem, esculpido e livre de

doenças. O corpo velho, historicamente, foi caracterizado exatamente como

contrário desse ideal, sendo âmbito da deteriorização, da inutilidade, da perda

das capacidades e sede de doenças, ou seja, um corpo impossível de produzir

prazer e valorização social. Os indivíduos são, atualmente, monitorados para

que mantenham vigilância constante de seus corpos. O bem-estar necessário

para se ter uma boa velhice, ou até mesmo se manter longe dela, pode (e

deve) ser alcançado na medida em que eles se responsabilizem por sua

aparência, dado que a decadência passa a ser considerada como fruto de

negligência pessoal.

Foucault (1987) já nos ensinava a pensar esse corpo como “objeto e

alvo de poder”. A disciplina, diferente da escravidão, da domesticidade, do

ascetismo e da vassalagem, produz corpos adestrados, docilizados (que une

ao corpo analisável o corpo manipulável), corpos submissos e exercitados,

corpos dóceis.

O momento histórico das disciplinas é o momento que nasce uma arte do

corpo humanos, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades,

nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que

no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto mais é útil, e

inversamente (FOUCAULT, 1987, pág. 127).

Aqui, podemos pensar essa disciplina, no caso feminino, nas

sociedades contemporâneas, não para conquistar um “corpo forte”, como

explicou Foucault, mas para a busca pela beleza.

A luta contra o corpo (LE BRETON, 2003) está ligada à mais segura

verdade corporal: a morte. A imagem do corpo velho traz imediatamente a idéia

de fim da vida. Modificar esse corpo, torná-lo “máquina”, “imaterial”, é a ilusão

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de burlar esse fim. Assim, a juventude, diz Debert (2004), “perde conexão com

um grupo etário específico, deixa de ser um estágio na vida para se

transformar em um valor, um bem a ser conquistado em qualquer idade,

através da adoção de estilos de vida e formas de consumo adequadas”

(DEBERT. Pág. 21, 2004).

A imagem idealizada para o feminino é sempre ligada ao delicado,

ao sensível, ao que soa doce, em oposição ao masculino, caracterizado pela

força e pela racionalidade. Ser mulher é como ser uma rosa. Além do mais, a

construção moderna do feminino e da feminilidade está intrinsecamente

articulada ao imperativo da beleza, tal como destacado por Lipovetsky (2000),

sendo esse imperativo uma das fontes privilegiadas da identidade feminina.

Porém, o corpo velho não permite que essa imagem e esse imperativo se

realizem. As rugas e as marcas do tempo no rosto mostram que esse ideal é

passageiro e que não adianta seguir receitas mágicas, pois a degeneração do

corpo é inevitável, e que é pior, a morte também. O corpo representa o sujeito

para os outros. É ele que o liga ao mercado social simbólico e é o responsável,

muitas vezes, pela aceitação e/ou não-aceitação dos sujeitos nos “palcos”

sociais.

O dilema vivido pela Sra. Xavier está imerso no discurso que separa

o corpo do sujeito. O corpo envelhecido é o fruto seco (o figo) incapaz de

produzir admiração e prazer, mas que tem como “recheio” uma pessoa que

continua desejando prazer e que não se sente seca e esturricada como a

imagem do seu corpo. Quando a personagem se encontrou com o espelho e se

viu como um figo seco, não se reconhecendo, nos faz pensar na imagem de

uma rosa. A delicadeza e frescor das flores são sempre muito associados à

feminilidade. Muitas vezes é na velhice que as pessoas percebem/relatam o

indesejado, porém inevitável, encontro do inconsciente atemporal com o corpo,

âmbito da temporalidade. Não foi diferente com a Sra. Xavier. Ao se olhar no

espelho se sentiu úmida por dentro, mas esturricada por fora. Sentiu que seu

rosto tinha se transformado numa máscara sem expressão alguma.

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Essa imagem corporal vai está sempre a mercê do “espelho do social”,

o motivo pelo qual a senhora do conto não deixa de ir aos encontros culturais.

Para ela permanecer sendo vista mostra que não perdeu sua capacidade de

viver socialmente ativa, que ainda é uma mulher de capacidades e não uma

pobre senhora que não pode sair de casa porque seu corpo está chegando ao

fim.

Tira-se dos velhos o direito se sonhar sobre si, sobre o que sequer

para si. É quase como um pecado. Só os jovens têm o direito de projetarem

imagens positivas para si, os mais velhos podem, no máximo, sonhar com o

que já aconteceu. Para eles só a nostalgia, nada de projetos, nada de

devaneios. Afinal de contas, vão morrer mesmo. É como se a velhice tirasse a

capacidade de projeção de imagens das pessoas, tornando-as prezas ao real,

ao concreto.

Dentro de toda essa idealização do corpo jovem, como único capaz

de produzir bem-estar, prazer, aceitação e gozo verdadeiros, como pensar uma

velha sexuada? Seria um absurdo. Assim a Sra. Xavier põe em xeque a

imagem naturalizada da mulher velha como não mais capacitada para sentir

desejo e prazer. Daí a mácula que a senhora carregaria depois de admitir um

desejo impróprio para sua idade. Poder sentir essa “coisa” era uma

manifestação de estar viva, mas isso deveria ficar só para si, já que não era de

bom gosto para uma distinta senhora como ela ficar sentindo essas “coisas”.

Deve ficar no seu interior, porque o exterior já não é mais capaz de produzir

prazer para ninguém, nem para ela mesma. E como é esse o discurso

estabelecido, só cabe a Senhora sofrer com essa luta do seu interior que pulsa,

gritando por vida, contra seu corpo (o exterior) que fica cada vez mais feio e

fraco, anunciando o fim próximo, a morte.

