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GERSON LACERDA PISTORI ASPECTOS HISTÓRICOS DO DIREITO E DO TRABALHO UM BREVE OLHAR JURISTRABALHISTA SOBRE A IDADE MÉDIA Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE EM DIREITO DO TRABALHO sob a orientação do Prof. Dr. Pedro Paulo Teixeira Manus PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Agosto/2006.

ASPECTOS HISTÓRICOS DO DIREITO E DO TRABALHO · O associacionismo, clandestino a princípio, tolerado numa etapa média e reconhecido pela autoridade pública afinal, foi a concretização

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GERSON LACERDA PISTORI

ASPECTOS HISTÓRICOS DO DIREITO E DO TRABALHO

UM BREVE OLHAR JURISTRABALHISTA SOBRE A IDADE MÉDIA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE EM DIREITO DO TRABALHO

sob a orientação do Prof. Dr. Pedro Paulo Teixeira Manus

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Agosto/2006.

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Toujours tisserons drap de soie, Jamais n’en serons mieux vêtues, Toujours serons pauvres et nues, Et toujours aurons faim et soif...

Nous avons du pain à grand’peine, Peu le matin et le soir moins...

Mais notre travail enrichit Celui pour qui nous travaillons.

Des nuits veillons grande partie, Veillons tout le jour pour gagner.

Chrestien de Troyes,

por volta de 11701

1 “Sempre teceremos a seda, nunca estaremos mais bem vestidas, sempre estaremos pobres e desnudas, e sempre teremos fome e sede... Nós temos pão a muito custo, de manhã pouco e menos à tarde... Mas nosso trabalho enriquece aquele para quem nós trabalhamos. Grande parte da noite velamos, e o dia inteiro, para ganhar, velamos." ( trecho de poema sobre as tecelãs, in Coornaert, 1941: p.74).

4

Dedico este trabalho à Maria Helena: continente de amor, inteligência e solidariedade

em que estão contidos minha família e eu.

5

Agradecimentos

Tenho que agradecer, em primeiro lugar, a meu orientador, o professor

doutor Pedro Paulo Teixeira Manus, por seu incentivo ao estudo do Direito do Trabalho,

dando exemplo a todos de sua dedicação.

Em seguida, devo agradecer ao professor doutor José Antônio de Camargo

Rodrigues de Souza, grande historiador brasileiro dedicado ao estudo da Idade Média, que,

com lhaneza, me possibilitou olhar com atenção vários aspectos históricos fundamentais

nesse período, além de indicar diversos textos sobre a história medieval.

Por fim, devo agradecer a ajuda de vários amigos e colegas na pessoa de

dois colegas juízes do trabalho que muito me incentivaram: Jorge Luiz Souto Maior e

Francisco Alberto da Motta Peixoto Giordani.

6

Resumo

Este trabalho busca recuperar uma fase do trabalho humano livre não

valorizada pela História do Direito do Trabalho, mas que apresenta as bases da relação

trabalhista verificada após a Revolução industrial. Enfoca um período da Idade Média

ocidental, principalmente entre os séculos XIII e XV, sob o prisma histórico, dando

destaque ao Direito e ao Trabalho, em forma de dois painéis. O primeiro painel,

panorâmico, visualiza notadamente as relações sociais, religiosas, institucionais e jurídicas;

e o segundo painel, aproximativo, observa como o trabalho livre se situava e se relacionava

naquele período. Em decorrência dos painéis destacados apresentam-se as considerações

finais com formato analítico e reflexivo, realizando um cotejo entre eles e entre o trabalho

na contemporaneidade. Na parte final, destacam-se as muitas similaridades com o atual

momento histórico, em que a descentralização do poder do Estado e as características do

trabalho horizontalizadas ensejam um estudo de relacionamentos entre essas épocas para

uma melhor compreensão do contexto que vivemos.

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Abstract

The aim of this work is to present and restore a stage of human free labor not

valorized by the History of Labor Law, although it resembles to the basis of labor relations

as it is established after the Industrial Revolution. The work shows basically three centuries

in Western Middle Ages, from the thirteenth to the fifteenth, presenting first a panoramic

view: the social, religious, institutional and juridical relations in the period concerned; and

second, a closer view: the way free labor happens at that time. Finally, it compares and

analyzes this period with the present days, in order to reveal many similarities between the

work in these times appointed, due mainly to the State power decentralization and the

horizontal relations at work.

8

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................................................... 10

A – UM OLHAR INDAGADOR. ........................................................................................................................... 12

I - Objetivos desse olhar histórico jurídico-trabalhista sobre a Idade Média ........................................... 12 1 - O porquê do tema........................................................................................................ 12

2 - O porquê do período de tempo escolhido ................................................................... 14

3- O porquê do espaço escolhido ..................................................................................... 17

B – UM OLHAR PANORÂMICO (OU A GRANDE ANGULAR) ............................................................................... 19

I – O conjunto de interesses denominado Cristandade ............................................................................... 19

II - A sociedade medieval ............................................................................................................................... 24 1- Características ............................................................................................................. 24

2- Feudalismo................................................................................................................... 28

3- As cidades e a relação feudal....................................................................................... 31

III - As instituições políticas .......................................................................................................................... 35 1 - A organização do reino ............................................................................................... 35

2- A organização da Igreja: ............................................................................................. 40

3- Os conflitos políticos entre os reinados e o papado .................................................... 43

IV – O contexto jurídico................................................................................................................................. 49 1- O direito costumeiro .................................................................................................... 49

2- O direito romano.......................................................................................................... 50

3- O direito canônico........................................................................................................ 53

4- A aplicação da justiça .................................................................................................. 55

5- O pensamento jurídico: formação e transformação .................................................... 61

V – Os estertores da Idade Média ................................................................................................................. 69

C – UM OLHAR DE APROXIMAÇÃO (ZOOM)..................................................................................................... 74

I – As organizações urbanas .......................................................................................................................... 74 1- Associações mercantis ................................................................................................. 74

2- A “indústria artesanal”: ofícios (métier) .................................................................... 77

9

II - A organização das corporações............................................................................................................... 79 1- Uma corporação especial: a universidade .................................................................. 80

2- Corporação de ofício: o ateliê ..................................................................................... 83

3- A Juranda ..................................................................................................................... 86

4- A Confraria .................................................................................................................. 86

5 - Tipos de ofícios ........................................................................................................... 88

III – Os regramentos das corporações .......................................................................................................... 90 1- Regulamentos de trabalho: .......................................................................................... 92

2- Regulamentos da produção:......................................................................................... 92

IV – O contexto das corporações de ofício.................................................................................................... 93 1- Aspectos do cotidiano corporativo: a produção .......................................................... 95

2- Aspectos das condições de trabalho ............................................................................ 97

3- O relógio e sua relação com o trabalho .................................................................... 100

V - Os conflitos relativos ao trabalho...........................................................................................................101

VI - A interferência real nas corporações....................................................................................................105

CONSIDERAÇÕES FINAIS: UM OLHAR EM PERSPECTIVA ................................................................................108

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA .........................................................................................................................117

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INTRODUÇÃO

Um dos objetivos deste trabalho é apresentar um painel histórico de um

período da Idade Média, com destaque a aspectos jurídicos e trabalhistas, tendo em foco

principalmente a Idade Média baixa, entre os séculos XIII e XV, embora apresentando

situações precedentes a esse período quando se entender necessário. O outro objetivo é

destacar a relevância da relação entre o período medieval enfocado e o atual momento

histórico, visando a apresentar a importância subestimada dessa época para o atual Direito

do Trabalho.

O método empregado é o que parte do geral para o particular, estabelecendo-

se como geral uma visão histórica mais ampla, com os aspectos religiosos, econômicos,

sociais e jurídicos do período apontado e, como particular, uma visão mais objetiva da

forma e condições do trabalho naquele contexto apresentado. Portanto, não se optou por um

prisma dogmático, mas adotou-se um aspecto zetético, de verificação de um quadro

histórico e análise de algumas situações apresentadas para exemplos.

Em uma tentativa de melhor enunciação do pretendido a partir desta

introdução, apresentaram-se quatro formas de olhares figurativos para o texto: o primeiro,

denominado de olhar indagador, relativo aos porquês, isto é, os motivos do presente texto,

incluindo-se aí os fatos que levaram ao interesse sobre o tema, tendo em conta o espaço e o

tempo escolhidos. A justificativa do presente trabalho, pois, nos pareceu merecer um olhar

à parte, razão por que se destacou desta introdução e se fez detalhar em um item próprio. O

segundo olhar, denominado de olhar panorâmico (ou a grande angular), visa a mostrar um

painel histórico com destaque ao Direito, na busca de melhor compreensão do período

apontado. O terceiro foi denominado de olhar de aproximação (ou o zoom), por significar o

olhar mais próximo sobre as relações de trabalho não mais afetadas pela servidão,

principalmente no período de tempo relativo à baixa Idade Média. Por fim, as

considerações finais no derradeiro olhar em perspectiva, que correspondem a uma reflexão

sobre os olhares anteriores. Destaque-se o aspecto analítico das considerações finais e não

de síntese concreta do exposto anteriormente, visto que, sobre uma relação de cotejo

aplicada entre o painel histórico ampliado, o subpainel específico a respeito do trabalho e a

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perspectiva do trabalho contemporâneo, mais interessante, julgamos, é a exposição de

reflexões.

Eis aqui, portanto, no que consiste este trabalho: um breve olhar histórico

com preocupação jurídica e trabalhista, elaborado não por um historiador, mas por quem

estuda o Direito do Trabalho e, em razão disso, procura, ainda que de maneira modesta,

pesquisar matérias que possam auxiliar a compreensão melhor deste ramo importante da

ciência do Direito.

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A – UM OLHAR INDAGADOR.

I - Objetivos desse olhar histórico jurídico-trabalhista sobre a Idade Média

1 - O porquê do tema

Temos visto na maioria das obras que tratam do Direito do Trabalho um

reduzido espaço para a análise do trabalho humano anterior ao século XIX, notadamente o

período da Idade Média.

De fato, quando observado o início da História do Direito do Trabalho por

diversos autores2, vê-se uma delimitação de sua formação a partir do período industrial,

principalmente com relação ao século XIX. Assim, o período anterior à chamada

Revolução Industrial não é visto como parte da história do juristrabalhismo, mas como sua

pré-história ou proto-história, pois se afirma, entre vários argumentos: que a relação de

trabalho até o momento industrial não é uma relação de emprego, não há o típico

assalariamento, não ocorre um trabalho com conjunto humano fixo em determinado espaço

físico, não há regulamentação e subordinação mais efetiva na forma do trabalho e sua

contraprestação, além de não haver liberdade para a contratação do trabalhador pelo

empregador nem regulamentação das condições de trabalho, bem como por faltar a

interferência do Estado ou de seus entrepostos nessas relações (cf. Martins: 2001, p. 34).

Godinho Delgado (2002: p. 81), que dá ênfase ao sistema capitalista como o cerne para a caracterização do Direito do Trabalho como ciência, nos diz:

O elemento nuclear da relação empregatícia (trabalho subordinado) somente surgiria, entretanto, séculos após a crescente destruição das relações servis. De fato, apenas já no período da Revolução Industrial é que esse trabalhador seria reconectado, de modo permanente, ao sistema produtivo, através de uma relação de produção inovadora, hábil a combinar liberdade (ou melhor, a separação em face dos meios de produção e seu titular) e subordinação. Trabalhador separado dos meios de produção (portanto juridicamente livre), mas subordinado no âmbito da relação empregatícia ao proprietário (ou possuidor, a qualquer título) desses mesmos meios produtivos – eis a nova equação jurídica do sistema produtivo dos últimos dois séculos.

2 Pedro Paulo Teixeira Manus, ao descrever a ubiquação do Direito do Trabalho na História, apresenta uma relação de autores nessa linha de posicionamento (2005: pp. 26-27).

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Vemos, assim, que há uma concepção industrialista pela qual apenas a

revolução industrial propiciou a situação atendida pelo Direito do Trabalho tal qual a

conhecemos e estudamos.

Como mais um exemplo desta concepção industrialista, temos a destacar

Martins Catharino que, em sua obra Tratado Elementar de Direito Sindical (1982: pp. 14-

19), distingue os períodos de pré-história e proto-história do Direito do Trabalho. Ali, este

jurista conceituado fixa a pré-história como o período em que se cuida da Antigüidade e da

escravidão (período que chama do trabalhador-objeto ou coisas) e se inicia a proto-história

de forma mais concreta no Ocidente europeu com o advento das corporações de ofício.

Orlando Gomes e Élson Gottschalk (1975: pp. 20-21) também vinculam o

Direito do Trabalho à Revolução Industrial, mais precisamente como um seu efeito. Assim

destacam: A história do movimento operário é uma lição de sociologia, que nos fornece a precisa idéia do grupo social oprimido. O envilecimento da taxa salarial, o prolongamento da jornada de trabalho, o livre jogo da lei da oferta e da procura, o trabalho do menor de seis, oito e dez anos em longas jornadas e o da mulher em idênticas condições criaram aquele estado de détresse sociale de que nos fala Durand, no qual as condições de vida social se uniformizaram no mais ínfimo nível. ...................................................................................................................................... O associacionismo, clandestino a princípio, tolerado numa etapa média e reconhecido pela autoridade pública afinal, foi a concretização material de uma consciência de classe, que foi se formando, lentamente, no seio das sofridas massas trabalhadoras, em vários países da Europa, no curso do século XIX. São estes exemplos paradigmáticos da concepção de que o Direito do

Trabalho surge em decorrência da Revolução Industrial e, mais precisamente, em razão do

segundo período desse mesmo evento, em que ocorreu uma concentração maior do capital

produtivo e, em conseqüência, a formação do proletariado industrial. E também fazem

transparecer a visão de uma cortina de interesses jurídicos e históricos do Direito do

Trabalho entre o período pré e pós Revolução Industrial e, mais precisamente, antes e

depois do século XIX, em detrimento ao estudo do período anterior referido.

É aqui, sobre essa barreira colocada a respeito do que seja histórico para esse

mesmo Direito, que nos propomos lançar um olhar longínquo e perscrutador: a fim de que

possamos, ainda que em forma de painel sintético, examinar se o trabalho humano em um

período como vimos denominado de proto-histórico, pode ser visto de forma isolada e sob

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um critério meramente de curiosidade, e sem interferência mais efetiva sobre o Direito do

Trabalho, ou pelo contrário, como parte a merecer uma reflexão maior pela História do

Direito do Trabalho.

Visamos, assim, a uma tentativa de observação de um período da Idade

Média logo após aquele em que se organiza o trabalho livre, com repovoação e criação de

cidades, a fim de procurar perceber, naquele período, que tipos de formas de trabalho e

atividades podem ser relacionados com o trabalho a partir da Revolução Industrial e, se

nessa relação, há possibilidade de uma concepção mais extensiva de período histórico para

o Direito do Trabalho. Afinal, cabe verificar se o trabalho em época pré-mercantil ou

mercantil merece também a preocupação do Direito do Trabalho como parte de uma

observação mais prolongada, ainda que em um período longínquo e sob outros paradigmas

econômicos e sociais.

Por fim, cabe destacar mais um dos principais motivos de análise do

trabalho humano neste período escolhido da Idade Média: relaciona-se a uma das atuais

preocupações do estudo do Estado por vários setores científicos humanos, em que se

observa contemporaneamente um movimento pendular de diminuição do poder

centralizador do Estado, cristalizado e aperfeiçoado desde o Renascimento Ocidental. Tal

diminuição de poder estatal centralizado, de acordo com esses estudos, leva à sua

atomização em diversos graus e setores existentes na sociedade civil contemporânea. E, em

alteração semelhante e contemporânea no mundo do trabalho, vemos o chamado toyotismo

como forma de produção diferenciada (descentralizada e setorializada) do tradicional

modelo fordista-taylorista (centralizado, hierarquizado).

Toda essa situação assemelha-se em muito à forma do poder e de relações

sociais existentes durante a Idade Média, o que torna o objeto deste estudo, longe de se

tornar diletante, algo atual, comparativo e objetivo para efeito de extraírem-se lições.

2 - O porquê do período de tempo escolhido

A Idade Média é um período cronológico muito longo: basicamente

corresponde seu início ao final do Império Romano, com a ocorrência das principais

invasões bárbaras, até o chamado período da Renascença ocidental, no final do século XV

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(sem nos referirmos a várias instituições feudais que perduraram por séculos). Por certo que

o período da Idade Média alta, reconhecido de forma mais uníssona como tal, entre o

século VI e o século X3, possui um grande interesse histórico, mas não um correspondente

interesse jurídico e trabalhista, pois o esfacelamento do Império Romano e de suas

instituições afetou a aplicação do Direito estruturada naquele Império, prevalecendo

principalmente costumes, quer do período romano, quer das tribos invasoras,

majoritariamente germânicas4. Além disso, ocorre apenas após o século X uma maior

presença do trabalho livre e organizado em grupos, em função do crescimento e ampliação

das cidades.

Constata-se que somente após a tentativa de uma rearticulação do antigo

Império Romano, com a instauração do Sacro Império Romano-Germânico a partir de

Carlos Magno, e com o apoio integral da Igreja Católica, é que ocorreu uma paulatina

segurança dos espaços ocupados e reconquista dos territórios perdidos aos muçulmanos,

húngaros e normandos. Observa-se uma contínua mudança na sociedade de então, desde a

fragmentação do império carolíngio, o que Le Goff (1995: p. 75) chama de esboço de

futuras nações, à fragmentação da autoridade e do poder político, com um tipo de

concentração de poderes pelos mais fortes beneficiados pela divisão de terras e submetidos

ao conceito de vassalagem no período de Carlos Magno5.

Mesmo a tentativa de reconsolidação do Sacro Império Romano-Germânico

pelos otonianos6 resultou em uma frustração daquele projeto de restauração pela expulsão,

por Roma sublevada, de Oto III, e o retorno ao reino dos germânicos de Henrique II. No

entanto, por força do período carolíngio, já ocorria uma mudança econômica, quer pela

renovação do comércio desde o século VIII, com a importância da região dos hoje Países

Baixos (Frísia), a exportação de panos, e a reforma monetária de Carlos Magno.

A economia desse período, essencialmente rural, vai se beneficiando da

melhoria da tecnologia agrícola, com a ampliação das terras cultivadas, novo sistema de 3 Há corrente de pensamento que entende ser o início da Idade Média baixa o século XIII; outra, o século XIV, assim como quem defende a existência da Idade Média central entre o século X e XIII, além de outros posicionamentos paralelos. Optamos por entender como período da Idade Média baixa o período entre o século XIII e XV para efeito do tempo a ser observado neste trabalho. 4 E com resolução de litígios de forma rudimentar em comparação ao Direito Romano. 5 Como diz Le Goff (1995: pp. 78-79): “O homem antigo tinha de ser justo ou reto; o homem medieval terá de ser fiel. Maus doravante serão os infiéis”. 6 Oto (Otão ou Othon) I, II e III, reis germânicos, coroados pelos papas romanos como sucessores de Carlos Magno, com um projeto de continuação de um império ocidental e cristão.

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atrelamento dos animais para plantio, nova forma de arar, aperfeiçoamento do uso do

moinho, preparação de pães com novos ingredientes de plantio, a adoção de plantas mais

ricas em proteínas (legumes em favas, lentilhas, ervilhas, por exemplo), propiciando maior

poder energético aos seres humanos que as utilizavam, o que resultou em ações humanas

mais efetivas para construções e desbravamentos (cf. Le Goff, 1995: pp. 83-84).

A par disso, também se observa, a partir do século X, um fortalecimento do

comércio escandinavo, que se relaciona com o comércio judeu e árabe, que por sua vez se

movimentava trazendo e levando madeiras, ferro e estanho para as espadas francas, além de

mel e escravos7 (geralmente eslavos - slaves), por estradas entre Córdoba (então

muçulmana) e Kiev (através da Europa Oriental), incluindo-se como beneficiárias dessa

rota comercial a região do Reno e a região das cidades de Pádua e Milão.

O fim das invasões à Europa Ocidental e o desenvolvimento de acordos e

regulações de paz, estimulados pela Igreja Católica (Paz de Deus), que permitiam o respeito

da atividade militar aos setores da população não combatentes (como os padres, mulheres,

crianças, camponeses, mercadores e até animais de trabalho), além de uma melhoria das

condições climáticas por um grande período de tempo, propiciaram um aumento da

demografia, a ponto de a população da Europa Ocidental, entre os séculos XI e XIII, ter

dobrado e, em algumas regiões, triplicado o número de seus habitantes (cf. Jerôme Baschet,

2004: p.89). E o aumento da população propulsionou a atividade de construção de novos

tetos, com a ampliação das cidades, além da criação de novas cidades.

Uma população maior exigia, em um ambiente profundamente clerical e

religioso, igrejas maiores e mais igrejas. Essa produção exigia a obtenção de matérias-

primas como pedra, madeira e ferro; foram surgindo, assim, novas técnicas de construção,

aperfeiçoamento de transporte, novos canteiros construtivos, novas pontes, celeiros,

mercados, novas casas com material melhor para os mais ricos, tudo isso formando uma

espiral de crescimento econômico e formando novas situações a serem pensadas, conflitos a

serem resolvidos, interesses afetados e assim por diante.

7 A escravidão, em descenso desde o final do Império Romano, foi sendo por etapas substituída por situações intermediárias, como a manumissio cum obsequio, a servidão mansa, e diversos estatutos correspondentes, até estabilizar-se com a servidão típica no final da Idade Média alta. Mas em alguns lugares, como por exemplo na região da Provence, com maior influência da cultura romana e também com muito contato com as regiões muçulmanas dominadas (assim como ocorreu na Península Ibérica), a figura do escravo doméstico perdurou por quase toda Idade Média.

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Esse fenômeno repercutiu nas instituições de poder, alterando os horizontes

políticos e sociais, criando-se, a partir daí, universidades e recuperando-se o Direito de sua

herança romana.

Toda essa movimentação econômica e social propiciou, a partir do século

XI, um fenômeno denominado pelos historiadores de “Renascença medieval”, momento em

que se dá uma maior importância e atenção ao trabalho humano. Afinal, até então

predominava a concepção de que a sociedade era formada pelos oradores (os clérigos), os

guerreiros (os cavaleiros nobres) e por fim, e de derradeira importância, os trabalhadores (o

povo, os plebeus) - a estes últimos restava arcar com a maldição do pecado original: o

trabalho. A mudança dessa concepção nos permite, então, observar as relações de trabalho a

partir do período apontado, com ênfase na Idade Média baixa, ou Idade Média tardia, época

em que o trabalho livre se estrutura e também se modifica paulatinamente nas cidades

novas ou repovoadas desde a chamada “Renascença medieval”.

Assim, o período da Idade Média baixa representa um momento de crise na

Igreja, de crise de poder político na mudança nas relações entre a Igreja e os reinos, de

estruturação dos reinos nacionais emergentes, de transformações nas concepções jurídicas e

suas aplicações, de crise em razão de guerras entre reinos e revoltas internas (a guerra dos

cem anos, por exemplo), de crise econômica e financeira interna e entre os reinos

existentes, de sérias crises causadas pelas epidemias (peste negra, por exemplo), de

formação e ampliação da burguesia nas cidades, agudização das tensões existentes no

âmbito das cidades e das corporações existentes, de modificações nas relações corporativas,

e assim por diante.

Trata-se, portanto, de um período rico de situações e de transformações

sociais, institucionais e jurídicas que merece uma atenção especial.

3- O porquê do espaço escolhido

Como já pudemos observar acima, é a partir da tentativa de retomada do

Império dos romanos pela Igreja, através do Sacro Império Romano-Germânico, que se

constata uma nova leva de crescimento e desenvolvimento da Europa Ocidental. E o ponto

de referência desse momento é o espaço principal do referido Império com apoio da Igreja

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Católica: a região em que os francos haviam se instalado, após sua invasão, sobre o

declinante Império Romano, ou seja, preponderantemente a Gália (mais tarde, França).

Podemos constatar, assim, que o espaço central relativo ao Sacro Império

Romano-Germânico, mais precisamente as atuais regiões da França e circunvizinhança

(inclusive parte da Península Ibérica8), constituem o centro político e territorial principal do

período de tempo escolhido. Destaque-se que essa região continuou sendo, durante todo o

período da Idade Média, ponto irradiante de fatos e posturas para os povos próximos,

inclusive local de onde partiu a primeira cruzada cristã9, no século XI.

Aqui, portanto, a razão de se adotar esse espaço como lugar a ser observado

em primeiro plano. Cabe notar, ainda, que é a França o território em que, pela primeira vez

na Europa Ocidental, um rei se torna rei de um espaço relacionado a um povo: é o caso de

Felipe Augusto, que bem no início do século XIII (entre 1204 e 1205) não se coloca mais

como rei dos francos, mas rei dos franceses10 (Basdevant-Gaudemet, e Gaudemet, 2003: p.

15).

Por fim, deve ser destacado que, embora Roma fosse a sede espiritual da

Igreja Católica, tanto ela como as cidades da hoje Itália, possuíram uma importância

secundária na Idade Média. A sede espiritual da Cristandade, Roma, possuía um destaque

religioso, como era, por exemplo, Santiago de Compostela, só que com um contingente

populacional bem maior.

Dessa maneira o destaque político, social e econômico nesse período

corresponde ao centro geográfico escolhido acima.

8 Aqui também em razão da influência ibérica para nós, brasileiros. 9 Promovida pelo papa Urbano II, a partir de região central do reino dos francos. 10 L’expression est nouvelle. En 1204 Philippe Auguste se reconnaît Rex Franciae, Regnum Franciae apparaît en 1205.

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B – UM OLHAR PANORÂMICO (OU A GRANDE ANGULAR)

I – O conjunto de interesses denominado Cristandade

Durante a Alta Idade Média, na região acima destacada, foi sendo forjada

uma estreita relação entre os poderes locais, a povoação existente nas terras e os

representantes da Igreja Católica. O desenvolvimento desse conjunto resultou em um

fenômeno geográfico, político, social, cultural e religioso (ou teológico-filosófico)

denominado Cristandade11. À frente da Cristandade, a Igreja Católica ligada a Roma e

remanescente do período final do Império Romano, com uma proposta universalista,

representando as crenças e as ideologias durante o período medieval12, com autoridade

intelectual ilimitada e detentora de grande poder econômico (vastos domínios e grandioso

tesouro).

Assim, a par do crescimento econômico na Idade Média Ocidental

rapidamente apresentado acima, temos a expansão interior da cristandade européia a partir

do desbravamento das terras sobre matos e pastagens13 e formação de novas cidades. Sob o

prisma exterior, o uso da via militar para ampliação de fronteiras e as longínquas e as nem

tão longínquas expedições contra os muçulmanos e outros “infiéis” através das cruzadas.

Vê-se como parte dessa expansão a cristianização de povos chamados

pagãos, como os normandos (homens do norte: escandinavos) instalados também no

noroeste da França e na Grã-Bretanha, além de conquistadores de terras muçulmanas

ocupadas, no sul da Itália e Sicília. Também a cristianização ocorreu na parte centro-

oriental da Europa, nas regiões germânicas e eslavas. Aliás, vale destacar que a reconquista

da Península Ibérica sobre os muçulmanos teve uma estreita relação com a emigração

francesa e a atuação numerosa de cavaleiros franceses de regiões próximas dos Pirineus:

eles atuaram junto aos reis cristãos locais e com apoio dos monges de Cluny, diante de sua

estreita relação com Santiago de Compostela.

11 Utilizamos nesta parte do trabalho, como referência principal, a obra de Jacques Le Goff, A Civilização do Ocidente Medieval, volume I, que é ímpar, detalhada e rica em informações e análises sobre o período aqui objeto, principalmente sobre a cristandade medieval. 12 Vide Ellul, 1999: p. 237. 13 As florestas foram por muito tempo poupadas como lugar de caça dos nobres senhores ou como fator de isolamento das abadias.

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Essa guerra militar de reconquista religiosa serviu como elemento de

ambientação às cruzadas em direção ao Oriente Próximo, que acabaram se tornando uma

quimera de saída para o excedente populacional do Ocidente, busca de terras e feudos,

riquezas e as mais variadas ambições latentes. Mas também representaram um dos fatores

de crises políticas, sociais e econômicas na Idade Média baixa, ainda que tenham

permanecido como um ícone da expansão da cristandade medieval.

Vemos que não foram as cruzadas que proporcionaram desenvolvimento

comercial com lugares mais longínquos, já que havia anteriormente relações comerciais,

assim como contato com tecnologia e produtos com o mundo muçulmano, inclusive com

rotas de comércio já referidas supra. Da mesma forma, as informações de cunho intelectual

e erudito sobre o Islã (ou Islão), Roma e a Grécia eram obtidas por centros de tradução e

bibliotecas na Grécia, Sicília e Espanha, com muito maiores contatos, do que na Palestina.

As expedições dos cruzados trouxeram o empobrecimento dos nobres

cavaleiros (outro motivo de crise na Idade Média baixa), trouxeram as rixas entre nações

(por exemplo, na segunda cruzada, efervesceu o ódio entre franceses e alemães) e entre

latinos e gregos (o que resultou na quarta cruzada de cristãos sob o signo de Roma contra

Constantinopla/Bizâncio, em 1204). Também foram nas cruzadas que se iniciaram os

excessos de morticínios, como os pogroms contra os judeus, e as pilhagens. Para

financiamento dessas campanhas, a Igreja aumentou os impostos pontifícios e deu destaque

à venda de indulgências, com repercussões sérias para sua divisão futura. E a breve

permanência dos cruzados em Jerusalém é considerada por Le Goff o “primeiro exemplo

do colonialismo europeu” (1995: p. 98).

A concepção das cruzadas, em seu início, era transformar o ato guerreiro,

tão usual naquele período, em que a Igreja se batia pela “Paz de Deus”, em uma causa justa

contra os infiéis, mudando o rumo dos combates intramuros para extramuros, formando

uma unidade cristã contra os maus e infiéis, na busca da Jerusalém espiritual. Apesar de

todos os problemas trazidos por suas contradições, as cruzadas serviram, entretanto, como

ponto de referência da presença da Cristandade pelo mundo fora do âmbito europeu, além

de ser o pólo ideológico utilizado pela Igreja de Roma para marcar sua presença em todo

esse mundo, notadamente entre os séculos XI e XIII, inclusive.

21

Se as cruzadas representam a atividade externa principal do conjunto de

interesses a que se dá o nome de Cristandade, temos no âmbito interno desse coletivo uma

Igreja que também conviveu e participou das mudanças ocorridas a partir do período

denominado de Renascimento medieval. Embora no plano de desbravamento de terras para

plantio e construções os monges das abadias tradicionais (como os cluniacences, de

formação beneditina), por sua postura senhorial e ociosa, não incentivassem a instalação e

uso de terras para o trabalho14, o surgimento de novas ordens com novas posturas tiveram

caminhos diferentes: ou de característica mendicante, sem vínculos com espaços maiores;

ou de caráter eremita, sendo que nesses casos não havia preocupação com as novas terras e

novas construções; ou então, ligadas aos conglomerados urbanos, com relações com as

igrejas nas cidades ou com relação mais próximas com as universidades nascentes, aí sim,

ligadas com os novos tempos15.

O grande crescimento e desenvolvimento das cidades levam a Igreja a

caminhar pelo apoio às ordens que se coadunam com os novos ares, deixando em plano

secundário as ordens eremitas e mendicantes, muito próximas a uma estrutura mais agrária

e feudal. Mas mesmo algumas delas passaram, com o tempo, a se aproximar dos centros

populacionais e da linha oficial da Igreja de então, em compasso com o momento histórico:

como exemplo, temos Tomás de Aquino e Boaventura, mestres com atuação destacada na

Universidade de Paris16, sendo um dominicano (frade predicante) e outro franciscano (frade

menor). Como destacado por Le Goff (1995: p. 120), no século XIII se vê a Igreja, que

conduzia a sociedade, passar a se adequar à sociedade.

Merece ser observada a ênfase na construção das igrejas em forma de

basílicas, em contraponto às abadias do período anterior. Essa opção possui direta relação

com a presença da Igreja nos locais com maior conglomerado urbano. Da mesma forma,

esse conglomerado urbano relaciona-se com a laicização e, em paralelo, com a maior

vigilância da Igreja sobre esse fenômeno que envolvia população urbana, universidades,

discussões filosófico-religiosas e posicionamentos práticos; daí as sumas escolásticas e 14 Em função da visão de que o trabalho relacionava-se à maldição do pecado original de Adão e Eva, que foram expulsos do Paraíso e condenados ao trabalho; a utilização do trabalho manual era empregada como forma de expiação do pecado e de sofrimento, como na frase “trabalho de beneditino”. 15 “A oposição entre o monaquismo antigo e o novo monaquismo é simbolizada pela polémica entre o cluniacense Pedro, o Venerável, abade de Cluny (1122-1156) e o cisterciense S. Bernardo, abade de Clairvaux (1115-1154)” (Le Goff, 1995: p.118) 16 Final do século XIII.

22

atitudes mais severas de disciplina teológica, resultando disso a “Santa Inquisição”17. E

foram várias as heresias formadas nesse período aqui retratado.

Vale lembrar que essa preocupação com a disciplina ideológico-religiosa da

Igreja Católica se dá de forma dura e forte, a ponto de ter ocorrido uma cruzada e um

massacre dentro própria França, mais precisamente na região do Languedoc do território

francês, tendo como alvo principal a cidade de Albi. Tal cruzada sobre os albigenses uniu o

interesse centralizador e disciplinar da Igreja, com uma preliminar postura centralizadora de

poder do reino, no início do século XIII, afastando e subjugando à força os principais

senhores feudais daquela região, muito fortes econômica e politicamente, e intimamente

ligados à doutrina catarista18.

