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Aspectos míticos e imaginário em Flora Thomé, Leonilda Hilgenberg Justus e Lilí Muñoz Antonio Donizeti da Cruz (UNIOESTE) Vanderlei Kroin (UNIOESTE) Por isso, nós que acabamos de dar um lugar tão belo à imaginação pedimos modestamente que se saiba dar lugar à cigarra ao lado do frágil triunfo da formiga. Porque a verdadeira liberdade da vocação ontológica repousa precisamente nesta espontaneidade espiritual e nesta expressão criadora que constitui o campo do imaginário. (Gilbert Durand). Resumo: Este trabalho se propõe a trazer considerações acerca dos aspectos mítico e simbólico presentes em alguns poemas, como sonetos e haicais das escritoras Flora Thomé (Mato Grosso do Sul), Leonilda Hilgenberg Justus (Paraná) e Lilí Muñoz (Neuquén Patagonia, Argentina). Ao se resgatar nesses poemas os temas da natureza, o feminino e o fazer poético, busca-se (re)apresentar a simbologia ligada à noite e à lua e também, inversa e complementarmente ao dia e ao sol. Pretende-se, ainda, discorrer em relação à imaginação criadora, condição inextricavelmente presente na vida do homem e que transparece de forma potencial e indelével no ato de criação poética, exercício que equaciona e sintetiza as sutilezas da alma humana e tecer considerações acerca dos regimes diurno e noturno da imagem e os símbolos, postulados por autores como Gilbert Durand, Gaston Bachelard e Jean-Jacques Wunenburger. Palavras-chave: Poesia. Simbologia. Mito. Imaginário. Criação literária. Introdução Se o imaginário está presente em todas as sociedades e é um elo que liga universalmente as pessoas e condiciona um vínculo que rege a coletividade humana e se, também, o que incute ao movimento de o sujeito estar presente no mundo é a fértil imaginação, esta faculdade pode ser considerada força motriz que não deixa a humanidade diluir-se e estagnar-se. A dinamicidade do imaginário não se resume à capacidade de se sonhar, inventar, mas consiste em algo mais profundo, que é próprio do ser humano. O homem é construído e constrói o mundo por meio de símbolos, sendo ele próprio um símbolo. A faculdade da linguagem dá forma à imaginação, que não é algo estático, mas dinâmico e em constantes processos transformacionais. Portanto, o poder criador da imaginação não conhece limites. É sempre um devir a restaurar e criar imagens do mundo e do homem. O poder criador, permeado pelo imaginário se condensa na linguagem poética, instância em que há todo um jogo, há revelações de imagens novas e a ressignificação de símbolos, que o próprio homem cria e recria, em uma constante reinvenção de si próprio. A poesia tem o

Aspectos míticos e imaginário em Flora Thomé, Leonilda ... · quais deixam sempre interligados texto-homem-mundo. ... contra o qual o tempo não teve poder, com a qual o devir

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Page 1: Aspectos míticos e imaginário em Flora Thomé, Leonilda ... · quais deixam sempre interligados texto-homem-mundo. ... contra o qual o tempo não teve poder, com a qual o devir

Aspectos míticos e imaginário em Flora Thomé, Leonilda Hilgenberg Justus e Lilí

Muñoz

Antonio Donizeti da Cruz (UNIOESTE)

Vanderlei Kroin (UNIOESTE)

Por isso, nós que acabamos de dar um lugar tão belo à

imaginação pedimos modestamente que se saiba dar

lugar à cigarra ao lado do frágil triunfo da formiga.

Porque a verdadeira liberdade da vocação ontológica

repousa precisamente nesta espontaneidade espiritual e

nesta expressão criadora que constitui o campo do

imaginário. (Gilbert Durand).

Resumo: Este trabalho se propõe a trazer considerações acerca dos aspectos mítico e simbólico

presentes em alguns poemas, como sonetos e haicais das escritoras Flora Thomé (Mato Grosso

do Sul), Leonilda Hilgenberg Justus (Paraná) e Lilí Muñoz (Neuquén – Patagonia, Argentina).

