Aspectos Donegativo Green Andre

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    1Aspectos do negativo:

    semntica, lingustica, psique

    Os defensores do negativo em psicanlise formam uma famlia cujosmembros no esto unidos por um lao orgnico. Eles convergem em certamaneira de pensar comum a todos. Existe entre eles, de fato, algo como umafamiliaridade que os faz reconhecerem-se de imediato, no em relao a umaposio doutrinal definida, mas por uma disposio de esprito que os identi-fica em sua maneira de encarar os problemas ou de buscar a via mais interes-sante para responder a eles. ainda por meio da resistncia que opem a umaoutra categoria de contraditores que se pode delimitar melhor o conjunto querepresentam, pois no significaria nada dizer que eles partilham pontos de

    vista comuns sobre as respostas a dar para certas questes.No fcil fazer com que os prprios psicanalistas compreendam a que

    corresponde a categoria do negativo em psicanlise, embora sejam seus tes-temunhos privilegiados. Quando se serve de conceitos em uso para ilustraro que estes comportam de referncias a uma negatividade patente ou alu-siva, corre-se o srio risco de redobrar a parte de abstrao inerente a todoconceito e de contribuir, assim, para tornar mais obscuro o que se desejavaesclarecer ao teoriz-lo. Talvez a dificuldade maior esteja ligada ao fato dea psicanlise, diferentemente da filosofia, no situar-se apenas no plano dasideias que incontestavelmente tm sua coerncia e sua consistncia prprias

    e, portanto, podem ser consideradas nelas mesmas, limitando-se a respeitaro rigor intelectual. A abordagem psicanaltica se refere sempre a uma expe-rincia que se d primeiramente do ngulo de sua positividade e das impo-sies desta. J o pensamento do filsofo no conhece outra fonte a no serseu debate com ele mesmo e com o mundo, e a obra resultante a prova dasuperao por parcial e provisria que seja das dificuldades encontradas.

    A soluo foi facilitada, sem dvida nenhuma, pela reunio sob um comandonico das identidades daquele que pergunta e daquele que responde. Plato, aqui, mais do que um modelo, um paradigma. O psicanalista, ao contrrio,fala da opacidade jamais supervel e tampouco redutvel que lhe apresenta

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    o psiquismo de um outro. Sem dvida, o que ele escreve testemunha, comono caso anterior, que essas questes acabaram por produzir rudimentos deresposta. Em qualquer situao, a problemtica sempre deixar que subsistaum fundo de interrogao, no negativada e talvez no negativvel, porquea alavanca necessria para sua inverso negativa ainda no foi efetivamenteencontrada. Utilizo aqui a referncia ao negativo para designar aquilo que, nateoria, visa comumente o sentido latente, em oposio ao sentido manifesto,que identifico com a positividade esta ltima contendo, em todos os sen-tidos do termo, a negatividade. No se trata unicamente de invocar a prxiscontra a teoria. A confrontao intersubjetiva exige maior rigor no recurso negatividade, porque pe em questo um outro sujeito, no apenas comointerlocutor ou destinatrio, mas como parte constitutiva da experincia em

    que preciso inclu-lo sem ter o controle sobre ele. uma negatividade defato, como subjetividade refletida que deve, assim, encontrar o lugar de har-monia, no apenas com ela mesma, mas com a subjetividade teorizante queimplica a existncia do outro. Intersubjetividade, se preferirem, mas que devecontar com o outro como verdadeiramente outro, e no apenas na forma deum para-outro. Essa negatividade no , portanto, simples inverso, mas in-

    verso que deve encontrar certa forma de inteligibilidade e de reconhecimen-to em face daquela que opera nos processos do sujeito teorizante. O quesignifica que ela se situa contra (nos dois sentidos de prximo e de adverso)o outro, criando a possibilidade de uma viso que engloba as duas subjetivi-dades em uma complementaridade que permite conceber sua reunio comoum nico objeto (simblico); mantendo, ao mesmo tempo, a diferena quepermite distingui-las e lig-las a um ou a outro polo aquele que lhe couber.Ora, sabemos que contradio com o outro responde a contradio consigomesmo. Em suma, um incontornvel sujeito em face de dois contra, e quedeve dizer por que ele .