Sendo a Igreja Católica o ponto referencial do que se denomina Cristandade,

vale a pena observar sua presença política no período destacado. No que se chama de Igreja

Católica (universal) “Imperial” 19, a partir do século XI passa a ocorrer o que se denomina

de reforma da Igreja. É que, após a fracassada tentativa de retomada do Sacro Império

Romano pelos reis germânicos, com influência papal, mais de cem anos depois o papa

Gregório VII adota uma conduta política de separação e supremacia do reino temporal pela

Igreja Católica. É dele o Dictatus Papae (declaração papal sobre seu papel e da Igreja no

mundo), assim como o início da estruturação concreta e temporal do poder papal e da

organização do Direito Canônico.

É ainda importante destacar que, desde a relação de protetorado entre

Gregório, o Grande, e os reis merovíngios, no final do século VI, completando-se com o

período carolíngio (século VIII em diante), a relação de poder da Igreja se situava, de um

lado, no plano espiritual, e de outro, na influência que a nobreza exercia sobre os

estamentos do clero, ocorrendo mesmo uma inter-relação de bispos nobres e nobres bispos.

Afinal, os reis desse período influenciavam nas escolhas das direções eclesiásticas,

inclusive colocando nos cargos de direção pessoas diretamente ligadas à nobreza local, ou

então, influenciando na escolha dos bispos locais, havendo até bispos laicos. E as leis 17 Merece destacar que a Inquisição como instrumento oficial surge no século XIII e permanece bem atuante até o século XV, diminuindo sua atuação paulatinamente nos séculos posteriores; na Península Ibérica perdurou atuando com apoio dos reis locais até o século XVIII. 18 Grupo heterogêneo e maniqueísta com influência de concepção bizantina dissidente, composto em parte de nobres, artífices e de gente do povo nas cidades; formaram uma anti-igreja, com bispos, clero e ritual – denominavam-se os “perfeitos”. 19 Estabelecida sob a proteção do Imperador Constantino, patrocinador do primeiro concílio, no século IV.

23

canônicas sofriam total incorporação da liturgia e da teologia, sendo mais regras comuns,

que por sua vez eram vagas e, portanto, de aplicação abstrata, com influência política óbvia.

Lima Lopes (2002: pp. 85-86) destaca que Gregório VII representou uma

tomada de posição de libertação da Igreja do chamado poder secular, formando um poder

burocrático, com aspectos de racionalidade, legalidade e formalidade20. Centrou assim sua

luta contra a simonia (venda dos símbolos sagrados, como cargos e ordenações clericais),

casamentos dos padres (nicolaísmo) e nomeação dos leigos para os cargos mais altos do

clero, que recebiam rendas pelo uso das terras e bens da Igreja. Também representou um

conflito que se tornou crônico por séculos21 diante de sua proposta de centralização de

poder e de supremacia do poder papal diante dos reinos temporais. Este marco sela a

estruturação do direito canônico sob a égide papal como a fonte legitimadora desse poder,

sendo o Decreto de Graciano seu ícone principal (utilizado pelos decretistas ou canonistas).

José Antônio C. R. de Souza e João Morais Barbosa (1997: p. 30) destacam

Gregório VII como aquele que “lançou os alicerces inovadores da teoria segundo a qual o

sacerdócio tem uma missão mais relevante, do que a realeza, no interior da cristandade, tese

esta progressivamente enriquecida até alcançar a maturidade no século XIV”. A esse

fenômeno estes autores denominam hierocracia.

A presença da Igreja Católica com uma política centralizadora de poder a

partir daquele momento causou uma grande alteração na sociedade medieval. Isso porque

havia uma sociedade que pode se chamar de anárquica, no sentido de haver uma plêiade de

poderes e jurisdições, típica do período feudal, e essa nova postura de aspecto burocrático,

aglutinador e subordinador é um contraponto àquele momento da sociedade. Vale aqui

observar então a sociedade medieval.

20 Entende-se até que lança aí as bases para a futura concepção do estado moderno. 21 O conflito se iniciou com o germânico Henrique IV e se denominou de “querela das investiduras”, por força do posicionamento papal sobre quem tinha o direito divino e temporal para escolher e investir como bispo da Igreja. Devem ainda ser lembrados outros conflitos posteriores, como o inglês, entre a Igreja, representada pelo bispo Thomaz Beckett, e Henrique II; e a polêmica portuguesa, entre o papa Honório III e D. Afonso II; além desses, o episódio francês de Felipe, o Belo, já no início do século XIII (“querela bonifaciana”).

24

II - A sociedade medieval

1- Características

Jacques Ellul22 (1999: pp. 130-136) destaca que a sociedade medieval, desde

o final do império carolíngio, sofreu diversas influências. Em primeiro lugar a cristã,

através de um conjunto de doutrinas políticas e jurídicas de um sistema organizativo tal

como o poder político sob a concepção da vontade de Deus e escolha de soberanos, as

noções de justiça sob o critério religioso e, nesse contexto, a eqüidade, compaixão,

fidelidade, etc., que formam as bases do pensamento elaborado pelos canonistas e teólogos

da Igreja. Em seguida, a presença da Igreja como instituição própria, impondo-se como

uma sociedade com suas próprias regras jurídicas e com influência direta na sociedade ao

redor de sua presença, quer pelo ensino, assistência aos pobres, jurisdição nas questões

relacionadas com a Igreja, e quer mesmo por propostas de pacificação entre os poderes

laicos e respeito destes à paz declarada pela Igreja em seus espaços.

Em segundo lugar, observa esse autor a influência oriental, que aponta ser,

de um lado, negativa e de outro, positiva. Como negativa, destaca o cerco político e

econômico provocado pela civilização árabe, impedindo o acesso à região mediterrânea, o

que ocasionou profundo prejuízo econômico às regiões ao derredor que não possuíam uma

relação de identidade com aquela civilização. E, como positiva, destaca uma nova postura

de relacionamento com o mundo muçulmano, principalmente após o ano 1000 de nossa era,

com obtenção, pelas regiões européias denominadas cristãs, de contato com moeda,

comércio, importação de métodos agrícolas e de novos tipos de plantas, além de contatos

culturais, políticos e sociais.

Em terceiro lugar, Ellul destaca a influência romana, a partir da redescoberta

do direito romano; e aí passa a ser conhecida uma sociedade anterior unitária e uniforme,

com um poder político centralizado e um sistema jurídico racional, o que, no caminhar da

Idade Média, representará um elemento instrumentador da centralização política nas mãos

dos reis locais.

Por fim, são de se destacar os pontos internos de influência da própria

sociedade medieval no Ocidente, como a região de Flandres, cidades italianas e francesas,

22 Neste capítulo utilizamos como fonte principal Histoire des instituitions – Le Moyen Age, deste notável escritor, historiador e jurista francês.

25

quanto ao desenvolvimento urbano; a região da Grã-Bretanha, com aspectos de organização

monárquica (como o sistema financeiro e organização militar); e a importância das relações

internacionais de comércio, com uma estratificação do chamado jus mercatorum.

O mesmo autor supra aponta como características gerais da sociedade

medieval os seguintes aspectos: trata-se de uma sociedade anárquica, pois não possui um

poder centralizado e único ou mesmo uma concepção abstrata do que seria um Estado;

mesmo os direitos e poderes do que hoje se relaciona ao Estado são divididos entre várias

autoridades, como os senhores feudais, a igreja, as cidades e assim por diante. E essas

autoridades exercem os poderes e os direitos relativos à justiça, às finanças, à moeda e o

exercício do poder militar. Como essas autoridades não prestam contas a um poder central,

os diferentes grupos que a compõem equilibram-se mutuamente, ocorrendo uma dispersão

de direitos políticos e uma fragmentação do direito em cada estamento, com o que se pode

nomear de sistema jurídico próprio e particular de cada grupo de poder.

Ao mesmo tempo em que anárquica, abundando de grupos políticos e com

fragmentação de poderes, não se trata de uma sociedade desordenada, pois é profundamente

hierarquizada. Dessa forma se observa que a sociedade medieval convive com o princípio

da ordem e da organização: de uma parte, o rei como órgão de coordenação, usando o bem

comum para aplicá-lo na forma de instrumento de conciliação e arbitragem; de outra parte,

os grupos locais, unidos uns aos outros através de hierarquias. E é a hierarquia o modo de

organização do mundo feudal; mais uma hierarquia de grupos do que de pessoas que se

encadeiam por princípios sistemáticos, espontâneos, por ações individuais seguidas de

modelos associativos. E esse espírito associativo se desenvolve entre indivíduos, mas tendo

em conta indivíduos associados a um grupo, pois não se visualiza o indivíduo sem o seu

grupo; essa associação ocorre não de forma arbitrária, de escolha própria, mas de forma

orgânica, pois para viver naquela sociedade é preciso estar ligado a um grupamento.

Ocorrem associações internas e também entre grupos distintos, como entre senhores, entre

comunidades de trabalho, entre cidades e comunidades de habitantes, entre poderes

senhoriais e eclesiásticos, em um encadeamento próprio e hierárquico.

A sociedade medieval é também uma cristandade, derivando daí duas

resultantes: em todos os setores dessa sociedade há uma ligação com a cristandade; cada

senhor feudal, cada cidade e cada reino é parte e participa do conjunto da cristandade e de

26

sua Igreja e a ela se subordina. E ocorre aí uma duplicidade relacionada entre o poder

temporal e o espiritual, pois essa convivência gera conflitos típicos da concomitância do

exercício de poderes por setores distintos. Como segunda resultante, temos uma concepção

de que para fazer parte dessa sociedade é fundamental ser cristão e quem diz quem é cristão

é a Igreja; os participantes desse conjunto possuem uma mesma linha de visão do homem e

do mundo, e uma mesma fé. Quem desse conjunto enfrentasse ou rejeitasse a concepção

apontada pela Igreja era submetido à pecha de heresia e isso o levaria à excomunhão; para

os de fora desse conjunto, e sem fé, havia o rótulo de pagãos e infiéis, que eram, no

máximo, tolerados, como os judeus, que viviam em comunidades sem direitos ou deveres

cívicos.

O autor referido ainda destaca que a sociedade medieval é universalista,

malgrado sua fragmentação. Isso se observa por meio de três pontos principais: primeiro,

não há a divisão dessa sociedade em nações ainda, não havendo, portanto, uma sociedade

feudal francesa, outra inglesa ou alemã, pois as fronteiras existentes são por demais

flexíveis. Como exemplo disso, temos que um senhorio pode estar em um território de um

reino mas, em razão de um mecanismo de vassalagem, por força do sistema de feudos,

submete-se por juramento a um príncipe de outro reino. Segundo, é a Igreja o fator de

unidade entre os diversos setores da sociedade fragmentada política e economicamente; e a

Igreja detém a conduta espiritual a ser seguida e também um poderio econômico, político,

social e intelectual. De um lado, há a identidade pela fé, pelos ritos religiosos e instituições

(como ordens religiosas); de outro, a unidade pela língua, ou seja, o latim, signo de

universalidade intelectual dessa sociedade e que não representa uma língua popular. É o

retrato desse mundo social.

Como terceiro, o aspecto do cunho internacionalista daquela sociedade

relaciona-se a um tipo de nomadismo constante, quer de forma externa, como as

peregrinações a lugares religiosos ou expedições de cruzadas e expedições de comércio

externo, quer de forma interna naquele espaço, com a presença de monges peregrinos e

sucessivas migrações de trabalhadores avulsos ou mercenários, e viagens de comércio

interno cruzando sucessivamente todo aquele lugar já apontado acima.

Outro aspecto característico é que a sociedade medieval é uma sociedade

sem classes; “ela é dividida em ‘corpos’ ou em ‘ordens’, mas não em classes. A diferença

27

entre esses dois termos é a seguinte: a classe é um fenômeno sócio-econômico (habitat,

forma de viver, nível de vida, maneira de trabalhar, etc.); a ordem é um fenômeno funcional

e jurídico. Uma ordem responde a certa função da sociedade e a repartição segundo as

funções é regulada juridicamente. Cada ordem tem um estatuto jurídico particular

correspondente à sua função (enquanto na divisão por classes todos têm a mesma situação

jurídica)” 23.

Nesse contexto, a sociedade medieval possui uma divisão de basicamente

três ordens: a dos clérigos, com funções religiosas, intelectuais e de assistência aos

necessitados, possuindo um estatuto jurídico próprio; a da nobreza, com uma função militar

e política; e os plebeus, entre estes os servos e os vilãos (habitantes das vilas ou cidades).

Neste último estamento, que atendia materialmente as outras ordens, foram sendo criados

grupos em forma de corpos que passam a se estabelecer como classe com o decorrer do

tempo: como a dos burgueses (principalmente negociantes), a dos chamados vilãos

(trabalhadores livres das cidades) e a dos servos (no âmbito rural); estabelecidos nas

cidades, os burgueses foram obtendo um estatuto jurídico próprio, com os privilégios

especiais conquistados.

Destaque-se que havia a possibilidade de mudança de status de ordens por

cooptação. Tais corpos sociais atuam corporativamente, em grupamentos ou associações na

qual o indivíduo participa institucionalmente, como parte do todo; ali tem sua função, sua

proteção, seu estatuto jurídico e o meio de se desenvolver naquela comunidade. Esses

corpos ou corporações atuam de forma simples, buscando seu próprio fim, como os

monastérios, a comunidade de mercadores ou de trabalhadores e a universidade. Há

também relações mais complexas, como entre os diversos corpos e ordens em função de

uma região ou de uma cidade.

23 Ellul, 1999: p. 135: Elle est divisée en ‘corps’ et en ‘ordres’, mais non en classes. La différence entre ces deux termes est la suivante: la classe est un phénomène socio-ecnonomique (habitat, façon de vivre, niveau de vie, genre de travail, etc.), l’ordre est un phénomène fonctionnel et juridique. Un ordre répond à une certaine fonction de la société et la répartition d’après les fonctions est sanctionnée juridiquement. Chaque ordre a un estatut juridique particulier correspondant à sa fonction (alors que, dans la division par classes, tout le monde peut avoir la même situation juridique).

28

2- Feudalismo

Na sociedade medieval, merece ainda ser objeto de observação a figura do

denominado senhorio e sua relação com os habitantes do feudo, centro da estrutura feudal.

Dominique Barthélemy, ao escrever sobre o vocábulo “Senhorio” no Dicionário Temático

do Ocidente Medieval II (2002: pp. 465-466), afirma ser “o ‘senhorio’, um tipo de poder

não estatal, próximo, rude e privatizado”. Aponta ser o conceito relativo a “um domínio

rural e uma célula da vida social de enorme pujança, na qual os homens aproximam-se de

seu chefe”, ou então, ao “despotismo de um castelão, gerador de fratura social”; ou então,

“a relação de homem a homem entre um senhor medieval e seu servo”, ou mais ainda, “a

relação fundiária estabelecida, a diversos títulos, entre o possessor de uma terra e seus

‘tenancieiros’”. Elenca que, após o século XII, “pode consistir na administração

implacável, porém legal, do todo ou de parte de um ‘senhorio de aldeia’ pelos agentes

(ministeriais) do nobre senhor que detém o título e a torre”.

Marc Bloch (2002: p. 335) nos diz que um senhorio é, antes de tudo, uma

terra, um terreno composto por pessoas24. E esse terreno compartilhado de forma própria

possui duas partes integradas entre si: uma, de domínio ou reserva do senhor feudal, de

onde recolhe diretamente todos os frutos; outra, chamada tenure, pequena ou média

concessão de terra a ser explorada por colono (servo) em conjunto a outras tenures em volta

do centro dominial. Bloch descreve a relação jurídica como proveniente de um direito real

(da coisa) superior, que o senhor possui sobre a casa rústica do servo e o seu trabalho.

Monique Bourin e Robert Durant (2000: p. 91) conceituam juridicamente o

senhorio como o conjunto de direitos exercidos por um homem sobre outros homens, sendo

que os direitos relativos ao poder de comandar, julgar e castigar são conhecidos por ban

(daí, seignerie banale), e correspondem a direitos coercitivos; há ainda os chamados

direitos senhoriais imobiliários (la seigneurie foncière), que se relacionam aos direitos de

um proprietário sobre suas terras e sobre o trabalho daqueles que cultivam ali.

Le Goff (1995: p. 125) nos diz que o feudalismo

é, em primeiro lugar, o conjunto dos laços pessoais que unem entre si, numa hierarquia, os membros das camadas dominantes da sociedade. Esses laços baseiam-se num fundamento ‘real’: o benefício que o senhor outorga ao vassalo em

24 Destacamos o original: Une segnorie est donc, avant tout, une ‘terre’ – le français parlé ne lui connaissait guère d’autre nom -, mais une terre habitée et par des sujets.

29

troca de um certo número de serviços e de um juramento de fidelidade. O feudalismo, em sentido estrito, é a homenagem e o feudo. Vale lembrar que a figura do senhorio feudal remonta à estruturação

carolíngia do poder político. Relaciona-se à cavalaria e à guerra a partir dos condados

(domínios dos condes) 25: é deles a concessão de terras e poderes proporcionais aos seus

prepostos (vice-condes ou viscondes) que, por sua vez, passaram a organizar outros

prepostos, e assim sucessivamente. O sistema do senhorio feudal26 era composto de oficiais

para atuação administrativa, como a administração de armas, a administração jurídica e a

notarial, a par de conselhos entre os pares e oitiva de vassalos para resolução de problemas,

como guerra e paz, aumento de impostos, etc. A base dessa estruturação era a terra, seu uso

e seu domínio, e a vassalagem relativa a essa estrutura27.

A população na base da estrutura senhorial é principalmente de colonos de

serviço rústico e, entre estes, os servos e os trabalhadores livres (rurículas). Tais plebeus

situavam-se no contraponto dos nobres, que possuíam como principais características de

seus deveres de nobreza, em primeiro lugar, não precisarem fazer qualquer trabalho servil,

de contraprestação por dinheiro, conforme Ellul (1999: p.182) destaca de forma sintética e

profunda: “O nobre que trabalha abre mão da sua nobreza” 28. Em segundo lugar, segundo

o mesmo autor, existia o dever da obediência a seu senhor, sendo tal dever a absoluta

fidelidade; o homem que faltasse com tal dever era considerado traidor e poderia ser punido

25 Há regiões em que há ducados sobre os condados. 26 Destaque-se aqui um documento contido na Introdução Histórica ao Direito (Gilissen, 2001: p. 193): “CONTRATO VASSÁLICO; acto de fé e homenagem dos vassalos do conde da Flandres ao novo conde, Guilherme da Normandia (1127); relação feita por Galbert de Bruges, notário flamengo do condado. Em primeiro lugar, fizeram homenagem da maneira seguinte. O conde perguntou ao futuro vassalo se ele queria tornar-se seu homem, sem reserva, e este respondeu-lhe: ‘Quero’, depois com as suas mãos apertadas nas do conde, aliaram-se com um beijo. Em segundo lugar, aquele que tinha prestado homenagem comprometeu a sua fé ao delegado do conde nestes termos: ‘Prometo por minha fé ser, a partir deste instante, fiel ao conde Guilherme e de lhe guardar contra todos, e inteiramente, a minha homenagem, de boa fé e sem embustes’; e em terceiro lugar, jurou o mesmo sobre as relíquias dos santos.” 27 Hespanha e Macaísta Malheiros, em Nota do Tradutor, destacam na mesma obra de John Gilissen (2001: pp. 191-192) que a existência de feudalismo em Portugal corresponde a um debate clássico; apontam como posição mais próxima da realidade aquela que distingue dois planos quanto ao que seria feudalismo ali: “o das relações entre os grupos sociais dominantes e os grupos sociais dominados (pelas quais os primeiros se apropriam , nomeadamente, dos excedentes produzidos pelos segundos) e o das relações que estruturam o interior dos grupos dominantes (que organizam o bloco social dominante). O primeiro plano seria o domínio de vigência do regime ‘senhorial’, com uma definição próxima da que lhe é dada pela historiografia marxista (temperado, apenas, o exclusivismo economicista de algumas das suas versões). O segundo, o da vigência do regime ‘feudal’, como forma de organização interna dos grupos dominantes, neste plano sem diferenças decisivas em relação aos modelos centro-europeus”. 28 Le noble qui travaille, déroge e perd sa noblesse.

30

com a morte. Em terceiro lugar, havia o dever de seguir o código de cavalaria, rigoroso e

preciso, ao qual se aderia por juramento; tal código de honra tinha como premissas a

lealdade, o desdém pela morte, a fidelidade ao juramento, a proteção aos fracos, aos pobres

e viúvas, o combate à injustiça e aos malfeitores e ser generoso29. Quem prevaricasse em

seu juramento perderia seu título de cavaleiro.

Tal situação de nobreza comportava em obtenção de privilégios ou

vantagens, ao que se denominava de “estatuto jurídico particular” 30. Por exemplo, a

dispensa de pagamento de impostos (já que havia o pagamento de “imposto de sangue”), o

direito de promover e participar de guerras privadas, o direito de ser livre e julgado apenas

por seus pares e com penalidades especiais (sem castigos corporais).

Já os chamados plebeus, mais precisamente trabalhadores livres ou vilãos

(relativos às vilas ou cidades), que viviam principalmente nas aldeias próximas aos castelos

feudais, subordinados a eles, recebiam serviços ou mesmo terra para trabalharem, mas não

eram servos: eram livres para mudarem-se, circularem e trabalharem para outro senhor

feudal, ainda que permanentemente vivessem sob dependência política de um senhorio.

Possivelmente essa característica de liberdade era originária dos antecedentes colonos ou

precários, ou estrangeiros livres, originários do período merovíngio (sucedâneo do fim do

Império Romano).

Os vilãos tinham que pagar tributos ao senhorio, como a taille, ou incisura,

ou questus ou sauvement (nomes dependentes da região), que era devida ao senhor feudal

pelo exercício de poder de política, segurança e exercício de justiça a todos os habitantes do

local, salvo os clérigos e nobres. Estes habitantes sob um senhorio não poderiam se casar

com habitantes sob a proteção de outro senhorio sem autorização conjunta deles, havendo

lugares em que deveriam pagar uma taxa de casamento para essa situação.

Os servos, que eram nascidos como tais ou se transformavam servos por

casamento, ou desde que vivessem como agregados ao senhorio por um período certo de

costume, ou por força de um contrato de servitude, etc., sofreram uma modificação com o

passar dos tempos, pois aqueles com dominação próxima da forma escrava (principalmente

ao final do período carolíngio, em que havia castigos corporais e exigência de trabalho

29 Aqui sob óbvia influência da Igreja. 30 Cf. Ellul, 1999: p. 182.

31

seguido), tiveram uma melhoria de tratamento e condições entre os séculos XI e XII. Isso

se deveu principalmente pelo convívio com os chamados trabalhadores vilãos vistos acima,

que viviam nos mesmos locais, pela influência da Igreja exigindo melhor tratamento aos

pobres, e trabalhadores, a par do aumento de cidades e utilização da produção rural para o

comércio dessas cidades.

Havia duas categorias principais de servos: uma chamada de servitude

corporal (ou de corpo), pela qual o servo é servo em qualquer circunstância e ligado

diretamente à terra em que serve, inclusive sua descendência; outra, a chamada servitude

em razão da coisa (ou real), em que há a servidão relativa a determinado lugar e terreno

cedido para ser trabalhado: se esse servo tem aceita a mudança de local para outro senhorio

ou quita o pagamento relativo àquele local em que serve, deixa de ter a condição de servo e

passa a ser um trabalhador livre ou vilão.

3- As cidades e a relação feudal

Em contraponto à economia fundada na terra e seu domínio, as cidades

passaram a conter uma economia monetária em decorrência da renovação comercial, com a

estruturação de comércio e indústrias em seus meios31. Vale observar que o comércio nas

regiões de Flandres e da Itália possuía característica mais fortemente pré-capitalista do que

na França, que detinha, por seu passado de maior influência clerical, associações de

comércio e indústria mais influenciadas por elementos religiosos, o que obstaculizava o

desenvolvimento de um capitalismo mais individual. E esse viés provocava uma ênfase

para que os comerciantes nas regiões francesas, desde o final do século XII, se

preocupassem em colocar o dinheiro ganho preferentemente em terras, e não em novos

investimentos comerciais. As atividades de crédito e empréstimo de numerários do Norte

da região francesa eram mais simples, diferentemente das dos negociantes italianos.

31 Ellul (1999: pp. 200-201) destaca a renovação comercial desde o século X na Europa Ocidental, a partir de dois pólos principais: um, o setor da Itália com influência bizantina e a cidade de Veneza, que mantém comércio com o Islão; outro, com os normandos pelo mar do Norte e o Báltico, passando pela ilhas britânicas e a Rússia. Logo mais tarde, Marselha e Barcelona se tornam grandes centros comerciais, enquanto aumentam as rotas comerciais pelo rio Sena e a costa britânica, tendo a região de Flandres retomado fortemente a indústria de têxteis de lã. Também se amplia o comércio de especiarias e seda, com a presença de comerciantes italianos na região de Paris estabelecendo ali mais um centro financeiro; e também, é claro, muito importante o comércio de vinho.

32

Entre os negociantes italianos, viam-se cada vez mais as atividades de

comércio de dinheiro, operando o crédito com empréstimos e complexificando essa relação

com a criação de sociedades comanditárias, letras de câmbio, etc. 32. Passaram então a

suplantar os negociantes judeus, que se mantiveram mais localizados e restritos, inclusive

em razão de suas condição de “não fiéis”. Cabe destaque a inclusão de créditos

imobiliários, com a obtenção de rendas financeiras e a concessão de arrendamentos de

terras e imóveis a terceiros.

O comércio e as cidades trouxeram uma modificação para a agricultura: a

concentração de pessoas passou a exigir mais provisões. E aquilo que era produzido para

sustento passou a ser produzido para servir também para venda, fazendo que o dinheiro

passasse a circular cada vez mais no campo, e os servos passassem a receber dinheiro e

comprar sua liberação das terras; assim como os vilãos e os burgueses, que também

passaram a comprar terras para explorá-las. Os senhores feudais passaram a vender terras

ou a emprestá-las para exploração aos banqueiros ou burgueses comerciantes, bem como

foram transformando suas reservas próprias em terrenos para uso rural (tenures).

Ocorreram, portanto, grandes modificações na forma de exploração da terra dominial sob a

influência das novas cidades, que se multiplicaram entre os séculos XII e XIII e passaram a

ser autônomas a partir de cartas de franquia de senhores feudais, que cobravam tributos

como a talle, mas passaram a admitir uma direção própria para essas comunidades.

Vale destacar que essa passagem do direito potestativo senhorial para a

autonomia das novas cidades não se realizou de forma homogênea e pacífica. Há vários

relatos de insubmissões e contestações de camponeses, vilãos e burgueses contra senhores

feudais na formação de diversas cidades, além de arbitragens pelos representantes da Igreja

e até processos perante as cortes reais. Ocorreram, ainda, algumas revoltas armadas em

regiões francesas, inglesas, italianas e principalmente espanholas; nessa última região,

chegaram a existir combates de guerrilha por moradores castilhenses em meados do século

XIII contra o bispo de Osma, por “pirataria senhorial” 33.

32 Assim como na Provence e em Barcelona. 33 Bourin e Durant (2000: p. 107) descrevem a revolta castilhense de Osma como contraponto à “pirataria senhorial” representada pela política senhorial episcopal de cunho fortemente autoritário, que usava de força de forma provocativa, trazendo insegurança aos moradores da cidade.

33

Entretanto, mesmo que obtidas conflituosamente, os termos dessas cartas de

franquia possuíam um ideal cristão e de “cavalaria”, facetado nas suas proposições. Bourin

e Durant (2000: p. 108) descrevem a utilização do vocábulo benevolência nas introduções

dos termos, em contraposição ao estigma de arbítrio pelo poder senhorial existente. Dão

como exemplo a carta de franquia outorgada pelo senhor de Tintinnano, na Úmbria, em

1207, que destaca em seu intróito a “liberdade, a justiça e a igualdade, motivos do triunfo

de Roma, que quer ser aplicado a suas terras e a seus fiéis, a fim de se retornar às boas

condições antigas” 34.

Os mesmos autores ainda descrevem que, no Norte da atual França, um

quarto das franquias é de período anterior a 1190; a metade foi redigida entre 1190 e 1240,

e o outro quarto delas depois de 1240. Mas as primeiras franquias apareceram na região da

Itália, Espanha e Flandres, sendo raras na Normandia, tardias no Sul e praticamente

inexistentes no Oeste francês e na Bretanha. Apontam também que as nuances regionais

reforçam os resultados mais precoces ou não da existência das autonomias nas cidades mais

novas. Destacam (p. 16) 35: “De uma cidade a outra, de uma região para outra, tal ou tal

setor possui uma forma própria de estimular o acerto. Aqui, a forma de fechar as entradas

da cidade, ali, os problemas fiscais, acolá, a melhor forma de se ministrar a justiça. As

diversas maneiras de se prestar solidariedade comunitária confluem para criar

administrações públicas municipais e formas de institucionalização da vida política local”.

A estruturação das novas cidades inter-relaciona-se com um tipo social: o

burguês. Régine Pernaud (1995: p. 27) nos informa que o burguês habita a cidade e se

relaciona a seu desenvolvimento na Idade Média; e a primeira vez que o termo burguês

aparece em um documento histórico como tal ocorre para designar os habitantes de uma

nova cidade, no início do século XI (1007) através de uma carta de franquia em que o

Conde de Anjou garante as isenções de imposto para esses habitantes. A palavra burguês

aparece na forma latina: burgensis.

34 ...la liberté, la justice et l’égalité, moteurs du triomphe de Rome, qu’il veut appliquer à sa terre et ses fidèles afin de revenir au bon estaut d’autrefois. 35 D’un village à l’autre, d’une région à l’autre, tel ou tel secteur a joué le rôle de catalyseur. Ici la clôture du village, là les problèmes fiscaux, là enfin la manière de rendre la justice. Les diverses formes de solidarités villegeoises confluent pour aboutir à la naissance de magistrats municipaux et d’une forme instituinnalisée de vie politique locale.

34

Essa categoria não representava um tipo abstrato, ou indeterminado, mas em

cada cidade os membros da comuna que faziam o juramento de convívio e participação

eram burgueses daquela comunidade específica. Quem era burguês não era nobre, nem

clérigo, nem servo ou ligado ao serviço real. O termo burguês em seu início tinha relações

diretas ou de até sinonímia à de negociante, ou seja, aquele que comerciava bens que não

necessariamente produzia. A condição de burguês era reconhecida por origem de

nascimento familiar, ou por cerimônia de entronização na cidade e, nesse caso, teria de ser

paga uma taxa de entrada, prestar juramento de cumprir a carta de franquia daquela

localidade e construir uma casa de moradia (o que permitia que um ex-servo que cumprisse

essas obrigações pudesse se tornar burguês).

Havia, para os burgueses nessas cidades, uma característica urbana que

diferia da rural, provinda de costumes de comércio internacional (em razão dos

mercadores): as relações jurídicas eram cumpridas com base na tradição do direito romano;

deveria o burguês participar das festas de Natal, Páscoa, do santo padroeiro da cidade, além

de poder participar da escolha da administração da comunidade, a par dos pagamentos de

taxas pela sua situação no burgo.

A burguesia passou a enriquecer pela ampliação das atividades de comércio

e indústria, e começou a se organizar como classe, estruturando-se para fazer a defesa de

seus interesses em relação à nobreza e até mesmo ao clero. Como exemplo da capacidade

de aglutinação, temos a formação de confrarias burguesas, com características religiosas,

porém de cunho disciplinar, organizativo e de defesa do grupo, quer abrangendo um setor,

quer abrangendo uma região.

A partir do século XIII, surgiu a figura da chamada “burguesia do Rei”, ou

burguesia forasteira, originária de cidade subordinada ao Rei, e que passou a se instalar em

terras de outro senhorio sem perder os direitos adquiridos na cidade de origem. Em 1287,

ocorreu uma ordenança real regulamentando a burguesia.

35

III - As instituições políticas

1 - A organização do reino

Em primeiro lugar, cabe destacar que em um grande período, durante a

Idade Média, alterando-se a partir da baixa Idade Média, a concepção da realeza

representava menos a atribuição de direitos e poderes do rei, do que considerar o rei como

um titular de uma função, portador de um grande número de deveres perante a Cristandade

e os súditos.

A dinastia dos Capetos36 conquistou um prestígio ímpar no reino da França,

devendo se destacar que, embora tenha sido eleita, é a partir dessa dinastia a opção da

sucessão pelo filho mais velho, em razão de lei sálica37 readotada quanto a esse tema. Sua

sucessão tinha também um caráter sacro pois, a partir da morte do rei, imediatamente se

declarava rei o descendente direto38, com duas cerimônias interligadas pelo arcebispado,

que fazia a transmissão da coroa. Esse ato correspondia ao que se entende como

sacralização do poder real, o que levava à concepção do poder divino do rei. Deve ser

destacado ainda que, a partir do século XII, o rei francês não presta homenagem ou

qualquer tipo de subserviência a qualquer outro senhor; e, durante o reinado de Felipe

Augusto, no início do século XIII, ele chega a proibir que se ensine direito romano em

Paris, pois tal ensino propaga a supremacia imperial e ele, rei de França, não se subordina a

império.