O corpo feminino sempre foi, e ainda é, educado para ser belo. A

mulher deve fazer-se feminina, bonita, delicada, sedutora, ou seja, ser o “belo

sexo” (LYPOVETSKY, 2000). Também faz parte da “construção de si”, do

sujeito moderno, ter responsabilidade sobre a beleza do seu corpo. Há, e nos

tempos atuais de uma forma mais espetacularizada, uma supervalorização da

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beleza do corpo da mulher. O embelezamento a qualquer custo, tão veiculado

na mídia e reforçado pelos mercados dos cosméticos, dos produtos

farmacêuticos (que auxiliam no emagrecimento), do fitness, das cirurgias

plásticas, e tantas outras intervenções, depois de passar por um processo de

democratização, passou a fazer parte do mundo feminino, agora, sem culpas.

Se uma pessoa não nasce tão bonita quanto o “recomendado”, é de

“obrigação” dela encontrar meios para modificar sua aparência, pois, hoje, há

uma culpabilização do sujeito, e não mais da “natureza”, pela aparência “feia”.

Todas essas intervenções e materiais para o processo de

embelezamento funcionam quase como um ritual para afastar de si a imagem

indesejada que aparece no espelho. Como pensar a experiência da mulher que

envelhece dentro desse contexto? Como lidar com a difícil tarefa de ficar velha

numa cultura narcisista e visualmente orientada? (SARDENBERG, 2002). Esta

é uma das preocupações mais recorrentes em falas de mulheres que

envelhecem. O ideal cultural da “eterna juventude” “exige” dessas mulheres

que modifiquem seus corpos para que não agridam o mundo com seus corpos

enrugados. Mas se quando chega à hora que não adianta mais tanto

investimento para disfarçar esse corpo, o que resta a essas mulheres é se

resignarem em suas condições e agirem como uma boa velha senhora: usar

roupas e maquiagens próprias para senhoras distintas; praticar exercícios

moderados, só para ajudar a saúde – nada de modificar o corpo. Assistimos,

assim, uma luta entre o corpo desejável e o corpo que envelhece.

Uma saída para esse embate, muito pregado na nossa sociedade

contemporânea, é uma negação desse corpo velho, o nosso “exterior”, mas

não supervalorizando o “interior” em detrimento à representação daquele, mas

sim tentando adaptá-lo à eterna juventude do desejo, modificando o corpo até

onde for necessário para chegar ao objetivo.

Um dos aspectos determinantes para tanta preocupação com o

embelezamento do corpo é a produção de prazer, e a sexualidade está, aqui,

intimamente ligada a esse prazer. Como sexualidade feminina por muito tempo

ficou reduzida à procriação, a produção e satisfação do desejo, não faziam

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parte de sua realidade. Imagine, então, a situação da mulher velha. Sem a

capacidade reprodutora nem se falava em sexualidade, daí o imaginário da

velhinha assexuada.

Mas a experiência sexual toma outros significados com a

modernidade. Bozon (2004) quando escreve sobre sociologia da sexualidade,

nos mostra a importância que a sexualidade assumiu nas últimas décadas para

a construção das relações sociais e para a construção de si. “A sexualidade

durante muito tempo esteve ligada à reprodução, considerada como natural e

óbvia, e inscrita na organização e na representação androcêntrica do mundo e

das coisas” (BOZON, 2004). O papel feminino sempre esteve subordinado ao

masculino, que tinha seu papel sexual social relegado à reprodução. Essa

característica óbvia do papel da mulher na vida social só pode ser modificada

com as inúmeras transformações sociais, políticas e intelectuais, que puseram

em questionamento os conteúdos tradicionais de gênero e sexualidade

(BOZON, 2004).

A experiência do prolongamento da vida sexual até idades mais

avançadas é possível devida à propagação da idéia de uma velhice ativa e

ligada ao ideal de juventude, desde que as pessoas cuidem de suas saúdes,

mantenham atividades de lazer e trabalho autônomos e não limitem suas vidas

à esfera doméstica. Porém, esse prolongamento da vida sexual nas mulheres

de mais de sessenta anos, atestada por Bozon, é tratado, até hoje, com

resistência, e ainda desperta muita curiosidade (leiga e perita): afinal, essas

mulheres fazem sexo? namoram? (ALVES, 2004).

A construção da sexualidade feminina sempre esteve submetida aos

valores morais da sociedade; por esta razão, pensar uma sexualidade para a

mulher idosa, que sempre esteve ligada à perda da capacidade de reprodução,

que numa visão normatizadora via o sexo no casamento ligado à reprodução, e

à menopausa (construção social e psicológica elaborada a partir de uma

realidade biológica – Bozon, 2004), é infinitamente mais problemática do que

quando se pensa a sexualidade no envelhecimento masculino.

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50

O cotidiano na velhice feminina, principalmente para as viúvas, é

fortemente marcado pela solidão, e não foi diferente para Dona Cândida, assim

como não será para outras mulheres aqui. A senhora se deparou com uma

situação que para ela era estranha (já que acreditava que o desejo de prazer

não fazia parte da vida dos velhos): como ainda podia querer “aquilo”? Por que

não lhe avisavam que não passava? Não mais podendo fugir desse “problema”

logo procurou um “saber legítimo”, seu médico ginecologista, para solucioná-lo.

Acabou ficando sem resposta e com uma solução que só lhe causou mais

sofrimento. Mas por que mais sofrimento? O que tem de tão errado em uma

senhora de oitenta e um anos tentar satisfazer seu desejo de prazer? O que

devemos nos questionar aqui é o porquê tudo isso a deixou tão incomodada e

culpada. Por que tanta vergonha ao falar de seu desejo e, principalmente, em

satisfazê-lo?

Podemos supor que os conflitos vividos por essas mulheres na

velhice, em relação a emoções e sentimentos, principalmente quando se

referem à experiência sexual, e a sentença que dão aos comportamentos como

sendo inadequados, venham do desconhecimento da própria sexualidade e

dos preconceitos e tabus construídos e difundidos pela cultura, pela religião,

pela ordem médica, pela norma familiar, etc, que impedem vias de subjetivação

menos conflituosas.

