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izem que a mentira tem pernas curtas. Mas, desde cedo, aprendemos que ela tem mesmo é o nariz comprido. Basta lembrar de Pinóquio, personagem bastante presente no imaginário infantil ocidental, que recebeu como cas- tigo por sua má conduta um nariz expansível e retrátil. Assim, toda vez que faltasse com a verdade, seu nariz cresceria e denunciaria a farsa. O boneco é uma referência para as crianças do significado das mentiras e da internalização das regras. Alguns pais fazem questão de relembrar com insistência a história aos pequenos, na forma de sutis ameaças – “Não conte mentiras, pois seu nariz vai crescer igual ao do Pinóquio!”. Pois bem, uma artimanha muito eficaz para as crianças, já que a identificação com o personagem é muito forte. O boneco de madeira falante confidencia aos leitores seus tropeços; surge como um sujeito de caráter ambíguo, sempre tentando se emendar. Às crianças resta apenas a empatia com o sofrimento decorrente da desordem psíquica do personagem, provocando compaixão e angústia com as trapa- lhadas sem fim do herói. A narrativa ultrapassa gerações expressando princípios da nossa cultura e demonstrando que cada um fará seu caminho no sentido da construção do julgamento moral. Era uma vez... A história original, traduzida para o português como As aventuras de Pinóquio, foi escrita no forma- to de folhetim, entre os anos de 1881 e 1883, pelo italiano Carlo Collodi. Os capítulos eram pu- blicados por um semanal infantil de Roma – o Giornale per i Bambini – e foram concebidos lenta- mente pelo autor, que interrompeu a escrita inúmeras vezes, retomando-a quando pressionado por seu público. Foram principalmente as crianças que gostaram da trama e pediram a Collodi que a prosseguisse. Segundo Diana e Mário Corso, no livro Fadas no divã, psicanálise nas histórias infantis não há um fio de continuidade bem definido na história, justa- mente porque os contos foram escritos sem grandes pretensões de uma futura unidade textual. Na versão italiana, Pinóquio é um boneco egoís- ta, ingrato e desobediente. Ele aprende o caminho da responsabilidade da maneira mais difícil: mostra-se empenhado em provar que não assi- AMANDA MAGALHÃES, EDUARDA MOURA, FELIPE COHEN E LUIZA MOSCOSO É tudo mentira! 43 Entrelinhas fabulosas que influenciam nossas vidas As verdades nas mentiras de Pinóquio As aventuras de Pinóquio

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izem que a mentira tem pernas curt a s .Mas, desde cedo, aprendemos que ela temmesmo é o nariz comprido. Basta lembrar

de Pinóquio, personagem bastante presente noimaginário infantil ocidental, que recebeu como cas-tigo por sua má conduta um nariz expansível eretrátil. Assim, toda vez que faltasse com a verd a d e ,seu nariz cresceria e denunciaria a farsa. O boneco éuma referência para as crianças do significado dasmentiras e da internalização das re g r a s .

Alguns pais fazem questão de relembrar cominsistência a história aos pequenos, na forma desutis ameaças – “Não conte mentiras, pois seu narizvai crescer igual ao do Pinóquio!”. Pois bem, umaartimanha muito eficaz para as crianças, já que aidentificação com o personagem é muito forte.

O boneco de madeira falante confidencia aosleitores seus tropeços; surge como um sujeito decaráter ambíguo, sempre tentando se emendar. Àscrianças resta apenas a empatia com o sofrimentodecorrente da desordem psíquica do personagem,provocando compaixão e angústia com as trapa-lhadas sem fim do herói. A narrativa ultrapassagerações expressando princípios da nossa cultura edemonstrando que cada um fará seu caminho nosentido da construção do julgamento moral.

Era uma vez...A história original, traduzida para o português

como As aventuras de Pinóquio, foi escrita no forma-to de folhetim, entre os anos de 1881 e 1883, peloitaliano Carlo Collodi. Os capítulos eram pu-blicados por um semanal infantil de Roma – oGiornale per i Bambini – e foram concebidos lenta-mente pelo autor, que interrompeu a escritainúmeras vezes, retomando-a quando pressionado

por seu público. Foram principalmente as criançasque gostaram da trama e pediram a Collodi que aprosseguisse.

Segundo Diana e Mário Corso, no livro Fadas nodivã, psicanálise nas histórias infantis não há um fiode continuidade bem definido na história, justa-mente porque os contos foram escritos sem grandespretensões de uma futura unidade textual.

