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Revista Virtual Direito Brasil – Volume 3 – nº 1 - 2009 1 Aspectos Gerais do Direito Positivo e do Direito Canônico Maria Bernadete Miranda Mestre em Direito das Relações Sociais, sub-área Direito Empresarial, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Coordenadora e Professora do Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Direito de Itu e Professora de Direito Empresarial, Direito do Consumidor e Mediação e Arbitragem da Faculdade de Administração e Ciências Contábeis de São Roque. Advogada. 1. Conceitos Básicos do Vocábulo Direito Etimologicamente a palavra Direito vem do latim directum, que também deu origem ao português "directo". Directum, por sua vez, era o particípio passado do verbo dirigere que significa "dirigir" ou "alinhar". A palavra faz referência à deusa romana da justiça, Justitia, que segurava em suas mãos uma balança com fiel. Dizia- se que havia justiça quando o fiel estava absolutamente perpendicular em relação ao solo: de rectum. Em todas as línguas ocidentais, a palavra que designa o direito tem conexão com uma dessas duas etimologias: right, em inglês, Recht, em alemão, diritto, em italiano, derecho, em espanhol e droit, em francês. O termo "direito" foi introduzido com o sentido atual já na Idade Média, aproximadamente no século IV. A palavra usada pelos romanos era ius. Quanto a esta, os filólogos não se entendem. Para alguns ius relacionar-se-ia com iussum, particípio passado do verbo iubere, que quer dizer mandar, ordenar. O radical, para eles, seria o proto-indoeuropeu, yu, que significa vínculo (tal conteúdo semântico está presente em várias palavras da língua portuguesa, como cônjuge, jugo, etc). Para outros, ius estaria ligado a iustum, aquilo que é justo, tendo seu radical no védico Yos, significando aquilo que é bom. Esta discussão entre iustum e iussum, porém, é muito mais ideológica do que verdadeiramente etimológica. A linguística histórica moderna é mais consensual quanto à origem da palavra. Várias línguas modernas usam o mesmo radical para "aquilo que é certo" ou "correcto" e para o direito. Em francês, droit; em alemão, Recht; em espanhol, derecho; em italiano, diritto; em russo, pravo. A situação em inglês é ligeiramente diferente, usando-se law, de origem germânica nórdica, quer para significar "lei", quer para "direito". No caso inglês, right,

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Aspectos Gerais do Direito Positivo e do Direito Canônico

Maria Bernadete Miranda

Mestre em Direito das Relações Sociais, sub-área Direito Empresarial, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Coordenadora e Professora do Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Direito de Itu e Professora de Direito Empresarial, Direito do Consumidor e Mediação e Arbitragem da Faculdade de Administração e Ciências Contábeis de São Roque. Advogada.

1. Conceitos Básicos do Vocábulo Direito

Etimologicamente a palavra Direito vem do latim directum, que também deu

origem ao português "directo". Directum, por sua vez, era o particípio passado do

verbo dirigere que significa "dirigir" ou "alinhar". A palavra faz referência à deusa

romana da justiça, Justitia, que segurava em suas mãos uma balança com fiel. Dizia-

se que havia justiça quando o fiel estava absolutamente perpendicular em relação ao

solo: de rectum. Em todas as línguas ocidentais, a palavra que designa o direito tem

conexão com uma dessas duas etimologias: right, em inglês, Recht, em alemão,

diritto, em italiano, derecho, em espanhol e droit, em francês.

O termo "direito" foi introduzido com o sentido atual já na Idade Média,

aproximadamente no século IV. A palavra usada pelos romanos era ius. Quanto a

esta, os filólogos não se entendem. Para alguns ius relacionar-se-ia com iussum,

particípio passado do verbo iubere, que quer dizer mandar, ordenar. O radical, para

eles, seria o proto-indoeuropeu, yu, que significa vínculo (tal conteúdo semântico

está presente em várias palavras da língua portuguesa, como cônjuge, jugo, etc).

Para outros, ius estaria ligado a iustum, aquilo que é justo, tendo seu radical no

védico Yos, significando aquilo que é bom. Esta discussão entre iustum e iussum,

porém, é muito mais ideológica do que verdadeiramente etimológica. A linguística

histórica moderna é mais consensual quanto à origem da palavra.

Várias línguas modernas usam o mesmo radical para "aquilo que é certo" ou

"correcto" e para o direito. Em francês, droit; em alemão, Recht; em espanhol,

derecho; em italiano, diritto; em russo, pravo.