    mais difcil, ento, fazer entender o que o negativo quando no sesitua em um plano puramente especulativo. Contudo, a psicanlise tem aparticularidade de ser o tipo de prtica que torna visvel o negativo mais do

    que em qualquer outro campo. Alm disso, a implantao de um tal conceitorefora a coerncia psicanaltica, apoiando-a na prtica, aumentando o poderexplicativo de sua teoria e dando, ao pensamento psicanaltico, a possibilida-de de tirar da experincia uma fonte de especulao animada e de enriquecera conceitualizao pela densidade que lhe confere sua encarnao na troca

    viva. provvel que a dificuldade que se tem de se fazer entender decorrade uma confuso quanto significao conceitual que o termo evoca, mastambm da polissemia a que seu uso emprico remete. Ora, essa polissemiano uma simples justaposio de sentido, como pode acontecer. H, entre asdiversas significaes consagradas pelo uso, uma espcie de lgica implcita,

    como se aquelas, cuja necessidade se revelou, obedecessem a um jogo regra-do de relaes, formando um conjunto articulado.

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    Polissemia do negativo

    Oprimeirosentidosedefinecomoopositivo,isto,comooposioativa a um positivo, num antagonismo em que cada termo inferidoluta ou para resistir ao outro, para suplant-lo ou, mesmo, para faz--lo desaparecer. Poderia ser caracterizado como sentidopolmico, oque amplia muito o alcance do termo. O que significado aqui adimenso da recusa do negativo. Uma tal recusa implica sempre, aomeu ver, mais ou menos a longo prazo, no somente a resistncia auma outra entidade, mas sua destruio; paradoxalmente, esta podeassumir a forma de uma autodestruio. Pois se sabe que, na falta depoder impor sua dominao a um outro, h sempre a possibilidade

    de se subtrair sua, destruindo-se a si mesmo. Positivo e negativoso ambos, nesse caso, positivos de valor contrrio, lutando por umapreeminncia virtual.

    Osegundosentidosedefinesegundoumarelaodesimetria, ideal-mente desprovido de qualquer contexto de luta, simples contrrio deum positivo de valor equivalente, mas inverso. Positivo e negativo soambos intercambiveis, porque o ponto a partir do qual so definidosno escolhe nem um nem outro, mas arbitra sua relao. Eles podem,por conveno, ser invertidos. Isso implica um neutro referencial emtorno do qual se definem as grandezas positivas e negativas, permu-tveis conforme a ocasio.

    O terceirosentido mais difcildeconceber refere-se aoestadode uma coisa que, contrariamente s aparncias, continua existindomesmo quando no mais perceptvel pelos sentidos, no somenteno mundo exterior, mas tambm no mundo interior (da conscincia).Remete noo de ausncia, de latncia. Positivo e negativo so, aqui,relaes de existncia diferentes, cujo valor depende das circunstn-cias.

    A referncia ao real ou ao imaginrio favorece um ou outro, segundo oscontextos. Essa viso, sincrnica, se alia a uma outra, diacrnica. Visto quea mente no pode incluir tudo o que se passa no fluxo dos acontecimentos,retm apenas uma parte, pertencente ao presente que o ocupa. Assim, o queno est mais presente na mente, que existe no estado de virtualidade (e queuma evocao poderia tornar presente), ou seja, o que est ausente, pode serchamado de negativo (em referncia presena). Mas, como a mente no uma simples sucesso de figuras, essa passagem latncia, ao estado do queparece com o que no , deve ser aproximada do movimento que explora asdiferentes figuraes, invertendo os dados, a perspectiva, as hipteses, os ob-

    jetivos. J se foi muito mais longe ao mostrar que a sucesso de figuras, o pr-prio movimento da conscincia procede de tal modo que se pode considerar o

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    tempo sucessivo colocao de um enunciado at onde ele no obedea redundncia como uma negao dele; depois, a afirmao como negao danegao, segundo a polarizao na conscincia ou em seus objetos (Hegel).