Na versão italiana, Pinóquio é um boneco egoís-ta, ingrato e desobediente. Ele aprende o caminhoda responsabilidade da maneira mais difícil:mostra-se empenhado em provar que não assi-

AMANDA MAGALHÃES, EDUARDA MOURA, FELIPE COHEN E LUIZA MOSCOSO

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Entrelinhas fabulosas que influenciam nossas vidas

As verdades na s mentirasde Pinóquio

As aventuras de Pinóquio

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milou a lição, mas encontra oportunidadespara se redimir. A históriaganhou vários formatos e omais conhecido é o desenhoanimado de Walt Disney, noséculo XX.

Omissões, distorções e mentirinhas que fazem todaa diferença

Ao conceber a adaptação dahistória original de Pinóquio em1940, Walt Disney omitiu e dis-t o rceu diversas passagens. Da

versão construída por CarlosCollodi sobreviveram apenas elementos que dão às u p e rfície da história suas cores fundamentais.Porém, a magia feérica que encanta o boneco demadeira no desenho animado parece ter tocadomuito antes a mentalidade empreendedora de WaltDisney.

Branca de Neve e os sete anões – primeiro longa-metragem de animação de Walt Disney – fizera umenorme sucesso no cinema. Em seguida, ao pro-duzir Pinóquio, Disney ficou apreensivo em relaçãoà receptividade do público com o novo filme, emgrande parte por julgar que o boneco não era umpersonagem carismático o sufi-ciente para conquistar a massade espectadores. A partir deentão, começou a fazer mu-danças que tornassem a históriamais agradável – e vendável –segundo seus padrões. Assim, o Grilo Falante, queno conto de Collodi é mais um coadjuvante, ét r a n s f o rmado em um personagem tão centralquanto o próprio Pinóquio na versão de Disney,desempenhando o papel de “dono de sua consciên-cia”. No processo de (re) construção do perfil psi-cológico das personagens, o crescente destaquedado ao Grilo Falante acabou por abafar a partici-pação de Pinóquio. Então, Disney decidiu que amarionete deveria ser inocente como um bebê, aopasso que o Grilo se encarregaria de dizer a ele oque fazer e o que não fazer.

Outro exemplo a ser citado é que, no texto deCollodi, Gepeto é um artesão miserável; a idéia de

construir um boneco de madeira tem uma ligaçãodireta com a necessidade de ganhar dinheiro, o quefica explícito em suas próprias palavras: “Com essamarionete quero rodar o mundo, para conseguirum pedaço de pão e um copo de vinho”. Apesardisso, o artesão mostra imensa dedicação ao“filho”, vendendo seu único e surrado casaco empleno inverno pra comprar uma cartilha com aqual Pinóquio possa ingressar na escola. Na versãoDisney, Gepeto vive confortavelmente em uma ca-sinha, na companhia de um gato, um peixe e seusvirtuosos cucos de madeira. Pinóquio é concebidopara ocupar a solidão do velho artesão.

Em episódio subseqüente, comum às duas ver-sões, Pinóquio é feito prisioneiro de um circo demarionetes. Na versão de Collodi, se oferece paraser queimado no lugar de outro boneco, que o donodo circo havia tomado para usar como lenha. Talatitude comove o homem, que o libera daescravidão. Na versão Disney, Pinóquio simples-mente foge com a ajuda do grilo e de um passemágico da fada, em uma solução de enorm epobreza criativa se comparada à imaginada porCollodi.

Tais alterações dão uma pequena dimensão deque as intenções de Collodi e de Disney divergem,apesar de aparentarem ter o mesmo sentido. Ao

negar e anular certos elementosda história original, Disney retirada fábula a ambigüidade e osdilemas morais inerentes àcondição humana (justamente oque torna Pinóquio uma perso-

nagem tão fantástica, um anti-herói que nada deveao Julien Sorel de Stendhal, do clássico O vermelho eo negro), favorecendo assim uma visão maniqueís-ta do mundo e um distanciamento por parte dosespectadores dessas aventuras.

Uma história para ensinarCom sua fábula, Collodi nos conta todas essas

aventuras de forma bastante didática. Para osautores do livro Fadas no divã, Collodi recebeuinfluências pedagógicas e as questões educacionaissempre permearam suas obras.

Dessa forma, o desejo do boneco de se tornar ummenino de verdade estava diretamente associado à

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Mentir é uma tentativa deviver como se queria viver e

não o que se vive de fato

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construção de um “sistema moral” com direito ainúmeros erros e arrependimentos ao longo dahistória. Diferente do original, Walt Disney tam-bém encena essas passagens contraditórias, mas,como foi citada anteriormente, a “desord e mpsíquica” do boneco é apresentada de forma maisbranda e palatável para o público.

Na verdade, o livro pode ser considerado umaantifábula, pois “o herói tem inúmeras chances dea c e rtar e errar”. Sua mãe, a Fada, que aparece ini-cialmente como uma pequena menina de cabelosazuis, o avisa dos perigos e das conseqüências –assim como fazem os pais que, por terem vividoexperiências anteriores, tentam proteger seus filhos.