É interessante notar que o caminho da concentração do poder real é

proporcional ao caminho inverso do poder feudal, pois à medida que diminuem as esferas

de poder, diminuem as forças políticas dos senhores que as exercem, substituídas pelo

maior ângulo de força real centralizada. Embora integrado ao sistema feudal, o rei é um

suserano especial: recebe as homenagens de seus vassalos, aplica a justiça senhorial, mas

não presta homenagens, tendo sido fortalecido com o passar do tempo o princípio de que

todo o senhor feudal dependeria ao menos mediatamente do rei. Curtis Giordani (1987: p.

50) lembra Ellul ao destacar que o poder de administrar e de exercer a autoridade não sofre

36 Um tal Hugo, que foi eleito em uma reunião de nobres rei dos francos no final do século X, adquiriu o sobrenome de Capeto (Capetien), ou “aquele da capa”, por ter sido escolhido numa abadia em que havia a guarda de uma capa de um santo. 37 Codificação franca do período das invasões do Império Romano (uma das leges barbarorum). 38 “O Rei está morto; viva o Rei”.

36

efetiva contestação por parte dos senhores feudais, mas é na administração da justiça que

seu poder é inabalável, pois controla as justiças senhoriais e as subordina por meio das

apelações39. E, a partir do século XIII, retorna com força a noção de súdito: todos os

habitantes do reino devem obediência ao rei pelo simples fato de serem habitantes; tal

situação chega a seu extremo durante os séculos XIV e XV, principalmente em função da

guerra dos Cem Anos.

O rei possui deveres para com seus súditos fundamentado no mito

construído pela sucessão e sagração: proteger o próprio reino e a Igreja, quer de forma

interna, na proteção de igrejas, no atendimento aos apelos contra injustiças, no arbitramento

de questões entre senhores feudais, quer de forma externa, formulando e exercendo a defesa

do reino, organizando negociações com outros reinos, etc.

O reino possuía, no período que também é denominado central da Idade

Média40, duas categorias de pessoas em seu torno: a domus regia, composta pela sua

família, notadamente o príncipe herdeiro, e os palatinos, habitantes junto à corte, como

cavaleiros sem feudo, clérigos íntimos e colaboradores do rei, além dos oficiais reais, como

o senescal (chefe do palácio), o copeiro (com relação direta ao fornecimento do palácio,

depois suprimido), o camareiro (depois substituído na prática pela ordem dos templários no

tempo de Luís IX), o condestável (conselheiro militar e cavaleiro) e o chanceler (um

secretário-geral); e a curia regis, que tinha a forma de assembléia real e era composta de

vassalos: senhores feudais, bispos e abades, geralmente convocados para discutirem

problemas de ordem política, judiciária e financeira.

A partir do século XII, ocorreu uma mudança com alteração na curia regis:

foi criada a figura dos “Pares de França” (Pares Franciae), os principais senhores feudais

colocados acima hierarquicamente na assembléia41, assim como se iniciou um recrutamento

de pessoal especializado para dar andamento a situações que se faziam necessárias no

âmbito jurídico, administrativo e financeiro. Também se aperfeiçoou a curia regis com a

criação nela de novos órgãos, como os “bailios” (baillis), que eram delegados do órgão,

utilizados a partir de Felipe Augusto e tendo como modelo os xerifes ingleses (cf. Olivier-

39 Cabe lembrar que foi S. Luís (Luís IX), no início do século XIII, quem proibiu o duelo de armas como instrumento recursal, o que foi implantado de forma paulatina, desde os domínios reais até seu completo cumprimento. 40 Utiliza-se aqui a referência de Idade Média entre o período do século X e o século XIII. 41 Iniciaram-se com seis pares leigos e seis eclesiásticos; depois foram ampliados.

37

Martin, 2005: p. 232); o “parlamento”, que era a composição de juízes para atender as

tecnicidades processuais; e a “câmara das contas”, composta por pessoal especializado para

examinar as contas apresentadas pelos agentes reais. Curtis Giordani (1987: p. 56) destaca

que, no século XIV, a “câmara das contas” separou-se da curia regis.

Esse autor ainda destaca que foram criados os “estados gerais” a partir do

destacamento da curia regis pela curia in concilio, que era um conselho mais próximo do

rei, mais precisamente formado por prelados e barões representantes das principais cidades

do reino. Tal figura surgiu42 no início do século XIV, na época do conflito entre Felipe, o

Belo, e o papa Bonifácio VIII. Esse conselho foi reconvocado para tratar das questões

oriundas dos templários e passou a ser composto como assembléia consultiva por três

ordens do reino: grandes senhores, prelados e representantes das cidades principais. Davam

apoio à monarquia e deliberavam sob a alçada de cada ordem respectiva.

Nos domínios reais havia uma administração local que era realizada pelo

“preboste”. Este era escolhido em um tipo de leilão: aquele que oferecesse maior soma

pecuniária ao rei era arrendatário do prebostado, por um período pré-fixado, que não

poderia ser disputado por nobres ou clérigos para evitar a feudalização desse poder

diretamente subordinado ao rei. A partir do século XIII, o preboste passou a ser escolhido e

demitido pelo rei de forma direta; tinha como circunscrição territorial uma região

específica, cabendo a ele dar a conhecer e fazer cumprir as ordens reais, recrutar soldados

para o rei, administrar a justiça real, receber rendas e cuidar dos bens do domínio real do

qual era encarregado (cf. Curtis Giordani, 1987: p. 58).

Além dos prebostes, a partir da “guerra dos Cem Anos”, surgiu a figura dos

“governadores”, que inicialmente eram escolhidos pelo rei entre seus nobres principais e

eram enviados como delegados reais para manter a ordem em uma região ampla e distante

quando isso se fazia necessário. Com o tempo esses delegados reais são fixados por regiões

e passam a dirigir a administração que se denomina província.

Sob o prisma financeiro, o reino utilizava as taxas denominadas tonlieu, que

também correspondiam a rendas régias com base no direito de exercer a mercancia sobre a

venda de comestíveis, roupas, vendas em feiras, etc. Havia também outras taxas, como o

pedágio de viajantes e circulação de mercadorias, passagens sobre pontes, entradas e saídas

42 E se incorporou ao sistema monárquico até a Revolução Francesa.

38

de bens e mercadorias pelas cidades, etc. Havia também taxas de distribuição de justiça,

recursos provenientes de rendas sobre os domínios e contribuições dos súditos. Foram

sendo criadas várias taxas durante os séculos, muitas delas tendo sido objeto de

reclamações e revoltas, como aquela contra a taxa criada no final do século XIII, em função

dos estoques de vinho; tal taxa foi denominada de maltôte, muito embora tal termo

designasse uma taxação mais extensiva. Aliás, esse termo acabou denominando a amplidão

dos impostos indiretos.

Já no século XIV, há na França dois tipos principais de impostos: o chamado

fouage, que incidia para cada sede da família (feu); e o imposto indireto, denominado

maltôte, que correspondia a taxas de múltiplos aspectos, como as taxas criadas sobre o uso

de vestes, combustíveis, as décimas cobradas do clero, venda do sal, etc.

A cobrança de impostos reais foi sendo progressivamente substitutiva

daquelas cobradas pelos senhores feudais, impedindo-se ampliativamente a concorrência de

tributos do rei e dos senhores feudais, passando a ocorrer um monopólio real, caminho para

o absolutismo político. Esse também foi o caminho na Península Ibérica, havendo um típico

exemplo no texto das Partidas de Afonso XI, no Ordenamiento de Alcalá, em que se

declara que são dos imperadores e dos reis as águas e poços salgados que produzam sal (Cf.

Curtis Giordani, 1987: p. 190).

Cabe ainda observar rapidamente a moeda: com o chamado Renascimento

medieval, já visto acima, diante da evolução econômica e transformações sociais ocorridas

a partir das cidades repovoadas e criadas, surgiu uma efetiva necessidade de dinheiro.

Curtis Giordani (1987: pp.191-192) elenca alguns fatores que deram origem a essa

necessidade: novas exigências no campo militar (armamento metálico mais custoso,

construção de fortalezas com material mais durável, novas armas), no campo religioso

(novas igrejas, peregrinações e as cruzadas), no campo tecnológico (vários tipos de

moinhos e uso de roda específica, novas formas construtivas, como abóbadas, escadas em

caracol e formas de pavimentação), e no campo doméstico (com melhor conforto e

condições de vida, uso de tecidos, etc.).

Para atendimento dessa demanda, ocorre um aumento de metais preciosos,

em razão da descoberta de minas de prata e cobre (propiciando a ampliação da fabricação

das moedas), do comércio com o Oriente próximo (com o uso de moedas bizantinas e

39

muçulmanas) e do retorno das peças de tesouro saqueadas pelos húngaros e vikings

(normandos). Diante de tal situação, as oficinas de cunhagem de moeda foram sendo

multiplicadas, por interesses da Igreja, dos senhores feudais e mesmo das cidades, tornando

o jus monetae um elemento a mais para a anarquia monetária existente no período feudal

até a Idade Média baixa.

A partir do século XIII, mais precisamente com o rei Felipe Augusto (no

início desse século), passou a ocorrer uma política de unificação monetária em seu

domínio43, com o fechamento das oficinas de cunhagem regionais e centralizando Paris

como ponto de cunhagem do reino, sob sua supervisão. Seu descendente, Luís IX (S. Luís),

regulamentou a cunhagem de moedas, devendo ser notado que este rei incentivou a

circulação de moeda pela população, com a cunhagem de uma peça de prata, o gros. O

mesmo Luís IX passou a cunhar moedas de ouro em 1257, o que ocorreu quase um século

depois na região de Castela, por Afonso XI.

A organização política na Península Ibérica, tendo como base Leão e

Castela, obteve com Afonso X, no início do século XIII, a criação de texto primordial para

a organização política do reino. Trata-se das “Siete Partidas” 44, que estabelecem a

sucessão do reino pela primogenitura, e nesse contexto se consagram ao rei o direito à

promulgação de leis e sua interpretação, recebimento de impostos ordinários, a

responsabilidade direta pela cunhagem de moedas, a nomeação de altos funcionários

palacianos e judiciários, o comando supremo do exército e a administração da justiça e

indulto de penas.

Em Portugal, que recebeu influência marcante das Siete Partidas,

principalmente a partir do século XIV, o papel do rei como monarca e centralizador do

poder nacional é deflagrado pela redução dos direitos dos nobres e do clero, com o

espaçamento das reuniões das cortes e o aumento de delegados e funcionários reais45.

43 A partir do momento em que a ordem dos Templários passa a ser utilizada como base financeira para o reino. 44 “... (assim chamadas, por a partir da sua terceira redacção, se acharem divididas em sete partes – obra que, em Castela, começa por ter um caráter legislativo que, depois, passa a ter uma feição doutrinal e que, em 1348, adquire o valor de direito subsidiário) – é ela um código ou tratado onde se abarca o direito, em geral, nomeadamente romano, de que constitui uma notabilíssima síntese.” (in História do Direito Português, de Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, 2000: pp. 230-231). 45 A centralização do poder em torno do rei, quer na França, Inglaterra, Espanha, Portugal, etc., representa um encaminhamento pela burguesia das cidades de concretização de um poder centralizado e forte, capaz de

40

2 - A organização da Igreja

Desde o episódio denominado “querela das investiduras”, no final do século

XI, marcado pela luta de poder sobre a investidura dos bispos na região do chamado Santo

Império, entre o Papa Gregório VII e o imperador Henrique IV, com reflexos em toda a

região circunvizinha, a Igreja Católica veio a conquistar uma vitória do poder papal,

efetivada no século XII.

No século XI, atribuía-se a regra Officium propter beneficium, pela qual

aquele que obtivesse o gozo de um benefício (região de domínio da Igreja que o

beneficiário utilizava para seu uso e fruto enquanto tivesse a atribuição concedida) mais

rico ou mais importante teria um cargo correspondente a ele. Assim, relacionava-se

benefício a ofício, havendo benefícios maiores, relacionados com arcebispos, bispos e

abades, e benefícios menores, relacionados com padres oradores, curas, etc. A indicação

dos benefícios maiores, a partir do século XII, portanto, passou a ser da autoridade máxima

da Igreja, com anuência dos poderes locais, e não mais o inverso, como ocorria

principalmente antes do episódio da “querela das investiduras” (cf. Ellul, 1999: pp. 240-

242).

Aliás, até o século XII, a nomeação aos benefícios maiores era efetuada

pelos reis ou pelos principais senhores feudais, que entregavam aos beneficiados o anel e a

cruz do cargo (as insígnias) como sinal de troca de atenção pela homenagem e fé a eles

prestadas. Após a reforma gregoriana (a que se refere o episódio da “querela das

investiduras”), cessou o dever de homenagem pelo beneficiado, que passou a ter seu

benefício pela responsabilidade direta do Papa, com indicação de escolha pelos sacerdotes

locais (relacionados à Igreja catedral), permanecendo, entretanto, a cerimônia da entrega do

anel e da cruz pelas autoridades terrenas locais46.

A nomeação dos benefícios menores era efetuada pelos bispos locais; no

caso de domínio de Igreja construída por um particular (geralmente um senhor feudal), o

implantar uma racionalização tributária, estabelecer uma política monetária centralizada, estruturar uma justiça com base nessa centralização política e uma segurança eficaz aos negócios e no dia-a-dia. 46 Ellul (1999: pp. 241-242) destaca que a escolha do bispo se dá por pedido da assembléia eleitoral (padres da localidade em que se encontra a catedral) ao rei para que seja efetuada a eleição. O rei ou o senhor principal dá indicação de seu candidato; a partir daí, os padres votam em sessão sob a direção de um bispo vizinho, e a designação é feita não pela maioria quantitativa, mas pela prioridade qualitativa dos votantes – os principais entre eles. No caso de contestação ao resultado, é feito um apelo de revisão ao arcebispo e depois ao Papa. A partir do século XIII, o Papa passa a nomear diretamente os bispos.

41

fundador apresentava ao bispo sua indicação, que poderia ser anuída pelo mesmo. Caso

houvesse alguma irregularidade na nomeação efetuada, que se denominava direito de

“Patronato”, a mesma poderia ser revisada pelo Papa47.

A hierarquia, após o episódio da “querela das investiduras”, era constituída

inicialmente pelos primados que, a partir de meados do século XII, passaram a se constituir

em títulos honoríficos, embora até esse momento representassem ainda uma chefia da

Igreja no reino. Havia então o arcebispado, com atuação regional e nomeado pelo Papa, que

lhe concedia as insígnias de sua dignidade; a partir do século XIII, a atuação do arcebispo

passa a ser diminuída pela intervenção direta do Papa nas questões regionais. O bispado

também sofreu uma interferência direta do Papado após a reforma gregoriana, pois o bispo

passou a ter de se dirigir a Roma e ali permanecer por quatro anos; além disso, teve seu

papel reduzido quanto à relação de poder com os senhores locais, graças a uma

centralização ainda maior do papado a partir do século XIII.

O clero regular tomou uma nova feição entre os séculos X e XII com o

surgimento do monastério de Cluny, uma ordem baseada nos ensinamentos de S. Bento,

com ampla atuação em diversos reinos, e possuindo, só na região da França, cerca de

oitocentas casas ligadas a ela no meio do século XII. Havia ali um prior (o Abade de Cluny)

que nomeava os priores de todas as casas (abadias), assim como os destituía de forma

unilateral. Tal absolutismo centralizador foi incentivado pelos papas do período, sendo

certo que o Abade de Cluny não estava subordinado senão ao Papa.

A partir do século XI, ocorreu um tipo de reação a Cluny, acusada de

relaxamento das rígidas ordens morais baseadas no beneditismo (S. Bento), sendo criada a

ordem Cister48 a partir da Abadia de Citeaux49, próxima a Dijon. Sua organização era

descentralizada e cada abadia elegia o abade por seus monges, possuindo uma característica

federativa; seu conclave anual, com a presença aberta a todos os seus monges, era o órgão

jurisdicional supremo da ordem. Seu grande teórico foi S. Bernardo, e os cistercienses

denominados de “beneditinos brancos”. Tinham por base uma conduta austera na vida

cotidiana e ênfase no trabalho manual; nos séculos XII e XIII, foram considerados os

47 O mesmo autor supra destaca que o recrutamento dos clérigos de tais benefícios, até o século XIII, era efetuado no meio rural; mas, a partir daquele século, passou a haver um recrutamento de clérigos entre a burguesia comerciante nas cidades, o que veio a transformar a mentalidade do clero desde então. 48 Deserto de Cister em que se situava a Abadia de Citeaux. 49 Comunidade de Saint-Nicolas-les-Cîteaux, a 20 km. de Dijon.

42

maiores cultivadores das terras na Europa em regiões desbravadas. Além disso,

demonstravam profundas preocupações com os miseráveis e tinham como mote o trabalho

livre: “Os homens livres trabalhando sobre um solo livre” 50.

Os templários representavam, por seu turno, a ordem monástica militarizada.

Formaram-se entre monges cavaleiros para lutarem contra os infiéis; a ordem dos

templários foi fundada no século XII (1128), inicialmente supervisionada pelo Patriarca de

Jerusalém, e somente no ano de 1139 foi reconhecida pelo Papa. O mestre da ordem era

detentor de uma autoridade total, intitulava-se “Príncipe e Grande Mestre pela Graça de

Deus”, e podia dispor do patrimônio da ordem; no entanto, precisava de um conclave para

modificar seus estatutos, promover guerras, firmar a paz, receber um cavaleiro e nomear os

representantes regionais. O papa não poderia intervir no seio da ordem, quer na parte

administrativa, quer na parte financeira. A principal e primeira função dos seus membros

era promover a segurança das rotas de peregrinação para Jerusalém. Havia quatro

categorias de participantes: os cavaleiros, pertencentes à nobreza e combatentes; os

sargentos e escudeiros, saídos da burguesia; os capelães; e os criados e artesãos.

Os templários se sobressaíram como operadores de finanças, promovendo

operações bancárias como depósitos, contas correntes, cauções, consignações, pagamento

de rendas, transmissão de dinheiro a distância, etc. Forneciam empréstimos a papas e a reis

(por exemplo, foram muito próximos de Luís IX – São Luís, um rei incentivador de

construções, como a catedral de Notre Dame51, S. Denis e Chartres), tendo ainda aplicado

técnicas de contabilidade bastante avançadas e se aprofundado em técnicas científicas como

a química e construção naval.

Outras ordens religiosas foram criadas nesse período acima, cabendo

destacar como exemplo de ordem mendicante que se transformou parte atuante na

sociedade medieval, a partir do século XIII, a dos franciscanos. Fundada por São Francisco

de Assis, em 1209, foi marcada por crise interna duradoura entre os que defendiam os

50 «Des hommes libres travaillanant sur un sol libre». 51 Os templários tiveram ampla atuação durante as cruzadas e na reconquista da Península Ibérica junto aos mouros. No início do século XIV, suas riquezas foram alvo do interesse de Felipe, o Belo (rei francês), e uma das causas do litígio entre esse rei e o papado. Após a supressão da ordem (1312), com a condenação e morte pela fogueira de seu grão-mestre, os bem imóveis dos templários foram doados à Ordem do Hospital. Mas, em Portugal, Dom Dinis ignorou a ordem papal e criou a Ordem de Cristo com os bens dos templários dali; os soberanos portugueses aplicaram os materiais e as riquezas dessa ordem para financiamento de seus empreendimentos.

43

cânones iniciais do fundador, com ênfase à pobreza absoluta e ausência de organização

regular, e os que consideravam a mendicância inaplicável aos novos tempos no decorrer do

século XIII, com opção pelo sacerdócio regular, estudos universitários e ensino, e daí a

construção de conventos. Denominavam-se essas correntes, respectivamente “observantes”

(mantendo a proposta mendicante) e “conventuais” (com proposta de inserção na sociedade

e nas universidades).

Observa-se que o Papado foi submetendo as ordens religiosas para torná-las

auxiliares em suas reformas, restringindo assim as antigas regras de autonomia (venda de

bens das abadias, por exemplo) e estabelecendo outras, como a necessidade de

relacionamento direto com a Santa Sé e com as outras ordens. Além disso, incentivou a

criação de ordens sob a subordinação direta do Papado, como a organização da ordem dos

dominicanos, ratificada pelo Papa em 1216 (cf. Ellul; 1999: pp. 246-247).

3- Os conflitos políticos entre os reinados e o papado

Desde a “querela das investiduras”52, que representa a tomada de posição da

Igreja e do Papado pela sua inserção definitiva no poder terreno e universal, houve vários

litígios e lutas em função do poder temporal, principalmente a partir daquele momento.

Lima Lopes (2002: pp. 91-93) aponta que

... enquanto durou o regime de cristandade as relações entre o poder civil e poder religioso ou eclesiástico foram tensas. Sobretudo quando os reis quiseram afirmar seu poder jurídico-político e estender o controle jurisdicional sobre todos os habitantes de um território, inclusive o clero. Um dos litígios ocorreu na Inglaterra do reinado de Henrique II53 (que

organizou os tribunais reais e aplicou a figura dos juízos itinerantes), quando o rei

promulgou as Constituições de Clarendon(1164), uma “consolidação de costumes” que

subordinava a Igreja local ao rei, com inserção do poder real sobre casos de benefícios

eclesiásticos, ampliação jurisdicional sobre disputas de terras da Igreja, determinações de

proibições de locomoção de bispos para fora da Inglaterra sem autorização régia, proibição

52 Querela ocorrida em função de litígio entre o imperador germânico Henrique IV e o papa Gregório VII, episódio do século XI, já rapidamente observado na nota 21 anterior e no início do item III – 2. 53 Fundador da dinastia plantageneta, cujo nome provém da planta desenhada no escudo da família real, de procedência francesa.

44

de excomunhão de oficiais da casa real sem autorização real, e outros atos de direção

integral do reino pelo rei.

Em razão dessa promulgação, o arcebispo de Cantuária (Canterbury),

Thomas Beckett, mesmo que amigo pessoal de Henrique II, contrapôs-se ao texto,

declarando que “a verdade supera o costume, a verdade julga a razoabilidade do costume”,

citando padrão canonista inerente ao posicionamento da hierocracia do papado, ligado à

autonomia jurisdicional eclesiástica. Isso deu origem ao conflito que chegou ao apogeu

com o seu assassinato por outros amigos do rei. Embora Henrique II tivesse negado sua

participação no ato, acabou retrocedendo quanto à sua legislação. Mas seu segundo filho,

João Sem Terra, também estabeleceu histórica polêmica, com reflexos até nossos dias54, a

partir do momento em que se negou a aceitar o arcebispo de Cantuária indicado pelo papa

Inocêncio III. Tal ato resultou em um interdito pelo papa à Inglaterra, excomungando João

54 Se o ápice do poder plantageneta ocorreu no reinado de Henrique II, foi seu descendente João Sem Terra que veio a receber o estigma de déspota derrotado. Isso graças ao excessivo centralismo do poder e o excessivo isolamento desse exercício, a excessiva cobrança de impostos e o rompimento com o poder eclesiástico, o que levou à revolta dos barões, com o apoio da Igreja. E aqui surgem dois aspectos para o mesmo fato: em primeiro lugar, os nobres e eclesiásticos que elaboraram a Carta Magna não tinham em mente produzir um documento de garantia de liberdade universal ou de garantia constitucional – seus elaboradores, no início do século XIII, pretendiam uma lista de engajamento feita pelo rei no sentido de respeitar os diversos costumes feudais que ele e seus predecessores diretos vinham violando; no pensamento de seus autores, o texto visava a um retorno à época de ouro do rei Eduardo, o Confessor. Conforme destaca Maurois, citado por Mário Curtis Giordani (1987:p. 72): “Os barões não julgavam estar fazendo uma nova lei, exigiam o respeito dos seus antigos privilégios”. O conteúdo do documento foi, entretanto, formulado por clérigos com fundamentação teórica e teológica de valoração à pessoa humana, ainda que não de forma integral. E o mesmo Maurois, apud Giordani afirma então: “O que faz a importância da Magna Carta é, pois, mais do que ela suscita do que ela é. E aqui o segundo aspecto: para as gerações seguintes, ela se tornará, no sentido moderno, uma ‘carta das liberdades inglesas’, e cada rei até o século XV deverá jurar, várias vezes no curso do reinado, respeitar esse texto”. Entretanto, também aqui se vêem colocadas as premissas de valorização aos direitos do homem já esboçadas, entre outros posicionamentos do pensamento, no estoicismo, e assimiladas pela escolástica, tendo como perspectiva um direito natural e sua projeção histórica. A Magna Carta merece alguns destaques aqui (cf. Giordani, 1987): em seu artigo primeiro declara que atende à Igreja na Inglaterra; a seguir, cabe observar que faz uma concessão: liberdade a todos os homens livres do reino – e aqui se destaque que, no século XIII, quando o rei concede a um senhor um privilégio de manter uma corte de justiça, ou a uma cidade o privilégio de escolher por si mesma seus oficiais, esses privilégios chamam-se ‘liberdades’. É de se observar que no texto há referência de manutenção e obtenção de privilégios para a Igreja, condes, barões e outros vassalos diretos, com a preservação do direito antigo para serviço militar, sucessão feudal, casamento, etc. Também há referência para um tipo de classe média rural feudal (cavaleiros que possuem terras de um barão), pois os barões necessitavam desses vassalos para se defenderem do rei João. Há também uma resguarda dos privilégios burgueses de Londres. E é estabelecida uma concessão de âmbito econômico: a unidade das medidas e dos pesos, a par da proibição de impostos ilegais. Quanto à questão da justiça, cabe observar: a devolução de valores extorquidos à base de multas e apropriações de bens indevidamente requisitados; o princípio do julgamento entre pares a fim de evitar-se a violência e a arbitrariedade; proibição de multas e confiscos legais; o princípio de que a ninguém deve ser negada a justiça e de que nenhum imposto deve ser exigido sem ser aprovado pelo grande conselho do reino (barões e os lugares-tenentes – como os xeriffs).

45

Sem Terra e determinando o fechamento das igrejas dali. Vale lembrar que, na Idade

Média, lugar sem igrejas era inadmissível, pois sem batismo, casamentos, confissões, vida

cotidiana social (festas, encontros, etc.), atos de féretro e tudo o que era essencialmente

para conviver naquela sociedade profundamente religiosa e centrada na Igreja.

Por óbvio, tal pressão daquela sociedade, além daquelas já existentes pelos

senhores feudais em razão de tributos e manutenção de poder nos respectivos feudos,

levaram à edição da Magna Carta de 1215, em que ficou expressa a especificação da

liberdade da Igreja frente ao reinado, com a conseqüência da influência papal sobre o reino.

Em período próximo, houve também confronto em Portugal. Ainda

conforme Lima Lopes (2002: pp. 92-93), no século XII, em 1140, temos D. Afonso

Henriques, que passa a usar o título de rei, somente reconhecido após dois anos pelo tratado

da paz de Zamora, feito com Afonso VII, de Leão; o título real português foi acatado pelo

papa quase quarenta anos depois55. Cinqüenta anos após o episódio de Henrique II e o bispo

de Cantuária, por volta do ano 1220, ocorreu uma disputa entre D. Afonso II e o papa

Honório III, que não aceitou a pretensão do rei português de submeter os clérigos

portugueses aos juízes régios seculares, a par de querer impor ao reino leis imperiais da

cristandade. Isso porque os reis portugueses entendiam que, por terem conquistado as terras

dos mouros, não havia a anterioridade de leis imperiais germânicas no seu solo e para suas

gentes, sendo eles os soberanos do lugar, pelo que poderiam estabelecer suas leis. Tanto é

que até o século XIII houve menções nos éditos reais ao Código Visigótico, estruturalmente

texto de lei romana vulgar.

Tal conflito prolongou-se com o sucessor de D. Afonso II, D. Sancho II,

deposto pelo papa Inocêncio IV, que nomeou o irmão de D. Sancho II como rei de

Portugal, o Conde de Bolonha, que tomou o nome de Afonso III. A situação só se tornou

estável no século XV, com o enfraquecimento de poder do papado pela sua divisão, quando

represtinado, após revogação por anos, o édito do beneplácito real, pelo qual a legislação

canônica só teria aplicação em Portugal com a autorização do rei.

Temos que destacar ainda o episódio conhecido como a “querela

bonifaciana”, mais precisamente o conflito entre o papa Bonifácio VIII e o rei francês

55 Até então foi tratado como dux pelos papas, cabendo ao papa Alexandre III, pela bula Manifestis probatum est, reconhecer D. Afonso como rex (Gomes da Silva; 2000: p. 146).

46

Felipe, o Belo, no final do século XIII e início do século XIV (1295 a 1303). Enquanto o

papa Bonifácio VIII se mantinha fiel ao posicionamento da Igreja desde o papa Gregório

VII (parte integrante da “querela das investiduras”), com a concepção universalista do

império cristão regido a partir da Igreja56, Felipe, o Belo, representa um novo

posicionamento do reino francês inspirado pelo nacionalismo, até mesmo na língua

nacional utilizada, como em outros reinos na mesma época.

Vale observar que Felipe IV, ou, o Belo, utilizou-se do conhecimento

jurídico de seus assessores, influenciados pela recuperação ou redescobrimento do direito

romano57, particularmente em relação à estrutura institucional do Império Romano,

centrado na figura do Imperador como fonte principal do direito. Mas, ao mesmo tempo,

não aceitavam a carga do poder histórico cristão do império germânico-romano do

Ocidente, propugnando por um centralismo nacional francês, em detrimento ao domínio da

hierocracia papal romana. Não aceitavam, assim, os cânones eclesiásticos romanos como

fonte principal do direito, mas entendiam que o direito deveria ser observado a partir de sua

natureza universal e humana.

Essa vontade de independência nacional do reino e concentração do poder

no rei foi manifestada no fim do século XIII pela referida “querela bonifaciana”, que se fez

representar através de dois conflitos principais: um, da décima (ou dízimo), outro

relacionado à jurisdição. O conflito surgido pela décima relacionou-se com a elevação de

tributo do reino junto aos prelados e sua cobrança, principalmente diante dos custos do

reino frente a conflito armado com os ingleses. O clero defendia sua isenção, no que era

acompanhado pela nobreza; mas a razão principal da querela é que tal aumento e cobrança

de tributo não passaram pela aquiescência papal, que se tomava como superior hierárquico,

inclusive quanto ao poder temporal sobre o rei. Desse modo, o rei Felipe IV, ao promover

em 1294 a ordem de recolhimento do tributo, teve, diante de uma assembléia de prelados e

nobres, um pedido de intervenção papal, o que ocorreu pela bula Clericis laicos. Essa

legislação determinava a aprovação do papa para quaisquer tributos ao clero e ameaçava o

poder laico que descumprisse tais ordens de excomunhão, assim como os clérigos que

pagassem tal cobrança (cf. Basdevant-Gaudemet e Gaudemet; 2003: pp. 136-138).

56 A doutrina de que não haveria distinção entre o poder temporal e o espiritual, cabendo ao papa a superioridade frente aos demais príncipes. 57 Os assessores passaram a ser chamados legistas em contraposição aos canonistas ou decretistas.

47

Embora tenha sido editada essa rigorosa bula, o papa Bonifácio VIII e o rei

francês, em seguida, atenuaram seus posicionamentos e fizeram vários atos de

demonstração de entendimento e suavização de seus pontos de vista. Entretanto, já vinha de

algum tempo a existência de conflitos de aspecto jurisdicional entre o reino e o clero, diante

de ordenança editada em 1274, que ressalvava o privilégio de julgamento pelos juízes do

reino para clérigos que fossem casados e comerciantes ou comerciantes não casados, além

da possibilidade de punição aos clérigos que portassem armas ou atos correlatos, como

crimes com flagrante delito, etc..

Mas, em 1301, ocorreu o chamado “caso Saisset”58, mais precisamente um

conflito com o bispo de Palmiers, Bernard Saisset, que havia sido acusado de complô

contra o reino: o rei Felipe IV convocou um tribunal composto de prelados e nobres

dirigidos por ele para instaurar um processo contra o referido bispo. O papa, em seguida,

advertiu o rei para suspender o processo iniciado, editando duas bulas: uma, tratando da

superioridade temporal do papa sobre os reinos e reprovando os atos reais contra o interesse

da Igreja (Ausculta fili) e, outra, convocando em Roma um concílio de bispos franceses

para julgamento do bispo Bernard Saisset (Ante promotionem). Felipe, o Belo, em

contraposição ao papa, convocou um tribunal na Igreja de Notre Dame e apresentou uma

versão falsificada da bula Ausculta fili, passando a criticar sua violência e o rigor extremo

de seus termos, referindo-se a ela nos termos de uma proclamação: “Saiba da tua enorme

presunção”(Basdevant-Gaudenet e Gaudenet; 2003: p. 139)59 E o tribunal de Notre Dame,

tanto a nobreza como o clero local, tomou uma resolução de apoio ao rei contra o papa, e de

negativa de ida a Roma pelos clérigos franceses.

Mesmo assim, o concílio designado em Roma pelo papa Bonifácio VIII

ocorreu em novembro de 1302, com trinta e nove prelados e abades franceses e, dali, surgiu

uma outra bula papal, a Unam Sanctam. Tal bula insistiu na hierocracia com o papel de

sujeição do reino à Igreja através do papa, sem entretanto formular críticas diretas a Felipe

IV, sob influência do clero francês, que pretendia uma reaproximação entre o papa e o rei.

