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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 38 – O Português antigo: descrição e funcionamento. 52 ASPECTOS LINGUÍSTICOS E DISCURSIVOS DAS ORAÇÕES ADJETIVAS NO PORTUGUÊS ARCAICO Celso Fraga da FONSECA 1 RESUMO: Este trabalho objetiva descrever a configuração formal e o estatuto funcional das orações adjetivas nas Cantigas de Santa Maria, cancioneiro religioso de Afonso X, o Sábio, produzido na segunda metade do século XIII. Busca-se examinar o modo de estruturação sintática dessas orações no galego-português – língua em que as Cantigas foram escritas –, do que resulta a elaboração de uma tipologia das orações adjetivas encontradas no corpus. Considerando que as adjetivas detectadas no texto são, em muitos casos, marcadamente diferentes daquelas mencionadas nas gramáticas tradicionais, empreende-se um contraste formal entre esses usos, com o objetivo de evidenciar as implicações discursivas emergentes dos diferentes modos de articulação da adjetiva com o seu antecedente. Procura-se, além disso, focalizar as orações adjetivas como recurso de monitoramento do quadro interpretativo do texto, levando-se em conta o seu papel no processo de referenciação textual, especificamente como elemento propiciador da identificabilidade do referente. PALAVRAS-CHAVE: Português arcaico; Cantigas de Santa Maria; Orações adjetivas; Funções textual-discursivas. Introdução Com o presente trabalho, proponho-me examinar aspectos formais, semânticos e discursivo-textuais das orações adjetivas presentes no cancioneiro religioso de D. Afonso X, rei de Leão e Castela, coletânea conhecida como Cantigas de Santa Maria, o que, de alguma forma, oferece contribuições para o conhecimento da língua em uso no período antigo da fase arcaica da nossa língua, qual seja, o galego-português. Como texto de caráter lírico-religioso e na condição de produção poética mais rica da corte de D. Afonso X, o Sábio, cujo reinado vai de 1252 a 1284, ano de sua morte, as Cantigas de Santa Maria vêm atraindo mais a atenção de estudiosos de Literatura, ou mesmo de Música e Iconografia, sendo relativamente reduzido o volume de trabalhos que se 1 Universidade Fumec, Faculdade de Ciências Econômicas, Núcleo de Línguas, Rua Progresso, 1.026, CEP 30720-320, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, <[email protected]>.

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ASPECTOS LINGUÍSTICOS E DISCURSIVOS DAS ORAÇÕES ADJETIVAS NO PORTUGUÊS ARCAICO

Celso Fraga da FONSECA1

RESUMO: Este trabalho objetiva descrever a configuração formal e o estatuto funcional das orações adjetivas nas Cantigas de Santa Maria, cancioneiro religioso de Afonso X, o Sábio, produzido na segunda metade do século XIII. Busca-se examinar o modo de estruturação sintática dessas orações no galego-português – língua em que as Cantigas foram escritas –, do que resulta a elaboração de uma tipologia das orações adjetivas encontradas no corpus. Considerando que as adjetivas detectadas no texto são, em muitos casos, marcadamente diferentes daquelas mencionadas nas gramáticas tradicionais, empreende-se um contraste formal entre esses usos, com o objetivo de evidenciar as implicações discursivas emergentes dos diferentes modos de articulação da adjetiva com o seu antecedente. Procura-se, além disso, focalizar as orações adjetivas como recurso de monitoramento do quadro interpretativo do texto, levando-se em conta o seu papel no processo de referenciação textual, especificamente como elemento propiciador da identificabilidade do referente. PALAVRAS-CHAVE: Português arcaico; Cantigas de Santa Maria; Orações adjetivas; Funções textual-discursivas. Introdução

Com o presente trabalho, proponho-me examinar aspectos formais, semânticos e

discursivo-textuais das orações adjetivas presentes no cancioneiro religioso de D. Afonso X,

rei de Leão e Castela, coletânea conhecida como Cantigas de Santa Maria, o que, de alguma

forma, oferece contribuições para o conhecimento da língua em uso no período antigo da fase

arcaica da nossa língua, qual seja, o galego-português.

Como texto de caráter lírico-religioso e na condição de produção poética mais rica da

corte de D. Afonso X, o Sábio, cujo reinado vai de 1252 a 1284, ano de sua morte, as

Cantigas de Santa Maria vêm atraindo mais a atenção de estudiosos de Literatura, ou

mesmo de Música e Iconografia, sendo relativamente reduzido o volume de trabalhos que se

1 Universidade Fumec, Faculdade de Ciências Econômicas, Núcleo de Línguas, Rua Progresso, 1.026, CEP 30720-320, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, <[email protected]>.