    Assim, no seria por uma deciso intencional de inverso, mas pelo simplesprocesso de progresso da conscincia, que se formariam espontaneamenteas figuras de sua prpria inverso, e a estrutura da conscincia estando presaentre ela mesma e seus objetos. Afinal, ela no o que ela no (Sarte),na medida em que sua atividade no pura constatao, mas que ela podeimaginar, ou simplesmente evocar, o que no est l, ou mesmo se aplicar sua prpria designao?

    Este ltimo aspecto, que teoricamente pode se limitar a uma extensodo segundo sentido, em uma perspectiva neutra (a ausncia como comple-

    mento simtrico da presena), na verdade combina com frequncia os aspec-tos do primeiro e do segundo sentido, pois o que a latncia remete tambm,desde Freud, ao estado daquilo que no deve se tornar presente e do que deveinclusive ter sido esquecido, isto , privado de toda fora de representao, emesmo apagado, como se nunca tivesse existido. esse terceiro sentido quea psicanlise encontra, pois se interessa pelas representaes inconscientes(aquelas que no esto mais na conscincia, assim como aquelas que no de-

    vem atravessar a barreira da conscincia e que supostamente nem existem).

    Oquartoeltimosentidoodonada. Alguma coisa no se opeaqui a um adverso contrrio, simtrico, inverso ou dissimulado, masa um nada. Porm, esse negativo no apenas negativo, pois remeteao tendo sido o que no mais, a menos que se acredite que ele serefira a um no tendo jamais chegado existncia.

    Diferena entre o que est morto e o que no nasceu. Aporia daquiloque, se enunciando como nada, faz existir esse nada, de outro modo in-concebvel.

    No fundo, o sentido da negatividade em psicanlise poderia ser mos-

    trado partindo do postulado de uma atividade psquica que no a da consci-ncia, mas agindo em dupla com ela. S que, diferentemente da idealidadeneutra da simetria, a psicanlise supe uma polmica entre os dois estados,pois, dado que um consciente e o outro no, ela os coloca em uma relaode fora. Isso remete ao primeiro sentido, a saber, que o inconsciente se en-contra periodicamente reativado e busca penetrar por efrao na conscincia,que o contrainveste, criando ento perturbaes mais ou menos pronuncia-das no seio desta, evocando um conflito, uma guerra civil latente; ainda maisporque a relao de foras desproporcional e o desequilbrio joga a favor doinconsciente. Porm, essa disparidade no percebida facilmente, devido ao

    inconsciente do inconsciente, o que nos leva ao terceiro sentido do negativo aquele que se refere ao estatuto de ausncia e de latncia. J no estamos

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    muito longe do quarto sentido: a desmentida e a resistncia que querem con-vencer o sujeito de que nada jamais saiu do nada, como que para conjuraros poderes de um negativo que no deveria ter plenos direitos. Compreende--se, ento, que, se a anlise reflexiva pode encontrar, entre esses diferentessentidos, contradies que ela s pode suprimir muito parcialmente e queso retomadas no nvel filosfico no questionamento que lhe prprio , aaplicao do negativo aos fundamentos da teoria psicanaltica relativiza essascontradies, faz com que paream secundrias e inclusive as torna caducas,propondo um conceito que as ultrapassa. Seria ir longe demais afirmar queo conceito de inconsciente , talvez, a cepa a partir da qual os diferentessentidos aplicveis ao consciente vo se diferenciar? Se isso fosse verdade,seria o caso de se pensar que a origem dessas bifurcaes de sentido s seria

    encontrada aprs coup.Extramos essa polissemia da reflexo resultante da experincia. Mas,se h um outro procedimento, ainda mais justificado, no seria aquele queditou a Freud o artigo sobreA negativa, que est na base de toda elaboraopsicanaltica sobre a questo? Quero falar da abordagem propriamente lin-gustica.