Apresentada uma relação de doze erros reais pelo papa, nessa tentativa de composição pelas

partes, o rei editou uma ordenança denominada “Reforma do Reino”, em que admitiu voltar

58 L’affaire Saisset. 59 «Saches ta trés grande fatuité».

48

atrás em alguns temas apontados na relação referida. Mas, na corte de Felipe, o Belo, o

setor mais extremado, liderado pelos chamados legistas (Guilherme de Plaisian e

Guilherme de Nogaret), passou a defender a tese de que ao rei francês cabia zelar pela

cristandade, inclusive em relação às atitudes papais, pelo que, diante das heresias

constatadas pelos atos do papa, deveria o rei instalar um concílio para julgar o papa

hereje60.

O setor extremado nacionalista, tanto do reino, quanto do clero, ampliou sua

posição e passou a fortalecer seus ataques com o respaldo político do reino e crítica ao clero

“estrangeiro”; em resposta, o papa Bonifácio VIII editou bula excomungando o rei francês

e determinou que o cardeal Lemoine afixasse o édito na catedral d’Anagni. Mas essa

localidade estava sob as ordens de Guilherme de Nogaret (legista) que, com o apoio do rei,

promoveu o episódio denominado “atentado d’Anagni”, em que impediu o ato de

excomunhão e também submeteu o papa à sua guarda, configurando uma atitude de

seqüestro. O papa conseguiu voltar para Roma, mas, pouquíssimo tempo depois, veio a

falecer. Foi escolhido um outro papa, Bento XI, que se refugiou em Perúgia, mas faleceu

oito meses depois.

A morte de Bonifácio VIII permitiu a Felipe IV livrar-se da excomunhão e,

logo após a breve sucessão do papa posterior, veio a conseguir que fosse eleito um papa

francês, em 1305, Clemente V, tendo ainda conseguido liquidar a ordem dos templários,

sob a acusação de heresia, assumindo todas as suas riquezas na França. Também a eleição

de Clemente V teve contestações em Roma, pelo que foi abrigado em Avignon, no sul da

França, sob total influência do reino francês.

A vinda do papado para Avignon significa o início da divisão da Igreja de

forma a afetá-la historicamente em seu poder sobre a cristandade. Esse fato, o nacionalismo

nascente e a aliança da burguesia ascendente, que dava apoio financeiro aos reis, acrescido

ainda da coleta centralizada de impostos, foram fatores de fortalecimento do centralismo

monárquico, baseado na burocracia e na organização dos exércitos61, o que diminuiu

60 E por eles é retomada a concepção adotada pelo rei Felipe Augusto, logo no início do século XIII, pela qual o rei da França não se subordinava ao Império: a tese do “galicanismo”, com princípios e doutrinas próprias da Igreja gaulesa (retomado mais tarde no século XVII e simbolizado pelo grande orador eclesiástico Bossuet). 61 A burocracia foi composta pelo conjunto de normas racionais administrativas e um grupo de funcionários preparados para o exercício administrativo do poder. Os exércitos nacionais, de início, foram montados com

49

também a força dos nobres oriundos do feudalismo. Dá-se, neste contexto, o início do

declínio da Idade Média.

IV – O contexto jurídico

Pretendemos aqui observar o contexto jurídico a partir do período da

chamada “Renascença medieval”, momento em que, concomitantemente à organização

temporal da Igreja, dá-se a formação efetiva do direito canônico e a sua discussão, com a

incorporação do estudo do direito romano nas iniciantes universidades62.

Vale observar o Direito, no início daquele período, em que, de acordo com

Lima Lopes (2002:pp. 73-78), os conflitos eram resolvidos ou com processo ou com guerra

(“Deus e o meu direito”), sendo a guerra um tipo de prova judiciária (ordália) entre os

senhores. Invocavam-se antes os argumentos jurídicos, os direitos costumeiros, direitos

históricos, mas, não se atingindo um bom termo ou forma de arbitrar o conflito, a guerra

traria o resultado esperado ou frustrado, sempre sob o uso do argumento da graça divina. O

autor referido lembra o uso de compilações escritas de vários sistemas feudais, como os

Usos de Barcelona, de 1068, a Carta de Pisa, de 1142, além de direitos reais na Sicília,

França, etc. para a solução dos conflitos judiciais.

1- O direito costumeiro

O costume era a fonte de direito principal durante a alta Idade Média, vez

que o direito romano fora alijado diante das invasões bárbaras; no máximo, para alguns

povos invasores, havia sido incorporado pela influência do período do Império Romano.

Em algumas dessas populações havia ocorrido o que se denomina a implantação do direito

romano vulgar, tal qual o uso do latim vulgar e outros costumes romanos incorporados e

adaptados pelos chamados povos bárbaros63.

mercenários pagos; tais forças permitiram aos reis impor suas autoridades aos senhores feudais e, de forma concomitante e sucessiva, passaram, por fim, a estabelecer um monopólio militar (cf. Raymundo Campos; 1989: pp. 214/216). 62 A primeira universidade ocidental iniciou-se em Bolonha, no século XI. 63 Como exemplo, temos o Código Visigótico, usado pelos visigodos que haviam convivido com o Império Romano e se instalado na Gália e Península Ibérica antes dos muçulmanos.

50

Com o desaparecimento do império carolíngio, a autoridade jurídica se

desmembrou pelas pequenas senhorias que, em sua maior parte espalhadas e, de certo

modo, longe de poderes centrais, passaram a utilizar-se dos costumes locais tendo em conta

regras morais e religiosas.

Curtis Giordani (1987: pp.236-240) destaca que o período em foco possui

um grande número e diversidade de costumes e que, principalmente durante os séculos X e

XI, cada senhoria possuía seus próprios costumes. Mas, a partir do século XI, passou a

ocorrer uma cristalização de costumes nos centros mais importantes, como na Normandia, e

ocorreu sucessivamente uma uniformização e ampliação de seu uso de forma mais

abrangente nas regiões circunvizinhas, como no caso das compilações já exemplificadas

acima. Este autor aponta que a fixação dos costumes por escrito ocorre principalmente a

partir do século XIII, na forma de coutumiers, que possuem “uma exposição de conjunto

das regras costumeiras e destinadas a servir de guia aos práticos e aos juízes”. Vale destacar

ainda a obra de um jurista compilador sobre os trabalhos jurídicos no período de S. Luís

(Luís IX) denominada Les Etablissements de Saint-Louis, de 1270, em que consta a

Ordenança de S. Luís suprimindo o duelo judiciário, a reprodução de coutumiers da região

de Anjou e do Maine e numerosas referências ao direito romano e ao direito canônico.

2- O direito romano

A partir de Bolonha, primeira universidade da cristandade, há que se

destacar o trabalho de um mestre no século XI, Irnério (ou Guarnério ou Warnério), que

ficou conhecido como o responsável pelo renascimento do direito romano naquele período

(Curtis Giordani; 1987: p. 245). Da mesma forma que em Bolonha, também em Provence

(Aix), Lombardia e Ravena, passou-se a transmitir os estudos de direito romano, a partir do

pressuposto de que tal direito abarcava uma universalidade em seus princípios norteadores;

além disso, ressalte-se sua incrível adaptabilidade àquele momento histórico de recuperação

urbana e crescimento do comércio. Curtis Giordani cita Vinogradoff para considerar a

Summa (súmula) do Código de Justiniano, conhecida como Lo Code, como a “mais

interessante contribuição da França ao ressurgimento do Direito Romano”; ela foi redigida

em provençal para os juízes da Provence em torno de 1149. Tal trabalho foi realizado por

glosadores, que também atuavam na Lombardia e em Revena.

51

Entretanto, foi Bolonha, por sua posição estratégica e proximidade

geográfica e política com o papado romano, que passou a representar o principal pólo de

irradiação dos estudos jurídicos relacionados com o direito romano, quer por ser um ponto

de convergência na intensificação dos estudos naquele momento histórico (em razão de sua

posição geográfica e política) de desenvolvimento, quer por sofrer a influência de

estudiosos ligados à reforma gregoriana, que buscavam textos do direito romano para

poderem contrapor argumentos de enfrentamento ao discurso jurídico dos imperadores

germânicos, em prol no posicionamento político da Igreja.

Vale destacar o trabalho dos glosadores: sendo considerado o fundador dessa

concepção, Irnério destacou-se pelas anotações feitas à margem dos textos da legislação

Justiniana (notadamente o Corpus Juris Civilis). As glosas eram interlineares ou marginais

às páginas dos textos romanos: entre linhas, as breves explicações sobre o que estava

escrito nas linhas originais e, à margem dos textos, as explicações mais detalhadas e

aprofundadas sobre o escrito naquele lugar. Adotavam a interpretação exegética, literal,

sem generalizações ou mesmo digressões. Curtis Giordani (1987: pp. 248/250) ainda

observa que, com o tempo, as glosas passaram a ser compostas em textos próprios,

denominados de súmulas (summae), comentários de partes escolhidas de textos

(apparatus), ou de hipóteses relativas aos textos (casus), ou ainda regras jurídicas retiradas

dos textos (brocardi).

São apontados como grandes os defeitos dos glosadores a partir de seu parco

conhecimento filológico, o que incidia em grandes erros etimológicos (erros de tradução ou

adequação), erros de escrita e deficiência sobre o conhecimento histórico (o que era muito

usual na Idade Média64); entretanto possuem o mérito de terem tornado acessível o direito

romano aos juristas medievais através das suas glosas. O outro glosador que se tornou

referência até em textos reais de diversos países (Ordenações Manoelinas, por exemplo), foi

Acúrsio, autor da Magna Glossa, florentino professor da universidade de Bolonha.

No final do século XIII, surgiu um movimento de contraponto aos

glosadores, que possuíam ainda uma postura estática frente ao texto romano, representado

64 Por exemplo, nos vitrais da Saint Chappelle, capela reconstruída por S. Luís em Paris, há uma genealogia do rei capeto que o coloca como descendente do rei Salomão, de Israel; ou então, na lenda escrita por um clérigo a Carlos Magno, sobre o bispo decapitado de Paris, S. Denis (Dionísio), do século III, há a identificação desse santo com Denis (Dionísio), o Aeropagita, amigo grego do apóstolo Paulo, do século I da nossa era.

52

pelo bispo de Verdun, Jacques de Revigny (falecido em 1296); isso em pleno caminhar das

mudanças políticas, religiosas e econômicas ocorridas após a Renascença medieval. Foram

os pós-glosadores que passaram a ter um posicionamento mais participativo e includente

sobre os textos de direito romano, antes só comentados de forma restritiva ou literal. Os

pós-glosadores procuraram extrair dos textos romanos princípios ou teorias para atender

aos casos práticos que foram surgindo de forma mais ampla, pela complexidade maior das

relações naquela sociedade em mutação. A partir dos silogismos e método dedutivo,

passaram a adaptar o direito antigo aos novos tempos. O seu principal representante foi

Bártolo de Sassoferrato (1314 a 1357), também usado como referência interpretativa pelas

Ordenações do Reino portuguesas.

O método silogístico e dedutivo dos pós-glosadores era composto de sete

momentos (cf. Curtis Giordani; 1987: pp. 250-252): premitto (esclarecimentos de ordem gramatical); scindo (dividem-se as diversas partes do texto a ser comentado); summo (resume-se o texto em questão, usando-se para isso a obra de Bártolo e de Baldo que continha uma síntese pronta para cada caso, pois esses autores haviam feito um comentário de quase todo o Corpus Juris); casum figuro (exposição de um caso prático a que se refere determinada lei); perlego (relê-se o texto); do causas (indicação das várias questões a que se pode aplicara mesma passagem); connoto (resumo de tudo que foi tratado) (p.252). O lema dos pós-glosadores era “qui bene distinguit, bene docet (quem

distingue bem, ensina bem)”65. O autor referido ainda acrescenta que esse pensamento

lógico usualmente era aplicado de forma cansativa e obsessiva, o que resultava em divisões

e subdivisões excessivas e maçantes.

Entretanto, como mérito dessa escola, destaca-se a criação de institutos

novos não existentes no direito romano, a par de promover uma inserção e correlação entre

o direito romano e o direito costumeiro, sendo teórica e praticamente responsável pelo que

se denomina o jus commune, cuja principal fonte (mas não a única) era o direito romano. A 65 Encontramos na baixa Idade Média um posicionamento dos juristas pós-glosadores, ou comentadores, que não mais apenas comentavam em glosas (comentários ao lado dos textos do Corpus Juris Civilis), mas também emitiam suas opiniões diante dos textos clássicos e seus comentários. Eram mais práticos, pois respondiam a consultas de partes interessadas. No dizer de Lima Lopes (2002: p. 135) “não queriam a antiguidade pela antiguidade, mas para seu próprio uso e interesse. Não tinham a paixão pelo texto clássico puro, como diz Wieacker, mas pelo seu valor contemporâneo”. Esses pós-glosadores, repensando as glosas anteriores sobre os textos romanos, passaram a observar a necessidade de outros posicionamentos frente a situações novas, observando o limite entre o justo e o formal. Daí, temos como exemplo contundente de aplicação do justo no âmbito privado, a formação da cláusula conhecida como rebus sic stantibus em antagonismo à tradição romana do pacta sunt servanda: Contractus qui habent tractum sucessivum et dependentiam de futuro, rebus sic stantibus intelliguntur.

53

partir dele, o direito passa a ser conduzido pelos costumes e pela aplicação do justo (em sua

concepção aristotélico-tomista).

3- O direito canônico

Desde Gregório VII, no século XI, a Igreja se postara pelo seu direito de

legislar e aplicar adequadamente o poder a si avocado. Ao papa também cabia aplicar a

interpretação autêntica das antigas normas, e aos canonistas, aqueles que estudavam e

propagavam os direitos de acordo com as regras eclesiásticas, tendo como base a formação

divina da Igreja, cabia o papel de formar o pensamento e a atuação para as questões

surgidas que precisavam de resolução.

Lima Lopes (2002: pp. 93-95) aponta que a jurisdição e a aplicação do

direito naquele período eram mais do que uma função específica, mas a principal função do

poder, pois limitava por cima (com a aplicação do direito natural e da tradição) o exercício

do poder; no âmbito usual, no dia-a-dia comum, influenciava o exercício do justo,

misturando a decisão judicial com interpretação, legislação aplicada e resposta aos

problemas locais; cada resposta formava um precedente e uma regra a ser observada. Este

autor assim explica: O intérprete cristão (assim como os judeus e os muçulmanos, de culturas também influentes naquela época e também religiões de livros) precisava vencer a distância temporal que o separava dos fundadores, e a distância contextual que separava redator e leitor do texto. (p. 94) A Igreja foi forjadora de uma multiplicidade de normas, quer por concílios

ecumênicos quer regionais, e aplicava-as em cada bispado e até em cada freguesia. A

organização dessa plêiade de normas e interpretações passou a ser objeto de textos

importantes, destacando-se o trabalho de Yves de Chartres (bispo de Chartres), com três

obras principais visando a organizar a pluralidade dos textos e aplicativos: Pannormia,

Collectio Tripartita e Decretum. Meio século depois, surgiu Graciano, monge professor de

teologia em Bolonha, vivente no tormentoso momento ligado à autonomia temporal da

Igreja e influenciado por Santo Abelardo e pelo emprego da lógica dialética. É dele o

principal texto dos cânones desse período: Decreto de Graciano, que possuía o título de

Concordia Discordantium Canonum. Tal obra se compunha de mais de 3.800 textos no

54

estilo escolástico, buscando a hierarquia dos princípios e procurando eliminar as

“antinomias dos cânones” (Lima Lopes; 2002: p. 9466).

O Decreto de Graciano se utilizava de quatro critérios: o primeiro,

distinguindo pela filologia os sentidos das normas; o segundo, distinguindo as normas pelo

tempo de vigência; o terceiro, dando destaque ao espaço de vigência e o quarto, dando

ênfase à matéria específica tratada. A obra possuía três partes: a primeira, mais de cem

distinções como princípios, relacionadas com o direito canônico e suas fontes; a segunda,

composta de 36 causas ou hipóteses aplicativas resumidas; a terceira possuía cinco

problemas relativos aos sacramentos ou sacramentais, como o jejum, batismo, etc. A

influência do Decreto de Graciano sobre os cânones foi tanta que seus seguidores passaram

a se denominar decretistas ou canonistas; o próprio papa Alexandre III foi aluno de

Graciano e também professor em Bolonha. Foi nesse contexto que se organizou a

burocracia eclesiástica e se criou a forma fiscalizadora da fé: o Tribunal da Inquisição.

Tal característica de organização do poder e da atividade jurídica resultou na

elaboração de decretais, tipos de decisões ou respostas de consultas que passavam a ter a

força de decretos, de origem papal, ou por resolução de concílios. Os decretais editados

foram consolidados por ordem de Gregório IX em 1234, e tomaram o nome de Decretais de

Gregório IX; eram compostos em cinco livros: um, tratando de fontes do direito e

hierarquia (judex); o segundo, tratando de matéria processual (judicium); o terceiro, sobre o

clero, sacramentos e coisas (clerus); o quarto, sobre o casamento (connubia) e o quinto,

sobre delitos, penas e procedimento penal (crimen). Tal obra tornou-se oficial e foi enviada

para as universidades para seu ensino; sua estrutura serviu de base para outros textos, como

por exemplo, as Ordenações do Reino em Portugal.

Ainda foi organizado, por ordem de Bonifácio VIII, em 1298, o sexto livro

de decretais, que tomou o nome de Sexta, com os cânones do Concílio de Lião (Lyon) e

decretais desse papa. Foram ainda editadas, em 1314, as decretais Liber septimus, que

tomaram o nome de Clementinas, por ordem do papa Clemente V, tendo ainda

posteriormente sido criada a coletânea de decretais chamadas de Extravagantes, com vinte

decretais de João XXII (1245-1334) e de outros papas anteriores.

66 Utilizamos muito nesta parte o importante e didático livro de Lima Lopes, O Direito na História, bem como Curtis Giordani, em seu História do Mundo Feudal II.

55

Vale observar que o trabalho dos canonistas resultou em vários princípios de

cunho jurídico-político, destacando-se o princípio eletivo, pelo qual a escolha do papa,

assim como de outros cargos, era efetuada pelos próprios pares (reflexo do contexto

feudal); assim, os monges escolhiam o abade, os cônegos escolhiam o bispo e os cardeais

escolhiam o papa. Tal formato deu à Igreja e à sociedade que a entremeava um caráter

corporativo e hierarquizado, formado entre os que escolhiam e aqueles que não escolhiam.

O segundo princípio a ser destacado é o da soberania das corporações, pelo qual, das

decisões dos órgãos respectivos (concílios, por exemplo) não caberia recurso, sendo a

corporação soberana em seus atos; ao papa cabia apenas intervir para sanar irregularidades

e mandar refazer atos considerados viciados. Outro princípio formado foi o assemblear,

pelo qual os concílios passaram a ser considerados praticamente uma assembléia legislativa

européia. Por quarto princípio tinha-se o monárquico, em que se estruturou a atuação papal

como uma monarquia, estendendo-se o braço papal aos seus legados, núncios, delegados,

coletores, etc. Os bispos eram também soberanos em sua diocese, atuando como juízes e

legisladores, tudo entremeado pelo corpo burocrático.

4- A aplicação da justiça

Lima Lopes (2002: pp. 100-104) observa que a estruturação do processo

canônico foi composta por profissionais da Igreja de atuação no processo, o que formou a

prática de autonomismo, racionalidade e formalidade para resolução de controvérsias, com

nítida influência do pensamento filosófico do período. Este autor destaca ainda que o

diferenciador entre o direito insular (inglês) e o continental se dá no âmbito da formação

jurisdicional, pois o processo canônico nunca foi incorporado nas cortes de justiça

britânicas, ao passo que, na Europa continental, o processo canônico precedeu à

organização das cortes de justiça reais. Assim, o processo canônico é que proporcionou a

caracterização da condução do processo por profissionais do direito, além do

reconhecimento de um sistema de recursos em busca de uniformização; deu-lhe, ainda, uma

característica investigativa67, e ênfase ao texto escrito, com a estruturação de um modelo

67 Aqui merece referência trabalho de Foulcaut (A verdade e as formas jurídicas; Nau Editora, Rio, 1999) em que esse intelectual francês aponta o processo inquisitório do direito canônico como base iniciadora do processo de busca da verdade científica futura.

56

cartorial no processo. Estas são as bases do chamado ius commune, com feição romano-

canônica.

Como o processo canônico foi a base utilizada pelo processo comum na

Europa continental, vale a pena observá-lo em primeiro lugar. E a base do direito canônico

foi o direito natural,

a razão legal, um princípio de coerência interna. Era mais um processo de harmonização lógica, moral e política. Nada ou pouco tinha a ver com a dogmática, ou com uma exegese de regras: a dialética do caso concreto estava sempre presente (Lima Lopes; 2002: p. 99). A atuação intelectual dos canonistas ou decretistas era principalmente

harmonizar e compor hierarquicamente as fontes de autoridade, tendo como primeiro plano

as escrituras sagradas e os textos dos padres da Igreja; em segundo plano, os cânones

originários dos concílios eclesiásticos; e, em terceiro plano, as decretais dos papas, a par

dos costumes locais a serem aplicados.

Havia dois âmbitos de foro: o interno, relativo aos pecados e penitência,

vinculado à consciência do cristão, e o externo, relativo à matéria jurídica, em que era

aplicado o juizado nos conflitos de direito entre os cristãos. As questões relativas à razão de

matéria, ou seja, causas que envolviam problemas que se relacionavam aos sacramentos,

como o casamento, juramentos, ou então tinham relação com assuntos diretamente

relacionados com o cumprimento ou respeito à fé, como a usura, a heresia, etc., ou mesmo

por escolha como arbitragem, eram da competência dos tribunais canônicos.

Da mesma forma, quando se tratava de questões em que eram partes pessoas

integrantes da comunidade eclesiástica, ocorria a jurisdição canônica. Ela era composta,

inclusive, por membros de ordens menores ou com alguma função clerical; nesse foro em

razão de pessoa se incluíam aqueles que participavam de órgãos anexos às catedrais, ou

mosteiros, como universidades, ou então os que participavam das cruzadas, ou mesmo os

que eram atendidos pela ação beneficente da Igreja, como os miseráveis, órfãos e viúvas (o

bispo era considerado, pela doutrina eclesiástica, um pai dos pobres). Mas eram os clérigos

que gozavam do denominado privilégio absoluto do foro canônico (cf. Lima Lopes; 2002:

pp.99-101).

No âmbito dos conflitos da esfera civil, o processo canônico fez introduzir o

texto escrito e a função notarial; como um secretário do juiz, o redator das fórmulas e atos

57

judiciais permitia a facilitação na constatação das controvérsias apresentadas. Também

foram organizadas as fases para o andamento do processo: a queixa escrita do autor, as

matérias preliminares e formais para apreciação do libelo, a defesa do mérito, a fase das

provas (que permitiu a superação das ordálias, salvo no caso da Inquisição) e, por fim, a

decisão. A par disso, havia a presença de um perito que atuava com a parte, sem relação de

interesse direto como parte: o advogado. O outro âmbito do processo canônico que ficou na

história de forma ignomiosa foi o processo inquisitorial; e isso em função dos tribunais da

Inquisição, que representaram o lado extremado e radical de um momento histórico. A bula

papal Excommunicanibus (1231), de Gregório IX, organizou o procedimento inquisitorial e

determinou aos dominicanos as principais tarefas inquisitoriais. O uso da tortura para

produção da prova foi admitido por Inocêncio IV, restando à parte, no entanto, o direito a

advogado.

Vale destacar, no entanto, a contribuição do direito canônico para a figura

ficcional da pessoa jurídica, que se criou na concepção da corporação, que não possuía raiz

da família ou da relação feudal da vassalagem. Sua concepção, certamente influenciada

pela ficção bíblica da trindade (três em um), tinha como parâmetro a Igreja, considerada

uma universalidade própria e distinta de cada membro. Lima Lopes (2002: pp. 101-102)

aponta alguns princípios dessa criação teórica:

a) O princípio da autonomia da associação: qualquer grupo podia juntar-se para formar uma pessoa jurídica (corporação); qualquer corporação detinha jurisdição sobre seus membros (não só as corporações públicas ou políticas); c) havia casos em que o representante deveria ouvir os representados, sob pena de invalidade de seus atos; d) solidariedade entre os membros da corporação: aquilo que pertencia à sociedade pertencia aos seus membros, daí se originava o poder de taxar os respectivos membros; e) quanto aos crimes e à pena imposta o princípio era que o praticado pela maioria dos membros era imputado a todos da sociedade, os praticados pelo representante apenas não se estendia à sociedade toda. A justiça senhorial, proveniente do império carolíngio, relacionava o direito

de justiça com o senhor feudal e incorporava-se às decisões administrativas e demais

poderes dessa senhoria em seu território; daí o direito do senhor feudal de confiscar,

desconstituir herdades, aplicar penalidades, etc. Assim, o senhor do feudo era também juiz

dos procedimentos civis, criminais, administrativos, nos limites da extensão das suas terras

e sobre todos os habitantes que estavam ali fixados, ou que se mantivessem por mais de um

dia no feudo, inclusive clérigos e estrangeiros naquilo que se referia ao espaço senhorial.

58

Desde meados do século XIII, passaram a existir dois tipos de justiça senhorial: uma, a

justiça de sangue, chamada de Alta Justiça, que se relacionava a casos de derramamento de

sangue, crimes em que poderia ser aplicada a pena de morte e de duelo judiciário; a Baixa

Justiça atendia a todos os demais casos. A partir do século XV, surgiu o grau intermediário

para os casos atendidos pela Baixa Justiça, sendo daí a Baixa Justiça atuante para causas

civis de questões de menor importância ou para crimes de menor gravidade.

Principalmente na França, havia uma tradição de existir em cada feudo um

tribunal senhorial, o que influenciou a Inglaterra em razão da invasão normanda à Grã-

Bretanha no século XI; e a base desses julgamentos era ter o direito de cada um ser julgado

por seus pares: “cavaleiros por cavaleiros, plebeus por plebeus e servos por servos” (Curtis

Giordani: 1987: p.278). Mas houve também uma mudança nessa trajetória, pois, com o

tempo, os plebeus vão perdendo o interesse de participar de assembléias para julgamento de

seus pares (já que dispunham de pouco tempo para si mesmos) enquanto o poder de justiça

do senhor feudal se consolida como algo superior68. A partir do século XII, somente os

nobres mantiveram o direito de julgamento pelos pares. Aliás, nessa época, os

procedimentos senhoriais eram influenciados pelas tradições francas69, notadamente na

região da França, sendo os atos procedimentais todos orais, com a presença das partes,

inclusive havia o julgamento oral, tudo em formas ritualísticas. A prova nesses

procedimentos relacionava-se com as ordálias, atos de manifestação divina, quer por

testemunhos, quando a dúvida entre eles era resolvida por duelo, quer pelas provas: de

fogo, água, ferro em brasa, etc. (cf. Ellul; 1999: p. 172).

No início do século XIII, com as mudanças urbanas e de poder se

concretizando mais firmemente (importância do comércio, maior presença temporal da

Igreja, universidades, início dos processos de maior concentração do poder real, etc.),

começa a ocorrer uma transformação no procedimento judicial, sobretudo na França, em

que ocorrem éditos reais de Luís IX (S. Luís): passam os tribunais a utilizar procedimentos

novos sob a influência canônico-romana, com peças e atos escritos; vão sendo eliminados 68 Desse período a existência de “corte baron” para os vassalos (quatro vassalos julgavam um vassalo) e corte costumeira para os vilãos (que era presidida por um preboste assistido por especialistas de direito e nos costumes locais). Na região meridional francesa, com maior influência romana, o exercício do julgador era visto não como algo entre pares, mas superior sobre os submetidos a julgamento, 69 Bárbaros que se cristianizaram no final do século VI e, com apoio da Igreja, expulsaram os visigodos (que anteriormente tinham sido convertidos ao arianismo – concepção considerada herética desde o concílio de Nicéia) da região da França para a Península Ibérica.

59

os ritualismos e acrescida a lógica racional, principalmente para as provas, com certos

textos escritos valendo como prova plena; as testemunhas têm o testemunho transcrito, etc..

Tais mudanças ocorrem a partir da corte real, para os grandes senhorios feudais e

paulatinamente vão se ampliando para as demais jurisdições entre o século XIII e XIV.

No âmbito das cidades revigoradas após o século XI, com a presença da

burguesia, estabeleceu-se o denominado “direito de justiça” (Ellul; 1999: p. 221). Para as

cidades era nomeado, pelo rei ou por importante senhor feudal, um magistrado (prévôt) que

prestava os serviços judiciais, comumente assistido em seus atos por um grupo escolhido

(excepcionalmente eleitos, como em Bourges) de homens íntegros (boni viri ou

proud’hommes). A justiça nas cidades foi adquirindo autonomia e sucedendo à justiça

senhorial, formando-se conselhos judiciários (tribunais locais) para questões civis e

criminais. As penas para os delitos dos burgueses eram, por exemplo, o banimento, a

destruição da casa de habitação e do lugar de atividade comercial e multa.

Os tribunais régios, como já visto, influenciados pelo direito canônico,

tiveram na França, desde o reinado de Luís VII, um corpo judicial, em que eram chamados

de prud’hommes, viri sapientes ou jurisprudentes ou judices nostri. Passaram a se tornar

uma seção especial denominada Parlamento (maîtres de la Cour) em 1260, durante Luís

IX, com quatro sessões anuais. Este o embrião do Parlamento de Paris, que veio, com o

tempo, também a apreciar questões entre nobres e, neste caso, desde que composto pelos

“Pares de França”.

Embora a figura da apelação fosse utilizada na região meridional francesa

(Provence), o Parlamento de Paris passou a ser, a partir do século XIII, o tribunal

admissível dos recursos às decisões das cortes senhoriais, quando do interesse régio, sem

que houvesse, entretanto, possibilidade de revisão de decisão senhorial por outra corte

senhorial. A partir desse Parlamento se deu início à contribuição ao direito pelos tribunais

judiciais, por intermédio de seus julgados, com interpretação e aplicação do direito

existente ao momento.

Hespanha e Macaísta Malheiros, em nota de tradução da Introdução

Histórica do Direito (Gilissen; 2001: pp. 396-398), informam que em Portugal coexistiram,

após sua formação, quatro sistemas jurisdicionais: o comunitário-concelhio, o senhorial, o

eclesiástico e o régio. O primeiro, com bases romanas e visigóticas, correspondia ao

60

“julgamento dos homens livres pela assembléia dos seus convizinhos, em parte coincidente

com a sua parentela”; tal sistema passou a ser regulamentado no século XIV e passou a ser

reconhecido como uma instância de primeiro grau. O sistema senhorial, que se iniciou a

partir das famílias (pater sobre o domus) entre os séculos XI e XIII, passou a atender o

poder senhorial dos mais poderosos sobre povoações, passando a ser regra por intermédio

do uso da jurisdição pelo rei, pelos senhores territoriais ou eclesiásticos. Tal justiça se fazia

de forma direta ou por delegação (deputados), por juízes, vigários, mordomos, ouvidores,

etc.; entre os séculos XIV e XV tal situação passou a ter uma jurisdição intermediária.

O sistema régio, integrado que era no sistema senhorial, foi pela ampliação

do poder real subordinando os demais sistemas a ponto de, no século XIV, pertencer ao rei

um sistema judiciário próprio e supremo, a quem cabia apreciar em grau recursal as

decisões dos tribunais inferiores, passando depois a ter regulação de competência e

atribuições próprias. O sistema de justiça clerical inseria-se na autonomia jurisdicional da

Igreja e do clero; somente em casos excepcionais o clérigo subordinava-se à justiça secular.

Tal “jurisdição eclesiástica abrangia também os leigos, em matérias espirituais, na

interpretação alargada que deste conceito dava o direito canônico (abrangendo o

matrimônio, certos aspectos das relações sucessórias e mesmo das relações agrárias)” (p.

397).

No século XIV, na França, ainda se dá uma luta contra a jurisdição

eclesiástica, por conta da concentração real do poder político, levando em consideração a

questão nacional: passa a haver uma restrição cada vez maior à jurisdição eclesiástica em

favor dos tribunais reais; vão se formando princípios jurisdicionais denominados

posteriormente de “galicanos”, como por exemplo, a revogação de jurisdição clerical civil

aos prelados que exerciam a mercancia ou que fossem casados, ou então, a supressão

jurisdicional clerical dos casos criminais em que o clérigo atuasse contra questões reais,

como porte de arma, falsificação de moeda, usura, etc.. Também foi extinta a jurisdição da

Igreja sobre casos que envolvessem viúvas e órfãos, e os casos externos interligados com

ela.

Curtis Giordani (1987: p. 283) traduz Johan Huizinga em uma análise sobre

a concepção do direito para o homem medieval que passa a ser transcrita:

O homem daquele tempo está convencido de que o direito é absolutamente fixo e certo. A justiça devia perseguir o culpado em toda a parte e até ao fim. A reparação

61

e a retribuição tinham de ser completas e assumir um caráter de vingança. Nesta exagerada necessidade de justiça, o barbarismo primitivo, de fundo pagão, mistura-se com a concepção cristã da sociedade. A Igreja, por um lado, aconselhava indulgência e clemência e procurava assim abrandar a moral judicial. Por outro lado, juntando à necessidade primitiva de retaliação ao horror do pecado, estimulou em certa medida o sentimento de justiça. O pecado para os espíritos violentos e impulsivos era, não poucas vezes, um outro nome dado àquilo que os inimigos faziam. A idéia bárbara de retaliação era reforçada pelo fanatismo. Vale a pena, então, observar o pensamento que embasava as atitudes

judiciais.

5- O pensamento jurídico: formação e transformação

A concepção de vida e seu reflexo no dia-a-dia influíram e influem no

direito de forma direta. Há, portanto, uma relação direta entre a forma de pensar e agir com

o direito, sendo fundamental uma visão, ainda que sumária, sobre o pensamento em geral

no período escolhido, para que possamos melhor observar o pensamento jurídico, ainda

mais se virmos historicamente o pensamento relacionado à filosofia do direito.