Ao se resgatar nesses poemas os temas da natureza, o feminino e o fazer poético, busca-se

(re)apresentar a simbologia ligada à noite e à lua e também, inversa e complementarmente ao

dia e ao sol. Pretende-se, ainda, discorrer em relação à imaginação criadora, condição

inextricavelmente presente na vida do homem e que transparece de forma potencial e indelével

no ato de criação poética, exercício que equaciona e sintetiza as sutilezas da alma humana e

tecer considerações acerca dos regimes diurno e noturno da imagem e os símbolos, postulados

por autores como Gilbert Durand, Gaston Bachelard e Jean-Jacques Wunenburger.

Palavras-chave: Poesia. Simbologia. Mito. Imaginário. Criação literária.

Introdução

Se o imaginário está presente em todas as sociedades e é um elo que liga universalmente

as pessoas e condiciona um vínculo que rege a coletividade humana e se, também, o que incute

ao movimento de o sujeito estar presente no mundo é a fértil imaginação, esta faculdade pode

ser considerada força motriz que não deixa a humanidade diluir-se e estagnar-se. A

dinamicidade do imaginário não se resume à capacidade de se sonhar, inventar, mas consiste

em algo mais profundo, que é próprio do ser humano.

O homem é construído e constrói o mundo por meio de símbolos, sendo ele próprio um

símbolo. A faculdade da linguagem dá forma à imaginação, que não é algo estático, mas

dinâmico e em constantes processos transformacionais. Portanto, o poder criador da imaginação

não conhece limites. É sempre um devir a restaurar e criar imagens do mundo e do homem.

O poder criador, permeado pelo imaginário se condensa na linguagem poética, instância

em que há todo um jogo, há revelações de imagens novas e a ressignificação de símbolos, que

o próprio homem cria e recria, em uma constante reinvenção de si próprio. A poesia tem o

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potencial de encantamento porque seu cerne se distancia da linguagem ordinária e suas origens

se confundem com o mito, por isso sua exponencial simbologia e plurissignificância.

Esta relação da poesia com aspectos míticos e dotada de um simbolismo ímpar se origina

do e no próprio homem, por isso o poético, apesar de tratar por muitas vezes de temas

diferenciados se mantém em assonância em suas bases e nisto reside sua força de sempre

interligar o homem e a linguagem com a história.

Simbolismo, mito e imaginário em poemas de Flora Thomé, Leonilda Hilgenberg Justus

e Lilí Muñoz

O ser humano é uma condensação de símbolos. Reinventa-se a todo instante para não

ter estagnada a sua existência e também para experienciar a sua liberdade. Na arte poética há

uma gama de imagens simbólicas que emergidas da linguagem tecem significados diversos, os

quais deixam sempre interligados texto-homem-mundo. Gilbert Durand observa que “[...] o

poder poético do símbolo define a liberdade humana melhor do que qualquer especulação

filosófica: esta última obstina-se a ver na liberdade uma escolha objectiva, quando na

experiência do símbolo demonstramos que a liberdade é criadora de um sentido [...]”.

(DURAND, 1993, p. 33).

Os sentidos criados pela liberdade imaginativa é que faz do imaginário um vasto campo

holístico, nas palavras de Wunenburger (2007), que observa que o imaginário é um mundo de

representações complexas e dinâmicas. Complementarmente, o teórico atribui duas acepções

principais ao imaginário: uma restrita e outra ampliada. Interessa mais a segunda, porque

[...] integra a atividade da própria imaginação, designa os agrupamentos sistêmicos

de imagens na medida em que comportam uma espécie de princípio de auto-

organização, de autopoiética, que permite abrir sem cessar o imaginário à inovação,

a transformações, a recriações [...]”. (WUNENBURGER, 2007, p. 13-14).

O imaginário sendo uma constelação de símbolos, integra também o ser humano. Como

figura simbólica, criador e imaginativo o homem está situado entre o céu e a terra, a esta última

ligado de modo orgânico, com os pés plantados no espaço terrestre, no solo; àquele, o homem

está vinculado ao espaço aéreo, à propulsão imaginativa. Segundo Chevalier e Gheerbrant

(2006), o céu simboliza o transcendente, o poder superior. Nas palavras dos autores, “O céu é

uma manifestação direta da transcendência, do poder, da perenidade, da sacralidade; aquilo que

nenhum vivente da terra é capaz de alcançar [...]”. (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2006, p.