Dona Cândida, nos parece, foi uma mulher educada de forma

tradicional. Criada para ser de um único homem, seu marido Antenor Raposo,

no caso, e para cuidar dos filhos e da casa, a senhora, assim como as pessoas

que a formaram, também acreditava que desejo não era coisa de velha. Por

isso tanto espanto quando sentiu “as coisas”.

No caso de Maria Angélica também a solidão lhe acompanhava,

assim como o desejo de amor. Logo que se sentiu apaixonada, não mediu

esforços e se permitiu viver esse amor. O problema estava na forma como

decidiu viver essa paixão. Precisava ser com um rapaz de dezenove anos, que

além de tudo era pobre? Era a pergunta que todos se faziam. Mas é claro que

tinha de ser um pobre, se não, como ela iria convencê-lo de ficar com ela –

Page 51: AS REPRESENTAÇÕES DO ENVELHECIMENTO FEMININO NAS OBRAS DE CLARISSE LISPECTOR

51

eles nem teriam se conhecido. Era a resposta que todos se davam. Mas qual o

motivo dessa paixão despertar tanta rejeição, não só dos outros, mas do

próprio garoto? De onde vinha tanto nojo do rapaz ao ir para a cama com

Angélica?

Outra indagação que podemos nos fazer é sobre a afirmação situada

no início do conto de que Angélica era única que não percebia que era

enganada por Alexandre: “ser enganada”, aqui, está relacionado às exigências

do rapaz por muito luxo e dinheiro como condição para serem amantes.

Refletindo um pouco sobre essa afirmação, ela nos parece contraditória. Já

que foi uma iniciativa da própria mulher oferecer um carro para o rapaz como

forma de convencê-lo de ir para cama com ela, passa a ser questionável se ela

realmente não sabia o que estava acontecendo e se era mesmo a vítima que

as amigas achavam, e a coitada ridícula digna de pena e risinhos da

empregada. Não se trata de uma acusação a essa mulher pela situação, mas

um questionamento de por ser velha estaria suscetível a enganações e a uma

incapacidade de compreender a situação que ela mesma criara para si.

Maria Angélica dentro dessa luta entre “o que se quer” e “o que se

pode”, me parece, preferiu pagar “o preço” (financeiro, emocional e moral) para

viver, minimamente, com o que desejava. É verdade que para muitos “o preço”

pago por ela pode parecer muito alto, mas ela preferiu sim dar tudo o que tinha

a ficar sem o homem e o amor desejados. Acredito também, que ela não

cumpriu a última exigência de Alex porque não tinha mais como, pois se ainda

tivesse dinheiro teria pagado e continuado com ele. Mas não seria direito dela?

Não era seu dinheiro? Não era sua vontade? As relações de dependência

financeira entre casais não é nada novo para nós. Mas ela é reconhecida e

aceita quando é o homem o provedor da situação. É sempre dever do “macho”

sustentar a casa, a mulher e os filhos. Hoje essa situação está bem diferente.

Cada vez mais as mulheres assumem as responsabilidades em casa, no

trabalho, antes de domínio do masculino12.

12 As mediações econômicas estão muito associadas às interações afetivo-sexuais entre pessoas de gerações distintas, em que o mais velho situa-se como provedor de presentes (objetos, viagens, oportunidades, além, mas nem sempre, de dinheiro), e o mais novo é o quem recebe essas dádivas. No

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Mas o problema de Maria Angélica está muito distante dessa

situação. É aceitável e admirável que uma mulher ganhe sua independência e

divida as responsabilidades com seu parceiro, mas ela, na verdade não se

enquadrava nesse perfil, estava mesmo era cometendo três erros: primeiro,

estava desejando o que não podia mais – amar na velhice; segundo, amando

um garoto que poderia ser seu neto; terceiro, estava oferecendo dinheiro em

troca de amor.

caso de se tratar de um homem velho e uma mulher nova, há certa tolerância com esse arranjo e alguma margem para se pensar que além do interesse financeiro, há outras possibilidades de legitimidade desse erotismo intergeracional. Quando se trata de mulheres velhas e rapazes, há ainda uma intensa reprovação moral sofrida pela senhora. Resta pouca ou nenhuma margem para ser reconhecida a legitimidade desse arranjo.

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53

CAPÍTULO III: VELHICE E VIDA FAMILIAR.

Mediante a análise dos discursos sobre a condição do idoso no

interior da estrutura familiar nos deparamos diante de contradições. Estudos

que focam a família nuclear como lugar de apoio e segurança para o bem-estar

do velho, incluindo o instrumental jurídico brasileiro, que estabelece como

dever dos filhos maiores o amparo e o cuidado dos pais na velhice, acreditando

ser a casa de seus filhos o lugar mais saudável e seguro para uma velhice

tranqüila, deixam na sombra as vulnerabilidades a que estão submetidos os

idosos no contexto das relações intrafamiliares.

Nesse sentido, pesquisas mais recentes, principalmente nas ciências

sociais, pretendem rever conceitos de família como instituição natural, universal

e imutável (DURHAM, 2004), e são vários os casos de conhecimento público

de idosos que têm em suas domicílios os lugares menos seguros para viverem.

Assim, Debert e Simões (2006) mostram a necessidade de rever dois mitos

que tendem a impedir essa reflexão: o primeiro relativo a uma suposta

naturalidade da família nuclear, e o outro seria de uma “Idade de ouro”, em que

a velhice seria vivida supostamente sem problemas, sob o amoroso e

respeitador cuidado nas suas unidades domésticas multigeracionais.

Nesse momento é importante, também, pensarmos esses

paradigmas de caráter naturalista da família para refletir sobre a situação da

mulher idosa dentro desse contexto, já que é mérito das teorias feministas uma

crítica mais profunda sobre essa “família natural”. Questionando a linguagem

funcionalista presente nesses discursos, elas denunciam a desigualdade de

gênero e geração, assim como o peso de valores políticos e ideológicos que

ditam as regras para uma “forma adequada” de viver em família.