    aPanhado lingustico

    A proposta de Lacan, de traduzir Verwerfung por forcluso, tinha en-contrado inspirao em Damourette e Pichon. Aps a introduo dessa noo,Freud escreveu sobre a Verneinung, a negao, que tambm fora objeto detrabalhos de Damourette e Pichon. Estes, ao estudar a negao em francs,mostraram a riqueza particular de suas formas. Em geral, ela se exprime pordois termos: ne, de um lado; e os advrbios pas, rien, jamais, de outro.O ne pode ser utilizado de duas maneiras: acompanhado de que para de-signar ou a exceo (cela ne concerne que moi = personne sauf moi [isso nodiz respeito seno a mim]) ou a discordncia (il est moins pauvre quil ne le

    parat [ele menos pobre do que parece]). Essa discordncia responderia,segundo nossos gramticos, a uma funo mental autntica. Quanto aos ad-vrbios caractersticos da negao rien,pas,jamais , eles designam um de-sejo de no mais considerar os fatos aos quais se aplicam como pertencentes realidade. Trata-se, portanto, de uma aniquilio, que Damourette e Pichonchamaram de forcluso, tomando emprestado esse termo do vocabulriodo direito. A forcluso a perda de um direito por ausncia de exerccio nosprazos prescritos. O termo designa, de fato, a excluso. Quando Lacan suge-riu essa traduo, se omitiu de registrar sua dvida com Damourette e Pichon.Freud queria mostrar, no Homem dos Lobos, uma forma da desmentida, da

    negao que no aceita em nenhum caso considerar a hiptese do que vem mente ou sugerido por um interlocutor (a castrao, por exemplo). A

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    representao a que se referiu no encontra nenhum lugar para ser retida noespao psquico (e, portanto, ao contrrio do recalque, no pode ser atradapelo recalcado preexistente, aliar-se a outras representaes, etc., em suma,no pode entrar em um sistema de simbolizao); ela literalmente expulsada psique, incluindo o inconsciente.

    A inclinao filosfica da psicanlise perceptvel sobretudo na obra deLacan, que, como se sabe, foi discpulo de Kojve, ou seja, estava habituadoao manejo conceitual do negativo. Mas a caracterstica da lngua francesa seprestava bem a essa inclinao, pois as frases exprimiam a negao e erammais ricas que em outras lnguas. E, sem dvida, no absolutamente casualque Freud, em seu artigo sobre o fetichismo, discuta a tese da escotomizao,que se deve a um outro francs, Laforgue.1

    Isso no meramente episdico. O negativo parece impregnar o pensa-mento filosfico francs, para alm mesmo de seu hegelianismo confesso ouoculto. O negativo aparece como uma pr-condio para o acesso ao conceitode sujeito. De fato, o pensamento do negativo, embora presente, nem sempre explcito como tal, como em outros autores. difcil conceber como umaconceitualizao da representao poderia evitar essa teorizao.

    Voltemos linguagem, pois, no fim das contas, a partir da negao (ouda denegao) que Freud aborda explicitamente a categoria do negativo. A li-teratura lingustica que trata da negao abundante demais e especializadademais para que o psicanalista consiga tomar conhecimento de seu conte-do e assimil-lo. Mencionaremos um nico autor, Antoine Culioli.2 Longe depoder dominar todos os dados e as implicaes de seu pensamento, vamos,no entanto, expor algumas de suas ideias que nos parecem convergir com apsicanlise, pelo menos em certos pontos de tangncia das duas disciplinas.

    O interesse da posio de Culioli sua tentativa de reconstruo de ope-raes constitutivas das representaes que operam nas atividades significan-tes dos sujeitos. Culioli adverte que no existe lngua natural onde se possaobservar um operador negativo puro e, portanto, no h um marcador nicode uma operao de negao. A anlise de Culioli chega a duas concluses.

    Existe uma operao primitiva de negao. Ela se estende das condutassignificantes, verbalizadas ou no, em dois registros: o do mau, inadequado,desfavorvel, que deve ser rejeitado, e o do que comporta um vazio, um hiato,uma ausncia. No h como no se surpreender ao encontrar aqui as catego-rias evocadas por Freud em seu artigo sobre A negativa: julgamento de atri-buio (que ope o bom e o mau); julgamento de existncia (que distingueentre o que e o que no ). Atribuio e existncia podendo ser encontradasna distino cardeal proposta por Freud entre os dois grandes princpios deprazer-desprazer e de realidade. Culioli nomeia os dois registros que definiucomo da valorao subjetiva e da localizao espao-temporal (representao

    do existente e do descontnuo). Essa terminologia mostra bem os referentesde Culioli: a oposio bom-mau est ligada a um sistema subjetivo de va-

