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1 AS TENSÕES ENTRE A CONCEPÇÃO DE TERRITÓRIO DO ESTADO E O TERRITÓRIO VIVIDO DA AGRICULTURA FAMILIAR Luciana Pinheiro Viegas Universidade Federal Fluminense – Dinter UFF/UNEMAT [email protected] Carlos Alberto Franco da Silva Universidade Federal Fluminense - UFF [email protected] Resumo O território rural apresenta diversidade de concepções e complexidade de ações, reflexo da modernização conservadora do campo. O artigo em tela objetiva analisar as tensões entre a concepção de território do Estado e a do território vivido da agricultura familiar. O território foi embasado na perspectiva de clássicos como Deleuze e Guattari (2010) e está ligado à subjetividade individual e coletiva, contemplando diferentes dimensões como a cultural, econômica e existencial. Há preocupação com o vivido e com a dinâmica que envolve cada situação espaço-tempo. Dessa forma, a política como parte constitutiva do território é definida numa relação dialógica, sob bases que atendam aos interesses do coletivo - representado por grupos organizados da agricultura familiar, e, particular - representado de forma individualizada pelas elites agrárias. Palavras-chave: Território Rural. Políticas Públicas. Estado. Agricultura Familiar. Introdução A diversidade de concepções e complexidade de ações no âmbito da realidade do meio rural, reflexos da modernização do campo na segunda metade do século XX, é a temática geral do artigo em tela. O objetivo parte da construção teórica da minha tese de doutorado a qual se propõe a analisar as tensões entre a concepção de território do Estado e o território vivido da agricultura familiar. Para isto, busquei fundamentar, especialmente neste artigo, o território na perspectiva de clássicos como Deleuze e Guattari (2010), que estão ligados à subjetividade individual e coletiva, contemplando diferentes dimensões como a cultural, a econômica e a existencial. Há preocupação com o vivido e com a dinâmica que envolve cada situação espaço-tempo. Eles acreditam que o pensamento se desterritorializa e reterritorializa, desliga-se e religa-se ao lugar. Deleuze e Guattari defendem que o território é, ao mesmo tempo, material, imaterial, relacional, psicossocial, totalidade e unidade. Além deles, há preciosas contribuições de Lefebvre (2006) e Haesbaert (2011; 2007).

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AS TENSÕES ENTRE A CONCEPÇÃO DE TERRITÓRIO DO ESTADO E O TERRITÓRIO VIVIDO DA AGRICULTURA FAMILIAR

Luciana Pinheiro Viegas Universidade Federal Fluminense – Dinter UFF/UNEMAT

[email protected]

Carlos Alberto Franco da Silva Universidade Federal Fluminense - UFF

[email protected]

Resumo O território rural apresenta diversidade de concepções e complexidade de ações, reflexo da modernização conservadora do campo. O artigo em tela objetiva analisar as tensões entre a concepção de território do Estado e a do território vivido da agricultura familiar. O território foi embasado na perspectiva de clássicos como Deleuze e Guattari (2010) e está ligado à subjetividade individual e coletiva, contemplando diferentes dimensões como a cultural, econômica e existencial. Há preocupação com o vivido e com a dinâmica que envolve cada situação espaço-tempo. Dessa forma, a política como parte constitutiva do território é definida numa relação dialógica, sob bases que atendam aos interesses do coletivo - representado por grupos organizados da agricultura familiar, e, particular - representado de forma individualizada pelas elites agrárias. Palavras-chave: Território Rural. Políticas Públicas. Estado. Agricultura Familiar.

Introdução

A diversidade de concepções e complexidade de ações no âmbito da realidade do meio

rural, reflexos da modernização do campo na segunda metade do século XX, é a

temática geral do artigo em tela. O objetivo parte da construção teórica da minha tese de

doutorado a qual se propõe a analisar as tensões entre a concepção de território do

Estado e o território vivido da agricultura familiar. Para isto, busquei fundamentar,

especialmente neste artigo, o território na perspectiva de clássicos como Deleuze e

Guattari (2010), que estão ligados à subjetividade individual e coletiva, contemplando

diferentes dimensões como a cultural, a econômica e a existencial. Há preocupação com

o vivido e com a dinâmica que envolve cada situação espaço-tempo. Eles acreditam que

o pensamento se desterritorializa e reterritorializa, desliga-se e religa-se ao lugar.