227).

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A terra, por sua vez, segundo Chevalier e Gheerbrant, simboliza a Mãe, a fecundidade,

matriz que dá a luz e, ao findar de um ciclo orgânico recolhe todos à morte. Há uma

correspondência estreita da terra com a mulher, por serem geradoras. Estão classificadas no

regime noturno da imagem (DURAND, 2002), por representarem simbolicamente o íntimo, a

profundidade, o recôndito, o quente, o protegido. Esta simbologia e correspondência

mulher/terra se exemplifica no soneto abaixo, de Leonilda Hilgenberg Justus.

A mulher e a natureza

As águas fluem mansas, preguiçosas,

feito mulher saciada após o amor.

Sensual e lenta... rósea como as rosas...

cansada e leve... ansiando um cobertor...

As nuvens passam... belas, langorosas.

Também, Mulheres: lindas no compor.

Distantes e volúveis... perigosas...

conforme o tempo no momento a impor...

Em tudo que se olhar, há o paralelo

entre a mulher e a augusta Natureza

- ambas Mulheres para amar, gerar.

Mulher e Natureza... o santo elo.

Eternidades vivas, com certeza!

Sublimidades... Mães a rir, chorar.

(JUSTEN, 1997, p. 63).

No soneto acima se verifica a estreita relação entre a mulher e a natureza, ambas

colocadas pelo eu lírico como Mães e em relação orgânica com tudo que a cerca. A natureza e

a mulher são geradoras e ligam-se a seus filhos por um fio indissolúvel; ambas alimentam para

a vida e acolhem na morte em seus ventres íntimos e quentes. No primeiro quarteto, há certa

aparência de passividade da mulher/natureza, cuja designação desse estado se dá por vocábulos

como “mansas”, “saciada”, “lenta” e cansada”.

Com isso, há a contraposição ao céu, que é eminentemente ativo e ligado

simbolicamente ao masculino. Chevalier e Gheerbrant fazem essa distinção homem/céu X

mulher/terra. Segundo os autores, “A terra fértil e a mulher são frequentemente comparadas na

literatura: sulcos semeados, o lavrar e a penetração sexual, parto e colheita, o trabalho agrícola

e ato gerador, colheita dos frutos e aleitamento, o ferro do arado e o falo do homem [...]”.

(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2006, p. 879). No soneto acima, pode-se dizer que

“natureza”, presente desde o título do poema é uma espécie de sinédoque de “terra”.

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Em relação à estruturação, se o primeiro quarteto do poema reitera essa passividade do

paralelismo mulher/terra e se esta relação é revivificada liricamente nos dois tercetos finais, o

que se nota, no segundo quarteto é certa dissimulação, que caracterizaria e mostraria que essa

passividade não é deveras totalizante. Nesta estrofe as mulheres são comparadas às nuvens,

porque às vezes “Distantes e volúveis... perigosas.../ conforme o tempo no momento a impor...”.

Para além da mão geradora, fonte de vida, a terra também acolhe na morte, conforme já

dito e isso é recorrente na mulher, cuja passividade aparente pode ser prelúdio de uma atividade

manipuladora sutil e imperceptível. Dessa maneira esta pode ser vingadora, assim como aquela.

Pode tornar-se destruidora, porque, se por um lado dá a vida, por outro, oposta e

concomitantemente precisa dos mortos para satisfazer-se, conforme assinalam Chevalier e

Gheerbrant a respeito da simbologia da terra na mitologia asteca, por exemplo.

A partir do poema apresentado acima, reitera-se que mulher e natureza se intercambiam

simbolicamente e representam (ou estão presentes) na distinção que Durand (2002) faz dos dois

regimes das imagens, o diurno e o noturno, estando alocadas neste último, pois representam o

íntimo, o aconchegante, o morno, a intimidade e a segurança.

No soneto abaixo, há também remissão à passividade, característica simbolicamente

determinada à terra/mulher, mas essa é uma passividade aparente, pois a relação que o vegetal

mantém com o homem (ser humano) é uma relação de reciprocidade. Ambos são constituintes

de um todo e por isso a harmonia se constrói, mesmo que seja objetificada como uma quimera.

Esta premissa não é verdadeira e é refutada no ciclo poemático do soneto, como se verificará

subsequentemente.