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    lor (o que eu aprecio muito e o que eu detesto), enquanto o da localizaoespao-temporal remete a um sistema objetivo de determinao, o que implicando a definio por coordenadas: Onde ? Quando ?. Em outraspalavras, como posso situ-lo, para encontr-lo ou reencontr-lo e com queinstrumentos do pensamento. Culioli infere que essa negao primitiva sedesenvolve e d origem s negaes construdas. a segunda concluso. Elas se constitui graas a operaes (percurso, corte, diferenciao, inverso dogradiente, sada do validvel). nesse ponto que a exposio de Culioli ficadifcil de entender pelo no especialista, embora seja possvel seguir intuiti-

    vamente seu raciocnio. Pois seu procedimento se sustenta permanentementena referncia representao, ainda que categorial e nocional. A delicadaquesto da positivao do negativo (como precondio a qualquer tratamen-

    to deste) claramente definida como o carter privilegiado de uma lxis queno nem positiva nem negativa, mas compatvel com o positivo ou com onegativo3. Identificao e alteridade so as duas posies fundamentais. Aidentificao , aqui, alteridade levada em conta e, depois, eliminada; a dife-renciao a alteridade mantida. Assim, a alteridade de base.4

    No h negao sem construo prvia do domnio emocional, assimcomo no se pode conceb-la fora de um conjunto de relaes. No podemosentrar no detalhe dos mecanismos inferidos por Culioli (centrao organiza-dora ou atrativa, etc.), mas devemos assinalar a importncia, para esse autor,de um conceito hierrquico e dinmico (estado estvel, estado em relaocom um estado diferente). Recordemos suas observaes.

    Em outras palavras, no h marcador isolado, no h marcador sem otrao memorizado de sua gnese, no h marcador (ou agenciamentode marcadores) que no resulte do ajustamento de duas representaescomplementares, pertencentes ao mesmo domnio de uma categorianocional; todo objeto (meta)lingustico esconde uma alteridade cons-titutiva. esse trabalho enunciativo de demarcao (subjetiva e inter-subjetiva; espao-temporal; quantitativa e qualitativa) que, compondoo ajustamento complexo de representaes e de enunciadores, suprime,pe em relevo ou mascara essa alteridade.5

    Pode-se medir aqui o progresso realizado desde as observaes de Da-mourette e Pichon at a proximidade do pensamento de Culioli daquilo quepermite a abordagem psicanaltica: abordagem associativa contextual, traohistrico do processo da linguagem, necessidade de um procedimento fun-dado na dupla complementar (o par contrastado), relao de identidade oude diferena entre os termos, referncia alteridade.

    A negao permite a representao dos possveis, conclui Culioli. No

    se tem a um dado fundamental da definio do psquico? O fato de o autorenraiz-lo na abstrao e na forma, longe de suscitar nossa reserva, nos per-

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    mite levar o dilogo mais longe. Pois no h como no concordar com um lin-guista quando ele chega a essa concluso. E o que seria a linguagem sem oscircunlquios e os jogos que s a negao permite atravs de entrelaamentosde marcadores e de operaes?6 Voc pensar agora que vou dizer algumacoisa de ofensivo, mas eu no tinha realmente essa inteno, dizia o pacientede Freud na abertura de seu trabalho.

    RPido exame Psicanaltico: vaRiedades do negativo

    A lingustica da enunciao privilegia o papel da alteridade na lingua-gem, aps muitas teorizaes que minimizavam sua importncia. E, sem d-

    vida, no h porque se surpreender com as posies de Culioli, que est lon-ge de desconhecer a psicanlise. Sua preocupao em marcar fortemente aabordagem formal em lingustica no nos impede de concordar quando eleassinala que a finalidade dos textos produzidos que suas formas devemser identificadas por um coenunciador, ou que seu reconhecimento implicaque elas sejam interpretveis. A aceitabilidade que regula, ento, as formastrocadas. Reconhecimento, aceitabilidade, interpretabilidade que remetem auma atividade de representao e de regulao. So todos intercessores parapermitir o dilogo, ainda que isso acarrete uma enorme atividade de traduo entre linguista e psicanalista. Pois a srie de mecanismos descobertos por