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ocupam de seus aspectos linguísticos. É de observar, no entanto, que, para além do trabalho

artístico, as Cantigas de Santa Maria (doravante também indicadas como CSM) podem ser

igualmente encaradas como um rico manancial de dados a respeito da cultura medieval ibérica

e, do mesmo modo, na condição de elemento central do acervo lírico dos cantares medievais

galego-portugueses, como importante fonte de informações sobre o português arcaico, em sua

etapa inicial.

As Cantigas de Santa Maria

As Cantigas de Santa Maria, segundo Mettmann (1986), o cancioneiro mais rico da

Idade Média, são um conjunto de 427 textos (sete dos quais integralmente repetidos), que nos

chegaram em quatro códices. Dois deles, um com 200 cantigas (códice T, Escurialense I, ou

T1), e o outro com 402 cantigas (códice E, ou Escurialense II), encontram-se na Biblioteca do

Escorial; o terceiro, menor e mais antigo, ao qual se faz referência como códice To, porque

proveniente da Biblioteca da Catedral de Toledo, com 123 cantigas, é atualmente preservado

na Biblioteca Nacional de Madri; o último, códice F, com 104 cantigas, encontra-se na

Biblioteca Nacional de Florença. Segundo Leão (1997, p. 36), é provável que um dos códices

escurialenses (o códice T) e o códice de Florença (F) “sejam dois volumes de um mesmo

manuscrito, o que reduziria os quatro testemunhos a apenas três”.

A grande maioria das cantigas – 356 – narram milagres de Nossa Senhora. Salvo uma

introdução e dois prólogos, além das últimas cantigas, que se referem a festividades de Maria

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e de Cristo, as restantes são cantigas de louvor, inseridas, como que num rosário, após cada

sequência de nove que relatam milagres.

Os códices em que foram registradas as cantigas têm sua beleza e importância

histórica ressaltadas por mais de 1500 iluminuras, que fornecem não apenas informação

subsidiária para a compreensão do texto, mas também proveem dados sobre o dia a dia, sobre

a indumentária, a arquitetura, a música do tempo, etc., delineando um riquíssimo painel do

cotidiano medieval, o que só faz crescer seu valor como fonte de referência para estudos

etnográficos.

Cantigas selecionadas para análise

Para o levantamento do corpus utilizado neste estudo, tomei como referência a edição

crítica das Cantigas de Santa Maria, em três volumes, organizada por Walter Mettmann

(1986), de responsabilidade da Ed. Clásicos Castalia. Além disso, quando necessário, recorri à

primeira edição (em quatro volumes, sendo o último um glossário) preparada pelo mesmo

Mettmann (1959-1972), editada pela Acta Universitatis Conimbrigensis, bem como, por meio

do acervo bibliográfico da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – P, à edição fac-

similar produzida pela editora Edilán, de Madri.

O corpus relativo à amostra constituída é composto de sessenta cantigas de milagre,

número que corresponde a, aproximadamente, 15% da obra. Para sua composição, selecionei,

de cada centena, quinze cantigas de milagre, deixando de lado, para me ater a um único tipo

textual – o narrativo –, as cantigas de louvor.

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Identificam-se as cantigas e versos mencionados em exemplos ou comentários

(indicados, abreviadamente, entre parênteses, como Cant. e v., respectivamente), respeitando-

se a numeração e o tipo de fonte constantes da edição de Mettmann (1986), na qual o texto

das cantigas é apresentado em letra normal, o dos títulos-ementa2 em caixa alta, e o dos

refrães, em itálico. Em seguida a cada transcrição, apresenta-se uma tradução mais ou menos

livre do texto afonsino para o português contemporâneo.

No que diz respeito à autoria das Cantigas de Santa Maria, há, de certa forma,

consenso quanto à participação de D. Afonso X, que, embora responsável por grande número

de composições e pela planificação e supervisão do cancioneiro, não trabalhou sozinho,

contando com a participação de uma grande equipe de colaboradores.

Assim sendo, ao escolher, de cada uma das quatro centenas, um conjunto de quinze

cantigas, busquei compor uma amostragem que recortasse a obra em diferentes momentos de

sua elaboração, flagrando também a participação dos diversos integrantes da equipe.

Distribuição das orações adjetivas segundo seus conectivos introdutores

A partir do levantamento das orações adjetivas presentes no corpus, foi possível

detectar os seguintes conectivos relativos, que, mais ocorrentes, são aqui apresentados

segundo a ordem de sua frequência nas cantigas: “que” precedido, ou não, segundo a

2 A grande maioria das CSM em que se narram milagres é encabeçada por um título extenso, a que Mettmann (1986) dá o nome de ementa, cuja função é tanto individualizar a narrativa quanto antecipar para o ouvinte o que este ali encontrará. Não se trata simplesmente de título nem somente de uma sinopse, razão pela qual adoto neste trabalho a expressão título-ementa, utilizada por Leão (1997, p. 31).

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exigência do verbo, de preposição), “u”, “onde” (substituído, em alguns casos, por “en que”

ou “en qual”) e “cujo”.