Deleuze e Guattari defendem que o território é, ao mesmo tempo, material, imaterial,

relacional, psicossocial, totalidade e unidade. Além deles, há preciosas contribuições de

Lefebvre (2006) e Haesbaert (2011; 2007).

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No espaço agrário/agrícola, os movimentos de resistência são materializados por

desapropriações, e constituição de territórios rurais de resistência ao agronegócio

marcados com o próprio sangue do trabalhador. A expressão do valor de uso da terra,

nesses territórios, sinaliza não somente para a produção de alimento que sustentará

populações tradicionais, mas também suas diversas manifestações impressas ao longo

de décadas ou até séculos numa dimensão simbólica-cultural.

Diante de tal problemática das transformações do espaço agrário impostas pelo

agronegócio e das resistências que se afirmam pela ação dos movimentos sociais, neste

artigo, há uma proposta metodológica. As pesquisas foram realizadas a partir de

consultas bibliográficas com uma, ainda embrionária, pesquisa de campo que já ilumina

pontos fundamentais para uma análise cuidadosa e responsável das concepções do

Estado e empresas e aquelas da agricultura familiar que, apesar de um grupo

subalternizado, constituído por um mosaico de vozes que está, cada vez mais, fazendo-

se presente, representado e visibilizado.

Para melhor compreensão dos momentos pelos quais passaram e passam a agricultura

brasileira, dentro dos diferentes contextos por que passaram o Brasil desde a

Modernização conservadora da agricultura, cabe uma reconstrução desse processo

fundamentada em Delgado (2010), Moreira (1999) e outros pesquisadores de grande

relevância.

O Estado e a modernização no campo

As formas de divisão social do trabalho, separando proprietários das condições de

trabalho e trabalhadores, ao mesmo tempo em que determinam a divisão entre

proprietários e não-proprietários, entre trabalhadores e pensadores, determinam a

formação das classes sociais e, finalmente a separação entre sociedade e política, ou

seja, entre instituições sociais e Estado (CHAUÍ, 2001).

O Estado aparece como a realização do interesse geral1, mas na realidade ele é a forma

pela qual os interesses da classe dos proprietários, ou seja, a classe hegemônica, aquela

de onde ecoa o discurso público são atendidos. Para a mesma autora, o “Estado não é

um poder distinto da sociedade, que a ordena e regula para o interesse geral definido por

ele próprio enquanto poder separado e acima das particularidades dos interesses de

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classe [...]”, é a garantia da preservação dos interesses da classe dominante (CHAUÍ,

2001, p. 66).

Partindo dessa definição de Estado e já adiantando sua opção em trabalhar, planejar e

executar ações voltadas quase que exclusivamente para as elites agrárias, é importante

uma visita ao contexto atual percorrendo a trajetória da modernização quando de sua

chegada ao campo, fortemente caracterizada pela globalização e por todo avanço

tecnológico que apresentam movimentos diferentes em diferentes escalas e, cabe à

geografia uma reflexão a respeito das questões colocadas nas relações entre política -

modo de organizar conflitos de interesses e, território - locus de formas de vidas de

sociedades diferenciadas e complexas (CASTRO, 2010).

A mesma autora afirma ainda que a escala da ação política está relacionada ao grau de

complexidade e diversidade dos grupos e classes sociais e, é a partir das relações sociais

que surgem os conflitos de interesses que se territorializam em disputas entre os grupos

sociais para organizar os territórios de acordo com seus interesses. Posto isso, podemos

refazer os caminhos percorridos pela agricultura familiar e pela modernização do

campo.

O setor industrial, nas décadas de 1980 e 1984 foi superado pela agricultura devido a

uma queda significativa dos preços internacionais das commodities agrícolas e dois

elementos importantes explicam o desempenho da agricultura, são eles, em 1979, em

que o Governo Figueiredo estabeleceu prioridade à agricultura, tendo como expressão

“encher a panela do povo”, popularizada por Delfim Neto, temendo uma crise de

abastecimento de alimentos, frente ao fracasso da produção na década anterior. Seus

reflexos foram sentidos com a mudança na política agrícola com vistas ao

fortalecimento da política de preços mínimos e diminuição da importância da política de

crédito rural (DELGADO, 2010).

