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Aspectos relevantes da biogeoquímica 18 Cadernos Temáticos de Química Nova na Escola N° 5 – Novembro 2003 Maria Lúcia A. M. Campos e Wilson F. Jardim Este artigo apresenta uma visão geral da química da hidrosfera, considerando aspectos da biologia, física e geologia. Os oceanos são abordados como ponto de partida na discussão sobre a transferência de matéria e energia em distintos ecossistemas, sendo destacado seu papel vital como regulador climático e mantenedor da vida na Terra. oceanos, mudanças climáticas, ciclo do carbono Tabela 1: Inventário dos estoques de água nos vários reservatórios do planeta Terra Reservatório Volume/(10 6 km 3 ) Porcentagem Oceanos 13200000 97,2400 Geleiras 29,2000 2,1400 Águas subterrâneas 8,3000 0,6100 Lagos 0,1250 0,0100 Mares 0,1040 0,0080 Solos 0,0670 0,0050 Atmosfera 0,0130 0,0010 Rios 0,0012 0,0001 TOTAL 1358 100 Adaptado de Grassi (2001) Aspectos relevantes da biogeoquímica da Introdução O planeta Terra é, na verdade, uma enorme esfera com 2/3 de sua super- fície coberta de água, flutuando como uma grande bola azul no espaço. A hidrosfera (nome dado ao reservató- rio que agrega todos os tipos de água existentes no planeta), contém aproxi- madamente 1,4 x 10 9 km 3 de água, sendo os oceanos o mais velho (3,8 bilhões de anos de existência) e o maior (97,3%) dos reservatórios, con- forme mostrado na Tabela 1. A ciclagem da água entre os reser- vatórios (ciclo hidrológico) é um pro- cesso conhecido, muito dinâmico, movido basicamente pela energia so- lar, e que movimenta cerca de 1 km 3 de água por ano apenas entre a hidrosfera e a atmosfera, fazendo com que o tempo de residência da água na atmosfera seja pequeno, tipicamente de 10 dias (veja o quadro sobre tem- po de residência). Embora para os seres humanos a água doce tenha uma importância ime- diata na manutenção da vida, os oce- anos têm um papel vital na manuten- ção da vida no planeta Terra como um todo, apesar de se saber sobre a su- perfície da Lua ou de Marte do que sobre o fundo dos oceanos. Este “uni- verso”, ainda obscuro hoje, pode ser visto como um grande potencial energético a ser explorado, como uma fonte de alimentos a ser sustentada e, também, como um importante aliado que ameniza o efeito estufa, por meio da absorção de grandes quantidades de dióxido de carbono da atmosfera. Um dos desafios atuais da comu- nidade científica é prever como um possível aquecimento global poderia influenciar a circulação oceânica e, conseqüentemente, o balanço da transferência de calor na Terra. Outros estudos vêm avaliando como as emis- sões de partículas de aerossóis e de gases pelos oceanos podem influen- ciar a composição química da atmos- fera e até mesmo o clima global. Propriedades da água e suas implicações As fortes interações dipolo-dipolo entre as moléculas de água formam as chamadas ligações de hidrogênio, que conferem à água características físicas 3-03-hidrosfera.p65 17/10/03, 08:00 18

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Aspectos relevantes da biogeoquímica

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Cadernos Temáticos de Química Nova na Escola N° 5 – Novembro 2003

Maria Lúcia A. M. Campos e Wilson F. Jardim

Este artigo apresenta uma visão geral da química da hidrosfera, considerando aspectos da biologia, física e geologia.Os oceanos são abordados como ponto de partida na discussão sobre a transferência de matéria e energia emdistintos ecossistemas, sendo destacado seu papel vital como regulador climático e mantenedor da vida na Terra.