A situação em inglês é ligeiramente diferente, usando-se law, de origem

germânica nórdica, quer para significar "lei", quer para "direito". No caso inglês, right,

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este sim equivalente a "correto", corresponderia a "direito subjetivo" (como em "eu

tenho direito à saúde").

O estudo da História, ao longo dos séculos, tem revelado que o homem nunca

procurou ficar completamente isolado dos seus semelhantes para viver e sobreviver.

Em outras palavras, o homem nunca adotou a solidão como forma habitual de vida,

demonstrado, com isso, que a sociabilidade é característica fundamental de nossa

espécie. De fato, se não fosse a sociabilidade, gerando a união entre os grupos

humanos, talvez nossa espécie não conseguisse superar o perigos e dificuldades da

primitiva vida selvagem.

O homem como bem observou Aristóteles, é um ser eminentemente social. E,

por viver em sociedade, a ação de um homem passou a interferir na vida de outros

homens, provocando, conseqüentemente, a reação dos seus semelhantes. Para que

essa interferência de condutas humanas tivesse um sentido construtivo e não

destrutivo, foi necessária a criação de regras capazes de preservar a paz no convívio

social. Foi assim que nasceu o Direito. Nasceu da necessidade de se estabelecer um

conjunto de regras que desse certa ordem à vida em sociedade, pois nenhuma

sociedade poderia subsistir sem um mínimo de ordem, de direção e solidariedade.

Por isso, é muito correto o antigo provérbio romano “ub societas, ibi jus” – “Onde há

sociedade, existe o Direito”. E de tal maneira o Direito está ligado à vida social que o

inverso desse provérbio romano também é verdadeiro “Onde está o Direito, aí está a

sociedade”.

Assim, podemos de um modo bem simples, conceituar o Direito da seguinte

maneira: “Direito é o conjunto de regras obrigatórias que disciplinam a conivência

social humana”.

Essas regras obrigatórias são chamadas, de normas jurídicas. A norma

jurídica é elemento fundamental para a constituição e existência do Direito, pois só

existe Direito onde existe sociedade. Dessa maneia, temos de admitir, como

conseqüência, que as normas jurídicas são, essencialmente, regras sociais. Em

outras palavras a função das normas jurídicas é disciplinar o comportamento social

dos homens. No entanto, dizer apenas isso sobre as normas jurídicas não é

suficiente para caracterizá-las, porque existem diversas outras normas que também

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disciplinam a vida social. É o caso, por exemplo, das normas morais, que se baseiam

na nossa consciência moral e das normas religiosas que se baseiam na fé revelada

por uma religião.

Tanto as normas morais como as religiosas se aplicam à vida em sociedade.

2. Definições do Vocábulo Direito

"Ius est ars boni et aequi". "O direito é a arte do bom e do justo". Em vez de

justo, também se poderia traduzir aequus por équo, mas esta palavra não possui

equivalente no português atual. Cf. equidade . Ulpiano no Digesto, 533 d.C.

"Ius civile sine scripto in sola prudentium interpretatione consistit". "O ius civile

é composto apenas pela interpretação dos jurisprudentes; não está escrito".

Pompónio no Digesto, 533 d.C.

"Afastada a justiça, o que são os reinos senão grandes bandos de ladrões? E

os bandos de ladrões o que são, senão pequenos reinos?" Santo Agostinho em A

cidade de Deus, finais do séc. IV d.C.

"Ius est realis ac personalis hominis ad hominem proiportio, quae servata

societatem servat, corruipta corrumipit". "O direito é a proporção real e pessoal de

um homem em relação a outro, que, se observada, mantém a sociedade em ordem;

se corrompida, corrompe-a". Dante Alighieri séc. XIII.

"O direito é o conjunto das condições segundo as quais o arbítrio de cada um

pode coexistir com o arbítrio dos outros, de acordo com uma lei geral de liberdade".

Immanuel Kant, filósofo alemão, séc. XVIII.

"O direito é o conjunto de normas ditadas pela razão e sugeridas pelo

appetitus societatis". Hugo Grócio, jurisconsulto holandês do séc. XVII.

"Direito é a soma das condições de existência social, no seu amplo sentido,

assegurada pelo Estado através da coação". Rudolf von Ihering, jurista alemão do

séc. XIX.

"Das normas ou regras estabelecidas por uns para outros homens, algumas

são estabelecidas por superiores políticos [...] em nações independentes ou

sociedades políticas independentes. Ao agregado de regras assim estabelecido [...] é

exclusivamente aplicável o termo direito". John Austin, 1861.