De início, no poema a árvore é taxada com a passividade e a imobilidade do que pertence

ao reino vegetal. A primeira estrofe caracteriza bem esta condição de inanimidade: “não pode”;

“não chora”; não canta”; é “uma coisa... e muda e indiferente/a tudo [...]”. Nos versos seguintes

se verifica que esta impressão de passividade aparente da árvore é uma sensação advinda da

insensibilidade e desconhecimento do pertencimento da árvore no ciclo da vida na Terra.

A árvore

- A árvore não pode, a árvore não chora.

Também não canta, nem gargalha, livremente.

Somente, ali... uma coisa... e muda e indiferente

a tudo. Mesmo a alguém que chega e vai embora.

- Como ousas afirmar, assim, levianamente,

ó coração vazio, que a árvore não chora,

e que não ri? Não vês que à seca, não demora,

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e ela definha? E à chuva, esplende, de repente?

Não sentes que contigo é a voz da ideal ternura?

Que estende a sombra quando o sol forte, fulgura,

ninando-te e aos teus, durante a caminhada?

Se à árvore não dás o teu carinho infindo...

Se não a amas como um ser sempre bem-vindo...

tu não és gente e não és bicho... tu és nada!

(JUSTEN, 1997, p. 103).

O primeiro quarteto, como mencionado, há um eu lírico a questionar a existência da

árvore enquanto ser vivo. Reitere-se que nessas duas primeiras estrofes do soneto, há como que

um diálogo entre dois eu líricos – este marcado pelo sinal à frente dos dois primeiros versos de

cada estrofe. Para rebater essa intransigência do primeiro, o segundo interpela a favor da árvore,

observando que ela tem as necessidades de qualquer ser vivo, que definha com a falta de água

e se revigora com seu consumo, tal qual o ser humano, que de igual maneira não sobrevive sem

água.

Nos dois tercetos finais, há o desenrolar da argumentação iniciada na segunda estrofe.

No primeiro terceto a árvore é aparente a prosopopeia. A árvore tem a ternura própria das mães,

acolhendo e abrigando outros seres do calor do sol, sendo um alento e um refrigério ao cansaço

durante a caminhada, que significa também a jornada (ciclo) da vida. A árvore é uma extensão

viva do homem pela sua verticalidade, conforme ressalta o filósofo Gilbert Durand ao afirmar

que “pela sua verticalidade, a árvore cósmica humaniza-se e torna-se o símbolo do microcosmo

vertical que é o homem [...].” (DURAND, 2002, p. 342).

Da mesma maneira, observa Durand, o homem se satisfaz espiritualmente quando

comparado à força e vigor da árvore. “Os mais velhos carvalhos têm nomes próprios, como os

homens [...].” (DURAND, 2002, p. 345). Essa relação entre homem/árvore, portanto, não é uma

relação fortuita, mas advém de tempos primitivos e a verticalidade que liga ambos acarreta um

devir de positividade. Por esse motivo, destaca o filósofo que

Nada é, assim, mais fraterno e lisonjeiro para o destino espiritual ou temporal

do homem que comparar-se a uma árvore secular, contra o qual o tempo não

teve poder, com a qual o devir é cúmplice da majestade das ramagens e da

beleza das florações. (DURAND, 2002, p. 342).

Essa sinestesia cósmica e mítica operante no imaginário humano, que o liga

intrinsecamente à árvore é reiterada na última estrofe do soneto apresentado acima, onde se

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explicita que o contrário dessa relação significa o esvaziamento e mesmo aniquilamento. No

mencionado terceto, há a “condenação” de quem renega a árvore como um ser útil e necessário

à vida, e mesmo ignora esse ciclo orgânico que une o vegetal ao animal, ou, mais

especificamente árvore/homem, imputando a este cético eu lírico o verso derradeiro: “tu não és

gente e não és bicho... tu és nada!”. Dessa maneira o poema fecha o ciclo que liga

intrinsecamente o homem e a árvore e os coloca como parte de um cosmos maior. É um “nada”

quem desconsidera essa correlação, ainda que a viva em plenitude.