Dos conectivos registrados no corpus, constata-se, facilmente, que o pronome que era,

já na língua portuguesa ducentista das CSM, o preferido em estruturas de relativização.

Assim, do total das 740 orações adjetivas encontradas,3 668 são encabeçadas por esse

elemento pronominal, o que equivale a 90,27% das ocorrências. Em segundo lugar, em

número de 55, correspondente a 7,43%, encontra-se o pronome adverbial u, seguido por

onde, com apenas 10 ocorrências, equivalentes a 1,35%. Os demais pronomes registrados

(cujo, quanto, qual, quando e como) apresentam frequência inferior a 1%.

Numa proporção de cinco para um, aproximadamente, a forma pronominal u, e sua

variante gráfica hu (do latim ūbi, língua em que essa forma indicava ‘lugar onde’), coocorre,

nas CSM, com a forma onde, e sua variante gráfica unde (do latim ŭnde, língua em que

indicava ‘lugar donde’, ou seja, proveniência), assinalando, já nesse tempo, a flutuação na

distinção desses usos.

Do mesmo modo que onde, o advérbio pronominal u também é utilizado não só em

sua acepção etimológica (de “lugar onde”, “lugar em que”), de frequência mais alta, mas

também em outras, constituindo, porém, um leque semântico bem mais restrito do que o do

primeiro. As possibilidades encontradas no corpus analisado são: (i) indicador de “lugar

onde” (sentido etimológico); (ii) marcador de proveniência (expressa pela preposição “de”,

que o rege), em lugar, pois, de onde, que, etimologicamente, tinha esse valor; (iii) valor –

metafórico – de tempo (de alta taxa de uso).

3 As orações adjetivas que se encontram nos refrães foram computadas uma única vez.

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No que toca ao relativo cujo (e flexões), seu emprego como pronome relativo

indicador de posse é, no texto das CSM, bastante reduzido. Assim é que, em todo o corpus

analisado, registraram-se apenas duas ocorrências de adjetivas iniciadas por esse pronome,

ambas explicativas.

Em circunstâncias em que a norma padrão de hoje recomendaria o uso de cujo,

encontra-se, nas CSM, algumas vezes, o pronome que antecedido da preposição de e seguido

de pronome possessivo pleonástico, como no exemplo a seguir:

4z “Un jograr, de que seu nome era Pedro de Sigrar, / que mui ben cantar sabia e mui mellor violar ...”

(Cant. 9, v. 12-13; grifos meus.)

(‘Um jogral, cujo nome era Pedro de Sigrar, / que sabia cantar muito bem e, melhor ainda, tocar ...’)

Na língua arcaica, conforme registram Huber (1986) e Mattos e Silva (1989), cujo é

também empregado como núcleo de SN, equivalendo a “de quem”, fato não verificado nas

cantigas selecionadas para comporem a amostragem, mas presente, também em número pouco

expressivo, em outras narrativas do cancioneiro, conforme se ilustra no exemplo seguinte:

5z “... mas contou o miragre da por que perdõados / (Refrão) / Somos de Jheso-Christo, cujos son os

perdões.” (Cant. 218, v. 58-60; grifo meu.)

(‘... mas contou o milagre daquela pela qual somos perdoados / por Jesus Cristo, de quem vêm os

perdões.’)

No que se refere ao relativo quejando (ou quejendo ou quegendo), a que também se

referem tanto Huber (1986) quanto Mattos e Silva (1989), não se registrou nenhuma

ocorrência.

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No corpus de análise, registra-se uma ocorrência de quando que, a meu ver, apresenta

certo grau de relatividade, paralelamente à sua marcação temporal:

6z “A seu Fillo grorioso / que nos seja piadoso / eno dia temeroso / quando julgar-nos verrá.” (Cant.

107, v. 71-74; grifo meu.)

(‘A seu Filho glorioso / que nos seja piedoso / no dia temeroso / em que nos virá julgar.’)

Outros elementos de valor temporal são, na grande maioria das vezes, retomados

simplesmente pelo pronome que, quase sempre sem preposição, à maneira das construções

“cortadoras” (cf. TARALLO, 1983), isto é, desprovidas de preposição regente, como no

português brasileiro atual:

7z “E o praz’ uviou chegar / que a judea pariu; ...” (Cant. 108, v. 62-63; grifo meu.)

(‘E teve de chegar o tempo / em que a judia deu à luz ...’)

Outro item encontrado nas CSM é o pronome quem (grafado quen), o qual sempre

porta o traço semântico [+ humano]. Empregado em orações como a do exemplo (8),

geralmente denominadas “adjetivas sem antecedente” – nas quais é analisado como

desdobramento de “aquele (com suas flexões) que” – quem é encarado neste trabalho como

pronome substantivo de valor indefinido.