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"As profecias do que os tribunais efectivamente farão, e nada mais

pretensioso - é o que eu entendo por direito". Oliver Wendell Holmes em The path of

the law, 1897.

"Um ordenamento chama-se [...] direito quando é exteriormente garantido pela

possibilidade de coerção (física ou psíquica), através de um comportamento, dirigido

a forçar a observância ou a punir a violação, de um grupo de pessoas disso

especialmente incumbido". Max Weber, 1921.

"O Direito é vontade de justiça". G. Radbruch, 1878-1949.

"O Direito é o conjunto das normas gerais e positivas que regulam a vida

social". G. Radbruch, citado por Washington de Barros Monteiro.

“O direito é uma ordem normativa de coerção, reportada a uma norma

fundamental, a que deve corresponder uma constituição efetivamente estabelecida e,

em termos gerais, eficaz, bem como as normas que, de acordo com essa

constituição, foram efetivamente estabelecidas e são, em termos gerais, eficazes. É

também uma técnica específica de organização social". H. Kelsen. Teoria pura do

direito, 1960.

O direito é "a estrutura de um sistema social respeitante à generalização

congruente de expectativas normativas de comportamento". N. Luhmann em

Rechtssoziologie, 1987.

"O direito é o acto histórico do autónomo dever-ser do homem convivente".

António Castanheira Neves em Questão de facto - questão de direito, 1967.

"O direito é imediatamente para o jurista a totalidade das suas soluções

jurídicas positivadas". António Castanheira Neves em Curso de introdução ao estudo

do direito, 1976.

O direito é "o conjunto de processos regularizados e de princípios normativos,

considerados justiciáveis num dado grupo, que contribuem para a criação e

prevenção de litígios e para a resolução destes através de um discurso

argumentativo, de amplitude variável, apoiado ou não pela força organizada".

Boaventura Sousa Santos em O discurso e o poder. Ensaio sobre a sociologia da

retórica jurídica, 1979.

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"O direito é um sistema de normas que ergue uma pretensão de justeza,

compõe-se da totalidade das normas que pertencem a uma constituição socialmente

eficaz, em termos gerais, e não são extremamente injustas, bem como da totalidade

das normas que são estabelecidas em conformidade com esta constituição,

apresentam um mínimo de eficácia ou possibilidade de eficácia social e não são

extremamente injustas, e ao qual pertencem os princípios e os restantes argumentos

normativos em que se apoia e/ou deve apoiar o processo de aplicação do direito

para cumprir a pretensão de justeza". R. Alexy, Begriff und Geltung des Rechts,

1992.

"Direito é uma integração normativa de fatos segundo valores". Tríade Fato,

Valor e Norma. Miguel Reale em Teoria tridimensional do direito.

Segundo Kant, o "Direito é o conjunto de condições pelas quais o arbítrio de

um pode conciliar-se com o arbítrio do outro, segundo uma lei geral de liberdade."

Como se percebe, há três palavras-chave nesta asserção: conjunto de condições,

arbítrio e liberdade. Para Kant, liberdade é a posse de um arbítrio próprio

independente do de outrem, é o exercício externo desse arbítrio: arbítrio é o querer

consciente de que uma ação pode produzir algo; conjunto de condições ou

obrigações jurídicas (aqui Kant revisita Ulpiano) implica ser honesto, não causar

lesão/dano a ninguém e aderir a um Estado em que se assegure, frente a todos,

aquilo que cada um possua.

Com o suporte dessas notas fornecidas pelo próprio Kant e por Recaséns

Siches, poderíamos refazer a afirmação: "o direito implica pressupostos (honestidade

e respeito à posse de outrem, verbi gratia) que possibilitam a concretização recíproca

do querer de cada um e de todos, observando-se que o querer exercido/possuído por

cada um encontra como limite o querer de todos". Esta definição, de caráter

valorativo/axiológico, reflete a importância do elemento liberdade (posse e exercício

de arbítrio). Só há liberdade dentro de limites e estes são impostos pela idéia de

preservá-la. Jusnaturalista, Kant não menospreza o papel desempenhado pelo direito

posto, embora afirme ser este posterior ao natural, que o legitima.