Até o século XII, inclusive, houve uma preponderância do que escreveu

Santo Agostinho no pensamento filosófico da sociedade medieval. E esse pensador cristão,

que viveu no século V e foi bispo em Hipona, região da atual Argélia, teve, por um grande

período de sua vida clerical, uma ameaça constante: a presença dos vândalos às portas de

sua cidade e todas as pressões possíveis dessa presença. Por óbvio, tal situação afetou seu

pensamento e ações. Sua formação intelectual foi romanística e influenciada por Platão.

Seus escritos trataram da verdade, da ordem natural do universo, da alma humana, do bem e

do livre arbítrio. Villey (2003: pp. 110 e seguintes) destaca que, através de diversas obras

contra posturas contrárias à ortodoxia da fé, Santo Agostinho indiretamente formula teorias

relativas ao direito, como no diálogo De Magistro, em que trata do que seria uma teoria do

conhecimento por iluminação divina, de inspiração platônica: propõe que, se conhecemos a

verdade, o bem, a justiça, tudo isso, se faz por intermédio de Deus e não por experiência

sensível, pois a verdade e a justiça são criações de Deus. Em outros textos, trata da

natureza, da instituição do casamento, da defesa da propriedade, além da doutrina do braço

secular e das funções ministeriais do Estado como guarda da Igreja, bases para o

pensamento medieval. Ao comentar o “Salmo 118”, apresenta uma apologia da lei eterna e

o valor da lei mosaica.

62

Aceita-se que dos escritos de Santo Agostinho formou-se uma doutrina

favorável ao positivismo jurídico; sua obra não é escolástica, abstrata e intertemporal, mas

representa uma resposta a situações. E esse pensador da Igreja, ainda no Império Romano,

acata as leis do Estado, buscando um direito sacro a partir das leis recebidas por Deus:

“toda justiça e todo o direito residem na lei eterna de Deus”. Sua importância para a Idade

Média é fundamental, pois, a partir dele, da Bíblia e dos comentários da Patrística se

concebe uma teoria da justiça. De acordo com o que Agostinho escreveu no texto Contra

Faustum, há três gêneros pelos quais Deus faz conhecer sua justiça: a lei da natureza, a lei

de Moisés e a lei de Cristo (e nos Evangelhos lembra que há o episódio em que Cristo

determina que se deve dar atendimento a César para o que seja de César e, a Deus, o que

seja de Deus). Cabe destacar que essa lei da natureza não é a mesma de cunho aristotélico,

mas a perspectiva de ordem divina sobre toda a natureza (para esta concepção ser justo é

estar de acordo com a vontade divina e observar perfeitamente sua lei).

Villey (2003: pp.132 e seguintes) ressalta que a influência de Santo

Agostinho sobre a cultura clerical de toda alta Idade Média possui uma característica

monástica. E, por serem os monges desse período desconhecedores do grego e não

aceitarem os escritores pagãos, também fixarem seus estudos apenas na Bíblia e nas obras

latinas dos Padres da Igreja, o ambiente filosófico e, portanto, jurídico desse período

encontrava-se inserido nessa cultura agostiniana; à tal cultura se incluíam restos do Direito

Romano e costumes usuais regionais ou tradicionais e, a partir dessa postura dos monges, o

direito utilizado por eles se refletia na vida intelectual do período. Assim, as obras jurídicas

monásticas, como a de Benedito d’Aniane, do século IX (conselheiro de Carlos Magno),

culminando com o Decreto de Graciano, do século XII, possuíam como fonte principal a

concepção de Santo Agostinho. Cabe lembrar que Graciano70, por exemplo, para

estabelecer sua teoria das fontes do Direito, utiliza nada menos do que vinte e cinco

cânones extraídos da obra do santo de Hipona, mesma fonte que havia sido utilizada por

Santo Isidoro de Sevilha (a partir da regra de ouro do Evangelho: ama o teu próximo como

a ti mesmo). E o pensamento do direito canônico (e também da filosofia) se estrutura com

base na “Revelação Divina”, assim como o poder político carolíngio, que influenciou a

70 João Graciano, que no século XII escreveu texto angular no sentido de que todas as leis contrárias ao direito natural não teriam vigência ou força jurídica, pré-demarcando as bases de um juízo de constitucionalidade avant la lettre.

63

dinastia capetiana, cujo marco principal, Luís IX (S. Luís), se considerava descendente

direto do rei Davi e de seu filho Salomão, como está desenhado nos vitrais da Santa Capela

de Paris. Trata-se, pois, de um direito estritamente ligado à moral, e a moral ligada à

caridade: a concepção defendida por Santo Agostinho. Buscava-se sempre a adequação

entre o direito costumeiro e a Palavra de Deus

O posicionamento aqui relatado passou, a partir do século XII, a confrontar-

se cada vez mais com os fenômenos sociais, econômicos e culturais presentes na Europa,

pois o crescimento comercial, a importância urbana e o aumento da complexidade das

relações sociais e religiosas afetaram a concepção de mundo e, portanto, a concepção

jurídica na sociedade. Como diz Villey (2003: p. 139), irrompeu-se uma contradição na

concepção agostiniana de “dar a César ao que é de César, e a Deus o que é de Deus”: o

conflito entre o Papado e o imperador germânico (querela das investiduras) é o marco entre

a necessidade de mudança de posicionamento jurídico da Igreja e, para tanto, a

universidade de Bolonha é o marco exponencial para essa mudança. A reintrodução do

direito romano foi a utilização necessária para a mudança buscada com base, por exemplo

na região bolonhesa, em que a renovação das cidades e do comércio fomentam as trocas, os

contratos, as fortunas individuais, afetando-se também os limites das posses e as

conseqüências contratuais, com a fixação do “meu” e do “seu”.

Para tanto, o direito romano assume uma importância funcional, tanto para

fixação do poder papal quanto para a fixação de uma burocracia organizada de forma

centralizada. E a doutrina do direito romano importa em uma própria filosofia do Direito:

os glosadores passam a traduzir as definições de Ulpiano e de Paulus, a doutrina clássica

romana, que comporta nas noções romanas de eqüidade, direito natural, justiça,

jurisprudência, etc., o que vai influenciar os canonistas que atuam nos tribunais terrestres. E

é Graciano quem procura adaptar a concepção agostiniana aos novos conteúdos romanistas,

utilizando as definições clássicas como instrumento de interpretação do direito canônico

desde então.

A par disso, nos principais centros culturais do período, vinha ocorrendo

uma busca além do que os Padres da Igreja haviam escrito. Isso ocorria, sobretudo, em

virtude da influência dos clássicos recuperados quer em Bolonha, quer na Espanha, e dos

contatos com a cultura muçulmana através de Toledo (o reencontro de Aristóteles).

64

Também influi, nessa busca, a quarta cruzada contra Bizâncio e o relacionamento com a

cultura encontrada na Sicília, por força de sua tomada dos muçulmanos e ocupação por

Frederico II. Esse contato faz renascer o interesse pelas artes profanas, ocorre uma

mudança nos métodos de estudo nas universidades, passa a ocorrer uma outra preocupação

com a lógica, metafísica, a preocupação com o intelecto, a história natural, a doutrina moral

e a política; a filosofia recupera a utilização da gramática e da dialética, passando a

acontecer uma utilização integrativa entre o neoplatonismo e o aristotelismo. Dessa época o

“Sim e o Não” de Santo Abelardo, que foi acusado em Paris de ter abusado da retórica

dialética, procurando compreender racionalmente a Trindade, ao invés de se ater aos

Evangelhos.

Em meados do século XIII, sobrevém o primado de Aristóteles, procurando-

se juntar aos novos caminhos as doutrinas averroístas, relacionadas à eternidade do

universo e o monopsiquismo (a unidade da alma intelectiva em todos os homens), mas não

sem profundas repercussões negativas dos que se apegavam à tradição agostiniana,

antepondo Platão e Aristóteles à Bíblia, as novas doutrinas dos mestres na universidade, à

autoridade de Santo Agostinho. Além disso, são estigmatizados como cheios de veleidade

os métodos escolásticos com suas disputas, suas questões, suas controvérsias, etc., ao invés

do respeito aos textos patrísticos e a fiel leitura do texto sagrado. Tal confronto, iniciado

formalmente no Concílio de Sens (1210), que proibiu a leitura de livros sobre a natureza na

Universidade de Paris, chegou a seu apogeu na proibição de teses aristotélicas e tomistas,

bem como na administração de aulas daqueles que as defendiam na mesma universidade no

ano de 1277 (cf. Villey; 2003: pp. 143-145).

Aqui vale analisarmos rapidamente o pensamento de Santo Tomás de

Aquino e sua relação com o direito. A sua importância se dá no contexto de dois grandes

movimentos de seu tempo: “a racionalização pela qual passa a Idade Média das cidades e a

disputa de poder político entre a Igreja e o poder secular (Império)” (Lima Lopes, 2002: p.

144). Santo Tomás se encontrava no centro do renascimento do aristotelismo pela

influência de dois centros de tradução – Toledo e Palermo. Ambas as cidades haviam

sofrido uma influência islâmica e receberam dos muçulmanos o que havia entre eles dos

gregos antigos, e que havia sido perdido durante as invasões e a Idade Média Alta. E, a

partir de Aristóteles, Santo Tomás traz a confiança na razão, traz uma compreensão e

65

inteligibilidade do real, da natureza e do homem. Do cristianismo traz o pecado e a queda.

A razão precisa ser conduzida, daí o método. Temos paralelamente a uma concepção

própria da razão, a disputa entre a Igreja e o Império. Para solucionar esse problema, Tomás

de Aquino adota uma solução mista, aponta que o direito joga um papel: usa do costume,

do direito romano, ou da razão jurídica – e é dessa última que decorre a razão prática,

comum a todos os homens, o que permite julgar a razoabilidade das decisões. Ainda para o

direito, cabe observar que a reflexão tomista parte dos eventos reais que o circundam e o

condicionam, buscando o bem comum; além disso, aponta como os poderes positivos se

ordenam visando ao bem comum. E o bem comum, para Santo Tomás, é um ideal

regulador. É válido transcrever Lima Lopes ainda (2002: pp.146-147) sobre a

ambientação política da criação do Doutor Angélico:

Tomás de Aquino é também um homem do renascimento urbano e comercial do século XIII, ensina em Paris de 1252 a 1259, e tem suas teses proibidas, pelo bispo de Paris, até 1325. Sua visão da vida política está associada a um certo otimismo reinante nas cidades que renascem e que renascem através de um esforço coletivo. Este esforço é, geralmente, uma guerra empreendida contra o senhor feudal, leigo ou bispo: e o fim da guerra é selado pela capitulação do senhor que concede à cidade a sua Carta, seu estatuto, seu foral. Algumas vezes esta carta de liberdade urbana é concedida com menos violência e guerra, mas é sempre uma forma de pacto. E os cidadãos não são cidadãos isolados: são as corporações e guildas, que fazem entre si o pacto de defesa mútua, uma conjuração pela paz. A própria comuna ou cidade é uma corporação formada por alguns cidadãos capazes e posta sob a tutela de um grupo de autoridades que deve zelar para que ela cumpra seus fins corporativos (ou fim comum). A vida política é para Tomás isto mesmo: uma busca coletiva de um bem comum, a felicidade. Na visão do autor citado, esta concepção de Santo Tomás de Aquino o

distingue de Santo Agostinho, que passara por momentos de pressão pela situação do

império em crise, assalto dos vândalos, etc.; tudo isso o tornara pessimista; havia

necessidade de se confiar em uma autoridade para impor ordem à crise. Ao contrário, o

pensamento tomista defende que a ordem social e política propiciada pela autoridade não se

relaciona apenas com a repressão ao pecado, mas também visa à condução do homem à

felicidade. Por relacionar-se com Deus, a natureza humana é potencialmente boa e a relação

social é humana e também potencialmente boa; o afastamento da vida social leva à

aberração (selvageria) ou à excelência (angelical), mas qualquer dessas opções não

representa o que é humano.

66

A gênese tomista do direito natural inicia-se na idéia de que o mundo

implica em uma ordem, obra inteligente e bem feita por um Criador. Sobre tal doutrina

jurídica, Villey (2003: pp. 163-164) aponta alguns aspectos: quanto às necessidades das leis

positivas humanas, Tomás de Aquino, com base em Aristóteles, destaca que tais leis

representam uma necessidade da natureza do próprio homem, destinado social e

naturalmente à ordem política; nesse aspecto, as leis têm um papel de estimuladoras de

preceito, e não só repressoras ou facultativas. Sobre as fontes da lei, o tomismo admite sua

origem em uma combinação de forças existentes na sociedade, a partir de um monarca, uma

elite de ricos ou sábios, e do povo reunido. Sobre a continuidade do direito positivo

humano diante do direito natural, Tomás de Aquino vê o trabalho de legislar como um

prolongamento do estudo do justo natural; portanto, a lei humana deriva da lei natural

(fruto da razão e da vontade). Sobre as qualidades da lei humana positiva, concebe que

deveria ser não só justa (pelo bem comum), mas adaptada às circunstâncias do tempo e do

espaço quanto à sua aplicação; quanto à autoridade da lei humana positiva, esta deveria ser

seguida por todos, pois em tese ela seria justa: quando não, seria importante que não fosse

aplicada, pois sua função estaria viciada.

Essas concepções possibilitaram, portanto, segundo Villey, uma nova

doutrina baseada no justo, com a retomada e adaptação do direito romano e dos seus

procedimentos (inclusive recursos), uma reconstrução da jurisprudência e da função

legislativa pelos juízos.

Podemos afirmar que o importante pensamento de Santo Tomás de Aquino

representa o amadurecimento das idéias da Idade Média, mais precisamente, a cristalização

racional do modo de vida daquele período, que tinha a fé cristã e a vida comunitária como

centro do viver ali. Mas, quando as idéias e o ensinamento do Doutor Angélico se

assentaram e estratificaram na sociedade como um todo (universidades, cortes reais,

cotidiano eclesiástico, por exemplo), já se iniciara uma outra realidade: a concentração do

poder político cada vez maior no âmbito real, o vigor e a força da burguesia nas cidades em

anteposição à diminuição dos poderes feudais, a ampliação do comércio e acumulação de

riquezas pessoais, a diminuição da força da Igreja, com a divisão do papado entre Avignon

e Roma, a força e o terror das epidemias, a presença constante e numerosa da morte e

prejuízos dos reinos pelas guerras, etc.. Vários fatores, portanto, foram formando um

67

declínio da concepção do ideal comunitário, da presença e esperança integral, intertemporal

e plena da Igreja na vida de todos, de forma a fortalecer uma visão mais natural da morte

próxima, do interesse do indivíduo no seu dia-a-dia, da necessidade do uso do tempo (e do

relógio) para a própria sobrevivência, da importância dos negócios e contratos na vida

cotidiana, entre outros aspectos.

Este é o contexto da mudança do pensamento na passagem para o século

XIV, após o clímax do poder eclesiástico no século XIII, e um círculo virtuoso da

economia que lhe foi correspondente. Desse novo período o chamado primeiro humanismo,

de Dante, Petrarca, Boccacio, as primeiras obras em línguas nacionais, a consolidação das

monarquias nacionais, as crises econômicas, as crises internacionais, a crise na Igreja, as

crises no meio ambiente (peste negra, problemas de clima e plantio), sendo de crises o pano

de fundo do cotidiano.

Os franciscanos, que correspondiam a um setor de insatisfação dentro da

Igreja contra a inércia de seus dirigentes (que viviam senhorialmente) frente à grande

pobreza nas cidades enormemente povoadas, representavam um posicionamento de opção

pela pobreza e desprezo pela vida intelectual. Com o tempo ocorreu uma divisão na ordem,

entre os que seguiam a opção espiritual do fundador da ordem (observantes) e os que

moderadamente defendiam uma adaptação dos votos ao ambiente clerical (conventuais);

por certo os espiritualistas denominados observantes passaram a ser perseguidos pela

direção da Igreja71. É esse o clima das preocupações na formação do pensamento

denominado nominalista. Lima Lopes (2003:pp. 165-166) diz ser tal corrente antagônica

aos realistas (aristotélico-tomistas) na questão dos universais. “Para o nominalista, os

universais (os termos universais, aquilo que a gramática normativa designava por

substantivos comuns e em alguns casos abstratos) são conceitos, mas não têm uma

existência real”. Assim, se para Santo Tomás o furto ou o adultério representavam o mal

em si mesmo, para os nominalistas tais atos eram representação do mal porque contrários à

vontade de Deus. O mal não se definia por si, mas pelo que a vontade de Deus

demonstrava; a partir da vontade divina é que se estabelecia a base de tudo. E é a partir da

vontade que essa corrente analisa o direito: a vontade do soberano (ainda que estivesse

71 Ocorreu, no século XIV, uma terrível perseguição da Inquisição contra os franciscanos observantes; um dos aspectos do ambiente persecutório é retratado com arte e maestria por Umberto Ecco em seu romance O nome da Rosa, que tem por protagonista Guilherme de Ockham.

68

sujeito a regras que não dispostas por ele) e a teoria do direito dos soberanos, o que se

relaciona com os estados nacionais estabelecidos e soberanos. Vê-se assim uma retomada

platônica à representação das idéias, agora aproximadas da vontade de Deus. Um novo

perfil para o positivismo jurídico.

Segundo Villey (2003: pp. 209-211), o franciscano Duns Scot, conhecido

como Doutor Sutil, não teve uma preocupação mais detalhada com o direito; mas, ao

comentar o principal texto sobre o direito de Scot, que é uma análise em Oxford sobre

sentenças de Pedro Lombard e a origem do domínio e a autoridade política, exemplifica: ali

a tese aristotélico-tomista da origem natural da propriedade, como do poder político, é

utilizada no contexto para debater a origem de todas as coisas comuns e a que ponto os

homens são livres de toda dominação política. E, à indagação sobre de onde provêm os

poderes do domínio e do governo, responde: da permissão divina, pois Deus revogou o

preceito da comunidade dos bens usáveis no estado de inocência e deu aos homens

permissão de constituir propriedades; define aí a parte do direito positivo divino. Quanto à

forma de distinção das propriedades, Scot reutiliza o conceito anterior de Santo Agostinho,

que admite a procedência da divisão dos bens pela lei positiva humana: e essa lei positiva

humana faz supor o poder político72.

É em Guilherme de Ockham que se situa o principal condão do pensamento

jurídico do nominalismo. Para Ockham73, todos os mandamentos do Decálogo (os dez

mandamentos do Pentateuco bíblico) são puro ato da vontade de Deus a que o homem deve

obediência sem qualquer razão que não a Sua vontade – “Deus não é obrigado a qualquer

ato; dessa forma é o justo a ser feito”74. Em função de um posicionamento teológico e

político de coerência, o franciscano Ockham se dispôs a pensar o direito e o fez sob o

prisma do positivismo jurídico por um lado e, de forma criativa, dispôs sobre a doutrina do

direito subjetivo individual. O conceito de individualismo se contrapõe ao homem animal

72 Bréhier (2004: p. 641), sob um prisma filosófico, faz distinção entre Santo Agostinho, Santo Tomás e Duns Scot, da seguinte forma: sobre a continuidade e a hierarquia entre as formas da realidade, o agostianismo afirmava existir continuidade no ser e, portanto, continuidade no conhecimento; o tomismo afirmava haver continuidade no ser mas descontinuidade no conhecimento; o scotismo possuía a fórmula da descontinuidade no ser e descontinuidade no conhecimento. 73 Ockham representa o principal pensador do nominalismo, que passou a ter uma influência muito grande nas principais universidades européias entre o século XIV e XV. Seus principais discípulos são Gregório de Ramini, Jean Buridan, Jean Gerson. Vale destacar que Ockham, inglês nascido por volta de 1280, veio a falecer entre 1349 e 1350, em plena peste negra e, possivelmente, por esse motivo. 74 Apud Bréhier (2004: p. 653): «Dieu n’est obligé à aucun acte; c’est donc ce qu’il est juste de faire».

69

político da tradição aristotélica e ao conceito organicista de sociedade da Idade Média. A

sociedade passa a ser vista como a soma de indivíduos isolados, que se organizam por

formas de contrato social.

Sobre o conhecimento, Curtis Giordani (1997: p.107) observa que Ockham

considera “saber seguro” o que se percebe com evidência ou o que é dedutível de verdades

óbvias. Diz que dá um impulso decisivo à lógica e tem predileção pela coisa individual,

pela experiência e pela observação; distingue o conhecimento abstrato e intuitivo; sobre o

conhecimento intelectual diz estar no singular.

Lima Lopes (2003: pp. 171-173) destaca:

Ao individualismo epistemológico e metafísico, Ockham associa o voluntarismo. O que Deus quer é bom porque Deus quer. Em Deus vontade e razão coincidem, mas são ininteligíveis para nós. Trata-se do inalcançável, do infinito, da liberdade e da onipotência absolutas de Deus. A partir daí, a vida política tem relação a uma razão humana de cunho

utilitário, prático e funcional. Afinal, é a partir do interesse próximo e da perspectiva do

homem é que se vai estabelecer aquilo que parece adequado ao momento e à vontade de

Deus. Tal posicionamento estabelece bases para pensar o direito sobre outro eixo: o centro

do interesse do direito é o indivíduo e, a partir dele, o direito caminha para descrever-lhe as

qualidades jurídicas; procura entender suas faculdades e a vontade positiva dos mesmos.

Esse o referencial para o futuro direito moderno.

V – Os estertores da Idade Média

Ellul (1999: pp. 297-303) descreve o período dos séculos XIV e XV como a

ligação entre a sociedade tradicional e feudal da Idade Média e o mundo moderno; são

séculos decisivos nos quais todos os fenômenos se conjugam: quer sob o ponto de vista

demográfico, quando se abre uma fenda brutal pela eclosão da peste negra; quer sob o

ponto de vista econômico, em que surge um influente capitalismo comercial, a par de um

maior desenvolvimento de um tipo de indústria; quer sob o ponto de vista intelectual, com

o surgimento da imprensa e se abre a tendência para a secularização na arte e no

pensamento e, em seguida, virá aparecer a Renascença; quer sob o ponto de vista da

influência geopolítica, com o período da expansão européia para os quatro quadrantes do

70

mundo, além do reconhecimento econômico da África e a ligação com a América

descoberta oficialmente; quer sob o ponto de vista espiritual, tendo em conta a situação da

Igreja com sua teologia clássica e o aparecimento das grandes heresias (Wicliff, por

exemplo); quer sob o ponto de vista militar, com a guerra dos Cem Anos, com o

aparecimento de novas táticas, desenvolvimento de armas e emprego de mercenários;

finalmente, sob o ponto de vista sociológico, com a mudança das estruturas da família,

diante do afluxo de população para as cidades e a estruturação de uma nova categoria social

que virá a ser dominante, a burguesia.

O mesmo autor destaca que acontece, nesse período, um rápido crescimento

das instituições do Estado e a destruição ou subordinação das instituições autônomas,

ocorrendo ainda um efetivo declínio do direito costumeiro em favor do direito escrito e

concentrado nas mãos do rei. Pode-se dizer, em síntese, que dois elementos ganham

preponderância: o poder político centralizador e o poder do dinheiro. Mas todas essas

mudanças se efetuaram com crises e conflito; nessa transição histórica, com crise e conflito,

há dois símbolos trágicos representativos: um, a Peste Negra; o outro, a Guerra dos Cem

Anos.

A epidemia denominada peste negra75, que surgiu como o fenômeno que vai

marcar todo um período, ocorreu de forma efetiva principalmente entre os anos de 1348 e

1350. Atingiu praticamente toda a Europa e matou, pelo menos, trinta por cento da

população (cerca de vinte e cinco por cento dos ricos e cinqüenta por cento dos pobres)

naqueles dois anos. Provocou inúmeras conseqüências: a) religiosas, pela perda da

confiança na Igreja, que não consegue proteger seus fiéis das doenças, e estes caminham

para movimentos místicos, hereges, feitiçarias, etc.; b) econômicas, com sensível

diminuição da mão de obra, aumento dos preços da mão de obra e das produções,

diminuição dos preços dos produtos oferecidos, etc.; c) sociais, com o aumento da

intolerância entre setores da sociedade, com os ricos acusando os pobres de propagarem a

epidemia e, estes, acusando os ricos de monopolizar os remédios, além da propagação da

violência contra os judeus, etc.; d) institucionais, os Estados e as cidades passam a adotar

medidas rígidas para evitar o deslocamento de pessoas, ou medidas para fixar trabalhadores

75 Corresponde à peste bubônica, transmitida aos homens pela pulga do rato.

71

em seus locais de trabalho, e manterem estáveis os preços e os salários, bem como

desenvolver a organização policial, etc.

A guerra dos Cem anos, típico exemplar de guerra endêmica, foi travada

entre a França e a Inglaterra e teve como um dos principais reflexos a diminuição do poder

dos senhores feudais desses dois países, com o contraponto da concentração e aumento do

poder real. O primeiro e mais conhecido dos motivos dessa conflagração foi a sucessão do

trono francês, após a morte de Carlos IV (1328) sem descendentes diretos, o que resultou

no final da dinastia dos capetos (no poder francês desde o século X). Iniciou-se daí uma

luta entre descendentes indiretos: de um lado, Felipe de Valois, senhor feudal francês

sobrinho de Felipe, o Belo; e Eduardo III, neto de Felipe, o Belo, mas por parte de mãe e,

ao mesmo tempo, rei da Inglaterra. Houve uma assembléia de senhores feudais franceses e

foi resgatada a lei Sálica (dos francos), que não admitia a sucessão do rei por mulheres. A

partir daí, foi coroado Felipe de Valois, mas Eduardo III iniciou uma luta pelas armas.

Entretanto, o principal motivo da guerra instaurada era a disputa pela região de Flandres

(Países Baixos e norte da França), um território rico pelo comércio e indústria de tecidos, e

que se utilizava da lã inglesa (cf. Campos, 1989: pp. 218-221).

A guerra teve três fases: na primeira (1337 a 1364), a superioridade inglesa

predominou e a Inglaterra ocupou vários territórios franceses, tendo ocorrido, em razão dos

gastos com a guerra, prejuízos para o comércio e os problemas trazidos pela peste negra,

uma grave crise econômica na França. Tal quadro resultou em revoltas nas cidades e nos

campos; a principal revolta urbana ocorreu em Paris, liderada por um burguês Estevão

(Etienne) Marcel, que exigia maior participação da burguesia nos Estados gerais. No

âmbito rural, ocorreu uma rebelião de camponeses liderada por Gulherme Caillet, que

recebeu o nome de Jacquerie, por serem os camponeses apelidados pelos nobres de

Jacques Bonhomme, que Campos (1989: p. 219) traduz para “Jeca-Tatu”76. Tal revolta

chegou a congregar cem mil camponeses em 1358, e teve destruição de castelos e mortes de

inúmeros nobres; houve reação dos senhores feudais e do reino, que conseguiu sufocar a

rebelião de forma drástica. A divisão interna da França resultou em um tratado em que o rei

76 Em inglês usa-se John Doe (João Ninguém).

72

João, o Bom, teve de aceitar a ocupação do território da Aquitânia77 (quase um terço do

território francês) pela Inglaterra.

A segunda parte da guerra dos Cem Anos ocorreu com a morte de João, o

Bom, e a retomada da guerra por seu filho Carlos V78. Tal postura resultou em retomada de

boa parte do território anteriormente sob o domínio inglês. Com a morte de Carlos V subiu

ao trono seu filho Carlos VI79 (1380), que ficou impedido de reinar por falta de sanidade

mental. Como seu filho era menor, foi instituída uma regência que, por sua vez, criou outra

divisão pelo uso político desse poder: de um lado, a nobreza apoiava a família dos

Armagnacs, de outro, os de Borgonha. Como os Armagnacs dominaram a regência, os de

Borgonha se aliaram aos ingleses que, por sua vez, retomaram e obtiveram mais territórios

em seu poder, restando ao poder francês apenas a região central da França.

A partir de 1422, ocorre a terceira parte da guerra centenária com a ascensão

de Carlos VII ao poder. Inicia-se, então, um processo de crescimento do sentimento

nacional e de ânimo para superar a situação vivida, o que cria um momento próprio para o

surgimento de herói nacional. Surgiu desse contexto Joana d’Arc, de origem camponesa e

tomada de sentimento profético religioso; ela assumiu a frente de batalhas e permitiu um

espírito de aceitação da liderança de Carlos VII para a nação. Embora presa em batalha e

condenada à morte, sua figura martirizada serviu de estandarte de patriotismo. A França

reconquistou seus territórios, tendo ainda os duques de Borgonha selado a paz com Carlos

VII; seu sucessor, Luís XI (de 1461 a 1483), habilmente conseguiu diminuir a força dos

senhores feudais e ampliar ainda mais a concentração do poder real, passando então a

adotar uma política econômica mercantilista, de acordo com o interesse da burguesia e da

força do Estado.

A guerra dos Cem Anos também provocou crises e mudanças políticas na

Inglaterra. Podemos destacar rapidamente ali a rebelião de Wat Tyler, ocorrida nas regiões

de Essex e Kent, diante do aumento de impostos em razão da guerra. A revolta surgiu dos

camponeses que assassinaram os coletores de impostos, vários senhores feudais e

destruíram castelos. Foram liderados pelo camponês artesão Wat Tyler e pelo padre John

77 Corresponde à região do sudoeste francês, que tem como capital a cidade de Bordeaux; conhecida também como Guyenne. 78 Conhecido como le Sage. 79 Conhecido como le Fol.

73

Ball; invadiram Londres, ocupando-a; entretanto, as tratativas entre os líderes da rebelião e

o rei Eduardo II foram traídas. O rei, que afirmou a aceitação das reivindicações da retirada

de vários impostos, abolição da servidão e cercamentos, além da distribuição de terras e

anistia aos revoltosos, após o retorno ao campo da população revoltada, deu início a uma

terrível repressão, com extermínio de aldeias, execução dos líderes e milhares de

camponeses. Os cercamentos foram restabelecidos, embora mantida a abolição da servidão

e obrigações feudais, por interesse da coroa inglesa em concentrar o poder e enfraquecer

aquele tipo de senhorio. O final da guerra dos Cem Anos trouxe para a Inglaterra uma forte

crise econômica, diante da perda de territórios no continente e do fácil acesso à região de

Flandres, em que a venda da lã inglesa era altamente propiciadora de lucros aos senhores

feudais; isso deu origem a mais conflitos internos que resultaram em maior concentração de

poder nas mãos reais e ampliação do comércio mercantilista.

Essas duas tragédias principais narradas não foram isoladas. Houve várias

epidemias e outras lutas concomitantes80; também a Igreja teve um cisma, com a divisão da

cristandade entre um papa francês e outro romano (a partir de 1378). No concílio em Pisa

(1407), elegeu-se um terceiro papa; o concílio de Constância depôs um papa e tentou

unificar a Igreja de novo, tentando fortificar a figura do concílio sobre o papa, o que foi

posto abaixo em novo concílio, situação cismática que perdurou até meados do século XV.

Por óbvio, tal situação de divisão do poder da Igreja diminuiu em muito seu poderio e

permitiu uma consolidação política de concentração de poder dos reinos europeus.

Merece destaque a Península Ibérica, em que não houve grandes cisões

internas, o que permitiu que os reinos locais, a partir do século XIV, concentrassem

esforços em suas políticas de fortalecimento do Estado e dessem ênfase às políticas

econômicas de atendimento ao comércio mercantil. Portugal e Espanha, à frente dos

demais, se desenvolveram para a busca de novas terras, início de uma nova era.

Este o quadro de um período visto rápida e panoramicamente.

80 Houve um pouco antes (século XIII) a terrível invasão mongol na Rússia e Bulgária (Europa Oriental) pelo exército de Gengis Khan, famoso pela sua crueldade.

74

C – UM OLHAR DE APROXIMAÇÃO (ZOOM).

Neste olhar de aproximação, preocupamo-nos em observar o trabalho

humano medieval, optando pelo período após a “revolução medieval”, principalmente após

o século XII. É que, a partir de então, se estrutura de forma mais efetiva o trabalho naquilo

que se denomina de corporação de ofício, o interesse mais próximo desta pesquisa.

I – As organizações urbanas

1- Associações mercantis

Guy Fourquin (1969: pp. 230-235), ao analisar o desenvolvimento urbano

no setor secundário em seus aspectos múltiplos, aponta um quadro, a partir do

Renascimento medieval (século XI e XII), que merece ser destacado: nesse período, setores

urbanos na Europa Ocidental, como no Norte da Alemanha e Inglaterra, eram não

valorizados pelos senhores feudais, o que redundou em poucas cidades, com alguns

entrepostos de paradas entre elas. Ali acorriam os mercadores ambulantes que, por serem

muitos, logo se organizaram em associações profissionais que usavam tais lugares como

pólo de saída das atividades. Na região que denomina de zona intermediária entre o Norte e

o Oeste europeu, no entorno dos chamados países baixos, a influência romana prevaleceu

com a presença maior de cidades e ali se estabeleceu comércio, embora ainda isoladas umas

cidades das outras e sem muita presença senhorial. Nas regiões mediterrâneas, ocorreu a

manutenção de cidades fortalecidas e próximas umas das outras em que viviam os nobres e

senhores feudais que, por sua vez, se inter-relacionavam com os comerciantes urbanos. Isso

resultou na formação de uma elite urbana composta de clérigos, nobres, mercadores, com

um movimento comercial e artesanal importante para a vida comum.