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3. 1. Família e reprodução social .

Podemos começar essa pequena digressão sobre o que é (ou

significa) uma família com uma alerta feita por Lévi-Strauss (1986) em um de

seus estudos sobre esta instituição. Os etnólogos dos séculos XIX e XX, de

influência do evolucionismo biológico, partiam do postulado que as nossas

instituições familiares eram mais complexas e evoluídas, caracterizadas,

principalmente, pelo casamento monogâmico, e os povos ditos primitivos, que

estariam na infância da humanidade, só poderiam caracterizar-se pela total

oposição, criando, às vezes, grandes ficções sobre uma “promiscuidade

primitiva” e o “casamento em grupo”. Conforme a etnologia foi enriquecendo

com novos dados, essa posição foi ficando cada vez mais insustentável, pois

encontraram registros de sociedades ditas “rudimentares” casamentos com

estilo parecido com o conhecido em nossas sociedades. Algumas dessas

sociedades observadas, na verdade, só tinham a família como instituição.

O alerta de Lévi-Strauss vem do extremo simplismo que essas duas

posições assumem. Segundo o autor, as duas situações podem ser

encontradas na história da humanidade. Sociedades arcaicas com casamentos

e arranjos familiares tal como encontramos nos dias de hoje, como, também,

pôde-se encontrar casos que não existiam os laços familiares tal como

reconhecemos hoje. “Seria, pois errado abordar o estudo da família com um

espírito dogmático. A cada instante, o objeto que se pretendia entender oculta-

se” (Lévi-Strauss, 1986, pág. 75).

Assim, devemos esquecer as teorias que tomam a família como dado

da ordem do natural, como uma necessidade inerente ao homem. Como tudo

que é fruto da construção cultural, a família passou a ser entendida como

produto das relações sociais quando os pesquisadores a problematizaram

enquanto tal, problematizando e disciplinando o olhar. E para Lévi-Strauss essa

é uma questão fundamental para tal estudo. Se a família não é efeito de uma

necessidade universal, como explicar esse fenômeno que encontramos em

toda parte?

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...existem tipos de família não conjugal (polígama ou não); só este fato basta

para convencer de que uma família conjugal não provem de uma

necessidade universal, sendo, pelo menos, concebível que uma sociedade

pode possa existir e manter-se sem ela. Daí o problema: se a universalidade

da família não é o efeito de uma lei natural, como explicar que a

encontramos por quase todo lado? (LÉVI-STRAUSS, 1986, pág. 75).

A solução encontrada por Lévi-Strauss para tentar responder a essa

questão foi a construção de um “modelo reduzido de algumas propriedades

invariantes”, a partir da observação dos mais variados tipos de sociedades, o

resultou no seguinte esquema: 1. a família tem origem no casamento; 2. ela é

constituída pelo marido, mulher, filhos, no seu núcleo central, e outros parentes

que giram em torno desse núcleo; 3. os membros são unidos entre si por meio

jurídico, direitos e obrigações de natureza econômica, religiosa, ou outra, e

uma rede precisa de direitos e proibições sexuais junto com um conjunto

diversificado de sentimentos, como amor, afeto, respeito, etc.

No estudo sociológico sobre a família contemporânea, uma das

principais observações que devemos fazer é que não se pode pensar em um

modelo único de família, mas sim em diversidade familiar; em tipos de famílias.

O conceito de família mais difundido é de um grupo de indivíduos unidos por

laços parentais, onde os sujeitos mais velhos são responsáveis pelos mais

novos. A definição mais corrente sobre este tipo de família, nesses estudos, é

de agência primeira de socialização dos indivíduos. Instituição responsável

pela formação da personalidade e educação dos sujeitos. Esses laços de

parentesco tanto são concebidos com a união de duas pessoas como pela

consanguinidade (pais, tios, avós, primos, etc.) (GIDDENS, 2005).

A instituição familiar foi pensada por um considerável tempo,

principalmente com a perspectiva funcionalista, como dispositivo fundamental

para a perpetuação da ordem social. A família, segundo Parsons (1983), era

crucial para a estabilização de personalidade dos adultos e socialização das

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crianças. A união heterossexual é, aqui, o modelo. O pai-provedor trabalhava

fora de casa para garantir a sobrevivência financeira do núcleo enquanto que a

mãe ficava em casa cuidando e educando os filhos e a casa. Dessa forma,

estava assegurada a “saúde social”, já que era o bom funcionamento desse

modelo que garantia a harmonia entre os sujeitos.

Foi com a abordagem feminista que esse modelo “feliz” de família

passou a ser questionado. Elas denunciaram que esse lugar de conforto, amor

e companheirismo também era lugar de exploração, solidão e profunda

desigualdade (GIDDENS, 2005). Foi com as teóricas feministas que as

discussões sobre família ganharam um novo fôlego depois da década de 1960.

Elas mostraram com esse discurso de complementaridade dos papéis

masculinos e femininos no casamento mascaram, na verdade, a dominação

masculina e a reprodução da desigualdade de gênero.

3. 2. Os papeis masculinos e femininos na família.

O masculino e o feminino são, como nos é informado dentro da

discussão da teoria de gênero, os papéis sócio-culturalmente desenvolvidos

para a atuação de homens e mulheres, respectivamente, nas instituições

sociais. Aqui, nos interessa como são desenvolvidos esses papeis dentro do

contexto familiar. A definição de papel que aqui adotamos é a mesma

formulada por Goffman (1975) e Berger (1978): “um conjunto de prescrições e

proscrições para determinada inserção no meio social” (NEGREIROS, 2004).

Os papéis masculinos e femininos configuram tipificações do que seria

pertinente ao homem e a mulher num dado contexto. Englobam aprovações,

restrições e proibições que seriam apreendidas e transmitidas ao longo de

gerações e durante o percurso da vida, do bebê ao idoso (NEGREIROS.

Pág. 01, 2004).