8z “Quen dona fremosa e bõa quiser amar, / am' a Groriosa e non poderá errar.” (Cant. 16, refrão;

grifo meu.)

(‘Quem quiser amar uma mulher formosa e boa / que ame a Gloriosa, pois não poderá errar.’)

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Nas cantigas estudadas, nos contextos em que hoje, precedido de preposição, seria

usado o relativo quem, encontra-se, quase sempre, que, confirmando, até certo ponto, o

estudo realizado por Cohen (1989, p. 146), que observa que “no quem with an antecedent

appears in our texts up to the 17th C”.

9z “ESTA É DUN MANCEBO A QUE SEUS ẼEMIGOS CHAGARON MUI MAL DE MORTE, E

SA MADRE PROMETERA-O A SANTA MARIA DE SALAS, E FOI LOGO GUARIDO.”

(Cant. 114, título-ementa; grifos meus.)

(‘Esta nos fala de um mancebo a quem seus inimigos feriram gravemente de morte, e que, como

sua mãe o consagrara a Santa Maria de Salas, foi logo curado.’)

Já a forma o qual (e suas flexões) – que, no português contemporâneo, quando não

preposicionada, introduz exclusivamente orações adjetivas explicativas – não foi encontrada

na amostragem selecionada para este trabalho, podendo, embora raramente, ocorrer em outras

das CSM.

Configurações formais das orações adjetivas nas CSM

Orações adjetivas copiadoras

De acordo com Ilari (1992, p. 113), as chamadas “relativas copiadoras” (cf.

TARALLO, 1983) já ocorriam no latim vulgar, como decorrência da perda quase completa da

flexão de caso para os pronomes relativos. Embora não muito frequentemente, podem ser

encontradas nas CSM, como se vê no exemplo a seguir, em que o objeto direto do verbo ter é

representado uma vez pelo pronome relativo que e outra pelo oblíquo o, “copiado” na oração

adjetiva:

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10z “COMO SANTA MARIA DE VILA-SIRGA TIROU UN ESCUDEIRO DE PRIJON, QUE O

TIINNAN EN CARRON PERA MATAR.” (Cant. 301, título-ementa; grifos meus.)

(‘Como Santa Maria de Vila-Sirga tirou um escudeiro da prisão, que o tinham em Carron para

matar.’)

No português atual, tanto na modalidade brasileira quanto na lusitana, esse tipo de

construção tende a ser mais utilizado pelas camadas menos escolarizadas, sendo, por isso

mesmo, mais estigmatizado.

Orações adjetivas cortadoras

Além da estratégia de relativização com o pronome antecedido de preposição,

conforme a regência verbal, ainda considerada padrão por nossos gramáticos, mencionem-se,

aqui, algumas ocorrências – raras – de “relativas cortadoras”, em que a preposição que

encabeçaria a oração adjetiva é omitida.

Não obstante essa forma, segundo Tarallo (1983), tenha se generalizado relativamente

há pouco tempo, sobretudo no português brasileiro, existem já evidências de sua presença no

galego-português ducentista das CSM, principalmente quando o antecedente é de caráter

espacial ou temporal – virtual, ou não:

11z “E pero de mui bon grado / rezava muit’ aficado / as oras da que Deus nado / foi por nos en

Belleen.” (Cant. 111, v. 21-24; grifos meus.)

(‘E por isso, (“o crérigo de missa”) com muita boa vontade, / rezava muito empenhado / as horas

daquela de quem Deus / nasceu por nós em Belém.’)

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12z “E quando chegou o tenpo que aas colmẽas van ...” (Cant. 208, v. 35; grifos meus.)

(‘E quando chegou o tempo em que vão às colmeias ...’)

Orações adjetivas continuativas

As chamadas orações “continuativas”,4 conforme terminologia adotada por Vilela &

Koch (2001), são, segundo Decat (2001, p. 109), “aquelas que não têm um antecedente

explícito, ou não se referem a nenhum elemento específico do contexto anterior, mas referem-

se ao todo”. Tais usos praticamente não ocorrem nas cantigas que integram o corpus

estudado, contudo, é possível encontrarmos construções semelhantes a elas, nas quais os

conectivos u, onde e que, (regido de preposição) se mostram gramaticalizados como

conjunções (cf. BITTENCOURT, 2001):

13z “Mas o demo enartar / a foi, por que emprennar / s’ ouve dun de Bolonna ...” (Cant. 7, v. 15-

17; grifos meus.)

(‘Mas o diabo a tentou, / pelo que (isto é, ‘razão pela qual) ela engravidou / de um (homem) de

Bolonha.’)