� oceanos, mudanças climáticas, ciclo do carbono �

Tabela 1: Inventário dos estoques de água nos vários reservatórios do planeta Terra

Reservatório Volume/(106 km3) Porcentagem

Oceanos 13200000 97,2400Geleiras 29,2000 2,1400Águas subterrâneas 8,3000 0,6100Lagos 0,1250 0,0100Mares 0,1040 0,0080Solos 0,0670 0,0050Atmosfera 0,0130 0,0010Rios 0,0012 0,0001

TOTAL 1358 100

Adaptado de Grassi (2001)

Aspectosrelevantes dabiogeoquímica da

Introdução

O planeta Terra é, na verdade, umaenorme esfera com 2/3 de sua super-fície coberta de água, flutuando comouma grande bola azul no espaço. Ahidrosfera (nome dado ao reservató-rio que agrega todos os tipos de águaexistentes no planeta), contém aproxi-madamente 1,4 x 109 km3 de água,sendo os oceanos o mais velho (3,8bilhões de anos de existência) e omaior (97,3%) dos reservatórios, con-forme mostrado na Tabela 1.

A ciclagem da água entre os reser-vatórios (ciclo hidrológico) é um pro-

cesso conhecido, muito dinâmico,movido basicamente pela energia so-lar, e que movimenta cerca de 1 km3

de água por ano apenas entre ahidrosfera e a atmosfera, fazendo comque o tempo de residência da água naatmosfera seja pequeno, tipicamentede 10 dias (veja o quadro sobre tem-po de residência).

Embora para os seres humanos aágua doce tenha uma importância ime-diata na manutenção da vida, os oce-anos têm um papel vital na manuten-ção da vida no planeta Terra como umtodo, apesar de se saber sobre a su-perfície da Lua ou de Marte do que

sobre o fundo dos oceanos. Este “uni-verso”, ainda obscuro hoje, pode servisto como um grande potencialenergético a ser explorado, como umafonte de alimentos a ser sustentada e,também, como um importante aliadoque ameniza o efeito estufa, por meioda absorção de grandes quantidadesde dióxido de carbono da atmosfera.

Um dos desafios atuais da comu-nidade científica é prever como umpossível aquecimento global poderiainfluenciar a circulação oceânica e,conseqüentemente, o balanço datransferência de calor na Terra. Outrosestudos vêm avaliando como as emis-sões de partículas de aerossóis e degases pelos oceanos podem influen-ciar a composição química da atmos-fera e até mesmo o clima global.

Propriedades da água e suasimplicações

As fortes interações dipolo-dipoloentre as moléculas de água formam aschamadas ligações de hidrogênio, queconferem à água características físicas

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Uma idéia da quantidade de energia associada às águas

Para ter uma idéia da quantidade de energia liberada em um evento de chuva,assuma o seguinte cenário: a precipitação de 20 mm (chuva moderada noBrasil) sobre uma área de 1 hectare (10.000 m2). Multiplicando a área pelaaltura da lâmina de água de chuva, tem-se um volume de 200.000 L de água.Se no processo de condensação, cada grama de água libera 540 cal, haveráa liberação de cerca de 108 x 106 kcal nessa área. Esta quantidade de calor éequivalente à energia liberada na explosão de cerca de 100 toneladas de dina-mite.

Tabela 2: Concentração dos íonsmajoritários em água salgada e água doce(mmol L-1)

Íon Água doce Água salgada

Na + 0,23 470Mg 2+ 0,14 53K + 0,03 10Ca 2+ 0,33 10HCO3

- 0,85 2SO4

2- 0,09 28Cl - 0,16 550Si 0,16 0,1

Adaptado de Andrews et al., 1996.

muito peculiares. Estas ligações de hi-drogênio são responsáveis por confe-rir à água líquida o elevado calor espe-calor espe-calor espe-calor espe-calor espe-cíficocíficocíficocíficocífico (ou capacidade calorífica espe-cífica) de 1,0 cal g -1 oC -1. Isto significaque é necessário fornecer uma grandequantidade de energia na forma de ca-lor (1 cal) para poder elevar a tempera-tura de 1 g de água líquida em 1 oC. Aenergia que seria consumida para au-mentar a movimentação das molécu-las é inicialmente absorvida para que-brar as ligações de hidrogênio e, por-tanto, a água absorve energia sem au-mentar sua temperatura drasticamente(Open University, 1995a).