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3. As Regras de Conduta Social

Na área das ciências culturais ou sociais, os cientistas podem agir de duas

formas distintas: observar os fatos sociais, isto é, os acontecimentos que ocorrem na

sociedade, e tirar suas conclusões, sem determinar regras de comportamento para

as pessoas, ou posicionar-se diante do fato social observado, determinando a

necessidade de uma conduta. Surge, então, a norma ou regra de conduta social

denominada regra ética. A regra ética determina qual o comportamento que a pessoa

deverá ter em sociedade. Assim como uma régua é um instrumento de medida no

plano físico, a rega ética é uma forma de medida no plano social, que determina

certa ordem na convivência social e permite a cada pessoa exigir do próximo certas

ações ou abstenções.

A pessoa pode cumprir ou não uma regra ética. Para garantir o seu

cumprimento, toda regra ética é dotada de uma sanção, um castigo ou penalidade, a

que fica sujeito o seu infrator.

Cada sociedade tem uma série de regras éticas, que são criadas a partir de

seus hábitos, valores, suas condições de vida e história. Entre as regras éticas

existentes, temos a religiosa, a moral, a costumeira e a jurídica.

Ao obedecer a uma regra religiosa, a pessoa acredita num valor

transcendental, isto é, em algo que está acima da criatura e da natureza, uma força

sobrenatural criadora do Universo. Cada religião tem suas regras e respectivas

punições. Portanto, o castigo pelo não-cumprimento de uma regra religiosa varia de

acordo com a religião.

Ao obedecer a uma regra moral, a pessoa se dirige à sua consciência, à sua

convicção íntima. Deve concordar com a conduta, não pode ser forçado a praticá-la.

Por exemplo, é dever moral da pessoa, dar assistência econômica aos parentes

doentes, incapacitados para o trabalho e sem recursos. A sanção para quem deixa

de cumprir uma regra mora é o remorso, que depende da convicção íntima, da

consciência da pessoa.

Ao obedecer, uma regra costumeira, como cumprimentar as pessoas,

acompanhar um enterro, vestir-se conforme a moda etc., a pessoa se dirige a

sociedade. Não é preciso que a pessoa concorde com a regra, basta cumpri-la. A

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sanção ao não-cumprimento da regra costumeira pode ser o vexame, o ridículo, a

não-aceitação pelos outros indivíduos.

Ao contrário das regras, religiosa, moral e costumeira, a regra jurídica

caracteriza-se por ser oficial e obrigatória. Em toda a sociedade há sempre uma

quantidade de condutas que poderá ser oficialmente exigida e uma quantidade que

poderá ser oficialmente proibida. São as denominadas regras ou normas jurídicas,

que tem como objetivo a realização da justiça, sendo garantida pelo poder de

coerção do Estado.

4. As Regras de Conduta do Direito Canônico

Em palavras simples digamos que Direito, em geral, é a forma de organização

de qualquer tipo de sociedade. Se não houvesse o Direito não poderíamos falar em

ordem, em organização, em respeito às pessoas, em respeito à propriedade, em

honestidade nas relações. Direito é o que salvaguarda a justiça nas relações inter-

subjetivas, ou seja, entre as pessoas. Isto se aplica também às instituições que não

deixam de ser pessoas para o Direito. O termo canônico é usado para designar algo

da Igreja. Canon, que originariamente era como uma régua, um medidor, passou a

ser usado pela Igreja para definir os seus próprios assuntos, usos e costumes;

portanto, tudo o que é canônico é da Igreja.

Nas sociedades ocidentais, Direito Canónico ou Direito Canônico é a lei da

Igreja Católica e da Igreja Anglicana. O conceito leste-ortodoxo de Direito Canónico é

semelhante, mas não idêntico ao modelo mais legislativo e judicial do ocidente. Em

ambas as tradições, um cânone é uma regra adaptada por um Concílio Ecuménico.

Do grego kanon/κανον que significa para regra, standard, ou medida; estes cânones

formavam a fundação do Direito Canónico.

Na Igreja Anglicana oficial, os tribunais eclesiásticos que anteriormente

decidiam sobre muitas matérias tais como disputas relacionadas com o matrimônio,

ainda têm jurisdição em certas matérias relacionadas com a Igreja; a sua jurisdição

data desde a Idade Média. Em contraste com os outros tribunais da Inglaterra, a lei

usada em matérias eclesiásticas é um sistema de Direito Civil e não de Direito

Comum.

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Na Igreja Católica o Direito Canônico é o conjunto das normas que regulam a

vida na comunidade eclesial. Diferentemente do Direito Romano, que disciplinava as

relações no Império Romano, já extinto; o Direito Canônico está diretamente

relacionado ao dia-a-dia de mais de um bilhão de católicos no orbe terrestre. Por

exemplo, quando se deseja discutir a validade de um casamento (nulidade de

matrimônio) realizado na Igreja, recorre-se à corte canônica ou tribunal eclesiástico.