Desse tipo de oração semanticamente “híbrida” foram computadas, no corpus, ao todo,

apenas nove ocorrências, três delas encabeçadas por onde, duas por de que, duas por por que

e duas por per que. Trata-se, como se vê, de estrutura um pouco diferente da chamada

continuativa (ou “apositiva de F”, nos termos de MATEUS et al., 1989), mais característica

do português contemporâneo, em que uma oração adjetiva se prende a um antecedente formal

4 Orações desse tipo tanto podem ser encaradas como restritivas (cf. NEVES, 2000), na medida em que delimitam o aposto sintetizador que as antecede, de natureza pronominal (o) ou lexical (fato, coisa, etc.), quanto como explicativas, na medida em que constituem comentário sobre parte do texto anterior, situação em que a expressão o que, ou equivalente, seria considerada uma espécie de dêitico textual (cf. CASTILHO, 1993).

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(ausente nas CSM) de natureza pronominal (o) ou lexical neutra (como, por exemplo, “coisa”,

“fato”, “situação”, etc.), o qual, denominado por Castilho (1993) “mostrativo neutro”,

funciona, por sua vez, como um aposto sintetizador de parte do enunciado anterior, ou de todo

ele, conforme o caso. Cabe ao ouvinte/leitor, então, construir cognitivamente o antecedente, a

partir do que lhe é narrado e/ou da sua bagagem de conhecimento.

14z “O monge da dona non foi connoçudo, / onde prazer ouve, e ir-se quisera; ...” (Cant. 9, v. 153-

154; grifos meus.)

(‘O monge não foi reconhecido pela mulher, / o que lhe agradou, e quisera ir-se embora.’)

Considerando-se, do mesmo modo que Decat (2001), que as cláusulas relativas

“continuativas” constituem um subtipo das explicativas, o quadro classificatório dessas

estruturas oracionais teria o seguinte perfil:

1. Adjetivas restritivas (encaixadas)

2. Adjetivas explicativas ou relativas propriamente ditas (hipotáticas)

2.1. Explicativas propriamente ditas, ou normais

2.2. Explicativas “continuativas”

Adjetivas distanciadas do antecedente

Quando nos voltamos, de um modo particular, para a conformação das Cantigas de

Santa Maria, um outro aspecto a chamar a atenção do observador é a distância com que

certas adjetivas são posicionadas em relação ao elemento nominal a que se referem, como se

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vê no excerto a seguir, em que a oração adjetiva complexa em destaque encontra-se

acentuadamente distanciada de miragre, seu antecedente:

15z “Desto direi ũu miragre que en Tudia avẽo, / e porrey-o con os outros, ond’ un gran livro é chẽo, /

de que fiz cantiga nova con son meu, ca non allẽo, / que fez a que nos [a]mostra por yr a Deus

muitas vias.” (Cant. 347, v. 5-8; grifos meus.)

(‘A respeito disso contarei um milagre que se deu em Tudia, / e o ajuntarei aos outros, dos quais um

grande livro está cheio, / (milagre esse) sobre o qual fiz cantiga nova com música minha e não

alheia, / que fez Aquela que nos mostra muitas vias para chegar até a Deus.’)

Não obstante aspectos formais do gênero “cantiga”, como, por exemplo, rima ou

ritmo, possam ser invocados para justificar esse tipo de colocação da oração adjetiva, deve-se

observar que esse distanciamento se verifica também nos títulos-ementa, que, redigidos em

prosa, encabeçam cada cantiga, como é o caso do próximo exemplo:

16z “ESTA É COMO SANTA MARIA GUARDOU AO FILLO DO JUDEU QUE NON ARDESSE,

QUE SEU PADRE DEITARA NO FORNO.” (Cant. 4, título-ementa; grifos meus.)

(‘Esta mostra como Santa Maria protegeu o filho do judeu para que não se queimasse, que seu pai

lançara no forno.’)

Numa “tradução” para o português atual, a oração adjetiva destacada (de natureza

explicativa) seria, mais naturalmente, posicionada junto à expressão fillo do judeu, à qual se

refere, e não, como se encontra no texto original, após a adverbial final: “Esta é de como

Santa Maria protegeu o filho do judeu, cujo pai o lançara no forno, para que não se

queimasse”.

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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 38 – O Português antigo: descrição e funcionamento.

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Além disso, é interessante notar que deslocamentos desse tipo são comuns na língua

do período arcaico, conforme nos mostra Mattos e Silva (1989), sendo ainda recorrentes,

segundo aponta Bechara (2001, p. 489), em autores clássicos do século XVI, conforme se vê

no exemplo a seguir, em que a oração adjetiva “que entre todos tiver mais saber” encontra-se

consideravelmente afastada de seu antecedente, que é o demonstrativo aquele, objeto indireto,

topicalizado, da oração principal:

17z “... àquele haveis de dar vosso voto para governar, que entre todos tiver mais saber” (Fr. HEITOR

PINTO, Imagem da vida cristã, I, 178-9). (Grifos meus.)