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57

Reconhecemos esses papéis familiares, principalmente, através de

dois modelos, o antigo e o moderno. O “modelo antigo” de casamento é o

considerado indissolúvel, monogâmico e ligado à reprodução. A masculinidade

é, aqui, fundada na virilidade e no trabalho, no pai-marido provedor, que cuida

da vida econômica e segurança da família, ou seja, está na ordem do público e

da razão. Já a feminilidade, está fundamentada na maternidade, na

manutenção da casa (do privado), na fidelidade e sentimentalidade. Ou seja,

está sedimentada nas oposições homem-mulher e adulto-criança, onde os

segundos estão sempre subordinados aos primeiros.

O segundo tipo, o “modelo novo” de família, muito visível nos

grandes centros urbanos, é marcado, fundamentalmente, pelo individualismo.

Segundo Negreiros (2004), nesse modelo “as fronteiras de identidades entre os

dois sexos são fluidas e permeáveis, com possibilidades plurais de

representação”. Podemos encontrar mulheres chefes de família, homens

donos-de-casa, pais e mães solteiros, casais homossexuais, casais sem filhos

por opção, produções independente, etc.

Muitos estudos contemporâneos sobre família, preocupados em

entender a dinâmica familiar atual, atestam que um modelo não substituiu o

outro por completo, como podem pensar alguns, mas sim convivem de forma

conflituosa: “um modelo tradicional e o outro igualitário” (NEGREIROS, 2004).

Nesse trabalho é fundamental resgatar a situação das mulheres nas

famílias (com suas restrições, proibições, contradições, contestações, lutas,

etc.) para que possamos pensar, articulando as idéias de identidade de gênero

com a identidade de geração, uma influenciando a outra, a condição da mulher

de mais idade no convívio familiar.

A “invenção da maternidade” (GIDDENS, 1993), a partir do final do

século XVIII, dentro de um conjunto de outros fatores (o surgimento da idéia de

amor romântico; a criação do lar; modificação da relação entre pais e filhos),

afetou profundamente a vida das mulheres. Com o “declínio do poder

patriarcal”, no final do século XIX, segundo Giddens (1993), houve um

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deslocamento da autoridade patriarcal para a afeição maternal, destacando,

como novidade, a associação da maternidade com a feminilidade. Com a

consolidação desse modelo, o papel da mulher ficou estritamente associado a

um papel natural de mãe. A criação dos filhos era sua tarefa última, fazendo

com que sua função social ficasse limitada à procriação.

3. 3. Velhice e vida familiar .

As relações de dominação e subordinação na família, segundo Motta

(2008) tanto se referem às relações de gênero como de geração, mas, devido à

maior difusão do feminismo, quase sempre ficam restritas às relações de

gênero. Segundo a autora, todas as relações que constituem a vida social são

baseadas no poder, aquelas que se dão entre as gerações, inclusive na família,

não constituiriam exceção. Para Motta (2006), a dificuldade em pesquisar sobre

famílias vem das ambivalências e ambigüidades que permeiam as relações

solidárias e conflituosas de seus membros. A família é o lugar privilegiado para

as grandes demonstrações de afeto, mas afetos que ora podem, também, ser

manifestações de poder – afetos radicais (de grande amores e

desprendimentos; de ciúmes, de disputas e de ódios inconciliáveis), também,

aqui, se constitui uma dificuldade para tal pesquisa: os membros da família que

vivenciam essa polaridade de sentimentos, muitas vezes, não tem consciência

que as vivem.

Não é de nosso interesse desautorizar o convívio de diferentes

gerações na família, mas apenas apontar as contradições existentes nesse

convívio, que nem são poucas nem insignificantes. Debert e Simões (2006)

reforçam o questionamento de uma ilusória “Idade de ouro” na velhice.

Discursos peritos, como o gerontológico, e de senso comum, segundo os

autores, tendem a romantizar o passado. Escuta-se muito, principalmente do

senso comum, que “antigamente” os velhos eram mais valorizados; eram a

fonte de sabedoria e conselhos para as gerações futuras, existindo até uma

espécie de nostalgia do tempo de harmonia entre as gerações.

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59

Da perspectiva da família como “refúgio”13 para uma boa velhice é

pertinente a idéia de “hipocrisia social” denunciada pelos autores. Primeiro

porque deixa de fora a pluralidade de formas de famílias e unidades

domésticas. Segundo porque se impõe a idéia de que viver a velhice ao lado

dos familiares é o desejo máximo de todos os idosos, o que acaba impedindo

“a emergência de outras formas criativas de dar dignidade às etapas mais

avançadas da vida”. Porém, vale ressaltar que a discussão desenvolvida aqui

não é uma negação ou desqualificação do convívio de pessoas velhas na casa

de filhos e parentes, mas sim uma tentativa de reconhecer a necessidade de

pensar a pluralidade de formas de lidar com a velhice. Vale lembrar que muitos

discursos culpam a família que “permite” seu idoso morar sozinho, como se

este não fosse mais capaz de cuidar de si por ser e idoso e como se a família

não pudesse encarar isso como um reconhecimento dessa capacidade, mas

sim uma forma de não ter trabalho com o seu velho.

É bem verdade que a preocupação dos discursos-saberes sobre a

vida que muitos velhos levam em casas especializadas (casa de repouso, por

exemplo), devidos a dezenas de denúncias que assistimos com relativa

freqüência, é realmente inquietante, mas não é criando o mito da casa dos

filhos como lugar mais seguro para a sanidade física e mental dos idosos que

resolveremos o problema. Ele está mais além. Também assistimos, e talvez

com uma freqüência maior, casos de abusos cometidos por parentes (filhos,

netos, genros, noras) contra idosos em suas próprias casas, bem como a

crescente situação de extorsão das aposentadorias, por filhos e netos, dos

velhos de camadas mais populares. Tornam-se, cada vez mais, arrimos de

família.