O Direito Canônico está praticamente todo condensado no Código Canônico.

Neste diploma legal, encontra-se regras de direito material e de direito processual. O

Direito Canônico tem vários ramos: Direito Penal Canônico, Direito Administrativo

Canônico e Direito Patrimonial Canônico, dentre outros.

O atual Código Canônico foi promulgado pelo papa João Paulo II no ano de

1983, substituindo o Código anterior, datado de 1917, que fora promulgado pelo

então Papa Bento XV.

Foi a partir do século VIII que o Direito Canônico começou a ser assim

chamado. Até o Decreto de Graziano em 1140, o Direito Canônico não era uma

ciência autônoma em relação à teologia: as fontes teológicas são também fontes

canônicas. Depois do Decreto até o Concílio de Trento cada vez mais a ciência

canônica toma uma direção própria e com a promulgação do primeiro Código em

1917 quando alcança o seu auge como ciência jurídica dentro da Igreja.

A Igreja na sua essência é o novo povo de Deus constituído, por obra do

Espírito Santo, pela comunhão entre todos os batizados, hierarquicamente, unidos

entre eles segundo diversas categorias, em virtude da variedade de carismas e dos

ministérios, na mesma fé, esperança e caridade, nos sacramentos e no regime

eclesiástico (can. 204 e 205). O Direito Canônico na sua essencialidade contém esta

realidade dogmática da Igreja como povo de Deus; enquanto conjunto de normas

positivas, pois, regula a vida deste mesmo povo.

A finalidade do Código não é, de forma alguma, substituir na vida da Igreja ou

dos fiéis, a fé, a graça, os carismas ou a caridade. Pelo contrário, sua finalidade é,

antes, criar na sociedade eclesial uma ordem que, dando primazia ao amor, à graça

e aos carismas, facilite ao mesmo tempo seu desenvolvimento orgânico na vida, seja

na sociedade eclesial, seja na vida de cada um de seus membros.

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A Igreja deve procurar realizar o máximo possível a integração entre o

ordenado progresso da vida da comunidade e a plena realização da pessoa humana,

que como fiel vive na dimensão sobrenatural da fé, esperança e caridade. A função

própria do direito eclesial é fazer com que os fiéis superem o próprio individualismo e

atuem na Igreja, as suas vocações; sejam pessoais ou comunitárias.

Constituída também como corpo social e visível, a Igreja precisa de normas:

para que se torne visível sua estrutura hierárquica e orgânica; para que se organize

devidamente o exercício das funções que lhe foram divinamente confiadas,

principalmente as do poder sagrado e da administração dos sacramentos; para que

se componham, segundo a justiça inspirada na caridade, as relações mútuas entre

os fiéis, definindo-se e garantindo-se os direitos de cada um; e finalmente, para que

as iniciativas comuns empreendidas em prol de uma vida cristã mais perfeita, seja

apoiada, protegida e promovida pelas leis canônicas.

As leis canônicas, por sua natureza, devem ser observadas. Por isso, foi

empregada a máxima diligência para que na preparação do Código se conseguisse

uma precisa formulação das normas e que estas se escudassem em sólido

fundamento jurídico, canônico e teológico.

A natureza própria do Direito Eclesial, ou Canônico, que compreende não

somente o direito positivo eclesial, mas também aquele divino, seja natural que

revelado, é dado pela própria natureza da Igreja, que tem como fonte primária, o

antigo patrimônio de direito contido nos livros do Antigo Testamento e do Novo

Testamento, de onde, emana toda a tradição jurídico-legislativa da Igreja.

Segundo Mateus 5,17 “Não cuideis que vim destruir a lei ou os profetas: não

vim ab-rogar, mas cumprir”. Jesus Cristo não destruiu de modo algum, mas, antes,

deu cumprimento à riquíssima herança da Lei e dos Profetas, formada

paulatinamente pela história e experiência do Povo de Deus no Antigo Testamento.

Dessa forma, ela se incorporou de modo novo e mais elevado, à herança do Novo

Testamento.

O Direito Canônico que faz parte da realidade sacramental da Igreja, não pode

deixar de ter o mesmo fim dela: ser instrumento de salvação eterna para cada fiel. O

Direito Canônico é um grande instrumento para a salvação, que é conseguido pelo

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homem quando entra em comunhão com Deus e com os outros. Disso deriva a

funcionalidade que é realizada pela comunhão na única fé, nos sacramentos, na

caridade e no governo eclesial.