O segundo elemento foi a política de desvalorização da taxa cambial que compensou as

perdas de receitas em dólares dos exportadores brasileiros decorrente da queda dos

preços internacionais das commodities agrícolas, o que garantiu a continuidade da

produção.

Diante disso, pode-se dizer que na década de 1980, as políticas, cambial, de preços

mínimos e tecnologia viabilizaram o crescimento agrícola em ambiente

macroeconômico interno e externo desfavorável. Com o melhor desempenho na

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produção de alimentos para o mercado interno, pode-se dizer que a década de 1980 foi

bastante positiva para a agricultura familiar2.

Em um contexto de abertura política no final dos anos 1970 e início dos 1980, em meio

a ações pela democratização do país, a questão agrária entra para uma agenda de

discussões públicas já que passou a assumir relevância política central frente aos

movimentos de resistência representativos de uma diversidade de anseios compondo as

lutas que se configuram no meio rural.

Fazem parte desses movimentos de resistência, os movimentos sociais rurais como o

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) e suas dissidências, o

Movimento dos Atingidos por Barragens, o movimento de mulheres trabalhadoras

rurais, o Conselho Nacional dos Seringueiros, e ainda, antigas e novas representações

do movimento sindical como, respectivamente, a Confederação Nacional dos

Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura Familiar (CONTAG) e a Central Única

dos Trabalhadores (CUT).

Importante destacar também a presença de entidades da igreja católica como a

Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Prelazia3 e algumas Organizações Não-

Governamentais (ONG’s) e a mobilização da própria sociedade civil organizada que se

envolveu na luta pela reforma agrária nas diferentes regiões do Brasil, com objetivos

específicos impressos no contexto de especificidade de cada localidade, como na região

Sul, por exemplo, em função da modernização que avançava no campo e, aos

agricultores familiares,4 restava a perda de suas terras e identificação de “sem-terra”; na

região Norte, os seringueiros resistindo ao ver suas terras de seringais serem

transformadas em pastagens. E ainda os posseiros, nas áreas de “fronteira agrícola” nos

Estados do Norte e Centro-Oeste. A partir de então foram surgindo reivindicações por

políticas públicas que atendessem as necessidades dos agricultores familiares que foram

alijados do processo de modernização com a tecnificação da produção, o que tornou a

questão agrária mais complexa e diversificada levando à reflexão a questão da

identidade entre rural e agrícola e entre desenvolvimento e modernização (DELGADO,

2010).

Diante desse retrato, capturado por uma modernização socialmente conservadora da

agricultura e caracterizado por permanências que remontam o padrão de industrialização

adotado em 1950, foi clara a opção do Estado em implementar esse padrão de

industrialização e o caráter conservador do processo, visto que não representou o

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rompimento com as elites agrárias e esteve baseado na manutenção dos salários

reduzidos.

Cabe ressaltar que, ao lado dessa modernização conservadora, caminha um Estado

igualmente conservador que desempenha, da mesma forma, suas funções, dentre elas a

de “sustentáculo de um pacto de poder autoritário e excludente das camadas populares

especialmente no meio rural [...]” (DELGADO, 2010), além da responsabilidade de

formular e executar políticas públicas que privilegiaram a constituição de uma

economia urbano-industrial, deixando, mais uma vez, o meio rural na “sala de espera”

das políticas de desenvolvimento territorial rural (WALSH, 2007).

A legitimação da postura conservadora e unilateral do Estado e a aliança com a grande

propriedade territorial, eram questionadas a todo tempo pelos movimentos sociais, na

medida em que incentivava a burguesia a formar alianças com os setores emergentes,

rompendo com as velhas formas de dominação no campo, com as estruturas de poder

local e apontando para a formação de uma classe média rural (MOREIRA, 1999).

As reformas de base, como a reforma agrária, por exemplo, eram necessárias e

fundamentais para o desenvolvimento do meio rural, porém não contavam com o apoio

da burguesia, uma vez que para esta, estava claro que seu desenvolvimento independia

de reformas na estrutura fundiária. Além disso, o Estado apoiava o novo foco que o

mercado estava voltado, o consumidor potencial que se tornava real de insumos

modernos, como máquinas, adubos, pesticidas, dentre outros.