    Freud recalque, forcluso (ou rejeio), negao (ou denegao), desmen-tida (ou recusa), cuja contextualizao impe a denominao de conjuntode trabalho do negativo repousa em modalidades diversas, lingusticas eno lingusticas, de aceitabilidade, s que esta no se refere a formas defi-nidas, mas a categorias de representao (e preocupaes de regulao) dopsiquismo. Pode-se datar o ato de nascimento da psicanlise no momento emque Freud reconhece a importncia do recalque aps o Projeto para uma

    psicologia cientfica, no qual havia subestimado seu papel. preciso assina-lar que, mais tarde, ele se sentiria obrigado a descrever variedades dele, em

    uma ordem que no indiferente: primeiramente, as estruturas psicticaslhe revelam espcies radicais; depois, vem a palavra do analisando em sesso(o pndulo oscila do mais patolgico ao mais normal) e, por ltimo, o casosingular da perverso fetichista onde coexistem afirmao e negao. Essasdiversas formas obrigam a levar em considerao fenmenos que se situamdistante da linguagem: do lado da representao inconsciente, das moespulsionais, da percepo, etc. Da a ideia de incluir a negao dentro de umconjunto mais amplo: o trabalho do negativo que tento definir melhor.

    O que se tornam as palavras de nossos livros quando no os lemosmais?, perguntava-se um analisando. A frase, potica, lhe era menos pessoal

    do que ele acreditava, pois um de seus irmos, em anlise, me apresentavauma questo muito parecida, indagando-se ou me indagando sobre o que

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    se tornavam suas palavras quando ele no estava mais em sesso. Questo devida ou de morte, e no apenas de presena e de ausncia.

    Freud examinou a mesma questo quando se preocupou em saber ondeforam parar os pensamentos que ainda h pouco estavam na conscincia eque tinham deixado de estar no instante seguinte. A resposta no incons-ciente, satisfez por muito tempo sua curiosidade e a nossa. O que no eramais, em sentido estrito, no deixava de ser, apenas mudava de forma, poissubsistia no estado inconsciente. Tudo permanecia nesse estado. At que aprtica analtica abriu o entendimento a essas formas de no existncia quepermitiam ao inconsciente retornar conscincia pelo menos parcialmentee de uma forma modificada por intermdio do pr-consciente. At o fim da

    vida, a metfora arqueolgica de Freud jamais perdeu seu valor. Contudo,

    depois de Freud na verdade, isso havia comeado enquanto ele ainda vivia,com Melanie Klein os analistas iriam experimentar formas de pensamentoque os colocavam em presena de estruturas mais radicalmente negativas ouaniquiladoras do que, digamos, a representao inconsciente. Foi a descober-ta, ao lado da Verdrngung (o recalque), da Verwerfung revelada por Freuda propsito da psicose que permaneceu sem equivalente em francs at queLacan props traduzi-la por forcluso. Laplanche, muitos anos depois, pen-deu em favor de rejeio, que se prestava menos a confundir. A forclusose aplicava, na obra de Freud, a dois casos bem distintos. Por um lado, elapodia ser postulada no mecanismo da projeo psictica, o caso Schreber;por outro lado, era encontrada no Homem dos Lobos (foi inclusive a prop-sito dele que o termo foi utilizado), cuja estrutura psictica no foi sequerimaginada por Freud, embora tenha aparecido nitidamente para numerososanalistas depois dele. Encontrava-se ento em presena de um fenmeno deespectro clnico muito aberto, que se estendia de estruturas psicticas mais oumenos latentes (casos-limite) s formas mais graves de psicoses manifestas(paranoia ou psicoses paranoides). Em relao ao recalque das psiconeuro-ses de transferncia, a forcluso testemunhava um funcionamento defensivomuito mais mutilante. No fundo, o percurso recalque-forcluso encontrava

    a intuio primeira que Freud formulara em 1896 sobre as psiconeuroses dedefesa, e onde a paranoia figurava em um quadro comum com a histeria e aneurose obsessiva. Apenas com a diferena de que esse quadro agora estavapartido, pois as entidades que o compunham se cindiam em psiconeuroses detransferncia (histeria e neurose obsessiva) e neuroses narcsicas (paranoia)que Freud, por sua vez, cindiria em neuroses narcsicas propriamente ditas(melancolia) e psicoses (paranoia e esquizofrenia). Outras surpresas aguar-davam Freud, quando ele foi forado a reconhecer aquilo que chamou declivagem. J no se tratava apenas de um campo que se pudesse definir, emprimeira aproximao, em termos de intensidade, de profundidade, de exten-

    so, etc. em relao ao recalque. Na forcluso, era possvel estabelecer umacorrespondncia entre essa defesa singular e o grau de distanciamento do