Com o aumento dos negócios, os comerciantes tiveram de criar formas de

ajuda mútua diante dos inúmeros problemas com vários tipos de autoridades (senhoriais e

de principados), além dos usuais problemas de prejuízos pela insegurança dos negócios. Já

havia formatos de organização de cunho religioso (caridade) desde 1050 aproximadamente,

75

sendo certo que essas associações de comerciantes denominadas guildas (ghildes)81,

estruturadas sob influência do procedimento religioso (que era ínsito àquela sociedade),

formaram-se principalmente na região que é hoje Holanda e Bélgica, além daquelas dos

arredores de Paris, Inglaterra e próximas ao rio Reno, tomando aspectos de regulamentação

própria dos negócios urbanos de formato monopolista. As organizações denominadas

hansas (hanses),82 da mesma região geográfica acima, correspondiam a um grupo de

guildas, ou então correspondiam a um grupamento mais amplo destinado a operar na esfera

estrangeira, limitando e organizando o número de participantes aos grandes tráficos

comerciais.

Tais entidades se formaram tendo em conta necessidades específicas, como,

por exemplo, a ordem jurídica83, pois era necessário sair da influência dos tribunais

senhoriais, cuja estrutura era por demais inflexível e inaplicável pelo desconhecimento

factual das realidades comerciais e da vida mercantil; também se fazia importante, na esfera

política, atender uma sociedade de negociantes ricos em seus problemas urbanos com

necessidades próprias, bem diferentes da vida rural. Esta questão, de cunho mais

econômico, foi fundamental diante da grande circulação de mercadorias nas cidades e a

importância que alcançou esse fenômeno.

Um grande exemplo dessa importância corresponde à hansa parisiense dos

mercadores de água, montada no final do século XI, para fazer frente à que havia em Ruão

(Rouan), região ligada à Normandia, e que se relacionava ao aporte e transporte de vinho

pela região fluvial parisiense. Ali se criou um monopólio de transportes pela hansa, que

logo passou a ter importância política na região de Paris e que, em seguida, passou a ter

81 Aqui transcrevemos trecho da carta de uma das concessões para funcionamento de guilda na França: “A carta da guilda de Aire-sur-la Lys (1188)... 2. Todos os que fazem parte da ‘Amizade’ da cidade confirmam, através da fé e juramento, que cada um tratará o outro como um irmão naquilo que é útil e honrado... se aquele que tenha sido o autor ou a vítima de um ato prejudicial e não aceitar um arbitramento, após três avisos que ele mesmo e qualquer outro que tiver sido cúmplice, sendo culpado e cometa perjúrio contra o interesse e a honra da ‘Amizade’ a que fez juramento, responderá à ‘Amizade’ da comuna” (Fourquin; 1969: p. 286). 82 Não se trata aqui das hansas teutônicas. 83 Coornaert (1941: pp. 60-63) aponta o crescimento do comércio e da indústria entre os séculos XI e XII, com o advento da atuação da burguesia nas cidades, de forma lenta, difícil e às vezes até brutal, como causa da grande mudança nas comunidades urbanas e do fortalecimento das comunidades corporativas; tal mudança constituiu uma consolidação de liberdade de atuação representada pela formação da jurisdição própria. Como exemplo, cita os comerciantes valencianos com seus costumes de julgamento desde o final do século XI, sendo estes valencianos, ou taverneiros de Chartres (logo no início do século seguinte), admitidos como auto-reguladores de seus afazeres, com apoio das autoridades maiores dos reinos correspondentes, o que introduz uma validade corporativa com natureza de direito público ou quase-público.

76

relações muito próximas com o poder real, daí granjear privilégios de organização e

influência efetiva em toda a administração da cidade. Aqui deve ser destacado que o vinho

foi muito importante como fator de exportação lucrativa para as cidades, o que veio a lhes

granjear fortalecimento econômico e político.

Vale notar que as cidades medievais não possuíam número grande de

habitantes. Fourquin aponta serem as italianas aquelas que contavam com maior população,

como Milão e Veneza, que chegaram, no século XIV, a ter duzentos mil habitantes.

Florença e Gênova tinham nessa época cerca de cem mil habitantes cada; na França, a

principal cidade em população na época medieval foi Paris, com duzentos mil habitantes;

na região de Flandres, a população nesse período era de vinte mil habitantes, como também

em Arras e Ypres; próximas a elas, Gand e Bruges tinham em torno de cinqüenta mil

habitantes cada uma; Londres possuía, nessa época, cerca de quarenta mil habitantes, o

mesmo que Colônia, enquanto Sevilha tinha cerca de quinze mil habitantes. Todas as

cidades aqui exemplificadas correspondiam às maiores de suas regiões.

Mas as atividades comerciais dessas localidades permitiram a expansão do

setor terciário, tendo havido uma revolução das técnicas de negócios. A própria Igreja, no

século XII, manifesta-se no concílio de Latrão pela admissão dos mercadores no benefício

da sua proteção, aceitando uma situação de fato que ela não poderia enfrentar, diante da

irremediável incorporação do ganho e do lucro no âmbito das cidades, a par dos próprios

interesses de ganho na sociedade (até pelos clérigos da Igreja).

Dessa época a intensa presença de feiras temporárias e internacionais, sendo

na região de Champanhe as suas principais promoções, caracterizando-se como local

estratégico por ser rota de comércio e pela proximidade da região de indústria de tecidos

(Flandres). Em meados do século XIII, em razão principalmente da sedentariedade dos

comerciantes e da guerra entre a França (Felipe, o Belo) e a região dos países baixos e,

posteriormente, da guerra dos Cem Anos, as feiras de Champanhe entraram em declínio,

passando a ter importância internacional os grandes centros urbanos de comércio84.

Nesses centros de comércio, temporários (com as feiras) e gradativamente

fixos (com os centros urbanos principais), os burgueses foram os principais agentes do

84 Em razão dos conflitos, a rota comercial mudou de direção, afastando-se da França e passando a se utilizar, principalmente, das vias marítimas.

77

crédito comercial, sendo principalmente deles as funções de banqueiros. A par da usura,

atuavam com o câmbio, e logo passaram a atuar como guardadores de depósitos e

investimentos (principalmente a partir das grandes cidades italianas, em que foram criadas,

com cunho prático, as figuras dos contratos de câmbio e letras de câmbio).

Por força do grande comércio internacional, promoveu-se uma mudança

mais complexa nos tipos de associações de mercadores, criando-se um direito de

sociedades; assim, as associações de comércio, que se iniciaram como associações de

defesa e de organização da profissão relativa a quem fazia comércio (guildas ou hansas),

com o tempo e o desenvolvimento dessas entidades se tornaram companhias (na forma

italiana) ou sociedades (conforme o termo jurídico).

Vale destacar ainda as organizações comerciais dos mercados urbanos

voltados ao consumo no varejo: com o crescente aumento da população urbana desde o

século XII, o abastecimento das cidades passou a ser uma das principais preocupações das

administrações municipais, que passaram a regulamentar economicamente a situação,

procurando evitar fraudes e assegurar a alimentação e materiais de uso comum; passaram a

observar a publicidade das transações, fixação dos preços, medidas, qualidade e número de

mercadores nos locais, mantendo uma estabilidade nos comerciantes, não aceitando pessoal

de fora para vender na cidade, além de exercer a fiscalização para evitar estoques de

especulação, etc.

2- A “indústria artesanal”: ofícios (métier)

Georges Lefranc (1957: pp. 124-126) nos informa que o termo ofício (métier

ou corp de métier) era relativo ao grupo de pessoas que trabalhavam artesanalmente. Desde

o século XII85, esses grupos se desenvolveram nos ambientes de aglomeração populacional,

de forma livre (sem controle ou regulamentação); logo em seguida à multiplicação dos que

se aplicavam nesses trabalhos, passou a existir uma organização entre os que trabalhavam

nesses ofícios, ocorrendo uma forma comunitária de funcionamento na cidade, ressaltando-

se a seriedade nas atividades e um monopólio em tal exercício.

85 Até então, os artesãos atuavam de forma esparsa e isolada (ateliês artesanais) nos domínios dos senhorios e abadias, ocorrendo nessa situação ainda uma condição servil do artesão.

78

Eram esses artesãos, produtores dos bens necessários para a vida cotidiana

daqueles que viviam nas cidades, que foram se especializando com o passar do tempo e dos

serviços: no âmbito do atendimento à alimentação, havia o moleiro, o padeiro, o

confeiteiro, o açougueiro, o cozinheiro, o quitandeiro, o bodegueiro, etc.; no âmbito da

construção e mobiliário, havia o pedreiro, o carpinteiro, o telheiro, o marceneiro, o vidreiro,

o carreteiro, o toneleiro, o oleiro, o cesteiro, o fabricante de portas, torneiros, fabricante de

panelas, fabricante de objetos de chifre, etc.; no âmbito de vestuário, havia o alfaiate, o

comerciante de roupas usadas, o tecelão rudimentar, o tintureiro de lã, etc.; no âmbito da

metalurgia, havia o ferreiro, o polidor, o cuteleiro, o ferramenteiro (fabricante de morsas,

etc.), o ourives; e assim, em cada atividade que se fazia necessário um atendimento, havia

uma especialidade produzida e aperfeiçoada pelo trabalho humano.

Este autor destaca que sistematicamente se poderia observar a consolidação

dos ofícios em três fases: a primeira, a do costume oral; a segunda, a de regulamento livre

elaborado pelos interesses dos artesãos integrados; e a terceira, a fase do regulamento

aprovado pelo poder e sistematizado na comunidade. Mas essas duas primeiras fases foram

ocasionais, nem sempre presentes.

Ellul (1999: pp. 225-230) observa que a primeira etapa da instalação de

ofícios se deu pela formação de associações artesanais livres entre os artesãos que haviam

se fixado nas cidades até o final do século XI e se relacionavam com as associações

comerciais como forma de defesa, principalmente contra os senhores feudais que ainda

possuíam muita influência nos setores urbanos relacionados com seus domínios. Tais

associações, quanto às suas produções, eram objeto de fiscalização e regulamentação pelos

senhores ou pelos que eram encarregados pela administração municipal; só aqueles que

estavam integrados às associações fiscalizadas é que poderiam exercer o seu mister.

Essa situação criada pela estrutura de poder naquele contexto propiciou

também um paradigmático formato de auto-organização das entidades montadas pelos

artífices. Essa forma de organização, assim, de um lado, defendia os interesses dos artesãos

para a garantia e segurança de seus trabalhos para com os de fora, quer o poder senhorial,

quer a presença de forasteiros; de outro lado, essa associação montada era supervisionada

pelas administrações municipais, que asseguravam o controle municipal na defesa dos

interesses dos consumidores para uma boa qualidade do produzido. No século XII,

79

inclusive, não existe efetivamente, ainda, uma “corporação” típica, pois ainda há uma

intervenção exterior (municipal ou senhorial) e não há ainda uma regulamentação própria e

uma autonomia econômica do grupo.

Vale destacar que a organização comunitária entre os artífices se deu

concomitantemente ao momento de revolução medieval, a partir do novo ímpeto de

crescimento das cidades, como uma revolução industrial86constante e progressiva que se

colocou de forma duradoura e prolongou-se no Renascimento ocidental.

II - A organização das corporações

A organização daqueles que trabalham principalmente de forma artesanal

em atividades semelhantes ou afins não se originou na Idade Média, mas se tem notícia de

associações assemelhadas desde a Antiguidade, como na Índia, no Oriente persa (bazar) e

na Roma antiga. É a forma romana (colégio) que influenciou a formação da corporação na

Europa da Idade Média, notadamente a partir do período da revolução medieval.

O termo corporação não era usado pelos franceses na Idade Média87, mas

sim o de comunidade de ofícios (communauté de métiers – cf. Ellul, 1999: p.226). A figura

dessa comunidade de ofícios, ou como se denominou posteriormente na Espanha, gremios,

e em Portugal, corporação de ofício (expressão utilizada neste trabalho), representava mais

86 Desde o século X, mas principalmente a partir do século XII, ocorre uma verdadeira revolução industrial na Idade Média, a ponto desse tema ser objeto de obra de Jean Gimpel (2001: pp. 261-267), que relaciona diversas invenções no período; como exemplo, a criação do moinho de cerveja na Europa no século X, moinhos para ferro, casca de carvalho, cânhamo e de marés; a chaminé e a artilharia com catapulta no século XI; no século XII, temos a obtenção do álcool por destilação, moinho de vento, bússola, navios à vela sem remos, descoberta do ácido nítrico, barragens nos rios, abóbadas de ogivas, escada de caracol, vitral, martelo de joalheiro, catapulta, apuração entre os monges beneditinos cistercienses da criação dos carneiros por cruzamentos, etc.; no século XIII, temos ainda a invenção do botão, carrinho de mão, macaco-elevador, tear horizontal para dois operários, bússola com uma escala de referência dividida em 360º, comportas com dobradiça fechadas automaticamente pelo fluxo do mar, moinho para torcer a seda, cálculo da latitude de Paris, emprego do carvão na indústria, espelho de vidro, mecanismo de relógio com pesos e rodas, difusão da roda de fiar, etc.; no século XIV, há a invenção dos foles hidráulicos, da bússola portátil com tampa de vidro, moinho para cimento, canhão, pontes prefabricadas e articuladas, torno para madeira, descoberta da fundição, moinho de vento com telhado giratório, altos-fornos, ampulhetas, mostrador de relógios, garfos, instrumento de cordas com teclado fixo, etc.; no século XV, surgiu a primeira arma de fogo portátil, dissecação de cadáveres, emprego de pólvora para explosão destrutiva, caravela, canhão com alça, caracteres de imprensa móveis, etc. 87 Coornaert (1941: p. 23) nos diz que apenas em meados do século XVIII as antigas comunidades de ofícios começaram a ser chamadas de corporações na França; essa denominação é proveniente da Inglaterra e relaciona-se com corpo administrativo ou grupamentos econômicos.

80

do que um organismo especializado por profissão, mas um grupamento que englobava

várias profissões relacionadas umas com as outras, quer por circunstância econômica, quer

por circunstância histórica, quer por vontade fortuita.

A corporação de ofício se formava pela reunião de pessoas que atuavam no

setor profissional próprio e, nessa comunidade, o trabalho era repartido entre o local de

trabalho e o local em que permanecia o mestre responsável pelo trabalho. A corporação de

ofício era dirigida por uma Juranda88, direção colegiada da corporação que, como diz o

termo, era escolhida entre os pares que prestavam juramento de zelo ao grupo. Havia ainda,

na corporação de ofício, o associativismo relativo à confraria, de cunho religioso intra-

relacionado com o cotidiano, a crença (cristianismo) e os afazeres89.

Houve mais de um tipo de corporação de ofício: uma auto-organizada pelos

mestres e seus ajudantes e formada a partir da própria atividade necessária desde antes do

desenvolvimento das cidades, mas nelas estruturada em torno da atividade do mestre, como

as de fundidores, curtidores, marceneiros, etc.. Outras, com apoio para formação e

funcionamento do próprio poder municipal, como aquelas relacionadas com interesse

público mais próximo (corporações das atividades ligadas à alimentação, construção e

atividades de perigo – cirurgiões, boticários, etc.). E outras, ainda, formadas pelos

interesses do comércio com produtos de ampla necessidade ou aceitação nas cidades mais

ativas, como as relacionadas com tecidos. Mas também houve um tipo especial de

corporação, que possuía um ofício não artesanal, mas intelectual, que merece uma atenção

pela importância que representou e representa até hoje, qual seja, a universidade.

1- Uma corporação especial: a universidade

A universidade corresponde a uma criação européia medieval formada a

partir do século XI. Tratava-se de uma instituição de ensino superior com a “agregação de

várias escolas específicas, destinadas à formação de especialistas titulados” (Larousse

Cultural, 1998: pp. 5837-5838). A primeira universidade, formada em Bolonha, teve seu

núcleo inicial com a faculdade de Direito em 1088, e possuía um aspecto laico que logo

veio a se antepor à universidade de Paris, iniciada menos de setenta anos depois, e que só se

88 O Dicionário Houaiss da língua portuguesa não possui esse termo; mas a Grande Enciclopédia Larousse Cultural o trata por Juranda, em português. 89 Utilizamos-nos, mais uma vez, da linha do trabalho de Ellul (1999: pp. 225-230) para esta análise.

81

laicizou no século XIII. A universidade de Bolonha nasceu sob o apoio da administração

municipal e era sustentada tanto pelo governo municipal como pelo pagamento dos

estudantes. Logo após Bolonha e Paris, também surgiram universidades em Pádua,

Nápoles, Siena, Oxford, Cambridge, Heidelberg, etc.. Uma de suas características era a

autonomia universitária, nascida de movimento corporativo de autodefesa dos professores e

alunos; possuíam freqüência de milhares de alunos e centenas de professores; consistiam

centros de cosmopolitismo cultural, com direção própria, mas apoio de reis, bispos,

imperadores ou papas.

Le Goff, em Un Autre Moyen Âge (1999: pp. 197-208), destaca que da

mesma forma que as corporações, as universidades se utilizavam do monopólio, no caso

escolar, mais precisamente o monopólio da entrega das colações de grau. Conseguiram se

estruturar com autonomia jurídica, o que serviu de base conceitual para o apoio a Bolonha

dos poderes públicos, a partir do reconhecimento do imperador germânico Barba-Roxa90,

pelo édito Authentica Habita. Nessa linha, o rei Felipe Augusto concedeu autonomia

jurídica à universidade de Paris em 1200, reconhecimento esse que só foi completamente

formalizado pelo papado em 1231.

Como destaca Le Goff, a universidade, como toda corporação, controlava a

atividade escolar, e os poderes públicos tinham tal controle como útil, pois tratava-se de

uma organização de ordem profissional inserida no contexto da ordem pública. Sob tal

prisma, as universidades eram vistas como a organização corporativa denominada

universidade, e possuidora, como corporação, de privilégios especiais aos seus

participantes, como, por exemplo, a isenção de seus membros de participarem do serviço

militar. Da mesma forma que as corporações de ofícios, possuíam as obrigações de

supervisão interna, assim como de controle de qualidade, de atendimento das condições de

trabalho, pagamento pelos serviços e regulação dos estipêndios, termos de regulamentos

internos com as obrigações de respeito e serviço, função das chefias, etc..

Mas as corporações das universidades possuíam uma característica que as

distinguiam, além da questão intelectual, das demais corporações: era a constante relação

(muitas vezes conflituosa) e colaboração dos poderes públicos. É que a maior parte das

demais corporações possuía, por suas direções, nesse caso os mestres, uma independência

90 Frederico I, imperador de 1155 a 1190, morto durante a III Cruzada.

82

econômica efetiva para com os poderes públicos, em face da natural atividade dessas

corporações (a venda e a compra dos produtos e a forma de relacionamento com o público);

tais artesãos e mestres que viviam nas cidades tinham, historicamente de forma recente,

conquistado a liberdade diante do senhorio feudal pelo trabalho na cidade. Mas os mestres

universitários possuíam geralmente, por força de sua formação cultural e origem menos

humilde do que a dos artesãos em geral, um tipo de percebimento pelos trabalhos mais

diversificados: de um lado, recebiam pelo seu trabalho dos estudantes para quem

lecionavam, e nesse pagamento incluíam-se também presentes na época dos exames; de

outro lado e, principalmente, percebiam remuneração dos setores que apoiavam a

universidade, quer pelos auxílios eclesiásticos, quer pelas autoridades das cidades, dos

príncipes e soberanos.

Tal situação distinguia também a corporação da universidade das demais

corporações pela ausência de auto-recrutamento (usual na vida da grande maioria das outras

corporações). No caso da universidade, havia um número de cadeiras a serem preenchidas

por alunos que as utilizavam em razão de um quadro aberto pelo financiamento da

universidade pelas autoridades públicas ou oficiais; embora tais auxílios representassem

uma forma importante de subsistência dos mestres, também representavam uma abertura

para influências exteriores na instituição, o que resultava potencialmente em crises de

relacionamento91.

Entretanto, a relação entre a universidade e os poderes públicos apresentava

aspectos positivos, com a utilização da universidade no aperfeiçoamento da administração

pública; com o desenvolvimento e aprimoramento das atividades afins; com a cooperação

dada pelas faculdades de Medicina, muito úteis no período da peste negra; ou com a

atuação correspondente de outros setores da universidade para a melhoria da urbanização;

além da utilização dos conhecimentos de ciência política e econômica, por exemplo, pelos

poderes reais. Da mesma forma, os quadros universitários eclesiásticos foram muito

utilizados pela Igreja, quer pela estruturação de formas teológicas aplicadas, quer pela

burocracia papal.

91 Como exemplos dessas interferências, temos conflitos surgidos na universidade de Louvin, sobre a interpretação dada pelo dirigente de Louvin à bula papal de Eugênio IV, no século XV, sobre formas de suspensão na nomeação de professores, e a interferência do representante do poder local na escolha de becas negras na universidade de Paris.

83

Le Goff ainda destaca as universidades como um grupo econômico de

consumidores (1999: pp. 200-201), ainda que não produtor de bens concretos, como por

exemplo, a universidade de Oxford que possuía, por volta de 1380, cerca de um mil e

quinhentos universitários, em uma cidade que possuía cerca de cinco mil habitantes usuais.

Tal volume de pessoas representava um estímulo ao comércio, mas também representava

problemas para a acomodação e convívio de tantos alunos (não produtores de bens), pois tal

fato desequilibrava o cotidiano e o atendimento às necessidades urbanas, levando-se em

conta ainda um número não pequeno de alunos pobres. Vale destacar que os alunos

universitários possuíam vários privilégios econômicos, como a isenção de taxas, pedágios,

impostos, etc.

Cabe observar que o recrutamento dos mestres universitários era feito tendo

em vista a competência dos candidatos, os interesses locais em sua especialidade, e a

política de atuação pretendida pela direção universitária responsável pela arregimentação

dos lentes. O trabalho era extenso, com muitas horas de estudo e aulas durante o dia,

incluindo-se os serviços religiosos e a atenção aos alunos, sob o prisma material, de

formação moral e, inclusive, da prática religiosa. Desde o século XII, o ensino correspondia

a uma carreira, ocorrendo mudanças de mestres para outras universidades em função de

público mais numeroso, remuneração maior ou mesmo motivos pessoais, não havendo

óbices para professores “estrangeiros”. A duração dos estudos variava de acordo com as

matérias e as localidades; por exemplo, um doutorado em Orléans demorava cerca de dez

anos: os exames finais eram feitos privativamente, comportando uma explicação de texto

escolhido por um dos mestres doutores, com a discussão com tais mestres compostos em

forma de júri; a licença obtida autorizava a docência, licencia docendi (cf. Basdevant-

Gaudemet e Gaudemet, 2003: p. 117).

2- Corporação de ofício: o ateliê

O ateliê era o lugar em que se elaboravam as produções artesanais e, ao

mesmo tempo, o lugar em que se vendiam os produtos ali produzidos. O ofício era dirigido

por um mestre que era o proprietário das ferramentas e do material de trabalho (matéria

prima) e era ele próprio, o mestre, parte da corporação. Para ser mestre, eram necessárias

geralmente quatro condições: primeiro, completar o tempo de aprendizagem (pelo menos

84

três anos); depois, completar um trabalho de difícil execução determinado pela Juranda;

ainda, depositar o valor correspondente ao exercício do direito de mestre junto ao Tesouro

Real e, por fim, oferecer um banquete para a corporação. Vale destacar que o número de

ateliês (ofícios) em determinada comunidade era fixo, não podendo ser aumentado. O

mestre só assumia esse posto no caso de vacância; os mestres é que recebiam os ganhos dos

trabalhos vendidos, mas fiscalizavam os trabalhos e pagavam os salários dos demais que

trabalhavam sob suas ordens (companheiros ou oficiais, também jornaleiros e aprendizes –

que moravam e comiam às expensas do mestre) e tinham que aplicar o preço de acordo com

o que se entendia por justa medida; isso representava um valor de ganho modesto.

A aprendizagem relacionava-se com um tipo de contrato perante alguns

mestres jurados ou jurandos (membros da Juranda), em que o mestre retirava o aprendiz

(geralmente entre dez e doze anos de idade, embora pudesse se iniciar com 8 ou até 16 ou

17 anos) da casa de seus pais, assumindo o pátrio poder com o compromisso de ensinar-lhe

o ofício e dar-lhe o sustento. Os pais do aprendiz geralmente pagavam um valor por esse

aprendizado; o mestre podia atuar, então, até com poder de aplicar sanções ao aprendiz (“o

mestre tem o aprendiz para seu pão e seu pote” 92 - cf. Lefranc, 1957: p. 126), mas esse

poder não poderia ultrapassar limites do bom senso. Essa característica familiar possuía

também aspectos empresariais, pois o aprendiz poderia ser cedido a um outro mestre

confrade, além de constar como ativo sucessório no caso de falecimento do mestre

adotante. A forma da relação entre o aprendiz e o mestre se baseava na característica

medieval da dupla noção de “fidelidade-proteção” (como, por exemplo, o senhor feudal e o

vassalo).

As corporações procuravam limitar as vagas de aprendizes, tendo em conta o

círculo restrito das funções e das corporações (cf. Curtis Giordani, 1987: p. 210). Uma vez

terminado o período de aprendizado, o aprendiz era levado pelo mestre até os membros da

juranda e declarava, sob juramento, que havia completado seu aprendizado. O mestre

também deveria confirmar tal situação de término sob juramento, ocorrendo em seguida a

declaração de que aquele aprendiz passava a companheiro. Vale notar que, para o início do

aprendizado, era dada a preferência a um texto escrito com testemunhas e, para início da

92 «le maître tient à l’apprendit à son pain et à son pot».

85

atividade como companheiro (ou oficial ou jornaleiro), era dada preferência ao contrato

verbal.

Companheiros ou oficiais, também conhecidos como jornaleiros em função

da forma de contratação, eram trabalhadores que completavam o período da aprendizagem

e, embora não tivessem obtido o cargo de mestre, continuavam trabalhando

indeterminadamente no ateliê do mestre, geralmente como assalariados; eram considerados

como de segunda categoria e não possuíam influência direta nas deliberações da

corporação; seus salários e jornadas eram acertados individualmente com os mestres.

A promoção ao cargo de mestre por companheiros (jornaleiros ou oficiais)

era possível, mas as despesas e as possibilidades efetivas dessa promoção não permitiam

facilmente que ela acontecesse. Isso, entretanto, era mais factível até a metade do século

XIII, mas daí em diante o corpo de mestres passa a ser muito restrito por força da

estabilidade de cargos e sua importância na comunidade. Assim, passam a ser criadas

dificuldades impostas pelos estatutos das corporações: como exemplo, os custos para

acesso ao cargo de mestre se tornam muito altos, passa a constar nos regulamentos a

proibição de um companheiro permanecer em uma cidade por mais de dez anos, estabelece-

se a proibição de companheiro se casar com a filha do mestre, etc..

Assim, a partir do final do século XIII, na França, ocorre uma separação

entre os mestres e os companheiros (jornaleiros ou oficiais), sendo a razão principal o fato

de as corporações darem oportunidade aos filhos dos mestres passarem a mestres sem

necessidade do trabalho de alto grau de dificuldade, antes exigido pelas Jurandas. Diante

disso, os companheiros (jornaleiros ou oficiais) passaram a ter organização própria,

associações independentes da corporação de ofício, iniciando um outro tipo de competição

e rivalidade com os antigos ateliês, enquanto os aprendizes continuaram a conviver com os

mestres nas corporações, porém regulados por fixação de números menores, tendo as

Jurandas passado a restringir ainda mais os números dos que compunham as corporações.

Temos aqui um texto do século XV em que é retratada a admissão de um

companheiro no cargo de mestre costureiro em Paris (Curtis Giordani, 1987: p. 212):

Ouvido o pedido de Henrique de Herelle, natural do país da Holanda, e segundo o que João de Serain, Ricardo Jumel, Guilherme Marchant e Guilherme Poignant, jurados de ofício dos costureiros da cidade de Paris, testemunharam e afirmaram, a saber: ser o dito Henrique homem casado, de boa vida e nomeada, instalado em Paris, e ter feito perante eles da maneira acostumada, na presença do procurador do

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rei, a sua obra-prima: recebemo-lo por mestre e oficial do dito ofício de costura e alfaiate, para praticá-lo e guardar segundo os regulamentos do dito ofício, pagando 10 soldos de Paris ao rei e o direito dos ditos jurados; depois do que dele recebemos o juramento acostumado...

3- A Juranda

As Jurandas, também chamadas de conselho de homens prudentes (conseil

des prud’hommes), foram formadas com a estruturação formal das corporações de ofício;

eram compostas por mestres e eram escolhidos os seus membros entre eles. Possuíam os

membros das jurandas os títulos de jurados, ou síndicos, ou guardas, etc.. Em geral, o

mandato à função de jurado na direção da corporação correspondia a um ano e era

assumido com um juramento de respeito aos estatutos da corporação, defesa de seus

interesses, respeito aos credos, etc.. A Juranda possuía poder disciplinar sobre todos os

membros da corporação, de supervisão da aprendizagem, de promoção ao cargo de mestre,

de verificação dos preços e da qualidade do trabalho de cada ateliê, além de representar a

corporação perante as autoridades e sob o aspecto judicial. Poderia ainda promover entre

seus membros a confissão de culpa, aplicar sanções morais e de cunho administrativo, além

de reportar irregularidades aos juízos senhoriais ou reais ofícios.

4- A Confraria

A Confraria, embora tivesse uma característica de associação religiosa com

feitio social e até influência política, possuía, desde sua origem, uma inter-relação com a

corporação de ofício: é que o trabalho nos ateliês, desde sua formação anterior às cidades

(quando ainda interligadas aos feudos), utilizava-se da proteção de “santos padroeiros”

adotados, e a atividade religiosa e social era toda concebida em função dos patronos

religiosos. Desse modo, à medida que os ofícios se organizaram nas cidades, continuaram a

manter essa relação de confrades do mesmo ideal religioso. Assim, embora a confraria não

fosse da corporação, era imanente a ela; os membros das corporações de ofício eram

agrupados em confrarias, devendo executar os deveres religiosos e sociais, que passavam a

ser da própria corporação, como, por exemplo, as festas religiosas, os cerimoniais relativos

à devoção, promoção das missas relativas aos eventos de santos patronos, procissões, ajuda

a promoções de caridade (órfãos, viúvas, miseráveis), etc.

87

Continuando a citar Ellul (1999: pp. 228-229), a confraria se exprimia pela

vontade de união e integração ao meio urbano e pela via natural daquele ambiente: a

religião, sendo que tinha a boa vontade das autoridades políticas e religiosas. O elemento

econômico era ausente na confraria, pois nela estava contido o elemento de associação

humana que inexistia no trabalho cotidiano em si; afinal, o ofício era uma organização

econômica da profissão, mas a confraria representava uma personagem montada por irmãos

nomeados por seus co-irmãos, não necessariamente da forma hierárquica existente na

atividade profissional no ateliê. Mas era possível que essas confrarias tivessem mais ou

menos densidade política quando, por exemplo, pertencessem a ofícios mais pobres, como

tecelões, e pudessem se antagonizar com aquelas em que participassem os burgueses

dirigentes da administração municipal; nesse contexto, as confrarias vieram a representar

setores distintos na comunidade e, no final do século XIII, algumas delas passaram a ser

observadas com reserva pelos poderes locais.

Demurger (2003: pp. 108-111) lembra que as confrarias representaram a

principal forma associativa do final da Idade Média e destaca alguns nomes de confraria:

fraternidade, companhia, caridade (na Normandia), escola (em Veneza). Distingue três

grandes tipos: as confrarias penitenciais, de cunho restrito aos penitentes ou que adotavam a

autoflagelação (mais presentes na Europa meridional); as confrarias de caridade, que

atuavam junto às ações urbanas sociais; e as mais numerosas, as confrarias de devoção,

com santo protetor, ligadas às atividades de homenagens religiosas, que atuavam também

junto às exéquias, missas e aniversários e possuíam relação direta com as corporações

profissionais, com quem também compartilhavam as características de auxílio-mútuo entre

os membros corporativos.

As confrarias possuíam formas de auto-sustento e orçamento próprio a partir

de cotizações anuais e semanais de seus membros, a par de arrecadar fundos nas festas

promovidas aos santos. Também havia lugares (Paris, por exemplo) em que, para cada

venda de bem produzido pela corporação, uma pequena parcela de seu valor era

encaminhada para a confraria correspondente; as confrarias também recebiam multas por

descumprimento de regras, como faltar na procissão do santo padroeiro, sair da missa antes

do fim, recusa de velar o corpo de um companheiro, etc.

88

5 - Tipos de ofícios

Os tipos de ofícios correspondiam a uma característica proveniente da

destinação pretendida: havia a predominância daqueles mais voltados ao interesse

comercial, e neles estavam os padeiros, açougueiros, comerciantes de vinho, merceeiros, e

aqueles voltados ao interesse industrial, como os ferreiros, carpinteiros, seleiros, etc. Como

exemplos de tipos de ofícios artesanais, vamos escolher duas profissões descritas por

Brizon (1921: pp.104-131): os que trabalhavam basicamente com as pedras e aqueles que

trabalhavam com o metal.