Foi a partir da década de 1960 que esta industrialização, com características de exclusão

e dependência começou a entrar em crise, visto que seus mecanismos tradicionais de

financiamento e sua expansão foram abalados pela alta da inflação e perda da

articulação do pacto de poder, por parte do Estado, que sustentava o modelo.

Mesmo com a criação do Estatuto da Terra, em 1964, em que as esperanças foram

renovadas na questão da estrutura agrária brasileira, o Ato Institucional nº 5, de 1968,

impediu qualquer avanço nesse sentido, já que a hegemonia política (Estatal) era

promover o latifúndio para transformá-lo numa grande empresa brasileira, o que

culminou, no final da década de 1960, com a chamada modernização conservadora da

agricultura na década de 1970.

Contudo, foi a partir de 1976 que a agricultura encontrou uma conjuntura financeira e

comercial favorável ao crescimento das exportações agrícolas marcando a expansão da

produção de soja iniciada no Sul do país e, mais tarde avançando por todo o território

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brasileiro, como a “revolução verde”, um processo de modernização tendo como uma de

suas diversas conseqüências, a expulsão da mão-de-obra do campo. Esse contingente de

mão-de-obra expulsa do campo foi engrossar as estatísticas de desemprego e

marginalização nos centros urbanos.

Como se trata de um modelo dependente e excludente, o que não considero redundante

relembrar, aos excluídos, dentre eles os agricultores familiares, assalariados rurais e

populações rurais sem-terra, coube a caracterização de público-alvo dos “projetos de

desenvolvimento rural integrado” difundidos pelo Banco Mundial por toda a América

Latina.” (DELGADO, 2010, p. 23).

Diante da subordinação dos agricultores familiares frente ao atual modelo de

desenvolvimento hegemônico e excludente, os movimentos sociais assumem,

gradativamente, uma postura que os leva a conduzir debates e discussões em torno da

construção de um modelo alternativo de desenvolvimento centrado na justiça social e

que busque a participação de todos na democratização da revolução verde, permitindo

que a modernização tenha o acesso de todos no meio rural.

Contudo, imerso em uma realidade um tanto quanto perversa, quando se trata de acesso

a novas tecnologias e oportunidades, o agricultor familiar, apesar de garantir, com sua

produção, grande parte dos alimentos que vão à mesa dos brasileiros diariamente, nunca

foi inserido, por meio de suas representações de interesse - associações e sindicatos -

como proponentes de projetos de desenvolvimento local para a conseqüente efetividade

das ações quando da elaboração de políticas públicas para o desenvolvimento de

territórios rurais contemplando sua diversidade e particularidade.

Território vivido da agricultura familiar

Ao falar de território, especialmente neste artigo, devemos situar o sentido adotado que,

apesar de uma diversidade de abordagens com contribuições importantes de clássicos

como Deleuze, Guattari e outros, este sentido é entoado a partir dos contextos vividos

da agricultura familiar. Pela maneira como está sendo abordado, o território parte do

conceito de espaço, que segundo Massey (1998), é produto de inter-relações, o espaço

visto como possibilidade de existência de multiplicidade, existência de mais de uma voz

e está sempre em processo de devir. Harvey (2004) caminha na mesma direção

afirmando que o espaço é construído dentro de diferentes contextos, que suscitam

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modificações, o que faz surgir mudanças. Estas abordagens refletem a dinâmica dos

grupos sociais que debatem, discutem e constroem suas demandas a partir de processos

participativos caracterizando a construção e organização social num dado espaço, ou

seja, o território.

Contudo, para uma leitura atualizada do espaço, Moreira (2006) sugere analisá-lo “por

meio de seu recorte [...]”, nascendo a partir de então, o território. Com isso pode-se

dizer que “o recorte espacial é o princípio do conceito de território [...] cada recorte do

espaço é um território.”

Quando se realiza análise do território, sob diferentes perspectivas, devemos levar em

consideração que, para a existência deste, devem existir relações de poder e, como

ponto de partida para o avanço das reflexões sobre o conceito de território, sugerimos

iniciar um olhar a partir de teorias que buscam melhor compreensão desse conceito

partindo de pensadores como Deleuze (1992; 2010), e Guattari (1992; 2010).