A Igreja, como Corpo Místico de Cristo, como sacramento radical de salvação,

como comunhão criada pela ação do Espírito Santo, tem o seu análogo principal no

mistério do Verbo Encarnado e não na sociedade civil.

Quando se fala em Direito Canônico se fala em leis, mas direito não é só lei,

mas também lei. Digamos que no Código de Direito Canônico estão as leis. O Direito

vai além. Trata-se de todo o trabalho em favor da administração da justiça. Colocar

as leis por escrito num Código é só uma parte, ou só o final do trabalho. Antes existe

muito estudo, muita reflexão, muitos anos de experiência. Depois de uma lei no papel

também é necessário muito trabalho para entendê-la, para fazer um processo, para

aplicá-la, para fazer um julgamento. Infelizmente muitos não conhecem os seus

deveres e nem os seus direitos. Ou porque não se estuda ou porque não se ensina.

O Código está repleto de temas interessantes para cursos, palestras e demais

modalidades de estudo como o batismo, o casamento, a confissão, a administração

de uma paróquia, os conselhos paroquiais e diocesanos e uma longa lista de

assuntos.

Por exemplo: o Direito Matrimonial é o âmbito adequado do Direito que se

dedica ao casamento. Trata desde a preparação para a celebração do matrimônio,

passando pelos impedimentos matrimoniais e as dispensas que devem ser dadas.

Trata ainda dos tribunais eclesiásticos e dos processos de declaração de nulidade.

No que tange aos milagres o Direito Canônico não fala muito, mas entende-se,

que tem competência para isso a Congregação para a Causa dos Santos, no caso

de um processo de canonização. Se a pessoa em vida, ou depois de morta, opera

um milagre por sua intercessão é competência desta Congregação Vaticana, com

seus peritos julgar. Cabe ao Direito remeter aos que verdadeiramente são

competentes em determinados assuntos.

O Código de Direito Canônico não trata de normas litúrgicas a respeito da

celebração da Missa, mas remete às instruções do Missal Romano. É ali, e não no

Código, que estão as normas para serem seguidas na correta celebração da Missa.

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Digamos que o Código Canônico quando não fala de um assunto dá uma pista para

que saibamos onde procurar a solução para nossa questão.

A atividade jurídica é inerente ao homem enquanto homem, pelo simples fato

que é um ser social; o homem redento em Cristo entra na Igreja, novo povo de Deus,

com todas as suas exigências intrínsecas à sua natureza, que, por obra da graça,

são plenamente realizadas. Por isso, que em toda sociedade humana vigora o direito

divino natural que também faz parte do Direito Canônico. A Igreja se interessa de

forma muito especial a todos os direitos e deveres humanos fundamentais do homem

e a partir desses direitos nasce o Direito Eclesial positivo.

Enfim, o objetivo do Direito Canônico é firmar a comunhão eclesial e proteger

os direitos de cada fiel.

Referências Bibliograficas ACEBAL LUJÁN, Juan Luis e outros. Codigo de canones de las iglesias orientales. Madrid: Bilingüe, BAC, 1994. AZEVEDO, Luiz Carlos e TUCCI, José Rogério Cruz e. Lições de processo civil canônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. CAMPITELLI, Adriana. Gli interventi del legislatore canonico in tema di processo, in L’educazione giuridica. t. 2, Napoli: Università di Perugia, ESI, 1994. GOMEZ, Andrea Odoardo. L’ordo iudiciarius in Ivo de Chartres, in L’educazione giuridica. t. 2, Napoli: Università di Perugia, ESI, 1994. COMOLLI, Alberto. La costituzione del rapporto processuale canônico. Milano: Giuffrè, 1970. CORECCO, Eugenio e GEROSA, Libero. Il diritto della chiesa. Milano: Jaca, 1995. DAUVILLIER, J.. Les temps apostoliques. Paris: Sirey, 1970. DELLA ROCCA, Fernando. Appunti sul processo canônico. Milano: Giuffrè, 1960. _____________ Istituzioni di diritto processuale canônico. Torino: Utet, 1946. _____________ Nuovi saggi di diritto processuale canônico. Padova: Cedam, 1988. EICHMANN, Eduard. El derecho procesal según el Código de Derecho Canônico. Barcelona: Bosch, 1931.

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Revista Virtual Direito Brasil – Volume 3 – nº 1 - 2009

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