As imagens encadeadas nos versos no soneto acima mostram, por meio de uma grande

e sutil metonímia como homem e árvore mantém relação congênita. A poesia tem essa

faculdade de reatar ou instaurar o elo do homem com o mundo, por isso sua relação de

proximidade com o mítico. Segundo Ana Maria Lisboa de Mello, “O canto poético brota da

mesma fonte que emanam o mito e os cantos primitivos, exprimindo todo o potencial emotivo

da linguagem, na qual o ritmo e as imagens simbólicas se unem para revelar alguma coisa do

homem ao homem [...]”. (MELLO, 2002, p. 56).

Transparece, desta maneira, nos poemas, bem como nas obras artísticas, o imaginário,

ancorando a relação obra/autor/leitor como algo substancial, irradiando imagens que são, ao

mesmo tempo individuais e coletivas. Na essência do poema subjaz mundos compartilhados,

em que há um entrelaçamento de vivências e sensações novas e velhas. Segundo Wunenburger,

[...] O imaginário das obras mostra-se assim como um espaço de realização,

de fixação e de expansão da subjetividade. Mas, por intermédio dessa

representação, o artista visa a algumas imagens novas, que por sua vez farão

parte da subjetividade de cada um. As obras de arte permitem a transmissão e

o compartilhamento do vivido, do sentir, do ver, e assim tornam possível uma

participação num mundo comum [...]. (WUNENBURGER, 2007, p. 58).

Essas imagens desencadeadas linguisticamente na arte poética, permeadas de

simbolismo são a verve do imaginário que sustenta o viver do homem para além da mera

existência. O simbólico domina a vida do homem e o imaginário alicerça sua humanidade,

capacitando-lhe a sempre evoluir, primeiramente por meio de seus sonhos.

No haicai abaixo nota-se entrelaçados sono e sonho como “código do imaginário” e, por

isso sempre “de mãos dadas”, indissociáveis do ser humano.

Sono e sonho

dormem de mãos dadas...

Código do imaginário!

(THOMÉ, 2002, p.53).

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O sono é o momento de descanso, remete a repouso, aparente estado de inércia. O sonho,

por sua vez reveste-se de fantasia, remete à imaginação. Portanto, sono está para o equilíbrio

físico/biológico como sonho está para equilíbrio psico-mental do indivíduo. No poema fica

evidente que sono e sonho são duas faces da mesma moeda, pois se alicerçam, como já dito, no

imaginário, “dormem de mãos dadas”, como se observa no segundo verso e são, portanto,

inseparáveis.

O sono é a satisfação e necessidade física do corpo; o sonho é o alimento e combustível

da alma. Sono lembra descanso, a noite; o sonho é a ponte que liga esta noite de sono ao dia de

trabalho, de ação. Em outras palavras, o homem continua vivamente ativo quando adormece.

No campo do imaginário é guiado pelo sonho, sempre o instigando a reinventar e construir o (e

no) dia seguinte.

Neste poema, portanto, o sono não pode ser tomado como apenas mero descanso físico,

mas deve ser entendido também como o momento em que o homem reestabelece suas forças

espirituais, por meio dos sonhos que vem o animar e trazer equilíbrio à sua existência. Segundo

Chevalier e Gheerbrant, “O papel do sonho, talvez o mais fundamental, é estabelecer no

psiquismo de uma pessoa uma espécie de equilíbrio compensador [...].” (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 2006, p. 846).

O sonho, então, não é somente um “fenômeno” noturno do qual emergem imagens

reprimidas, mas uma espécie de eixo equilibrador da própria vida e, dessa maneira, não se

relaciona somente ao sono noturno, mas também aos devaneios diurnos, pois o homem é um

ser dinâmico e simbólico e, da mesma maneira que (durante o dia) trabalha sonhando, dorme

trabalhando, pois durante o sono não cessam suas atividades psíquicas.

Sono e sonho, geralmente conduzem às imagens da noite, ao escondido e encoberto,

mas não só. No haicai acima mostrado, a imagem poética formada abre-se ao infinito; congrega

sono e sonho como elementos dúbios. O sono é tendenciosamente centrípeto, enquanto que o

sonho revela-se centrífugo.