Em função da construção das catedrais, símbolos do período medieval, o

trabalho dos construtores se apresentava como muito importante. Os pedreiros (franc-

maçons) tinham uma característica interessante: o anonimato – isso porque atuavam de

forma coletiva nessas construções, e faziam segredo da transmissão em segredo das

técnicas do uso das pedras e das madeiras para tais construções. Atuavam em conjunto

entre várias regiões e eram chamados por bispos, príncipes ou reis para seu mister;

instalavam-se em vilas provisórias construídas por eles, geralmente ao pé da obra da

catedral a ser construída, e ali permaneciam por longo período de tempo, só se mudando

quando a parte da catedral encomendada estava erguida, ou faltasse dinheiro para continuar

a obra, ou então quando havia necessidade de um grupo iniciar outra obra em outro local.

Tais trabalhos, entretanto, não eram completos, mas por partes: assim, geralmente um

grupo iniciava a obra pelas muradas e bases; se houvesse falta de dinheiro, esse grupo

emigrava; depois de um tempo (até dez ou vinte anos depois), um outro grupo iniciava a

construção das torres, e assim por diante. Houve pouquíssimos casos de um mesmo grupo

iniciar e terminar uma obra completa.

Outro tipo de trabalho de importância no período medieval era aquele

relativo aos metais. Geralmente esses artesãos trabalhavam com o bronze e o estanho, como

placas de tumbas, pés de candelabros, vasos de metais; nesta especialidade, o artesanato de

sinos passou a significar a organização de uma pequena indústria manufatureira,

incrementada pela construção de muitas igrejas a partir do século XIII. Assim, por

exemplo, em Paris, surgiu um forno para refundição dos sinos, em que havia cerca de cento

e vinte trabalhadores, que recebiam salários e refeição ao chegar, para almoçar e após o

trabalho do dia. Esse tipo de artesanato de metais também foi sendo organizado em

89

corporações para a construção de armas e armaduras para combates e torneios, possuindo

muitos detalhamentos e especificidades, que correspondiam a vestes metálicas de

cavaleiros e de cavalos, além de alegorias, estribos, proteção de selas, etc.. Os artesãos de

canhões (corporação de artilheiros) só se organizam no século XV.

Merece destaque aqui um tipo de trabalho que logo significou a presença do

comerciante burguês à frente do empreendimento, predomínio esse conseguido contra o

senhorio feudal por força dos lugares rurais em que se situavam as minas; ali eram

extraídos os minérios e iniciada a preparação dos metais. Eram locais geralmente

montanhosos, com tecnologias e trabalhos específicos, e estrutura própria. À medida que

foi sendo necessário mais ferro simples ou fundido para peças de moinho, máquinas

(aumento de armamentos, ampliação da construção de navios, além dos sinos das igrejas,

etc.), os comerciantes passaram a organizar o trabalho nas minas de forma mais racional e

produtiva. Eram organizados grupos de trabalhadores que cavavam poços profundos e daí

formavam galerias horizontais, com a utilização de ferramentas como esquadria, fio-de-

prumo e bússola; eram utilizados operários com picaretas e carregadores que se alternavam.

O minério retirado era triturado por máquinas e, em seguida, lavado e depois refinado em

diversos tipos de fundições. Tudo era feito de forma a não perder tempo. As

regulamentações do serviço expedidas pelos responsáveis pela mina descrevem o tipo de

exigências aos trabalhadores, conforme partes de textos de regulamentos de minas nas

regiões de Lyon e Beaujolais (cf. Heers, 1965: p. 105):

Que todos os operários de martelo serão obrigados a fazer inteiramente o seu turno todos os dias, tal como ultimamente se acostumaram a fazer. E serão todos reunidos juntos um pouco antes da hora do dito turno diante das entradas das montanhas, onde pegarão nas suas velas, e entrarão de uma só vez por ordem do interior das ditas montanhas. E se houver algum que lá não esteja a essa hora com eles e venha depois, não terá qualquer vela e não entrará na dita montanha no dito dia; perderá assim o seu turno, que lhe será abatido no salário.” “Quando os ditos operários estiverem dentro da dita montanha, terão de esperar o outro turno que deve vir depois deles, e não se mexerão dos seus postos até o outro turno ter vindo e entrado, na dita montanha, sob pena de perderem o dito turno.” “Que cada um dos ditos operários esteja sempre munido para o seu labor de um martelo e de uma dúzia de segures93 que lhe serão entregues na forja de tal maneira que, por falta dos ditos martelo e segures, não haja motivo para cessar o trabalho nem perder tempo.”

93 Segures correspondem a machadinhas próprias para esse tipo de serviço.

90

III – Os regramentos das corporações

As corporações de ofício tinham, cada uma ao seu modo, estatutos

regulamentando o trabalho e a produção de forma detalhada ou nem tanto; tais

regulamentos possuíam origem no costume e passaram a ser redigidos principalmente em

meados do século XIII. Essas regulamentações possuíam especificidades e precisão, sendo

certo que tais regulamentos eram essenciais para a apreciação judicial pelo juizado

senhorial ou real em caso de conflito.

Temos aqui uma tradução de parte do texto de estatuto dos ourives de Paris

(1261), extraído do Livre des Métiers, d’Éttienne Boileau94, apud Fourquin (1969: pp. 289-

290):

A- Dos Ourives. 1. É para os ourives de Paris que querem fazer parte do conjunto de nosso trabalho: 2. Nós ourives só podemos trabalhar ouro em Paris ou em seus arredores (...); 3. Nós ourives só podemos trabalhar em Paris com a prata que seja boa como a moeda de prata (esterlins); 4. Nós ourives só podemos ter um aprendiz estrangeiro (...); quando for de linhagem estrangeira por parte de mãe, será possível tê-los sem limites...; 5. Nós ourives não podemos ter aprendiz particular ou estrangeiro com menos de dez anos (...); 6. Nós ourives não podemos abrir de noite, a não ser para trabalho do rei, da rainha, de seus filhos, seus irmãos ou do bispo; ...95 Extraído da História da Riqueza do Homem, de Leo Huberman (1986: p.

56), vale também transcrever trecho do estatuto da corporação de ofício de couros brancos,

do século XIV, em Londres:

[1] ... se qualquer pessoa do dito ofício sofrer de pobreza pela idade, ou porque não possa trabalhar... terá toda semana 7 dinheiros para seu sustento, se for homem de boa reputação. [2] E nenhum estrangeiro trabalhará no dito ofício ... se não for aprendiz, ou homem admitido à cidadania de dito lugar.

94 O Livre des Métiers, de Éttienne Boileau, foi editado pela primeira vez em meados do século XIII, por ordem de S. Luís (rei Luís IX): infelizmente não se conseguiu uma cópia integral do texto para este trabalho. 95 Transcrevemos aqui o texto traduzido acima e escrito em francês antigo: “A Des Orfreves: 1. Il est a Paris Orfrevres qui veut et qui faire le set, pour que il oevre ad us et as coustumes du mestier, qui text sunt: 2. Nus Orfevres ne puet ouvrer d’or a Paris, qu’il ne soit a la touche de Paris ou mieudres: laquele touche passe touz les ors de quoi en oevre en nulle terre. 3. Nus Orfevres ne puet ouvrer a Paris d’argent, que il ne soit ausi bons come esterlins ou mieudres. 4. Nus Orfevres ne puet avoir que un aprentis estrange; mès de son lignage ou du lignage de sa fame, soit de loing, soit de près, en puet il avoir tant come il li plaist. 5. Nus Orfevres ne puet avoir aprentis privez ne estrange, a mains de 10 ans, se li aprentis n’est tex qu’il sache gaingnier 100 s. l’an, et son despens de boivre et de mangier. 6. Nus Orfevres ne puet ouvrer de nuit, se ce n’est a l’euvre lou Roy, la Roine, leur anfans, leus freres, et l’evesque de Paris».

91

[3] E ninguém tomará o aprendiz de outrem para seu trabalho durante o aprendizado, a menos que seja com a permissão de seu mestre. E se alguém do dito ofício tiver em sua casa trabalho que não possa completar... os demais do mesmo ofício o ajudarão para que o dito trabalho não se perca. [4] E se qualquer aprendiz se comportar impropriamente para com seu mestre, e agir de forma rebelde para com ele, ninguém do dito ofício lhe dará trabalho, até que tenha feito as reparações perante o alcaide e os intendentes. [5] Também a boa gente do mesmo ofício uma vez por ano escolherá dois homens para serem supervisores do trabalho e de todas as outras coisas relacionadas com as transações daquele ano, pessoas que serão apresentadas ao alcaide e intendentes... prestando perante eles o juramento de indagar e pesquisar, e apresentar lealmente ao dito alcaide e intendentes os erros que encontrarem no dito comércio, sem poupar ninguém, por amizade ou ódio. Todas as peles falsas e mal trabalhadas serão denunciadas. [6] Ninguém que não tenha sido aprendiz e não tenha concluído seu termos de aprendizado do dito ofício poderá exercer o mesmo. Há ainda um trecho da Historia General del Trabalho, dirigida por Louis-

Henri Parias (1965: pp. 164-165) em que se observa o regulamento dos paneleiros96 de

estanho de Paris (com base também no Livre des Métiers); ali constava a liberdade para ser

paneleiro de estanho, desde que fizesse uma obra reconhecida de alto nível e cumprisse as

obrigações necessárias. Também consta ali a proibição ao trabalho noturno, assim como a

proibição de trabalho nos dias festivos, a não ser que houvesse feira naquele dia, sob pena

de multa a ser paga ao tesouro real (havia no estatuto um comentário sobre o malefício do

trabalho sob a claridade noturna). No texto também havia regulamento sobre a obrigação de

obra de boa qualidade sob pena de multa, assim como proibição da venda de produtos

daquele artesanato de panelas de estanho por estranhos, também com multa a ser paga ao

tesouro real; também determinava que dois mestres jurados da corporação, como membros

da burguesia, deveriam ser indicados para atuarem na administração da cidade de Paris.

Vemos, nestes exemplos, a preocupação de limitação de espaço geográfico e

da atividade profissional, próprios para a especificação do monopólio da atividade

profissional; da mesma forma, tendo em conta o monopólio, fica evidente a preocupação da

exclusividade da região demarcada para os habitantes do lugar, o que denota também

preocupação com a manutenção restrita dos conhecimentos exigidos para a atividade

profissional; também se nota uma restrição, ainda que incipiente, com a utilização de

crianças para o trabalho corporativo, além do aspecto da jornada, a par da preocupação

96 O termo paneleiro é de português no Brasil, pois em Portugal tem outro sentido; em espanhol é olleiro; em francês, poêlier.

92

assistencialista para com os idosos, de cunho misericordioso. Tais preocupações revelam a

sociedade daquele momento histórico europeu, profundamente influenciada pelo

sentimento religioso e de hierarquia social, embora já com a presença da burguesia na

administração das cidades.

1- Regulamentos de trabalho

Constava nos regulamentos de atividades dos que trabalhavam nos ofícios os

termos da fixação da hora de abertura do ateliê, o número das horas de trabalho (que

geralmente correspondiam a dez horas diárias), os salários dos companheiros (jornaleiros) e

dos aprendizes, os dias de feriado em razão das festas religiosas e aquelas da confraria;

havia em torno de cento e cinqüenta dias por ano de folga de trabalho; também nos

regulamentos havia proibição de manifestações hostis dos que trabalhavam para a

corporação.

Transcrevemos aqui parte de um regulamento para companheiros curtidores

(moços surradores) de Paris, conforme Jacques Heers (1965: p. 96): Que nenhum moço que ganhe o seu pão no dito ofício faça coisa alguma ao sábado, em honra de Nossa Senhora, depois de ter tocado na Nossa Senhora de Paris a terceira badalada das vésperas. Que ditos moços, em todas as vigílias das outras festas de Nossa Senhora, dos apóstolos, festas anuais e quaisquer outras festas em que o vulgo da cidade folga, possam deixar o seu labor à terceira badalada das vésperas como acaba de ser dito. Que eles não partam para o trabalho desde a Páscoa até ao dia de S. Remígio senão ao sol-nascente e regressem ao sol-poente; e do dia de S. Remígio até à Páscoa, a uma tal hora, quer de manhã quer à tarde, que se possa distinguir um tornes de um parisis (trata-se de duas moedas que apenas diferiam pelas suas gravuras).

2- Regulamentos da produção:

Os regulamentos de produção estabeleciam a qualidade das matérias-primas

utilizadas, além da natureza e o nome dos utensílios empregados em cada ateliê, com a

demarcação do trabalho executado em cada setor produtivo; o mestre não poderia ficar

criando inovações nos produtos, devendo sempre estar disponível o produto da melhor

qualidade possível. Havia um rigoroso controle de qualidade e penalidades severas para

quem reincidisse na apresentação de mercadoria defeituosa, como, por exemplo, o confisco

da mercadoria, coação física e até expulsão da corporação. O preço era estabelecido como

93

justo e fixado; o controle sobre a observância de todas as regras estabelecidas era efetuado

pelo representante da Juranda e pelo público comprador, que poderia apresentar queixa às

autoridades.

IV – O contexto das corporações de ofício

Ainda nos utilizando de Ellul (1999: pp. 229-230), vemos que o sistema

corporativo possuía muitas vantagens: uma, a manutenção de uma boa qualidade dos

produtos colocados à venda; duas, a presença de uma segurança de que era praticamente

inexistente a fraude ou maquiagem dos produtos oferecidos; três, a de que os preços

oferecidos, assim como os salários pagos, não possuíam oscilação acentuada; quarta, é que

praticamente não ocorria uma luta de classes diante da parcimônia de benefícios, do sistema

praticamente igualitário de tratamento e da comunhão da vida no dia-a-dia entre o mestre e

os trabalhadores.

Entretanto, o sistema corporativo também possuía inconvenientes, como a

estagnação econômica, a falta de estímulo ao progresso tecnológico e a existência de

política de monopólios que, por sua vez, traziam duas conseqüências principais: os preços

sofriam o resultado do monopólio existente e, embora muitas vezes fossem considerados

elevados, assim continuavam a ser mantidos; e a especialização do trabalho era restrita e

não criativa; por exemplo, se uma corporação produzia um tipo de produto, qualquer outro

tipo de produto diferente, mas próximo daquele, era excluído, pela concepção de que outro

ateliê é que deveria produzir essa forma diferente.

A concepção do trabalho e da produção das corporações de ofício decorria

do contexto histórico, cultural e econômico predominante na maioria das regiões, pelo

menos até meados do século XIII e o início do século XIV. Nesse período, portanto, a

economia não era o dado essencial de preocupação da sociedade medieval; o pensamento e

as atitudes tinham como princípio o mínimo necessário para a vida social, e não o aumento

do nível de vida; o exercício de uma profissão não existia para ganhar dinheiro, mas para

atender uma vocação dada por Deus; o trabalho era uma responsabilidade cristã, e não

necessariamente o ganha-pão. Na vida social o auxílio mútuo dominava a conduta,

94

excluindo-se a concorrência comercial e buscando-se a união entre os mestres (também já

chamados de patrões) e os trabalhadores.

Também cabe lembrar novamente que as corporações de ofício tinham uma

característica geral de monopólio, em defesa de seus interesses e atividades; afinal, a

concorrência era algo inaceitável que deveria ser combatida. Nesse aspecto, o impedimento

de estrangeiros ou forasteiros de assumirem postos de trabalho era algo usual e até uma das

formas de proteção ao aperfeiçoamento das técnicas alcançadas nas localidades, pois não

havia legislação de proteção à autoria ou à tecnologia obtida.

Essa situação, do artífice artesanal, imagem clássica do homem da cidade

que produzia pouco, mas dono do ofício e oficina, da matéria prima e de seus produtos,

também responsável pela manutenção de seus oficiais e aprendizes, vendendo diretamente

para sua freguesia habitual, era numerosa e até influente em termos de poder econômico

urbano. Entretanto, alguns burgueses, moradores das cidades, mercadores com atividade

comercial ativa (organizados em guildas, por exemplo), logo perceberam a importância da

fabricação de algumas mercadorias, principalmente ligadas ao trabalho têxtil que, acima de

tudo, proporcionavam uma renda maior e características que destoavam daquela estrutura

clássica do trabalho artesanal. Tal situação começou a existir e a modificar as relações

anteriores principalmente na região de Flandres e também em algumas cidades italianas,

notadamente na Toscana.

Essa situação é retratada por Heers (1965: pp. 86-88), mostrando várias

mudanças no setor do trabalho ocorridas na produção artesanal, notadamente na produção

de tecidos, em função de mercadorias lucrativas:

a) Os trabalhos realizados no setor têxtil possuíam uma grande diversidade de atividades

artesanais, ocasionando uma divisão muito grande de atribuições e responsabilidades, cada

uma diminuta em si, mas com ampla alternatividade; eram impossíveis de serem atendidos

concomitantemente por poucos artesãos, seus oficiais e aprendizes, porém mais próprios a

serem coordenados por uma chefia pragmática, com condições de se entrosar com outros

interesses e profissões afins.

b) Havia necessidade de acumulação concomitante de muitos valores (capital) para a

compra, muitas vezes longínqua, de matérias primas, assim como a venda de tecidos

também podia ser feita em feiras de outras cidades. Assim, eram os mercadores hábeis para

95

adquirirem lãs de boa qualidade e, com esta matéria prima, passarem a fabricar inicialmente

panos de lã e, depois, de seda. Da mesma forma, além da matéria prima com qualidade, a

compra de corantes vindos de longa distância, muito importantes para artigos de luxo, eram

matérias de acesso muito mais fácil aos comerciantes de panos, o que facilitava o seu

acesso à fabricação dos tecidos.

c) A força política dos mercadores sobre a administração da cidade aumentou, notadamente

naquelas cidades que foram se tornando centros de produção de tecidos. Assim, passaram

esses mercadores a assumir os postos de mestres nas atividades mais lucrativas e, por terem

também influência política, passaram a ter domínio sobre o trabalho, quer promovendo

concorrência de salários baixos para os contratados, quer podendo controlar ainda mais o

cotidiano do trabalho e sua exploração, com a anuência dos poderes locais do qual faziam

parte (como o exemplo do uso do relógio que veremos mais à frente).

1- Aspectos do cotidiano corporativo: a produção

Apresentamos aqui, a título de exemplo, a situação relativa à produção de

tecidos no período que se inicia no século XIII, usando como base texto de Jacques Heers

(1965: pp. 74-84). Esse autor destaca que o tecido de lã e depois, o tecido da seda, são

representantes da atividade industrial urbana na Idade Média ocidental; e tal indústria se

iniciou na região de Flandres (Países Baixos e Norte da França), ampliando-se mais tarde

para a região da Itália (a seda). A característica desse trabalho é a dispersão das atividades,

a par da especialização dos seus trabalhadores. O trabalho começava com a chegada da lã

na forma bruta (geralmente da Inglaterra), terminando com a comercialização de tecidos

tingidos, com ornamentos e marcados com selo de chumbo das autoridades; realizavam-se

várias operações e a respectiva divisão de trabalho típicas do período, marcadas pela

rigorosa fiscalização do trabalho e do produto.

Toda a operação se iniciava pela escolha das lãs de boa qualidade, tendo em

vista a durabilidade, pelo que se destacava a escolha da lã tosquiada de animais vivos.

Geralmente mulheres faziam o trabalho de desembaraçar e separar as fibras à mão,

retirando-se os nós e as pontas, separando as lãs por qualidade; tais lãs passavam para as

mãos dos batedores que as estendiam em bancadas de vime trançado ou outra madeira e

batiam nelas com varas; as impurezas (pedrinhas, pedaços de fibras enlaçadas) caíam para

96

fora das peneiras; o material batido (peneirado), flocos de lã, era enviado para penteadeiras

(geralmente mulheres) que usavam avental de couro, se utilizavam de pente de ferro que

era aquecido até ficar como em brasa e, desse modo, despregavam e esticavam as fibras de

lã; do resultado dessa atividade ainda eram retiradas pela trabalhadora as fibras quebradas,

nós e poeiras coladas no material que, pronto, passava a ser considerado de boa qualidade.

Foi inventado, em meados do século XIII, um processo mecânico de

penteadura para tecidos de menor qualidade denominada cardadura (cardas: pequenos

dentes de ferro), que formava tecidos com fibras mais curtas, provocada pela quebradura

dos fios resultantes desse processo; antes e depois do processo de penteação havia a

lavagem da lã, com vários banhos de água quente e fria sucessivamente, além de muitas

vezes utilizarem o processo de untarem com gordura de boa qualidade as lãs para ficarem

menos secas e mais leves. Após esse processo, as lãs eram enviadas às fiandeiras para a

confecção dos fios mais longos e contínuos por meio de fusos de madeira torneada e rocas

de madeira flexível; extraíam-se os fios retorcidos (menos apertado e liso) ou mais felpudos

(veloso). Na mesma época da invenção da cardadura também foi inventada a roda de fiar

(uso de pedal para acionar a roda e deixar as mãos livres para torcer os fios), que demorou

muito tempo para ser aceita pelas autoridades municipais.

O tear era inicialmente vertical, mas depois se tornou horizontal. Era um

cavalete de madeira (para tecidos largos eram utilizadas melhores lãs); o trabalhador

sentava-se em um banco; Heers explica (1965: p.80):

... o tecelão devia manobrar um pedal que, através de um mecanismo de cordas e roldanas, levantava um liço, delgada vareta passada sob os fios pares do urdume97; lançava logo a seguir por baixo destes fios a lançadeira, pequeno receptáculo de madeira contendo uma bobina carregada com o fio de trama. Levantava em seguida o outro liço, o dos fios ímpares, e lançava de novo a lançadeira. Para os melhores panos, só se intervertiam os liços depois de se ter lançado várias lançadeiras e, portanto, introduzido de cada vez vários fios de trama. Nos teares mais largos trabalhavam dois obreiros, um para introduzir o fio de trama, o outro para o receber e o estender. Enfim, pentes, ou ros no Norte, conservavam constante o afastamento dos fios do urdume para melhor se passar a lançadeira e apertar cuidadosamente, contra a fazenda já tecida, o fio de trama que acaba de ser colocado.

97 “conjunto de fios rigorosamente paralelos, (...) geralmente muito apertados e muito sólidos, do mesmo cumprimento que a futura peça de pano. A preparação deste urdume chamava-se urdidura; era confiada quer a algum familiar ou aprendiz instalado no fundo da oficina, quer a obreiras especializadas, as urdideiras.”(Heers, 1965: p. 79).

97

O resultado desse trabalho era marcado indicando o tipo, a origem e a

qualidade do produto e era verificado por fiscais; tal tecido ainda era limpo e lavado,

passando por uma última rodada de batidas de madeiras (varas), além de outra untada

(geralmente de manteiga). No século XIII ainda, foi criado um moinho de água com

martelos de madeira para bater o pano, processo esse que, por não ser manual, demorou

muito tempo para ser aceito. Esses tecidos eram vendidos na forma crua ou encaminhados

aos tintureiros.

Todo esse quadro de especialização e divisão detalhada do trabalho com a lã

foi utilizado muitos anos depois nas cidades que passaram a trabalhar a seda,

principalmente na região italiana (Luca, Florença, etc.), com o acréscimo de invenções

mecânicas posteriores (ainda nos utilizamos de Heers, 1965: p. 84). A matéria principal era

o casulo da seda, que era aquecido na água à base de quatro ou cinco concomitantemente

para cada trabalhadora, que tinha por escopo desenrolar os fios e torná-los um fio mais

forte; tal fio era torcido por moinho, geralmente movido hidraulicamente, de aspecto

complexo: no século XIV essas máquinas tinham em torno de trezentos fusos; tais fios

eram cozidos e desembaraçados da goma original, colocados em jarras de barro por várias

horas e fervidos com água com ácidos; depois eram removidos para o moinho que fazia a

urdidura, ocorrendo operações mais complexas do que as de tecido de lã. Para isso foram

inventadas máquinas (teares) que eram guardadas como segredos, tal a variedade e

qualidade do que produziam com a seda (e que tinham como modelo a forma oriental de

tratamento e acabamento desses tecidos). Os fios de seda eram tingidos antes do processo

de tecelagem, e os corantes eram de qualidade superior e mais caros (garança, pastel,

cremex, o pau-brasil, etc.).

2- Aspectos das condições de trabalho

O trabalho das corporações de ofício do tipo inicial nas cidades era, como já

visto, entremeado de auxílio-mútuo, com pouco aprendizes e companheiros (oficiais ou

jornaleiros) em cada ateliê, com muitos feriados santos e atividades da fraternidade cristã

(as confrarias), com convivência domiciliar e pedagógica entre mestres, companheiros e

aprendizes, com vida modesta e sem competição, com trabalho geralmente à luz do dia, em

98

torno de dez horas por dia, em oficinas assemelhadas a quartos de casas simples, tudo de

forma tranqüila e comunitária.

À medida que o número de pessoas e a complexidade econômica e social se

avolumou nas cidades, a vida no ateliê foi afetada e, portanto, nas corporações também,

pois a maior importância dos produtos vendidos e daqueles que os vendiam redundou em

maior importância na hierarquia social e maior integração desses mestres com os setores da

burguesia que já representavam a direção política das cidades. Daí a maior competição, a

adoção dos privilégios na escolha dos mestres (descendência familiar), o início de um

processo de exclusão na relação social das cidades, o início dos confrontos de interesses

dentro das corporações de ofício, com a saída de companheiros (oficiais ou jornaleiros) e a

criação de novas associações com esse pessoal retirado da ascensão social interna da

corporação. A maior importância dos mestres os levou a conviver com as direções dos

estamentos comerciais e as direções municipais, passando eles a atuar conjuntamente, em

função de seus interesses.

O exemplo do setor têxtil, embora apresentado em algumas regiões, mostra a

nova dinâmica social e o início da utilização do trabalho sob outra condição, o que mais

tarde vai sendo adotado com maior freqüência. Temos nesse setor têxtil um dos maiores

problemas nas condições do trabalho obreiro que vale ser observado como um novo

paradigma de como era tratado quem trabalhava, paradigma esse que encontramos até os

dias de hoje.

Para o trabalho realizado no setor têxtil, diante do grande número de pessoas

requisitadas para uma atividade tão dividida em atribuições e com tantos trabalhos a serem

executados, foram recrutados trabalhadores vindos do campo e, portanto, estranhos à

cidade; geralmente vinham trabalhar sem a família e ficavam, pois, longe de sua vida

familiar rural e, portanto, sem o apoio comunitário que antes possuíam. Passaram esses

obreiros a se constituir no que seria uma plebe urbana, distinta do povo da cidade; não

possuíam direitos locais, não participavam de associações religiosas ou confrarias, não

tinham o convívio urbano corriqueiro dos que ali habitavam normalmente e tampouco

participavam de festejos ou competições. Sequer tinham o sobrenome que era dado àqueles

que tinham uma profissão, mas eram conhecidos apenas pelo nome de batismo e por sua

procedência – a localidade de onde vinham.

99

Os locais de moradia desses trabalhadores não eram no centro ou dentro da

cidade, lugar em que moravam os mestres, os comerciantes, os artesãos, os companheiros,

os clérigos, etc.; eles moravam na periferia dessas cidades, além e em volta dos muros de

limite e proteção urbana. Heers (1965: pp. 93-95) destaca que as mulheres que fiavam ou

escolhiam a lã não possuíam qualquer material próprio, recebendo por empréstimos dos

comerciantes que as contratavam as tesouras, pentes e demais utensílios; algumas poucas

trabalhavam em oficinas dos proprietários, mas, a maioria, em suas próprias casas.

Os mestres que atuavam nesse processo eram proprietários da oficina e

possuíam de um a três teares; por vezes alguns contratavam uns poucos companheiros para

o serviço de preparar o urdume e lidar com as urdideiras, e com eles ou sem os

companheiros, atuavam no processo até a limpeza, o batimento e a fiação do tecido:

mantinham-se como mestres, embora inseridos no processo de produção têxtil dirigido pelo

comerciante, que lhes fornecia lotes de fios e pentes especiais. Eram os comerciantes que

dominavam o processo para obter o material para venda, os mestres não podiam nesse

processo tingir as fazendas e promover a venda dos tecidos; suas funções de mestre eram

limitadas à contratação de companheiros e à posse de um certo número de teares em suas

oficinas.

Os salários dos contratados, mestres ou não, eram controlados pelos

comerciantes, que também influenciavam na direção administrativa da cidade. Todos,

incluindo-se os mestres tecelões, eram pagos por tarefa cumprida e os estatutos estipulavam

o valor de cada tipo de trabalho assim como as multas por defeitos na fabricação; o setor

têxtil era geralmente muito mal remunerado. Também a jornada de trabalho era controlada

pelos comerciantes, que se aproveitavam dos estatutos das corporações ou da fiscalização

da administração municipal; entretanto, todos na comunidade urbana, inclusive os

comerciantes e suas associações, veneravam seus santos, razão por que o trabalho não era

realizado em dias santos, santos de veneração local ou da cristandade como um todo (como

o Natal, Semana da Paixão, etc.), além de ocorrer uma situação de jornada especial durante

toda a quaresma.

Havia uma preocupação com relação à produção e, em função disso, a

jornada era observada como fator de regulação produtiva: assim, quando pouca a venda,

para que se evitasse produção excedente, havia redução do horário de trabalho e, em caso

100

contrário, necessária uma produção maior, maior jornada, sempre com a preocupação para

evitar-se o trabalho à noite, em razão do risco de incêndio causado pelas velas acesas.

O trabalho no setor de tecido de lã iniciava-se pela manhã com o toque do

sino, na torre própria ou da igreja local; ela também tocava ao meio-dia e na hora do

reinício do trabalho à tarde; o final do trabalho coincidia com o toque do sino relativo às

missas da nona e ao toque de véspera. Aqui vale a pena tratar do relógio e o que ele

simbolizou a partir desse momento na Idade Média.

3- O relógio e sua relação com o trabalho

O relógio mecânico surgiu na Europa ocidental durante a Idade Média, no

século XIV (inventado por Giovanni di Dondi)98 e representa o grande cume tecnológico da

revolução industrial medieval. Até ali a Europa ocidental possuía

um duplo sistema de horas: as horas temporárias e as horas canônicas, em número de 7. As horas canônicas regulavam a vida monástica. Num convento, o sino dos ofícios (as horas) tocava 7 vezes em 24 horas. Em quase todos os países da Europa o dia estava dividido em 2 vezes 12 horas. (Gimpel, 2001: p. 170). Na região italiana, principalmente próximo à Pádua, havia o costume de se

procurar saber as vinte e quatro horas do dia e esse invento possibilitou que logo o relógio

mecânico estivesse ali em 1344, e daí por diante, nas principais torres das principais

cidades européias. Em Paris, o relógio colocado por Carlos V unificou as horas reais e as

das igrejas em 1370, por decreto.

O relógio mecânico demarcou o tempo como finito, de uso do homem,

delimitador da vida e da morte, e fez com que o tempo passasse a significar dinheiro, pois

quanto mais se produzia mais se ganhava. S. Bernardo, transmitindo as novas idéias, disse:

“Não há nada mais precioso do que o tempo”99 (cf. Le Goff, 1999: p. 77). Esse uso do

tempo afetou o trabalho, pois também motivou sua racionalização e utilização para os fins

procurados: mais ganhos. Essa racionalização proporcionou nova forma de pensar com

bases objetivas, o que veio a redundar no futuro cartesianismo.

98 No mesmo período em que, na China, o relógio parecido com o europeu (ali criado no século XI e guardado com todos os segredos possíveis) foi perdido em razão de seus zeladores (a corte da dinastia Chin) terem sido expulsos de Pequim (século XIII) e não haver mais quem consertasse ou reconstruísse tal relógio. 99 Rien n’est plus précieux que les temps.

101

Esse relógio mecânico passou a ser parte da paisagem urbana quando

colocado nas torres ligadas aos centros de comércio (como em Bruges, hoje pertencente à

Bélgica, por exemplo), construídas pelas associações comerciais e com apoio dos mestres

principais das cidades; ou então, foram sendo colocados nas torres das igrejas, com apoio

dos clérigos que se integravam politicamente aos poderes locais. Tais relógios

representavam o conhecimento do tempo e sua importância para a cidade: muito menos

para saber-se a hora correta da missa, marcada pelos sinos, mas muito mais para saber-se o

horário de entrada e saída do trabalho. Afinal, com o relógio na praça principal da cidade,

todos sabiam quem estava atrasado para chegar ao trabalho e quem saíra antes da hora do

trabalho – a comunidade vigiando a vida da ida e volta dos que tinham algum horário. Isso

resultou em incômodos e até revoltas: por fim, o uso acumulado do tempo do trabalho

significa uma alteração na forma da exploração do trabalho. O saber da hora de quem

trabalhava passou a ser um uso mantido até hoje100.

V - Os conflitos relativos ao trabalho

Lefranc (1957: pp. 130-131) destaca serem os primeiros conflitos entre

corporações movidos pelo ciúme. As relações passaram a ter um estreito espírito de

particularismo: dos artesãos de uma cidade para com os outros de outras regiões, de mestres

de um dos ateliês para com os dos outros ateliês, da forma e da jornada do trabalho entre

eles, ocorrendo acusações de estarem sendo afetados os domínios de suas atribuições.

Como exemplo, temos questões suscitadas perante a justiça municipal entre alfaiate e

vendedor de roupas usadas: pode uma roupa usada ser vendida com uma roupa nova

integrando o conjunto? Também tais rivalidades ocorriam no setor de alimentação, na área

de bijuteria, etc. As rusgas eram tantas que o rei Felipe, o Belo, no início do século XIV,

chegou a suprimir as corporações sob sua jurisdição, voltando atrás dois anos depois e

passando a interferir mais proximamente nas relações corporativas, o que trouxe para

próximo do poder público a fiscalização sobre as instituições artesanais.