De um total computado de 125 ocorrências de orações adjetivas distanciadas de seu

antecedente, 80 foram classificadas como explicativas e as restantes 45, como restritivas. A

proporção é, portanto, de duas explicativas para uma restritiva, aproximadamente. O fato de

as explicativas ocorrerem distanciadas com mais frequência é, de certa forma, esperável.

Digno de nota foi o fato de se registrar uma quantidade razoável de casos de afastamento de

graus variados de extensão de estruturas restritivas.

Esse resultado contraria, também, uma das hipóteses aventadas antes do exame dos

dados, segundo a qual, determinados constituintes relativos favoreceriam o distanciamento da

oração adjetiva em relação a seu antecedente. Esse seria o caso, por exemplo, da forma

pronominal o qual (e suas flexões), que, em geral, encabeça adjetivas explicativas e que, por

apresentar marcas de gênero e número, evita ambiguidade em caso de excessivo

distanciamento em relação ao antecedente, ou de sucessivos encaixamentos de orações

adjetivas.

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Na análise dos dados, no entanto, o que se verificou foi a presença avassaladora de

que como elemento introdutor de orações adjetivas, tanto nas não distanciadas quanto nas

distanciadas. Assim, em 125 orações computadas como distanciadas, apenas oito são

introduzidas por u e uma por onde.

Do mesmo modo, o agrupamento das adjetivas quanto ao estatuto semântico do

antecedente no que concerne ao traço [+ animado] não deu mostras da sua influência no

posicionamento das orações. Na realidade, a distribuição se mostrou muito equilibrada, pois

que, de 63 ocorrências de distanciamento com antecedente [+ animado], das quais 60 se

referiam a pessoas, 62 continham antecedente inanimado. Dentre estes, contam-se 27 casos

em que o SN antecedente tem como núcleo a palavra “miragre”, resultado esperável, de certa

forma, uma vez que os miragres de Santa Maria constituem o grande recurso publicitário e

catequético utilizado pelo rei-poeta e seus colaboradores como argumento comprobatório do

poder da Virgem, apregoado em quase todos os refrães.

No que toca à função sintática exercida pelo antecedente, havia, também, a expectativa

de que esta afetasse, de alguma forma, a opção do autor pelo distanciamento da oração

adjetiva. Os dados, no entanto, não deixam transparecer uma relação clara entre a função

sintática do antecedente e o distanciamento da oração adjetiva que a ele se prende. Evidência

disso é que, dentre os 125 casos de distanciamento, cerca de um terço das orações se vinculam

a um antecedente com função de objeto direto. Essa proporção, no entanto, não é muito

diferente quando se trata de orações adjetivas não distanciadas. Num levantamento

aproximado, verifica-se que, em mais da metade dos casos, a oração adjetiva se prende a um

antecedente com função de objeto direto ou de sujeito, funções sintáticas mais previsíveis e

esperáveis do que a de adjunto adverbial ou de predicativo, por exemplo.

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Por fim, resta comentar que é possível perceber, em alguns casos de distanciamento,

uma motivação icônica para a localização da oração adjetiva. Veja-se, a esse propósito, o

excerto seguinte:

18z “E daquesto avẽo | miragre mui fremoso

que fez Santa Maria, | e d' oyr saboroso,

cabo Madrid' en Tocha, | logar religioso,

que vos contarei ora, | se me for ascuitado.”

(Cant. 315, v. 5-8; grifos meus.)

(‘E sobre isso aconteceu um milagre muito formoso / e agradável de se ouvir, que Santa Maria fez

/ perto de Madri, em Atocha, lugar religioso, / o qual vos contarei agora, se me escutardes.’)

Trata-se da estrofe com que se abre a cantiga de n° 315. Nesse caso, a oração adjetiva

explicativa em destaque, posicionada no quarto verso, tem como antecedente miragre, que

ocorre no primeiro verso. Entre essa oração e seu antecedente, foram interpostos elementos de

natureza diversa, a saber: três adjuntos adnominais, o primeiro (mui fremoso) e o terceiro (d’

oyr saboroso) coordenados de forma descontínua, visto que entre ambos se intercala uma

oração adjetiva restritiva (que fez Santa Maria); além desses três elementos, separa a

adjetiva explicativa de seu antecedente um adjunto adverbial de lugar, seguido de um aposto,

posicionados no terceiro verso. Se, por um lado, o distanciamento em relação ao antecedente é

grande, por outro, deve-se considerar que essa adjetiva instancia a fala do autor, que, nesse

momento, dialoga com seu público, cuja atenção solicita, o que justifica que seja posicionada

rente à narrativa propriamente dita, cujo início anuncia. Além disso, esse uso da oração

adjetiva explicativa incorpora dados da situação interlocutiva, o que lembra o processo de

elaboração do texto conversacional.