Entretanto, a intenção de Collodi, ainda segundoDiana e Mário Corso, era justamente a de apresen-tar Pinóquio em seu ambiente familiar como ummenino comum de sua idade. Com isso, a dificul-dade não é apenas de Pinóquio em controlar seusimpulsos mentirosos coibindo o crescimento donariz. A história vai além e demonstra também adificuldade dos pais em educar seus filhos, ou de“dominar essas marionetes”.

Nesse contexto, a mentira é uma atitude recor-rente para Pinóquio, já que dealguma forma ele tem consciên-cia de seus erros – durante toda ahistória o boneco é avisado pori n ú m e ros “ajudantes mágicos”em “situações fantásticas” sobreo que está por vir. E o crescimen-to do nariz, previsto pela FadaAzul, é a expressão mais concre-ta e exteriorizada desse caráterrebelde e voluntarioso que érepetido sistematicamente com crises de consciên-cia, assim como acontece com todos os humanos.

Mentira é uma verdade que esqueceu deacontecer”

A frase do poeta Mário Quintana define com pre-cisão o caráter das mentiras contadas por Pinóquioem suas aventuras. A fala do menino de madeiranão é verdadeira quanto ao fato acontecido, masexpressa um desejo que não aconteceu e encontrarepresentação possível nas mentiras. Segundo a psi-canalista Iane Kestelman, 49 anos e 27 de clínica,

esse comport a-mento é recorrenteem crianças, jáque lorotas infan-tis podem ocul-tar verdades sub-jetivas. “É precisoficar atento às i n g u l a r i d a d e .Dizer que umamentira representa talcoisa e que o mesmotipo de mentira teriao mesmo significadopara todas as pessoasé perigoso. Em muitoscasos, mentir é uma ten-tativa de viver o que se que-ria viver e não o que sevive de fato”, atesta.

A mentira infantilpode ser um exercício deautonomia, de poder, um pedido de ajuda ou deatenção, mas também pode ser um sintoma.

Embora em determinado mo-mento represente a expressão deuma fantasia, em outro, a men-tira pode ser patológica. De acor-do com o artigo “Duas mentirascontadas por crianças”, deSigmund Freud, há dois pontosrelevantes acerca da mentira nainfância. Em primeiro lugar,quando as crianças mentem,estão imitando as mentiras ditas

por adultos; em seguida, Freud afirma que as men-tiras infantis ocorrem sob a influência de sentimen-tos amorosos intensos e por isso deveriam motivarinteresse especial por parte dos adultos respon-sáveis por essas crianças, o que geralmente nãoacontece.

Mentir é feio?Contos de fadas como As aventuras de Pinóquio

funcionam como exemplos éticos, pro c u r a n d opassar valores e retratar a vida real e suas vicissi-tudes através do re g i s t ro imaginário que pro v o c a

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Existem dois tipos de mentira:

as de pernas curtas, que nunca alcançam

seus objetivos, e a de nariz comprido, que denuncia a farsa

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nas crianças. As mentiras do menino de madeiraapontam para uma falha de caráter metaforizadapelo crescimento do nariz, que indica o seguintevalor moral: não adianta mentir e achar que nãoserá descoberto, pois a verdade sempre aparecerá.Na fábula original, a Fada Azul ensina a Pinóquioque existem dois tipos de mentira: as de pernas cur-tas, que nunca alcançam seus objetivos, e a denariz comprido, que denuncia a farsa.

A história diz aos pequenos que há um preço a serpago por transgredir a ética que, por sua vez, estáimplícita na v e rdade; a mentira será sempredescoberta, porque esconde a real identidade decada sujeito. “Quando ouvem um conto de fadas,as crianças projetam inconscientemente uma partedelas nos personagens, usando-os como elemento

balizador entre o seu eu e a realidade. Pinóquioensina às crianças um pouco sobre a cultura emque vivemos – na qual mentir é feio – e tambémsobre o interior dos homens e os conflitos nele ge-rados. Desta forma, a criança poderia atingir umacompreensão do que se passa no seu inconsciente eorganizar suas fantasias frente à realidade”, defineIane Kestelman.

As mentiras contadas por Pinóquio não devemser pensadas somente como um ato errôneo, per-verso ou impetuoso do personagem. Pensar namentira apenas como um erro seria fazer umaleitura muito simplista das aflições e angústias doherói, pois Collodi não se detém à mentira, mas ainscreve no contexto mais amplo dos hábitos emque baseamos nossos valores sociais e afetivos.

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Disney decidiu que o bonecodeveria ser inocente comoum bebê, ao passo que oGrilo se encarregaria de

dizer a ele o que fazer e oque não fazer