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    psiquismo normal, de que a psicose testemunho. Pois aqui ele teve de fazeruma constatao mais estranha: a forma da negao identificada na clivagemaparecia no interior de um psiquismo que, parte o sintoma, era consideradocomo inteiramente normal, sobretudo do ngulo da razo. Contudo, a anlisepodia evidenciar, nessa categoria de pacientes, a coexistncia de um reconhe-cimento de percepes da realidade e de informaes que dela emanam eda desmentida destas, fazendo com que se avizinhem, sem se importunaremmutuamente, o sim e o no: sim, eu sei que as mulheres no tm pnis. No,no posso acreditar no que vi (e que me ameaa), e ento elejo um substitutocontingente que tomarei como equivalente do que minha percepo me infor-mou que faltava. Assim, a panplia enriquecia e o funcionamento psquico secomplicava. Mas, seja como for, reconhecia-se implicitamente a existncia de

    uma ligao entre todas essas entidades nosogrficas, a das formas de defesaque permitiam diferenci-las. A posteridade de Freud teve de suceder essalinha de pensamento, embora nem sempre os psicanalistas tenham reconhe-cido essa continuidade.

    concluso

    No final de seu artigo sobreA negativa, Freud, sem contemplar muitasquestes sobre essa transio e Deus sabe que ela as suscita , liga o julga-mento (de atribuio) s operaes correspondentes oposio de dois gru-pos de pulses. Essa relao atribui negao simblica o papel necessrio aoestabelecimento do julgamento, ao dotar o pensamento de uma primeira me-dida de libertao das consequncias do recalque e, com isso, da compulsodo princpio de prazer. Essa passagem mereceria, sem dvida, um comentrioaprofundado, pois contm toda a problemtica do trabalho do negativo.

    Freud nos prope distinguir:

    a) a negao, como operao de linguagem;

    b) o recalque, como suporte do trabalho a que deve se referir a negao;c) o desprazer, que implica a utilizao do recalque. Sobre esse ponto,Freud parece evocar a existncia de uma negao que no seria nemda ordem da linguagem nem do recalque, pois precisamente para selivrar das consequncias deste que essa negao utilizada. Em suma, a natureza simblica da negao que destacada, e ela no parecese confundir, para Freud, com sua expresso lingustica. Contudo, suanatureza permanece indeterminada;

    d) um dos dois grupos de pulses contrrias de Eros (pulses de destrui-o). No podemos escapar observao que nos obriga a constatar

    aqui o efeito conservador, mais do que destrutivo, de um fator cuja

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    interveno pe fim s consequncias do recalque e compulso doprincpio do prazer.

    Tudo isso nos obriga a rever nossa definio do trabalho do negativo.Clinicamente, levar em considerao diferenciaes relativas s defesas que aexperincia tornou necessrias foi suficiente para justificar a hiptese de umtrabalho do negativo pelo simples agrupamento dessas variedades defensivas,amplamente justificado pela semelhana de seus mecanismos. Teoricamente,a questo mais complicada. Ela nos obriga a levar em considerao o traba-lho do negativo sob ngulos diferentes: o primeiro aquele em que o estudose apoia em formas que permitem uma anlise dele difcil, sem dvida, eaberta controvrsia mas claramente o pertencimento da negao lin-