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Adjetivas restritivas e adjetivas explicativas

A maior parte das gramáticas tradicionais distingue esses dois tipos de orações com

base na prosódia e no traço (bastante discutível) da dispensabilidade. Assim, as explicativas

seriam pronunciadas entre pausas, representadas na escrita por vírgulas, e descartáveis, sem

prejuízo para o sentido do enunciado. Por sua vez, as restritivas, indispensáveis à

compreensão do enunciado, formariam com a oração nuclear um só conjunto prosódico, o que

dispensaria, na escrita, o uso de vírgulas que as isolassem.

Na prática, porém, já que ambas cumprem funções distintas, mostram-se igualmente

indispensáveis. Assim, enquanto as restritivas têm função diferenciadora, recortadora, as

explicativas permitem que o falante/autor explicite ao ouvinte/leitor aspectos que vê ou que

gostaria que fossem vistos no referente.

No cancioneiro mariano de D. Afonso X, quer as cantigas sejam examinadas como

peças verbo-melódicas, quer apenas como texto, não é possível considerar, como elemento

sinalizador da vinculação oracional, o contorno entoacional – que só pode ser imaginado,

numa necessária reoralização a ser realizada pelo leitor. Assim, nem sempre se pode ali

estabelecer uma clara distinção entre adjetivas explicativas e restritivas a partir desse critério.

O reconhecimento dessas estruturas deve ser processado pelo ouvinte/leitor, com base no

contexto e/ou no seu conhecimento de mundo, uma vez que ele não conta, como já dito, com

pontuação ou com marcação entoacional.

A propósito da pontuação, cumpre dizer que a apresentada por Mettmann (1959-1972

e 1986), em suas edições das CSM, nem sempre condiz com a que atualmente se utiliza, em

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português, para distinguir orações adjetivas restritivas (não virguladas) de orações adjetivas

explicativas (virguladas), como, por exemplo, em:

18z “Eu o vi ben quando / un judeu o levou sigo, que os panos revende.” (Cant. 6, v. 54-55; grifos

meus.)

(‘Eu o vi bem quando / um judeu que revende panos o levou consigo.’)

19z “COMO HŨA OMAGEN DE SANTA MARIA FALOU NAS OLGAS DE BURGOS A ŨA

MOÇA QUE OUVE MEDO.” (Cant. 303, título-ementa; grifos meus.)

(‘Como uma imagem de Santa Maria falou em Las Huelgas, em Burgos, a uma moça que teve

medo.’)

No primeiro exemplo, a oração extraposta, em destaque, não obstante a vírgula que a

antecede, deve, parece-me, ser lida como restritiva, visto fornecer informação que atua na

identificabilidade do referente, ou seja, possibilita a identificação de um judeu específico, que,

segundo a narrativa, raptara um menino. No segundo exemplo, em que se tem o título-ementa

da cantiga 303, não é possível saber, antes que se tome conhecimento de toda a narrativa, se a

oração “que ouve medo” representa, nos termos das gramáticas ditas filosóficas, uma

característica inerente ou acidental do substantivo a que se refere, ou se, nos termos das

gramáticas de orientação estruturalista, restringe ou acrescenta qualidade acessória. Em outras

palavras, não se tem certeza se a moça mencionada se caracteriza por ser medrosa, ou se,

diante do prodígio de Santa Maria lhe haver dirigido a palavra, uma determinada moça teve

medo.

Uma vez que não se pode recorrer à prosódia para essa distinção, foi preciso levar em

conta a função desempenhada pela oração no contexto em que esta se insere. Então, quando se

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toma contato com a narrativa, essa ambivalência desaparece, e fica claro que se trata de uma

moça que, toda uma vida maltratada pela tia freira, sempre tinha medo. Nesse caso, a oração

em destaque presta-se à identificação do referente moça, devendo, portanto, ser vista como

restritiva.

Outro fato complicador, ou, melhor dizendo, enriquecedor, é que, conforme já aludido,

as orações relativas introduzidas por que podem expressar, paralelamente à sua carga

adjetiva, noções adverbiais, como as de fim, consequência, causa, condição e concessão, o

que já se verificava no latim e era marcado, de um modo explícito, pela forma subjuntiva do

verbo.

Nas CSM, várias orações finais são introduzidas simplesmente pelo conectivo que, o

que as aproxima formalmente das adjetivas, dificultando o seu reconhecimento como finais ou

como adjetivas, ou, ainda, como adjetivas com valor final, como se verifica em:

20z “Porque o a Groriosa / achou muy fort’ e sen medo / en loar sa preciosa / virgĩidad’ en Toledo, /

deu-lle porend’ hũa alva, / que nas sas festas vestisse, ...” (Cant. 2, v. 37-42; grifos meus.)

(‘Como a Gloriosa o / achou muito forte e sem medo / de louvar sua preciosa / virgindade em

Toledo, / deu-lhe por isso uma alva, / para que a vestisse (ou ‘que deveria vestir’) em suas

festas ...’)