Contribuições importantes também do filósofo Foucault, marcado por grandes dilemas.

Considerando que o núcleo epistemológico do território é o poder, as contribuições de

Foucault são fundamentais para este debate, mesmo com abordagem do território

restrita ao poder estatal como soberano. Ele afirma que, sempre, onde há poder, há

resistência, pois a resistência não é o outro do poder. Seu conceito de poder está

diretamente ligado a sua posição política e o trata como prática, empiria.

A compreensão de território na perspectiva de Deleuze e Guattari (2010) está ligada à

subjetividade individual e coletiva, contemplando diferentes dimensões como a cultural,

a econômica e a existencial. Há preocupação com o vivido e com a dinâmica que

envolve cada situação espaço-tempo. Eles acreditam que o pensamento se

desterritorializa e retorritorializa, desliga-se e religa-se ao lugar. Enfim, ambos

defendem que o território é, ao mesmo tempo, material, imaterial, relacional,

psicossocial, totalidade e unidade.

Haesbaert (2011); Moreira (2006) e Renard (2002) concebem “o território como um

pedaço de espaço” cujos elementos constitutivos são organizados e estruturados pelas

ações dos grupos sociais que o ocupam e o utilizam, finaliza Renard (2002). Nesta

perspectiva território é unidade geográfica, delimitada por uma fronteira, material ou

simbólica, criando assim, uma oposição do que está dentro e está fora.

Em contexto social do território, espaço da prática, Sack trabalha componentes

fundamentais para compreensão dos contextos sociais vividos. Possui visão relacional

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do território enfatizando a existência de um único poder hegemônico que controla

pessoas e recursos, destaca também, território político, o qual será objeto de constantes

análises nesta pesquisa, território como categoria da prática política. Para ele, o

território, construído socialmente, “pode ser usado para conter ou restringir, bem como

para excluir pessoas.” (SACK, 2009, p. 20).

Território nos remete ao poder e como afirma Haesbaert (2007), não aquele poder

tradicional, “poder político”, mas no sentido de dominação ou apropriação. Para essa

distinção, importante para as discussões, Lefebvre (2006) diferencia apropriação de

dominação, a primeira como processo simbólico, prática marcada pelo vivido, território

apropriado como valor de uso. Já a dominação é mais funcional, configura como valor

de troca e, como há dominação, há relações de subalternização.

A partir disso fica clara a importância de se analisar o território em sua multiplicidade

de manifestações, incorporada através de seus múltiplos sujeitos tanto do dominador,

com lutas hegemônicas, quanto dos dominados, com lutas de resistência, com

sobreposições de territorialidades assim como são caracterizadas as relações sociais que

se desdobram no território.

O território político, como categoria da prática, analisado em constantes discussões pela

multiplicidade de sujeitos dentro de grupos socialmente organizados, apresenta, a partir

de Aristóteles, preocupações de como “oferecer uma luz” aos homens ou o “bem

supremo” na direção dos negócios públicos sinalizando uma nova forma na medida em

que se forma um “espaço de presença da política no cotidiano e se abre um terreno à

participação política fora do âmbito restrito do exercício do governo.” (MAAR, 2006, p.

31).

Isto marca a ampliação dos espaços de participação para além do soberano. Estão

presentes na arena política os cidadãos para as discussões públicas, voltadas para o

conflito entre as diversidades. Inseridos nessa diversidade, os grupos sociais -

agricultores familiares - se fazem visíveis a partir de representações como as

organizações de classe que vivenciam tensões, como os dois projetos de

desenvolvimento rural no Brasil, o projeto neoliberal, excludente e centrado na

perspectiva das elites agrárias com foco na economia com geração de saldos crescentes

na balança comercial, tendo o agronegócio como seu protagonista e; o projeto

democratizante, que recebe esse nome, segundo Delgado (2010), por sinalizar um

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processo de democratização da sociedade, tendo como protagonista a agricultura

familiar.