100 O poeta Noel Rosa, no século XX, veio nos dizer: “Quando o apito da fábrica de tecidos vem ferir os meus ouvidos, eu me lembro de você...”

102

Mas os conflitos que promoveram grandes alterações e repercussões

históricas não foram aqueles movidos pelo ciúme, foram aqueles irrompidos das questões

sociais, por força dos problemas surgidos nos confrontos de interesses mais complexos

oriundos das formas econômicas de apropriação da força de trabalho e da forma da

utilização do trabalho humano.

Ellul (1999: pp. 316-317) destaca que as crises econômicas são

acompanhadas de crises sociais e, em certos casos, a crise social é que provoca a crise

econômica, como o que ocorreu na região de Flandres; ou então, ao inverso, a crise

econômica é que provoca a crise social, como o que ocorreu na chamada sublevação de

Jacquerie; ou ainda, ocorrem crises sociais e econômicas sem se conseguir extrair qual a

causa primeira. Resta evidente, no entanto, que as crises econômicas conduziram a um

aprofundamento do contraste entre ricos e pobres, com os ricos cada vez mais ricos diante

do início de um capitalismo comercial, e com os pobres em situação pior do que aquela

vivida durante o período medieval até o século XIV. Em função do aumento desse fosso

social, iniciam-se conflitos com a forma de movimentos revolucionários, e ocorrem por

grande parte da Europa ocidental, desde pequenas arruaças, até verdadeiras revoluções

locais.

Dessa maneira, houve revoltas importantes que envolveram questões ligadas

a trabalhadores ou a falta de trabalho em Florença, em Paris, em Gand, no sudeste da

Inglaterra e Londres, Países Baixos e Flandres, Espanha, etc.. Essa multiplicidade de

insatisfações manifestadas em anos sucessivos, por volta dos meados do século XIV,

relaciona-se com a nova repartição das riquezas, a Guerra dos Cem Anos, crises financeiras

e políticas desde o âmbito municipal ao centro do poder real, revoltas religiosas, tudo

acompanhado de uma grande miséria, quer no campo, quer nas cidades. Houve, do lado

senhorial, várias revoltas também, tendo em conta a centralização do poder e sua

absolutização, com o correspondente declínio do poderio do senhor feudal, como a reação

feudal contra Felipe, o Belo, em 1314-1319, ou a tentativa de retomada dos privilégios dos

grandes senhores feudais no início do reino de Luís XI.

Interessa-nos aqui, porém, destacar os movimentos obreiros, pelo que deve

ser observado o século XIII e a região de Flandres em primeiro lugar. Como já visto

exemplificadamente acima, quando descrevemos a situação do trabalho nas atividades

103

têxteis, a direção da indústria da tecelagem estruturou-se acima dos interesses corporativos.

Tratava-se de uma indústria de cunho exportador em que os ganhos das vendas para o

exterior davam os ditames para toda a produção, sua renda e seus pagamentos pelos

trabalhos executados; e esses trabalhos eram pagos pelos negociantes têxteis de forma

unilateral, geralmente in natura, utilizando-se a concorrência de um tipo de exército de mão

de obra esfaimado, vindo do campo, sem ao menos o amparo que as corporações de ofício

possuíam pelas confrarias e a auto-ajuda.

Essas condições de trabalho na produção de tecidos levaram às revoltas

surgidas já no início do século XIV, revoltas essas contra o domínio econômico da

burguesia que também manobrava o poder municipal, asfixiando as alternativas de

atendimento aos reclamos em relação aos problemas existentes. Tal aristocracia burguesa

tinha apoio da realeza francesa, mas não do Conde de Flandres, por força de questões

políticas de autonomia regional. Ocorreram assim sublevações de trabalhadores contra a

direção da burguesia que dominava as cidades da região, bem como contra a armada real

francesa, tendo havido massacres, com fugas e expatriações de trabalhadores daquela

região. No entorno dessa crise estava a instabilidade das moedas, o controle político da

região pela realeza francesa, a distorção dos preços e salários, a grande exploração da mão

de obra, o peso dos impostos, a fome, epidemias, a falta de sensibilidade política dos

representantes reais franceses, aspectos de extremismo religioso com repercussão

ideológica, surgimento de lideranças carismáticas, etc. (Ellul, 1999: pp. 318-319).

A situação de revolta na região de Flandres também ocorria

assemelhadamente em diversos pontos da Europa, com a explosão revoltosa da população

excluída, aparecimento de líderes carismáticos organizadores dos levantes, a burguesia

dominante local como a principal adversária e, nessas revoltas, a inclusão da marginalidade

(bandidos, aproveitadores, etc.) também revoltada com a sua situação. Em um primeiro

momento houve vários sucessos para os revoltosos, mas, em seguida, houve cruéis

repressões.

Coornaert (1941: pp. 75-77) observa rebeliões no setor têxtil a partir de 1225

na região de Flandres e Hainaut, além de Douai e Rouen, em que oficiais e aprendizes se

organizaram em coalizações próprias e promoveram paralisações e desordens, o que

resultou na expulsão de muitos da região. Surgiram outras rebeliões sucessivas e

104

espalhadas, como aquela, a partir de 1280, em Ypres, com reflexo no trabalho do campo ao

redor, e que redundou em uma repressão impiedosa, com centenas de condenados à

expulsão perpétua do lugar. Na mesma época, ocorreram sublevações em Bruges, Douai,

Tournai, além de revoltas similares em Provins, Rouan, Caen e Orleans. Também

ocorreram, no mesmo período, revoltas nas cidades de Colônia e Worms, além de Viena.

Por volta do ano de1292, ocorreu uma revolta importante em Reims, semelhante a que

surgira pouco antes em Béziers e Tolouse, além de Blois.

Vale destacar que tais revoltas ocorrem sempre em reação à situação de

péssimas condições de trabalho. Demurger (2003: pp. 104-105) aponta que a rebelião em

Provins, em 1281, ocorreu em razão do prolongamento da jornada e teve como clímax o

assassinato do responsável pela direção da cidade. Os episódios relativos a Gand e Amiens,

por volta de 1355, relacionaram-se diretamente com o uso de relógio central como

elemento do coerção e mudança de hábitos dos trabalhadores. Também surgiram conflitos

institucionais no âmbito das cidades e das corporações, mais precisamente em torno das

rivalidades provenientes do fosso que se formou entre as profissões chamadas de artes

maiores (panificadores, ourives, etc.), com acesso próximo ao poder, e aquelas chamadas

de artes menores (curtidores, ferreiros, etc.); ou, como se dizia em Florença, do popolo

grosso; ou ainda, entre o chamado patriciado nobiliárquico e as corporações, ainda que de

artes maiores.

Desde esse período, diante dos problemas conflituais apontados, inicia-se,

principalmente na França, o movimento dos companheiros (compagnonnages), entidades

formadas por trabalhadores e oficiais de corporações (companheiros), excluídos das

vantagens corporativas (a partir do momento em que os mestres inviabilizaram a ascensão

hierárquica nas corporações por interesse familiar, etc.). Esses grupos formavam

associações de trabalhadores visando ao auxílio-mútuo e defesa entre diversas cidades;

procuravam buscar trabalho para seus membros, autoproteção em face da exploração dos

mestres corporativos que participavam dos poderes municipais, além de atender

trabalhadores em desemprego, quer ajudando para atendimento à saúde, quer arrumando

moradias, alimentação, etc.. Tais associações geralmente eram mantidas em segredo e

tinham como característica ritos de entrada e cerimônias religiosas.

105

Mas também se inicia um tipo de conflito que coloca em questão as próprias

corporações como instituições existentes nas cidades, como o episódio ocorrido na

construção da igreja de Santa Maria del Fiore, em Florença: durante a construção, os

pedreiros da corporação de ofício local promovem um movimento exigindo um

determinado valor para o prosseguimento da obra; o construtor, não aceitando a forma e o

preço estipulado, rompe com a corporação dos pedreiros e monta, sob sua coordenação, um

sistema de implantação das pedras no templo e oferece, a um preço estipulado por ele

mesmo, com apoio dos financiadores da obra, trabalho para aqueles que, embora não

pedreiros, aceitassem colocar as pedras no sistema de colocação proposto. Esse episódio, a

par de alterar a forma de construir (de interesse para a história da arquitetura), representa,

ainda que de forma iniciante e minoritária, um novo formato de contratação de mão de obra

no século XIV, em que se modifica a forma de trabalho e o processo de contratação de

trabalho, sob outro modo de relação laboral.

VI - A interferência real nas corporações

À medida que o poder real se centraliza e absolutiza, passa a ocorrer uma

maior influência desse poder: não só no prisma político institucional, nas relações com a

Igreja e nas relações com o senhorio feudal, mas também nas relações corporativas, o que

vai formando um quadro de intervenção política e jurídica do poder central sobre a vida

cotidiana do trabalho nas corporações de ofício. A intervenção centralizadora do rei tinha o

apoio efetivo da burguesia, diante de sua aliança econômica e política com a centralização,

e com a respectiva restrição aos poderes senhoriais regionais, o que permitia uma maior

autonomia e liberdade de ação econômica por parte dessa classe ascendente.

Como nos destaca Coornaert (1941:101-102), desde o rei francês Felipe, o

Belo, foi inaugurada uma política ativa de interferência direta do poder real sobre as

relações corporativas de trabalho; assim, os reis que o sucederam (Felipe VI, João, o Bom,

Carlos V e Carlos VI) passaram a autorizar a criação de novas corporações de ofício,

suprimir suas confrarias (principalmente por seu caráter intimamente ligado à Igreja),

alterar as jurandas para substituí-las por agentes (fiscais) reais, tudo visando à intromissão

do poder real sobre todos os tipos de relações sociais.

106

Desde o início do século XIV, em Paris, por exemplo, vê-se a intromissão

real sobre as corporações: os reis do período designaram o responsável da cidade (prévot de

Paris) como o supervisor das atividades panificadoras, além de também supervisionar

outras atividades corporativas, como a dos carpinteiros. Em meados do século XIV, o poder

real retira, nas regiões em que possui maior influência direta (de Tournai e Amiens à

Carcassone e Nîmes), a jurisdição dos juízos ordinários locais sobre as relações de trabalho

corporativas, passando à jurisdição real esses casos. Além disso, por seus agentes, impõe o

formato de interesse real aos estatutos corporativos, estabelece para eles os membros da

juranda ou o conselho de homens prudentes (conseil des prud’hommes), supervisiona suas

eleições internas, preside assembléias, outorga selos de marca nos tecidos, supervisiona a

escolha de novos mestres, fiscaliza as relações internas de trabalho nos ateliês, abre ramos

novos de corporações, etc.

Observa-se ainda, nesse período, a instalação pela via real de procedimentos

administrativos para o cotidiano corporativo, como a instalação de comunidades,

regularização de regulamentos corporativos, eleição dos jurados relacionados aos conselhos

de homens prudentes, bem como a formação dos mestres. Essa situação transforma as

corporações, de autônomas a parte subordinada da administração real, alterando até sua

estruturação jurídica: o autor em questão chega a denominar como semi-pública ou quase

pública a natureza jurídica das corporações afetadas. Exemplifica tal fato com uma

ordenança real francesa de Felipe, o Belo, de 1313, em que, ao editar regras de aspecto

monetário, dispôs para que, nas cidades do reino, não houvesse assembléias corporativas

autônomas em que os mestres escolhessem os membros da Juranda (ou membros do

conselho de homens prudentes), determinando firme execução dessa ordem. Ainda

relaciona a importante ordenança real de 1330 e sua regulamentação de 1332, por Felipe

VI, em que foi fixada a duração e o preço da jornada de trabalho por todo o reino para a

atividade de curtidor, fixando ainda o mesmo tipo de estatuto para essa função profissional.

Após o ápice da tragédia da peste negra, foi reduzida em um terço a

população da Europa, o que redundou em se tornar precária a mão de obra artesanal,

acarretando aumento do preço do trabalho manual. Logo em seguida, em 1351, o rei

francês João, o Bom, editou uma ordenança geral fixando um valor máximo a ser pago

pelos trabalhos artesanais de cada tipo de função, além de fixar o número e o tipo de função

107

para o trabalho nas corporações de ofício e fixar formas estatutárias corporativas. Nesta

mesma época, Eduardo III, na Inglaterra (1349), com o pretexto imediato também da peste

negra (cf. Marx, 1994: p. 308), editou lei fixando limites salariais e de jornada de trabalho,

que veio a ser novamente regulada em 1496.

Segadas Vianna, nas Instituições de Direito do Trabalho (1997: p. 31),

destaca ainda a forte intervenção no direito regulamentar das corporações pelo poder real

espanhol quando as Cortes de Valladolid, em 1351, estabeleceram jornada de trabalho, no

período de manutenção solar, com intervalos para alimentação, com ampliação da liberdade

de aprendizagem, além de édito das Cortes de Toro proibir o penhor dos instrumentos de

trabalho e a prisão do trabalhador por dívida.

108

CONSIDERAÇÕES FINAIS: UM OLHAR EM PERSPECTIVA

Após nossos olhares indagador, panorâmico e de aproximação, vale a pena

finalizarmos este trabalho com um olhar em perspectiva sobre o período medieval

escolhido. Propomos, então, uma breve análise como nossas considerações finais.

Logo no início, foi feita menção à preocupação industrialista e oitocentista

da História do Direito do Trabalho, tendo em conta a revolução industrial e o capitalismo

como bases para a situação econômica e social existentes para a formação desse ramo do

Direito. Retomando a questão, Nascimento (1981: p. 4), nessa linha, é enfático:

O direito do trabalho surgiu como conseqüência da questão social que foi precedida da Revolução Industrial do século XVIII e da reação humanista que se propôs a garantir ou preservar a dignidade do ser humano ocupado no trabalho das indústrias que, com o desenvolvimento da ciência, deram nova fisionomia ao processo de produção de bens na Europa e em outros continentes. A necessidade de dotar a ordem jurídica de uma disciplina para reger as relações individuais e coletivas de trabalho cresceu no envolvimento das “coisas novas” e das “idéias novas”... O autor citado, na mesma ótica de muitos outros, vê o Direito do Trabalho

como resultado da necessidade de obter-se uma estrutura jurídica própria para atender as

situações decorrentes das relações individuais e coletivas do trabalho por força da

decorrência da Revolução Industrial. Dessa forma, visualiza o Estado moderno como o

propiciador da implementação de um ambiente de bem-estar social, com o acomodamento

das tensões e conflitos sociais, tudo de forma circunscrita a um período de tempo e a uma

concepção econômica – após a Revolução Industrial.

Tal postura, entretanto, é certamente segmentada. Seria possível vermos a

História do Direito do Trabalho como a análise de fatos em forma compartimentada, pela

qual, por exemplo, a explicação para determinados conceitos e princípios existentes no

Direito do Trabalho possuem somente causas ligadas a um determinado evento econômico

e social? Werneck Sodré (1968: pp.11-12) faz-nos lembrar lei da lógica de Hegel pela qual

as “simples mudanças na quantidade, depois de certo grau, acarretam diferenças na

qualidade”. Esse autor destaca que muitos operários, funcionando concomitantemente

sob o comando do mesmo capital, no mesmo espaço, no mesmo campo de trabalho, se acharem melhor, para produzir o mesmo gênero de mercadorias, eis o histórico ponto de partida da produção capitalista. É assim que, em seu início, a manufatura propriamente dita apenas se distingue dos ofícios da Idade Média pelo maior número de operários explorados simultaneamente. A oficina do chefe de

109

corporação não faz senão alargar as suas dimensões. A diferença começa por ser puramente quantitativa. (p.12) Observar a história do Direito do Trabalho sob um prisma isolado, isto é, a

partir do oitocentismo e do capitalismo industrial, deixando de lado ou para trás, sem

liames maiores do que informações de um passado longínquo, toda a formação do trabalho

sob um prisma de autonomia e liberdade obtida sobre a servidão, a partir do período

medieval relativo à Idade Média baixa principalmente, e daí em diante, todo o período

econômico mercantil da Europa, representa um ranço positivista se olharmos

epistemologicamente. E aqui lembramos a figura do Barão de Münchhausen, aquele célebre

contador de histórias fantásticas, que era capaz de retirar a si mesmo do pântano apoiando-

se no próprio puxão de sua cabeleira e mover-se do lugar por ele mesmo, contada por Löwy

na análise que faz do positivismo (1996: pp. 17-57).

Aliás, a visão concentrada e compartimentada da História do Direito do

Trabalho, com a postura de que era essencial para ela apenas o período da Revolução

Industrial a partir do oitocentismo que, por sinal, se relaciona com a época em que as

ciências humanas se estruturam e são reconhecidas como tais, representa uma afirmação

com uma ambigüidade problemática. Vejamos:

a) de um lado, um autonomismo auto-afirmativo do Direito do Trabalho, como ciência

autônoma do Direito. Tal discurso autonomista fez-se importante no início do século XX,

como forma de montagem de limites e importância do ramo então novel que representava,

tudo fazendo para se mostrar autóctone do Direito Civil, como um ramo próprio de ciência

jurídica sem relações ou amarras passadas. Daí, a desconsideração para com o período

anterior à Revolução Industrial e principalmente a Idade Média.

b) de outro lado, um viés triste, mas ligado com o ranço de nosso passado escravagista:

aquele em que o Direito do Trabalho era visto como um direito novo e de menor

importância, quase desligado do Direito, que representava uma simples linha auxiliar

assistencialista do Estado para uma grande parcela da população excluída ou quase

excluída, constituída de trabalhadores, que estavam muito longe do que representava o

poder e a importância para a classe dominante. Tal concepção teve um apelo considerável,

principalmente para um setor jurídico preconceituoso, que foi se tornando, contudo, com o

tempo e a afirmação do Estado Democrático de Direito, totalmente destoante e minoritário.

110

Em razão disso, torna-se claro que a concepção segmentada da História do Direito do

Trabalho não se justifica funcionalmente.

Do mesmo modo que a economia vê a utilização e a forma do trabalho, no

estágio do corporativismo, sob um aspecto quantitativo preparatório do salto qualitativo da

expropriação da força do trabalho no capitalismo, nós que estudamos o Direito do Trabalho

não podemos nos furtar a procurar entender a formação anterior em que se enquadrava o

trabalho, sob a forma corporativa, com suas concomitantes e/ou posteriores modificações a

partir do capitalismo mercantil. Afinal, a luta empreendida pela jornada do trabalho a partir

do século XIX, também foi, em seu tempo e em sua forma, empreendida pelos aprendizes e

oficiais das corporações de ofício, como visto por meio do olhar realizado pelo presente

trabalho.

A luta contra as péssimas condições de trabalho existentes desde o século

XIX foi analisada pela História do Direito do Trabalho; as mesmas condições também

foram o objeto da luta dos menos aquinhoados das corporações e dos excluídos delas nos

episódios das revoltas relativas às condições de trabalho, jornadas e salários, como aquelas

dos trabalhadores dos tecidos de lã em Flandres e nas cidades italianas (século XIV), além

das demais rebeliões apontadas em nosso texto. Qual a principal identidade nessas lutas? A

luta do homem por dignidade e respeito à sua condição humana no trabalho, quando

afetado, ainda no período da corporação e nos primórdios da manufaturas, precedendo o

trabalho industrial. Por óbvio que essas situações merecem um olhar indagador e de ligação

histórica.

Como exemplo metodológico, a Teoria Geral do Estado, que representa um

ramo recente da ciência do Direito, ao promover seus antecedentes históricos não omite, e

não poderia mesmo ignorar, a importância da formação, estruturação e jurisdicização da

sociedade humana, observando com peculiar interesse o Império Romano, o Sacro Império

Romano-Germânico do Ocidente e, nele, o período carolíngio, além da alta e, depois, baixa

Idade Média, até passar a observar o Estado renascentista. Ali não se tem como ponto de

partida apenas o final da Idade Média, com os estados gerais de Felipe, o Belo, mas

procura-se analisar os primórdios das feições que vieram a ser tomadas pelo Estado

moderno.

111

Um outro exemplo relaciona-se ao Direito Processual: também um ramo

relativamente recente do Direito, o tratamento histórico a ele dado por importantes juristas

enfatiza o estudo do Direito Processual a partir das tragédias gregas, tendo em conta que

nelas são contadas o surgimento da prova testemunhal e circunstancial para a comprovação

dos fatos no processo ou procedimento; além disso, destaca os momentos quando são

narradas, nessas obras, a superação da fase mística da apuração dos fatos pelo Oráculo de

Delfos. Assim, dá-se importância aos aspectos informativos e formativos dos métodos

procedimentais, ao invés de fixar-se a História do Direito Processual no momento em que a

ciência processual toma importância, nos meados do século XIX, entre outros motivos, por

força da obra de Oscar Bülow na Alemanha.

Logo, consideramos que também a História do Direito do Trabalho não pode

se situar isoladamente, utilizando-se apenas dos paradigmas do período após a Revolução

Industrial. Toda a tradição da forma de tratamento dada pelas classes dominantes

(econômica e política) das sociedades ocidentais pesa historicamente sobre a cultura nas

relações do trabalho, assim como as formas de postura, subordinação e relacionamento

perante a classe dominante daqueles que trabalham, quer pelo uso das mãos, quer pelo uso

do intelecto, desde a Idade Média. E esses tratamentos de corpos sociais, e depois de

classes, iniciaram-se principalmente na Idade Média baixa, por sua vez, com as

reminiscências históricas da escravidão e da servidão.

Sob este prisma, o trabalho das corporações de ofício nas cidades medievais,

em sua fase de renascimento político e econômico, tem uma característica de formação de

atitudes defensivas, quer se protegendo em corporações e confrarias contra os econômica e

politicamente mais fortes, quer formando monopólios circunscritos para suas produções ou

contra outras cidades ou contra o surgimento de corporações que pudessem afetar sua

produção. Essa defesa representa uma atitude humana de autopreservação e mesmo de

humano (e indesejável) egoísmo; depois da Revolução Industrial, atitudes como essas

foram reutilizadas com métodos similares, como nos momentos em que, pelos sindicatos,

se pretendia impedir o trabalho para quem não fosse sindicalizado, nas chamadas cláusulas

de closed shop ou union shop; ou outras atitudes de preservacionismo extremado e

monopolismo da ação sindical.

112

De outro lado, contemporaneamente tem se visto uma outra forma de

monopolismo, de cunho anti-sindical, praticado por empresas de grande porte, notadamente

nos Estados Unidos da América do Norte. Ali, em nova versão dos antigos yellow dog

contracts, são contratadas empresas para o combate de ação sindical. Elas agem visando a

inviabilizar qualquer tipo de atuação sindical, quer pressionando e intimidando os

trabalhadores das empresas a não se sindicalizarem, quer oferecendo tudo o que é tipo de

apoio à empresa durante quaisquer movimentos reivindicatórios. Por exemplo, providência

de empregados fura-greves, fornecimento de refeições para os empregados que não fizerem

greve e demais atos que impeçam totalmente a atividade sindical nas empresas e

impossibilitem qualquer concretização de medidas de defesa dos trabalhadores pela forma

coletiva (e, por óbvio, individual). É o emprego do monopólio interno das relações de

trabalho, sem possibilidade de alternativas para os trabalhadores às condições oferecidas

pelas empresas.

Também vale lembrar que as corporações de ofício foram abolidas com a

prevalência econômica do capitalismo: na Inglaterra, desde um processo iniciado com

Eduardo VI (1549) e completado pelos Combination Acts de 1799 e 1800; e, na França,

com a revolução burguesa (Lei Le Chapelier), o que veio a influenciar a legislação de

muitos países. Mas, no início século XIX, surgiram, sob a influência da tradição histórica e

cultural do tempo medieval, confrarias secretas de trabalhadores para auxílio-mútuo e

organização de féretros, até sob o pretexto de coleções de selos; serviam, no entanto, para a

troca de informações sobre condições de trabalho. Foram o início da organização de

movimentos de protestos que, com o tempo, passaram a se constituir em novos tipos (ou

sob novas condições qualitativas) de corporações: os sindicatos.

Podemos ainda destacar, como objeto histórico com influência jurídica

notória, a adoção de documento sistemático e estrutural, de forma a organizar, manter e

equilibrar o cotidiano do trabalho: os estatutos corporativos. Como vimos, tais estatutos

eram peça jurídica importante tanto interna, ao regular a vida das corporações,

estabelecendo critérios de ingresso, fiscalização, punição, promoção e de auxílio, quanto

externamente, nas fiscalizações dos emissários municipais ou régios, e perante os juízos de

costume ou reais. Tais estatutos corporativos, tanto das corporações de mercadores

(guildas), como das corporações de ofício, representam a reminiscência histórica presente

113

nos regulamentos empresariais posteriores, bem como nos regulamentos de pessoal da

empresa, assim como dos regulamentos sindicais. Aliás, repercutem até nas

regulamentações modernas resultantes das negociações coletivas, como o acordo ou

convenção coletiva de trabalho. Esses estatutos podem significar até um antepassado do

Direito Coletivo do Trabalho, como chega a considerar Émile Coornaert (1941: p. 64).

Outro aspecto a ser considerado refere-se ao momento em que se dá a maior

concentração do poder real sobre a sociedade, mais precisamente na Idade Média baixa: é o

período em que há uma intervenção efetiva do Estado, com o absolutismo nascente, sobre

as relações de trabalho. E esse Estado concentrado nas mãos do rei está aliado à burguesia,

que investe nessa relação e obtém retornos polpudos. Atendendo aos interesses da

burguesia e da utilização absoluta do poder, o rei passa a interferir nas corporações e

associações de oficiais, bem como sobre o trabalho temporário. O motivo principal,

certamente, além da intromissão absoluta do poder real, é o lucro pela menor remuneração

de quem trabalhava, mas houve motivos incidentais muito importantes como a peste negra,

outras epidemias, as crises financeiras no período da guerra dos Cem Anos, etc. Tal

intervenção, com decretos reais em diversas nações, estabelecendo horários de trabalho e

valores limitados a salários de aprendizes e oficiais, representa uma intromissão do Estado

sobre as relações de trabalho; e a intromissão do Estado sobre jornada de trabalho e salários

possui uma identidade muito grande com os paradigmas do Direito do Trabalho que temos

hoje, ainda que as relações de trabalho tivessem uma característica não capitalista

industrial, mas representassem o início de um capitalismo mercantil.

Há ainda outra questão relacionada à atualidade, a situação da jornada do

trabalho: em função das novas formas de trabalho, ocorre atualmente uma preocupação do

Direito do Trabalho com as chamadas jornadas part-time, decorrentes do trabalho parcial,

com cobrança sob o aspecto produtivo, ou ainda a retomada do trabalho doméstico sob a

situação virtual em que se encontra o trabalhador em permanente contato com a empresa.

São situações que se encontram em similaridade, diante do confronto de novas situações de

controle e produção, com o trabalho artesanal na Idade Média, em que as tecelãs produziam

em seus locais residenciais, que deveriam ter vidros de janelas voltados para a rua, para que

outras pessoas, principalmente os fiscais dos comerciantes, pudessem fiscalizar o trabalho,

o ritmo, a dedicação e a qualidade dos fios e tecidos que elas manipulavam. Assim como a

114

introdução do relógio nas praças das cidades, fato que alterou a forma da cobrança de

pontualidade sobre a jornada e que afetou a vida dos trabalhadores do século XIV, a ponto

de surgirem rebeliões de protesto e indignação.

Sobre a intervenção do poder real sobre as relações de trabalho, destaca-se

ainda a intervenção do braço do rei sobre a organização das corporações de ofício,

transformando as corporações em correias de transmissão da presença do rei na

comunidade local, quer pela escolha dos jurandos (prud’hommes), quer pela intromissão na

regulamentação interna, modelando os estatutos corporativos, quer determinando o sistema

de trabalho a ser produzido no local em que se estabelece a corporação, etc. Tal situação, de

influência do Estado sobre a vida corporativa de trabalhadores, foi legislada pela própria

Consolidação das Leis do Trabalho, sob os auspícios do ditador Getúlio Vargas, e

continuou predominando por muito tempo. Será que não há relações a serem feitas? Pois

claro que tais relações se tornam importantes para a análise do Direito do Trabalho.

Temos ainda o aspecto da anarquia e da hierarquia: como visto no olhar

apresentado, a sociedade medieval era anárquica, por ausência de centralização de poder,

existindo uma descentralização dos poderes em diversos âmbitos e locais. Mas,

concomitantemente, ocorria uma estrutura hierárquica de poder, em que as relações se

davam pela submissão à autoridade superior, e assim por diante, num encadeamento de

tipos de vassalos e suseranos em praticamente todas as formas sociais de convívio, do

poder político e religioso ao convívio corporativo. Essa situação perdurou, inclusive,

durante o início da centralização de poder real no final da Idade Média. Embora não

idêntica, tal situação passou a ser arremedada com a contemporânea situação política e

social do mundo: a queda do muro de Berlim, que representa o final do século XX de um

lado, e a mudança do Estado contemporâneo, em que o capitalismo financeiro não precisa

mais de fronteiras nacionais para salvaguardar suas riquezas, com a conseqüente

diminuição do poder do Estado, de outro lado. Complementou-se assim a descentralização

do poder no mundo de hoje, iniciada com a “revolução” das comunicações, que teve como

corolário a utilização do mundo virtual. Tal descentralização de poder representou um

fortalecimento internacional do capital financeiro e das corporações empresariais

interligadas a esse capital. Passou a ser visto tal fortalecimento como uma recriação (ou

“em farsa ou em tragédia”) de feudos, de tipo econômico, sofrendo a influência de poder

115

local e todas as repercussões corporativas similares pela existência desse tipo de poder

descentralizado nas relações do trabalho. Agora, há uma nova característica de hierarquia-

anarquia: a par da horizontalidade, há o discurso de que a lei social deve ser colocada de

lado para atender à criação de frentes de trabalho, e trabalho sem amarras, mas totalmente

subordinados ao mercado e à concorrência. A visão da estrutura feudal certamente auxilia a

análise deste momento histórico por que passamos no mundo trabalhista.

Paralelamente a essa descentralização, estendeu-se, no microcosmo das

empresas, uma nova forma de relação de trabalho e subordinação: ao invés de chefias

verticais, instalou-se o método japonês (toyotismo) da relação horizontal das atividades

produtivas. Tal modelo possui características semelhantes à forma geral de organização

existente no mundo empresarial, qual seja, a descentralização e a horizontalização

produtiva. Esse sistema se utiliza de grupos, que atuam, são responsabilizados e se

responsabilizam pessoalmente, porém de forma coletiva. Assim, a equipe, o grupo, a turma,

é que responde para a organização empresarial, e não a pessoa individual do empregado:

este se responsabiliza no plano pessoal com o grupo apenas, e responde ao grupo por sua

atuação, produção, ausências, etc.. Se o trabalhador falha, é o grupo que responderá pela

falha, mas é ele também que cobrará do trabalhador a falha e o prejuízo material e moral do

grupo. Alterou-se, portanto, a forma de subordinação e ampliou-se a possibilidade da

cobrança do trabalho: não mais o indivíduo subjetivo de forma direta é cobrado pela chefia,

mas é do o coletivo que se cobra e se exige. Por óbvio que tais relações de supressão da

importância do indivíduo em função do coletivo restrito possuem inúmeras similaridades

com as corporações de ofício medievais, em que o indivíduo só era aceito como parte do

grupo. Mostra-se importante, mais uma vez, destacar a validade do conhecimento histórico

sobre o trabalho e o trabalhador da Idade Média para melhor compreender e analisar

situações contemporâneas.

São inúmeras as situações que poderiam ser desdobradas aqui sobre relações

do trabalho e importância do conhecimento do período medieval, mas optamos pela

exemplificação e não pelo esgotamento do assunto, até pela forma analítica do presente

texto. Deve, porém, ainda, ser ressaltado um aspecto metodológico: é a utilização do painel

genérico histórico sobre um período da Idade Média, adotado no interior desta dissertação.

A adoção dessa visão geral de um momento histórico medieval se fez necessária como um

116

critério da análise, que deve se pautar por uma observação mais ampla do quadro geral em

que a figura do trabalho se situa. E aqui a proposta objetiva é que, para se estudar a História

do Direito do Trabalho, não se pode circunscrever o fato nele mesmo, apenas se observando

o fenômeno oferecido. Deve-se, para analisar a História do Direito, assim como do Direito

do Trabalho em qualquer questão escolhida, ter em perspectiva o contexto mais geral em

que se situa o fenômeno que se pretende analisar: trata-se de uma visão sincrônica.

Afinal, como entender a confraria no trabalho medieval sem saber a

fundamental concepção da cristandade naquele período? Como entender o papel da juranda

sem conhecer a estrutura hierárquica medieval? Como se aprofundar no conhecimento das

mudanças ocorridas nas relações de trabalho das corporações sem saber o papel da

burguesia ascendente nas cidades e sua relação com o poder real? Como entender melhor o

texto escrito das regulamentações corporativas, sem saber da influência do direito canônico

escrito nas instituições medievais? Como observar de forma mais completa a ampliação dos

ajustes comerciais e termos de liberdade de ação e responsabilidade nas cidades, sem saber

da importância do contratualismo, validado pelo tomismo, e o subjetivismo, intimamente

ligado ao pensamento nominalista?

Mas há também a necessidade de uma visão diacrônica: é a utilização em

perspectiva histórica dos diversos momentos por que passou o fenômeno social e jurídico

objeto do estudo, para que não se afete a sua melhor compreensão científica e que se faça

de forma mais detalhada a ilação de suas variáveis. E este texto tem o escopo de incitação

ao estudo de períodos históricos anteriores ao oitocentismo, na busca de novos planos de

compreensão da importância do trabalho humano e na valorização de sua dignidade.

117

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