No trabalho aqui desenvolvido, tanto para a classificação das orações adjetivas

arroladas como para a mensuração de sua frequência, partiu-se do princípio – de natureza

semântico-pragmática – de que as orações adjetivas restritivas têm como característica

principal delimitar um determinado elemento, num conjunto de pelo menos dois integrantes,

buscando possibilitar ao ouvinte/leitor a identificabilidade de um referente específico, ao

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passo que as adjetivas explicativas acrescentam ao seu antecedente – o qual já teria sua

identificabilidade garantida por informações anteriormente dadas na cadeia textual ou tidas

como compartilhadas entre os interlocutores – informação que o falante/autor encara como

necessária à compreensão do que está sendo falado/escrito, podendo revelar, muitas vezes, o

ponto de vista do falante/autor – bem como de terceiros – sobre o objeto de seu dizer ou

apenas veicular algo que este julga relevante ativar na mente do ouvinte/leitor. Assim, em

muitas ocorrências das adjetivas explicativas, estas parecem atuar como orientadoras da

interpretação a ser realizada pelo ouvinte/leitor. Essa diferença semântica, que repercute na

cadeia comunicativo-informacional, é consubstanciada, sintaticamente, através de maior ou

menor grau de integração dos dois tipos de orações com o constituinte que, alocado, no

português – arcaico e moderno –, em oração anterior, tem a sua referência determinada ou

estendida.

Considerando que o papel principal da oração adjetiva restritiva é delimitar o

referente, identificando-o, a oração em destaque no exemplo a seguir foi computada como

restritiva porque permite a identificação do elemento “lai”, a que se refere a narrativa:

21z “O lais que ele cantava era da Madre de Deus, ...” (Cant. 8, v. 17; grifos meus.)

(‘O lai que ele cantava era da Mãe de Deus ...’)

Já no verso seguinte, transcrito da estrofe final da cantiga de n° 14, que narra um caso

de ressurreição, a oração em destaque foi computada como explicativa, uma vez que veicula

informação já dada:

22z “... o frade que era morto foi-ss’ en pees log’ erger, ...” (Cant. 14, v. 47; grifos meus.)

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(‘O frade, que estava morto, logo se pôs de pé.’)

Aplicando os critérios acima ao conjunto das sessenta cantigas que compuseram a

amostragem, detectaram-se, num total de 740 orações adjetivas, 422 adjetivas restritivas e 318

adjetivas explicativas.

A alta incidência de adjetivas explicativas parece estar associada, quase sempre, ao

fluxo da cadeia comunicativa. Pelo que me foi possível perceber, grande quantidade de

informação nova que o(s) narrador(es) dos milagres operados pela Virgem Maria vai (vão)

apresentando, no desenrolar dos acontecimentos e episódios, é instanciada por esse tipo de

estrutura, passível de propiciar uma elaborada atividade de (re)construção dos referentes já

introduzidos nas narrativas ou tomados como conhecidos do ouvinte/leitor, por meio de

adendos, reparos e emissões de juízos de valor.

Outro papel assumido pelas explicativas nas cantigas é o de realizar a inserção de

paráfrases, que têm nesse tipo de estrutura, tal como o aposto, o instrumento ideal para a sua

expressão. Procedimento comum nas CSM, as paráfrases têm como efeito uma intensificação

da presença dos referentes na consciência do público.

23z “E dest’ en Cezilla mostrou hũa vez / un mui gran miragre a Sennor de prez / que é madr’ e filla

daquel Deus que fez / a terra e pos os ceos en redor.” (Cant. 307, v. 5-8; grifos meus.)

(‘E sobre isso, na Sicília, operou uma vez / um milagre muito grande a Senhora preciosa / que é

mãe e filha daquele Deus que fez a terra e pôs os céus em redor.’)

Atuando como paráfrase, ou inscrevendo outras vozes na cadeia discursiva,

evidenciam (ou simulam) o envolvimento da plateia com a posição devota assumida pelo

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autor, possibilitando-lhe externar sua posição com relação aos objetos discursivos de sua

narrativa ao formular apreciações sobre fatos e personagens dos milagres. Trata-se, muitas

vezes, de aspectos cujo conhecimento prévio por parte do público se espera e que, não

obstante, são novamente explicitados, lançando-se luz, de forma singular e muitas vezes

pomposa, sobre diferentes facetas da personagem em questão, cujos atributos são quase que

propagandisticamente apregoados e reiterados, como a lembrar didaticamente ao leitor

características que não podem ser postas de lado e que, por isso mesmo, se quer pôr em

relevo. A oração nuclear seria de responsabilidade do autor, ao passo que a explicativa atua,

muitas vezes, como uma forma de citação, (re)dizendo o já sabido, retomando outros textos,

cujo conhecimento por parte da platéia se supõe, ou buscando no campo do saber anônimo, de

conhecimento geral.

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