A concepção de território para agricultura familiar estará fundamentada em bases

conceituais apresentadas nos espaços de participação e discussão dos agricultores e

agricultoras familiares1 e suas diferentes formas de representação. A diversidade de

sujeitos nestes espaços forma um mosaico de vozes que aqui será refletido a partir do

Painel de discussão apresentado na Confederação Nacional dos Trabalhadores e

Trabalhadoras da Agricultura Familiar - CONTAG sobre reflexão da ação sindical

considerando as dinâmicas ocorridas na conjuntura do campo, na vida e na organização

da classe trabalhadora refletindo ainda sobre a diversidade dos sujeitos do campo e da

floresta.

O painel teve início com uma palestra, proferida pela Professora Socorro Silva, da

Universidade Federal de Campina Grande-PB, em que a mesma expôs a discussão que

parte da tensão do conceito de território a partir de dois projetos de desenvolvimento

afirmando que o território nasce com duas conotações, a simbólica e a material e,

compartilhando com Haesbaert (2007, p. 20) pode ser entendido a partir da etimologia

da palavra, aparece tão próximo à “terra-territorium quanto à térreo-territor (terror,

aterrorizar), ou seja, relacionado à dominação (jurídico-política) da terra e com

inspiração do terror, do medo”, principalmente aqueles que são tolhidos da terra diante

da dominação. Por outro lado, o território se configura como identificação e a “efetiva

apropriação” por aqueles que tem acesso à terra subalternizando aqueles que de terra

pouco ou nada tem.

Território na concepção dos sujeitos da agricultura familiar é mais que um lugar de

produzir riqueza, de produzir o trabalho, ele é um lugar também da construção do ser,

dos sujeitos, de uma identidade. A partir do momento que esses sujeitos perdem a posse

da terra, pode-se dizer que houve uma desterritorialização, a perda de suas raízes.

Na perspectiva do território capitalista, ele apresenta pilares que remontam sua

implementação em nosso país e na conjuntura atual pode ser visivelmente identificado

por meio da monocultura, caracterizada como um desses pilares e se fazendo presente

desde os grandes projetos de colonização no Brasil.

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Inserido nesse contexto, importante destacar a globalização que, em meio a paradoxos e

dicotomias, permite duas leituras que cabem aqui, com muito cuidado e atenção. Uma

delas parte dos agentes hegemônicos que consideram o território como meros “locais de

negociação” analisando vantagens e desvantagens nas operações e, a outra leitura é feita

a partir das populações de cada lugar, sendo o território, lugar de construções sociais,

heterogêneo, múltiplo e diversificado (ROBERTSON, 2000).

Outro ponto de discussão e reflexão entre os grupos sociais organizados nos espaços de

participação é com relação à exploração da mão-de-obra trabalhadora, visto que nesta

pesquisa, o território é carregado de sentido político e de componentes fundamentais

para os contextos sociais vividos apontando o território ordenado ou (des)ordenado,

composto por multiplicidade de sujeitos, de poderes e de “múltiplas arenas políticas”,

em que os conflitos se fizeram e fazem presentes na luta pela terra e pela participação

efetiva na agenda de políticas públicas voltadas para os territórios rurais (LIMA, 2005).

A palavra política é de origem grega, polis: politikós, comunidade organizada e formada

por cidadãos, por aquilo que é de interesse do homem enquanto cidadão (BOBBIO,

2000; SILVA, et al, 2011). Ainda na Grécia Antiga foi Aristóteles, em seu livro “A

política” quem primeiro tratou do tema como prática intrínseca aos homens.

Esta forma de fazer política, deixada pelos gregos, reflete na vida pessoal e a harmoniza

com o coletivo, ela se torna referência para o comportamento individual em detrimento

do coletivo, da multiplicidade da polis. Esta forma de abordar a política deixada pelos

gregos no contexto atual é ponto a ser iluminado mais adiante.

Diferente do pensamento centralizador da política na figura do Estado, como defende

Ratzel, Maar (2006) aponta a política como carregada de multiplicidade de facetas, faz

referência ao poder político, à esfera da política institucional. Destaca a necessidade de

desvincular a palavra “política”, no singular, vinculada a um só poder, o Estado, para

ser tratada como “políticas”, no plural, assim como é representada a sociedade que, por

sua vez, nada tem de singular, é só pensarmos nos movimentos sociais que são

carregados de sentido político. Eles podem não fazer “a política”, mas certamente fazem

“uma política”. São as diversas políticas discutidas por diversos poderes que fazem

parte do território socialmente construído ora discutido.