Quando os estudos demográficos nos apontam um aumento da

expectativa de vida, as mulheres sempre apontadas como maioria dessa

realidade. Essas mulheres idosas são, principalmente, nossas avós. Elas são

basicamente, numa análise ainda restrita, de quatro tipos:

13 Existe um livro de Christopher Lasch, com um título que faz eco a essa idéia da família como refúgio: Refúgio num mundo sem coração. A família: santuário ou instituição sitiada? Ver LASCH (1991).

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[Aquela] que reside na própria casa, é independente financeiramente e dirige

sua família; uma outra, que, apesar de possuir bens ou benefícios, mora com

os filhos (uma filha ou filho); uma terceira, completamente dependente dos

filhos; e, por fim, aquela residente em casas de repouso ou abrigos

geriátricos (BACELAR, 2002, pág. 13).

Muitos dos estudos que encontrados hoje sobre as avós ainda

apresentam muitas contradições. Parece-nos que há sempre uma tendência de

ver a avozinha tradicional, terna e muito querida, que entre em confronto com o

ponto de vista que ver essas avós situadas na condição de mulher velha, que

trás consigo desejos, perdas, marcas de toda uma vida carrega de estereótipos

e desigualdades de gênero.

3. 4. As mulheres...

3. 4. 1. Feliz Aniversário.

Dona Anita estava fazendo naquele dia oitenta e nove anos. Sua

filha, Zilda, preparou uma festinha para receber a família e juntos

comemorarem o aniversário da matriarca. Como estava sozinha para preparar

tudo, cuidou de arrumar a mesa e os enfeites bem cedo para que desse tempo

de estar tudo pronto na hora marcada. Esticou a toalha na mesa, deixou os

guardanapos e copos coloridos prontos, pendurou os balões e, também para

adiantar o expediente, vestiu a aniversariante, pondo desde ai a presilha em

torno do pescoço, o broche e um pouco de água-de-colônia para disfarçar o

cheiro de guardado.

Dona Anita tivera seis filhos, mas foi à Zilda, sua única filha mulher,

que recaiu a responsabilidade do cuidado da mãe na velhice. Logo no inicio da

festa pôde-se perceber o clima que cercava a família. As noras se olhavam,

quando se olhavam, com desprezo e ressentimento. Nem todos os filhos,

também por ressentimento, compareceram. A anfitriã estava visivelmente

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desconfiada e revoltada sobre como o que os outros estavam achando de sua

festa. A velha senhora permanecia imóvel sentada à mesa, seus músculos do

rosto já não eram mais capazes de interpretá-la. Se estava alegre ou não,

ninguém poderia saber. Parecia oca.

Um de seus filhos, José, por um momento trouxe para ela a atenção

das pessoas ao redor ao se admirar da quantidade de anos que ela estava

fazendo, que foi reforçado por seu irmão e sócio, mas a senhora, acredito que

pela superficialidade dos comentários, continuou estática. As pessoas então

voltaram sozinhas à festa – ela não era mesmo importante, era só mais um

adorno ou uma desculpa.

No momento de cortar o bolo foi surpreendente para muitos. Ao ser

convocada a cortar o bolo, Dona Anita de súbito empunhou a faca e como uma

assassina deu a primeira talhada no bolo. Nossa! Que força tinha a velha!

José, nesse momento, continuava insistindo em lembrar que estavam todos ali

porque era o dia da mãe. A aniversariante passou a prestar atenção no

movimento de descontração das pessoas. Ela era mãe de todos! Ficou mais

dura na cadeira. Era a mãe de todos e do seu lugar impotente, como os

desprezava. Serrou o punho sobre a mesa e passou a pensar, como se

cuspisse, como eram todos carne do seu joelho. Rodrigo, seu neto de sete

anos, era o único que era carne do seu coração. Lembrou-se, então, do marido

morto. Esse sim era um bom homem, Rodrigo também seria, e se questionou

como podia ela que sempre fora uma mulher forte, junto com seu bom marido,

pôde gerar pessoas tão fracas e opacas. O tronco era forte, mas os frutos

nasceram estragados.

O rancor tomava conta do seu peito. E como se observasse ratos se

acotovelando ao seu redor, virou a cabeça e com força insuspeita cuspiu no

chão, para total desespero de Zilda. Ficou imaginando o que os outros

pensariam dela. Ficou mortificada! Só se acalmou quando percebeu que todos

culpavam a velha, e não ela, pelo mau comportamento. Para piorar a situação

D. Anita pediu a sua neta um copo de vinho. O silêncio se fez de súbito. Ao ser

questionada se não lhe faria mal, xingou a todos e ordenou que lhe desse o

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vinho. A neta, sem saber direito o que fazer, lhe deu um copo com apenas dois

dedos de vinho.

Mas para surpresa de todos, ela não só não reclamou da quantidade

de vinho como não tocou no copo, e voltou a olhá-los fixamente como se nada

tivesse acontecido.

3. 4. 2. As maniganças de Dona Frozina.

Católica, boa sogra, ótima avó e, mesmo estando na casa dos

setenta, ainda mantêm o cheiro e frescor de menina. Assim é a boa viúva Dona

Frozina. Uma senhora que mesmo tendo ficado viúva ainda moça, aos 29

anos, se manteve “virgem”, uma “viúva virgem”, como gosta de ser

reconhecida. Após a morte de seu marido fez questão de seguir o luto à moda

antiga. Severa, não usa decotes e está sempre com os braços completamente

cobertos, como também não gosta das coisas muito modernas (jamais bebe

Coca-Cola, é moderno demais). Dona Frozina se agarra nos santos e usa o

nome de Deus mais do que deveria. “Nossa Senhora” não tem sossego com

ela. Chama pela santa a cada espanto. E são muitos os seus espantos de

viúva ingênua.

3. 5. Inquietações...