Bachelard (1994) observa que o bom sono possui um centro psíquico que se retrai para,

em seguida dilatar-se. Se o retraimento desse centro onírico é comandado pelas formas ovoides,

como ressalta o filósofo, o dilatar-se é comandado pelas formas retas ascencionais, o que

prenuncia o dia. Dessa maneira, sono e sonho perfazem um movimento dinâmico, como de

maré.

[...] o ser que cumpriu seu dever de bom sono tem, de repente, um olhar que

ama a linha reta e uma mão que fortifica tudo o que é reto. É o dia que desponta

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a partir do próprio ser que desperta. A imaginação da concentração é

substituída por uma vontade de irradiação. (BACHELARD, 1994, p. 163).

Essa “irradiação” se refere ao diurno, enquanto que “concentração” caracteriza o

noturno, por isso no haicai acima essas duas fases da existência são códigos do imaginário e

dormem de mão dadas.

A imagem da noite, caracterizada pela “concentração” que designa o secreto está

fortemente construída no haicai abaixo, no qual se observa a simbologia plena da noite.

A lua é moderada

se esconde ou nos esconde...

não gosta de vidas abertas!

(THOMÉ, 2002, p. 22).

Neste haicai, a lua performatiza a totalidade da noite. Esta eufemização de que fala

Durand, a respeito do regime noturno da imagem. “A lua é moderada”, diz o primeiro verso do

poema, incide sua luz que não clareia de todo, por isso remete às imagens aconchegantes,

conforme salienta Durand, ao observar que “[...] há na profundidade da fantasia noturna uma

espécie de fidelidade fundamental, uma recusa de sair das imagens familiares e aconchegantes

[...].”(DURAND, 2002, p. 269).

De fato, quando a noite cai há o recolhimento, o silêncio ganha força, a fidelidade opera

porque o sujeito busca o aconchego de seu lar. Daí também o fato de que a lua “não gosta de

vidas abertas”, como se observa no terceiro verso do haicai, pois quando ela surge significa o

momento de regressão (regresso), descida, termos que simbolizam a procura a um espaço

acolhedor e seguro.

No haicai abaixo, já há o oposto do apresentado acima. O eu lírico refere-se ao sol, astro

que designa a claridade do dia, em oposição à escuridão da noite.

O sol é categórico

quer tudo às claras:

a vida no imperativo!

(THOMÉ, 2002, p. 22).

No primeiro verso está explícita a categorização do sol, seu aspecto verticalizante e

incisivo, penetrante, da luz que “quer tudo às claras”, conforme se verifica na complementação

do segundo verso. “A vida no imperativo”, que finaliza o poema é a clarividência do dia, onde

se vê tudo acontecer. Reitera a ordem da autoridade que manda e simboliza a ascencionalidade

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e verticalidade do homem, que se contrapõe à noite e, portanto, nas palavras de Durand (2002),

a negra e temporal feminilidade.

Nos versos abaixo, da poeta argentina Lilí Muñoz, ao contrário do poema acima exposto,

está fortemente presente a imagem da noite, com a qual está ligado simbolicamente o gato.

Neste poema o felino representa genericamente os animais, seres quadrúpedes, terrestres, cuja

simbologia está estritamente vinculada ao negrume da noite.

Gatos1

Gatos barcinos,

blancos, amarilos

gatunos

gatos rosados, negros,

amadores lentíssimos

amadores del tempo.

Tu amor maúlla, observa, grita

nos aflora.

Amor de escândalo nocturno

ronronea

lúcido y letal

como Juan L.

Serpientes de ternura.

sederías en celo.

lamedoras.

Amor en torbellino

luna llena

luna de cuernos adelante

luna fría.

Chispas del viejo sol.

espiral de la noche

pacientes pasajeros del silencio.

La gente de la tierra

reconoce

los ojos graves

que buscan el gran cielo.

1 Gatos atigrados/ brancos, amarelos/ gatunos/ gatos rosados, pretos/ amadores lentíssimos/ amadores do tempo.//

Teu amor, choraminga, observa, grita/ Aflora-nos/ amor de escândalo noturno/ ronrona/ lúcido e letal/ Como Juan

L.// Serpentes de ternura/ sedas em cio/ untuosas// Amor em torvelinho/ lua cheia/ lua de hastes adiante/ lua fria//

Fagulhas do velho sol/ espiral da noite/ pacientes passageiros do silêncio// A gente da terra/ reconhece/ os olhos

graves/ que procuram o grande céu. (MUÑOZ, 2006, p.39-40, Tradução de Denise Scolari Vieira).

