1
AS VOLTAS DO MUNDO E DO AMOR No livro Perto do Coração Selvagem, romance de estréia da escritora Clarice Lispector, a personagem Joana, em um determinado momento, sente-se confusa por estar sofrendo por algo que, um dia, a tornou terrivelmente feliz. Acontece muito. A dor e o prazer alternarem-se em volta do mesmo motivo. Passam-se anos, ou meses, ou horas, e aquilo que nos deu tamanha vontade de viver torna-se a razão de tanta angústia e lágrima. E o mais exaustivo é que este é um fenômeno incompreensível. Sendo de impossível entendimento, nada pode-se esclarecer aqui, a não ser dizer que, na maioria das vezes, é o amor que provoca tal contradição. O tempo passa e o amor sofre mutações: de ansioso passa a ser calmo, de constante passa a ser inconstante, de onipotente passa a ser falível. Nós, por outro lado, também mudamos. De carentes a auto-suficientes, de infantis a maduros, de ternos a ríspidos. Somos igualmente poderosos e igualmente fracos. E a metamorfose do ser humano, como a metamorfose do amor, gera pânico: que amor é esse que um dia me faz explodir de alegria e que no outro dia me implode? Que ser é esse que sou, que um dia aceita as contingências de um sentimento mutante e que no outro dia o quer estático, igual como sempre foi? Há exemplos mais simples. Ele te amou e isso te fez feliz. Ele deixou de te amar e isso te tornou infeliz. Felicidade e dor em alternados momentos e pelo mesmo motivo. Ela era passiva e caseira, e isso deixou você apaixonado. Ela manteve- se passiva e caseira, e você passou a sonhá-la agitada e independente, e de repente não a quis mais. Ela não mudou, mas você mudou, e o amor acompanhou a mudança. Não há como parar o tempo, cristalizar o que nos enche de êxtase. Este êxtase um dia se tranformará em algo que nos perfurará feito lâmina. Porque assim é: a terra gira em torno do sol e nós giramos em torno de nós mesmos, sem descanso.

As Voltas Do Mundo e Do Amor Clarice

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Livro Perto do Coração Selvagem

Citation preview

AS VOLTAS DO MUNDO E DO AMOR

No livro Perto do Corao Selvagem, romance de estria da escritora Clarice Lispector, a personagem Joana, em um determinado momento, sente-se confusa por estar sofrendo por algo que, um dia, a tornou terrivelmente feliz.

Acontece muito. A dor e o prazer alternarem-se em volta do mesmo motivo. Passam-se anos, ou meses, ou horas, e aquilo que nos deu tamanha vontade de viver torna-se a razo de tanta angstia e lgrima. E o mais exaustivo que este um fenmeno incompreensvel.

Sendo de impossvel entendimento, nada pode-se esclarecer aqui, a no ser dizer que, na maioria das vezes, o amor que provoca tal contradio. O tempo passa e o amor sofre mutaes: de ansioso passa a ser calmo, de constante passa a ser inconstante, de onipotente passa a ser falvel.

Ns, por outro lado, tambm mudamos. De carentes a auto-suficientes, de infantis a maduros, de ternos a rspidos. Somos igualmente poderosos e igualmente fracos. E a metamorfose do ser humano, como a metamorfose do amor, gera pnico: que amor esse que um dia me faz explodir de alegria e que no outro dia me implode? Que ser esse que sou, que um dia aceita as contingncias de um sentimento mutante e que no outro dia o quer esttico, igual como sempre foi?

H exemplos mais simples. Ele te amou e isso te fez feliz. Ele deixou de te amar e isso te tornou infeliz. Felicidade e dor em alternados momentos e pelo mesmo motivo.

Ela era passiva e caseira, e isso deixou voc apaixonado. Ela manteve-se passiva e caseira, e voc passou a sonh-la agitada e independente, e de repente no a quis mais. Ela no mudou, mas voc mudou, e o amor acompanhou a mudana.

No h como parar o tempo, cristalizar o que nos enche de xtase. Este xtase um dia se tranformar em algo que nos perfurar feito lmina. Porque assim : a terra gira em torno do sol e ns giramos em torno de ns mesmos, sem descanso.