Dona Frozina é o que podemos chamar de uma típica viúva. A viuvez

não é um assunto muito discutido na sociologia, apesar de sempre ter feito

parte do imaginário coletivo. Motta (2005) acredita que essa ausência se

explica porque a viuvez é majoritariamente uma condição feminina, e como,

segundo ela, os assuntos de mulher sempre foram menos importantes, com as

viúvas não foi diferente. Quando falamos de viúvas, logo evocamos uma

imagem que parece do passado, com senhoras com roupas pretas e fechadas,

véus cobrindo o rosto, lutos intermináveis. A situação social de ser viúva,

apesar de estar passando por modificações, ainda é carregada de conflitos.

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Essas senhoras viviam casamentos tradicionais. A figura do marido é central

nas suas vidas. Ficar viúva representou uma ruptura brusca nos seus modos

de viver.

A viuvez é uma situação social peculiar: inesperada, não planejada,

instantaneamente modificadora da vida das pessoas. Representa uma súbita

quebra de equilíbrio, real ou suposto, das relações de família e a urgência do

estabelecimento de novos arranjos no grupo familiar (MOTTA. Pág. 09,

2005).

Dona Frozina é a doce e agradável imagem e cheiro que se espera

de uma avó. Depois de perder o marido, ainda muito nova, a mulher não quis

saber de outros relacionamentos, se dedicou integralmente à criação dos filhos

e sustento da casa, e depois dos netos. Na verdade fora sempre uma “direita”

imagem de mulher, em todos os momentos da vida: boa parideira; ótima avó e

sogra boa. Quando indagada de como arrumara a vida sem homem,

respondeu: “Maniganças14, minha filha, maniganças!”. E foi com essas

maniganças que foi driblando a dor pela vida.

Por sua vez, Dona Anita não pertencia àquele lugar que lhe fora

destinado no laço familiar e social. Não pertencia àquela festa. Muito menos

pertencia aquela família! Era a mãe de todos, mas desejava que não fosse. Era

a “dona” da festa, mas não lhe agradava ser. Não reconhecia aqueles seres

patéticos como seus frutos. Tinha o peito vazio ao olhar sua família. Tinha raiva

de todos eles; os via como ratos. Dona Anita parecia oca!

A escolha do conto Feliz Aniversário para a discussão sobre vida

familiar e velhice veio pela ferocidade que o conto tem de revelar a hipocrisia

em que vivia aquela família. O clima da festa era hostil; as pessoas se tratavam

com falsidade. E Dona Anita é a única que parece consciente da situação, por

isso tinha tanto nojo dos seus. Como eram risonhos, fracos e, sem austeridade!

14 A narradora pede que procure o significado da palavra no dicionário, mas adianta – manigança: prestidigitação; manobra misteriosa, artes de berliques e berloques.

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As preocupações que permeavam as relações dos personagens (filhos, filha,

noras, netos) não estavam centradas nos famosos sentimentos familiares de

amor, compreensão, companheirismo, ajuda mútua, etc., mas sim em

ressentimentos (motivo das noras não se falarem), mágoas (motivo da

ausência do filho de Olaria), desconfiança (Zilda se martirizava imaginando o

que pensariam dela), superficialidade (era preciso usar a melhor roupa para

mão perecer pior do que era).

A própria festa mais parecia uma obrigação familiar do que uma

comemoração. Estavam, na verdade, cumprindo os papéis. A insistente frase

do filho José (“Oitenta e nove anos, sim senhor!”), acompanhada do visível

incômodo de todos, pois não sabiam o que falar, revelava o constrangedor

vazio que era a relação de todos. Porém, uma personagem parece destoar do

enredo: Cordélia, a nora mais moça, mãe do único parente vivo que era carne

do coração de Anita, Rodrigo, e a única nora narrada pelo nome. Cordélia

parece estar ausente todo o tempo, como se não fizesse parte dali, ou, como

Dona Anita, pudesse ver o quão infeliz era a festa (ou melhor, a família que

“fazia a festa”).

[...] E Cordélia? Cordélia, a nora mais moça, sentada, sorrindo! (pág. 57) [...]

Despertada pelas vozes, Cordélia olhou esbaforida. (pág. 58) [...] Cordélia

olhava ausente para todos, sorria. (pág. 59) [...] E Cordélia, Cordélia olhava

ausente, com um sorriso estonteado, suportando sozinha o seu segredo. (pág.

63) [...] Dona Anita, com o punho sobre a mesa, nunca mais ela seria apenas o

que ela pensasse. Sua aparência afinal a ultrapassara e, superando-a, se

agigantava serene. Cordélia olhou-a espantada. O punho mudo e severo sobre

a mesa dizia para a infeliz nora que sem remédio amava talvez pela última vez:

É preciso que saiba. È preciso que saiba. Que a vida é curta. Que a vida é

curta. Porém nenhuma vez mais repetiu. Porque a verdade era um relance.

Cordélia olhou-a estarrecida.e, para nunca mais, nenhuma vez repetiu –

enquanto Rodrigo, o neto da aniversariante, puxava a mão daquela mãe

culpada, perplexa e desesperada que mais uma vez olhou para trás implorando

à velhice ainda um sinal de que uma mulher deve, num ímpeto dilacerante,

enfim agarrar a sua derradeira chance de viver. Mais uma vez Cordélia quis

olhar. (LISPECTOR. Pág. 64, 1998.)

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A imagem congelada de Dona Anita representa para a nora o futuro

indesejado para todas. Velha, Anita tinha se tornado alguma coisa sem vida,

sem brilho, tinha se tornado alguma coisa! O que deixou Cordélia tão

assustada e perplexa nesse momento do conto, nos parece, foi o efêmero,

porém intenso e revelador, encontro com a verdadeira imagem da velha

senhora. Talvez fosse esse o insuportável segredo que Cordélia carregava:

aquele seria o futuro de todas as mulheres que não fossem capazes de

romper, enquanto há tempo, com aquela estrutura fria que era aquela família.

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66

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O envelhecer nas sociedades atuais, mais do que nunca, é uma

preocupação e investimento individual. A velhice, que por muito tempo foi

pensada, de forma restrita, como do âmbito do familiar, da dependência e do

tempo “de morte”, passa, agora, por uma mudança na percepção de vê-la e na

forma de vivê-la. As formas como se vive enquanto envelhece e a própria

velhice (como conseqüência dessa etapa anterior) passam a ser de

responsabilidade dos próprios indivíduos.