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(MUÑOZ, 2006, p.39-40).

Nos primeiros versos há a caracterização de alguns gatos e a primeira estrofe é finalizada

descrevendo a sagacidade, paciência, esperteza e sensualidade desses felinos. São “amadores

lentíssimos”, conforme se verifica no quinto verso, “serpentes de ternura”, (terceira estrofe) e

“pacientes passageiros do silêncio”, na quinta estrofe.

Segundo Chevalier e Gheerbrant (2006), “o simbolismo do gato é muito heterogêneo,

pois oscila entre as tendências benéficas e as maléficas, o que se pode explicar pela sua atitude

a um só tempo terna e dissimulada [...]” (p. 461). A ternura do felino relaciona-se ao dia, período

em que passa ocioso, passivo. A dissimulação, pode-se dizer, tem a ver com a noite, na qual o

gato demonstra sua ampla independência e atividade.

O gato é um animal noturno, assim como grande parte dos felinos, que caça à noite e

utiliza também a penumbra do período noturno, bem como a luz da lua para seus rituais de

acasalamento. É o que se observa na terceira e quarta estrofe do poema, em que há a descrição

do ritual erótico/sensual da dança dos gatos, dança esta que ocorre no silêncio da noite.

A quinta estrofe mostra o gato como ser ativo à noite, em contraposição à sua

passividade do dia. Isto se vidência no verso “fagulhas do velho sol” e “espiral da noite”,

reiterando a atividade noturna e boêmia do animal.

No poema “Gatos”, a noite aparece como cenário da dança, amor e aventuras dos

felinos, que procuram na escuridão e silencio noturnal sair de sua passividade diurna. Eles

buscam o céu, conforme se verifica na última estrofe do poema e o fazem de pontos aéreos,

pois sobem nos telhados, em árvores, em muros. Seus olhos brilhantes é o que os identifica

muitas vezes em meio ao negrume da noite, camuflados e imperceptíveis.

A imagem da noite e do gato que estão verbalmente desenhadas no poema acima, assim

como as imagens dos poemas anteriores, em que são mostradas exponencialmente a lua, o sol,

a árvore, a natureza mostram muito dos regimes das imagens postulados teóricos do imaginário

e são construtos do arcabouço imaginativo do homem. Dessa maneira há toda uma relação da

poesia com o mítico, com os tempos primordiais. A poesia recria e reinventa espaços que ligam

gerações da humanidade, por isso a força da palavra poética é ímpar e possui a plenitude de

sempre manter essas relação “inquebrável” do homem com o mundo.

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Considerações finais

O presente trabalho buscou discutir aspectos míticos e simbólicos presentes em poemas

das escritoras Leonilda Hilgenberg Justus, Flora Tomé e Lili Munoz, tecendo considerações

principalmente acerca dos temas ligados à noite a ao dia, traçando dessa forma diálogos com a

simbologia e os regimes diurno e noturno da imagem postulados por Gilbert Durand.

A imaginação criadora é condição intrínseca ao ser humano. É a partir da imaginação

que o homem fala de si e do mundo, além de ser premissa para transformar o espaço circundante

em que vive e com o qual se relaciona. A linguagem da poesia traz potencializada a simbologia

que faz o homem reconhecer e mostra a sua humanidade. O fazer poético, portanto, é um

exercício ao mesmo tempo solitário e coletivo, trata do particular e do universal, pois todo

homem é único e ao mesmo tempo se liga à máquina cósmica da organicidade terrena.

Essas considerações se refletem nos poemas apresentados neste trabalho, obras

distanciadas espacialmente mas que dialogam entre si porque trazem nos versos a simbologia

que é parte constituinte do homem. Animais, natureza, árvore, sol, sono e sonhos, lua são todos

elementos que fazem parte da vida humana e ainda que o homem desconsidere esta relação

simbólica e agregadora do cosmos, ela existe, prova maior disso é que ele ainda se mantem

vivo, alimentado pelas relações com tudo que o cerca e animado pelos seus sonhos inesgotáveis.

Referências

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