A liberdade está contida no poder agir, tomar iniciativa, impor um novo começo. A

política tem a ver com liberdade e espontaneidade humana. A restrição à liberdade, a

repressão da espontaneidade humana e a corrupção do poder através da violência são

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ameaças para a política dos sistemas liberais. O espaço original do político é público. O

homem pode agir e começar de novo, independente e sem manipulações. Arendt (2011,

p. 30) diz que a base do pensamento político é a capacidade de formar opiniões e que

essa capacidade seja desenvolvida com liberdade. Para tanto, é importante reconhecer a

política por meio de normatização e de representações sociais diversas, “não há política

sem normatização de práticas sociais.” (SILVA, 2011, p. 23).

Contudo, vale evidenciar que a política atrelada somente à figura do Estado como

unidade de atuação, homogeneizando seus atores é carregada de visão reducionista, pois

nos chama a atenção a multiplicidade de singularidades representadas nesses atores.

Dessa forma, a política deve ser reconhecida como representações sociais diversas e,

como interfere na ordem federativa do Estado brasileiro, contribui para composição do

ordenamento territorial das múltiplas arenas políticas dos atores em tensão.

A agricultura familiar busca, em seus espaços de participação, discutir o território

carregado de políticas e laços de afetividade, porém, parecem demandar políticas de

ordenamento territorial que reproduzem a lógica capitalista de modelos hegemônicos

quanto a sua configuração territorial, quando não vemos discussão de uma nova

proposta e projeto de reforma agrária para o Brasil que tenha suas origens nas bases do

movimento social e organizações de classe.

Conclusões

É fato e de fácil percepção, a existência de uma tensão entre as diferentes concepções de

território do Estado e aquelas da agricultura familiar. A primeira é caracterizada como

concepção hegemônica, o Estado como poder central, compartilhado por Raffestin

(1993), Sack (2009) e Foucault (2010) como apresentado ao longo do texto e, a

concepção de território vivido da agricultura familiar, configurada como simbólica e

sinalizando para diversidade e complexidade de ações e relações sociais, inclusive

relações de conflito em que grupos organizados se fazem visíveis por meio de ações

negociadas pelo Estado para fins de construção de políticas voltadas para seus

interesses, o que caracteriza o território como espaço da prática política.

Essa tensão, interesse, estratégias e resistências são categorias centrais da política

sinalizadas pelo território cujas regras, decisões e ações são formalizadas por acordos

jurídicos ou informais entre a diversidade de atores sob condições materiais/ideológicas,

dado o caráter peculiar do território.

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Dessa forma, a política como parte constitutiva do território é definida numa relação

dialógica, sob as bases que atendam aos interesses do coletivo, representado pelos

grupos organizados da agricultura familiar, e, particular, representado, de forma

individualizada, pelas elites agrárias.

Notas _____________________ 1 Por esse motivo Hegel dizia que o Estado era universalidade da vida social (CHAUÍ, 2001). 2 Ao longo do trabalho, quando fizer referência à agricultura familiar, esta se baseia na Lei 11.326, de 24 de julho de 2006, em que estabelece conceitos, princípios e instrumentos destinados à formulação das políticas públicas direcionadas à Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais. 3 Prelazia é uma diocese do interior, uma diocese mais nova, com menos padre e menos recursos, com pessoal missionário vindo de fora (Carta de Encorajamento ao povo da Prelazia de São Félix do Araguaia-MT, escrita por Dom Pedro Casaldáliga em 03 de julho de 1971). 4 Agricultor familiar aqui referenciado é aquele que, de acordo com a Lei 11.326, de 24 de julho de 2006, pratica atividades no meio rural, atendendo, simultaneamente aos seguintes requisitos: não detenha, a qualquer título, área maior que 4 (quatro) módulos fiscais; utilize predominantemente mão-de-obra da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento e dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família. 5. A relevância para a distinção de gênero, neste caso, representa as diversas conquistas das mulheres ao longo da história em constantes lutas no campo por direitos e reconhecimento como trabalhadoras rurais, agricultoras familiares.

Referências

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