    guagem. Este pode ser ligado anlise filosfica que se situa na continuidadedesta ltima: da linguagem ao pensamento consciente. O segundo constituium crculo que engloba o anterior, pois a negao lingustica se torna parteintegrante das defesas psquicas com as quais ela mantm relaes que jexplicitamos, mas que aproxima a forma lingustica de outras, pertencentes aum psiquismo no ligado linguagem. Passa-se, aqui, da referncia lingusticae discursiva a uma mudana de paradigma, fazendo referncia ao psiquismo,em particular inconsciente. o trabalho do negativo como reflexo resultantedo recalque e de seus brotamentos (fazendo intervir representantes psqui-cos, representaes inconscientes, afetos, percepes, etc.). A aporia aqui a inexistncia do no no inconsciente, o que coloca a questo ao mesmotempo do substrato no lingustico dessa negao e das relaes que podemse estabelecer entre aspectos verbais e aspectos no verbais. Se a negao,como pretendia Freud, no existe no inconsciente, a questo levantada aqui a das relaes da linguagem com o substituto (no negativizado) da negaono inconsciente, que ocuparia seu lugar sem que a categoria do negativo sejaconstituda e sem que, com isso, a hiptese da inexistncia do no no in-consciente signifique uma pura e simples ausncia de negatividade. Sabe-se,de resto, que Freud no parou a, e que o problema epistemolgico ressurgir

    necessariamente com a ltima teoria das pulses e a segunda tpica do apa-relho psquico.Esse segundo crculo, como se v, no encerra a discusso; ele se inclui

    em um outro, mais amplo, que englobaria a negao como smbolo que per-mite se libertar da compulso do princpio de prazer. Parece-nos que Freud serefere aqui a um mecanismo que ele se omitiu de descrever e continuar seomitindo: uma negativao (inibidora?) em relao ao prazer, intimamenteligada ao pulsional (o que indica a referncia compulso de repetio),talvez situada fora das variantes defensivas j mencionadas. Finalmente, oltimo crculo abranger a relao entre os dois grupos de pulses: Eros-

    pulso de destruio. Neste ltimo caso, a negativao estaria ligada ao fun-

  • 8/4/2019 Aspectos Donegativo Green Andre

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    cionamento intrnseco vida pulsional no antagonismo prprio oposiodas duas espcies de pulses. Ser que se chegaria a pensar, como Freud da entender, que um fator de natureza misteriosa poderia ter uma ao refrea-dora portanto negativante afetando cada um dos dois grupos? difcil

    ver a que se liga essa inibio interna. Seja como for, constatamos que Freudest longe de pensar a pulso como pura positividade que, na ausncia dequalquer interveno que limite sua influncia, poderia se exprimir comple-tamente, no pleno desenvolvimento de suas capacidades.

    evidente que o trabalho no pode ser idntico em todos os casos. Con-tudo, no podemos ignorar que, ao longo de nosso desenvolvimento, introdu-zimos formas de trabalho do negativo cada vez mais especulativas.

    Distinguiremos, ento, para concluir, trs aspectos:

    a negao nas lnguas e suas derivaes filosficas; a negao do psiquismo, tirada da prtica psicanaltica; a negao no pensamento, deduzida das formulaes axiomticas da

    teoria, e cujo valor especulativo em psicanlise decorre da obrigaoque ela assume de considerar o psiquismo em sua ancoragem com ocorporal e na longa dependncia da estrutura fsica e psquica de seusobjetos. Quanto a isso, a negao no poder evitar de se desenvolverna medida em que se considere seu funcionamento interno e a formacomo este entra em choque com o pensamento filosfico. Esse conflitoentre a psicanlise e as outras disciplinas no deveria impedir de dartoda sua dimenso originalidade de uma concepo do trabalhodo negativo voltado s potencialidades intrnsecas das pulses comomitologia dos psicanalistas.

    notas

    1. F. Baudry, por ocasio de seu comentrio como rebatedor de minha exposioapresentada New York Psychoanalytic Society, em 5 de abril de 1988, analisouos termos desse debate. Cf. Negation and its vicissitudes, Contemporary Psychoa-nalysis, 1989, 25, p. 501-508.

    2. A. Culioli, La ngation, marqueurs et oprations,Recherches Smiologiques , 1988,no 5-6, 17-38. Reproduzido em Pour une linguistique de lnonciation, Ophrys,1990.

    3. Loc. cit., p. 22.4. Ibid.5. Loc. cit., p. 27.6. Loc. cit., p. 38.