O envelhecer feminino sempre foi algo muito mais penoso e

carregado de culpas e preconceitos que o envelhecer masculino. Tudo isso

muito mascarado pela imagem “docilizada” de avó que foi criada para a mulher

velha. Se não fosse avó e não tivesse alguém para cuidar dela na sua velhice,

a mulher não era considerada como bem sucedida na vida. Restava-lhe a

solidão e a frustração de uma vida sem frutos.

Daí nossa preocupação em fazer a ligação do estudo de geração

com o estudo de gênero, para tentar conseguir da conta de uma dimensão

maior do envelhecer feminino, que a nosso ver está completamente ligado à

trajetória de gênero dessas mulheres.

Todos os conflitos “vividos” pelas personagens aqui apresentadas,

não são problemáticas que aparecem exclusivamente no tempo da velhice, só

por uma discussão de geração, mas também, como um prolongamento dos

problemas enfrentados pelas mulheres, de um modo geral, na vida social em

todas as suas fases geracionais. A relação com o corpo, sexualidade e vida

familiar para o feminino tinham (e ainda tem) um controle pelo masculino e por

algumas instituições sociais (Igreja, Estado, ordem médica, etc.) muito forte.

Foram, exatamente, os conflitos nessas três esferas (corpo,

sexualidade e vida familiar) que o envelhecer se mostrou, aqui, mais cheio de

conflitos para essas senhoras. É na dimensão corporal que o “ser velha”

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aparece primeiramente. Tanto para os outros como para quem envelhece, os

primeiros sinais da velhice se apresentam no corpo, e para o feminino isso

acontece de uma forma infinitamente mais intensa. Aqui também a perspectiva

de gênero nos é fundamental. O corpo feminino sempre foi alvo de dominação,

disciplina e idealizações.

O ideal de beleza imposto ao feminino sempre foi muito caro, mas é

na contemporaneidade que podemos perceber quão alto pode ser o preço

pago para conseguir um ideal. Corpos esculpidos; rostos limpos, afilados e sem

marcas, principalmente do tempo; cabelos impecáveis; etc., são ideais

perseguidos, muitas vezes, a qualquer custo e sob qualquer tipo de

intervenção, o que acaba por trazes sérios prejuízos as mulheres, tanto no

domínio da saúde quanto no emocional.

Essa idealização do corpo feminino como lugar da beleza, delicadeza

e prazer, fica muito distante na velhice. O corpo, como lugar da temporalidade,

modifica-se com o passar do tempo, torna-se mais frágil, mais lento, mais

vulnerável, ou seja, menos capaz. Menos capaz de ser belo, de produzir prazer

e admiração, menos capaz de seguir as regras.

A sexualidade feminina está muito ligada a esse corpo belo. A

sedução é, aqui, fator importantíssimo. O corpo da mulher tem que ser

adequado à capacidade de sedução, tem que estar em dia com as exigências

feitas para que se torne um corpo desejável.

No entanto, uma questão muito pertinente à sexualidade da mulher

velha, além dessa questão do corpo belo e sedutor, é o como lidar com o

prazer sexual. Por muito tempo esse não foi um direito da mulher, sua vida

sexual estava diretamente ligada à reprodução. Depois da menopausa as

relações sexuais não faziam mais parte de suas vidas.

A partir dessa construção normatizadora da sexualidade feminina,

como da ordem do natural e da reprodução, podemos tentar entender a

rejeição a vontade prazer dessas mulheres velhas, rejeição dos outros e delas

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mesmas, como podemos ver nos casos de Dona Cândida e da Sra. Xavier.

Mesmo com todo o debate feito pelos estudos sobre a “destaturalização” da

sexualidade e pela crítica feminista, a culpa ainda é uma constante para essas

mulheres.

Quando essas mulheres rompem com essa norma sexual quando já

estão velhas, como é o caso de Maria Angélica, os novos discursos que

pregam uma maior liberdade de expressão da sexualidade feminina esbarrão

nos preconceitos de idade. É muito comum encontrarmos falas de mulheres

que condenam essas “outras mulheres” que se permitem viver seus amores

depois dos sessenta, principalmente quando é com um rapaz jovem.

Mas já podemos observar um crescimento da preocupação dos

atuais estudos de gênero em problematizar essa visão da mulher velha como

assexuada atrelada a sua trajetória de gênero.

Todas essas discussões estão diretamente ligadas aos papéis

construídos socialmente do masculino e do feminino. As obrigações e

restrições referentes ao comportamento de homens e mulheres são definidas

por esses papéis. O papel dado à mulher de mais de sessenta anos é o da

avozinha resignada e assexuada, que depois de perder seu bem maior, a

capacidade de procriar – ser mãe -, deve se dedicar a amar e cuidar dos mais

novos, principalmente os netos, estando sempre perto dos seus, para que lhe

ajudem com as fragilidades e perdas de capacidades causadas pela velhice.

Porém, está fragilidade e resignação mostra-se cada vez mais

falaciosa. As mulheres aqui estudadas trazem inquietações que nos fazem

repensar a dimensão do envelhecer hoje. Repensar que seus desejos não

morrem com o passar dos anos, que a velhice não é só a época das dores e

nostalgias, mas sim tempo também de resgate, de questionamentos, de

desejos, de inquietações, de manifestações de afeto e amor (e não só como

avós, mas como mulheres, principalmente, que são avós também, mas que

não são obrigadas a ficarem restritas a essa dimensão).

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Contudo, acreditamos que esse trabalho é apenas o começo de uma

longa caminhada. As questões apresentadas no decorrer do trabalho, não

foram de modo algum, e estão longe de ser, exauridas. Pretendemos

aprofundar e densificar os problemas levantados aqui em trabalho futuro.

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