Este elevado calor específico daágua reflete diretamente no clima e navida do nosso planeta. Primeiramente,o alto calor específico previne variaçõesrápidas de temperatura da água, quepodemos observar quando vamos àpraia. Muitas vezes, nomeio do dia, sentimosa areia queimandonossos pés, enquantoque a água do marpermanece fria, vistoque a areia tem um ca-lor específico muitomais baixo que o daágua, isto é, o calorque a areia absorveeleva eficientementesua temperatura, gerando gradientesde temperatura na areia ao longo de umdia.

O elevado calor específico da águafaz com que apenas 2,5 m de colunad’água do oceano seja equivalente àtoda capacidade calorífica da atmos-fera que está sobre o oceano (Libes,1992). Em outras palavras, o oceanoretém cerca de 1100 vezes mais calorque a atmosfera. Durante o verão, ocalor é estocado nos oceanos e, du-rante o inverno, parte desse calor étransferido de volta para a atmosferaamenizando, assim, a temperatura doar. Apenas compreendendo o signifi-cado do elevado calor específico daágua, somado ao seu grande volume,já podemos perceber porque o ocea-no age como moderador climático, di-minuindo a amplitude das variações detemperatura entre as estações do ano,e transferindo calor das regiões tropi-cais para as sub-tropicais e polares por

meio das correntes marinhas. Se nãofossem os oceanos, nosso planeta te-ria dias muito quentes e noites muitofrias.

Outras propriedades físicas daágua, importantes para entendermos aimportância do oceano no clima globalsão: calor latente de fusão e vaporiza-ção. Calor latente de fusãoCalor latente de fusãoCalor latente de fusãoCalor latente de fusãoCalor latente de fusão é a quanti-

dade de calor necessá-ria para transformar 1 gde uma substância doestado sólido para o es-tado líquido (ou vice-ver-sa). De forma análoga, ocalor latente de vapori-calor latente de vapori-calor latente de vapori-calor latente de vapori-calor latente de vapori-zaçãozaçãozaçãozaçãozação refere-se à transi-ção entre o estado líqui-do e gasoso. O elevadocalor latente de fusão daágua (80 cal), provoca

um efeito termostático no ponto de con-gelamento, pois uma grande quantida-de de energia precisa ser emitida ou ab-sorvida para que haja mudança de es-tado, evitando a rápida formação degelo na coluna d’água. A presença desais na água do mar (cerca de 35 g kg-1)diminui seu ponto de congelamentopara -1,9 oC e, por isto, a água do marnunca atinge temperaturas inferiores aeste valor (Libes, 1992).

Quando moléculas de água pas-sam do estado líquido para o gasoso,estas “carregam” grandes quantida-des de energia, devido ao elevado ca-lor latente de vaporização (540 cal g-1).Portanto, quando há transferência deágua do oceano para a atmosfera há,também, transferência de calor. Umavez na atmosfera, o vapor d’água étransportado para outras regiões doplaneta e, quando este se condensana forma de chuva, ocorre a liberaçãodesse calor latente. A mesma quanti-

dade de energia absorvida no proces-so de vaporização é liberada para aatmosfera. Isto significa que o calor étransportado de uma região do plane-ta para outra na forma de calor latentede vaporização, o que é muito impor-tante para a distribuição de calor eestabilização do sistema climático glo-bal.

Um outro ponto importante refere-se à composição química da água pre-sente na hidrosfera. Alguns destesíons, como o cloreto (abundante emáguas de alta salinidade), são chama-dos de conservativosconservativosconservativosconservativosconservativos, pois sendomuito pouco reativos, suas concentra-ções dependem apenas dos proces-sos de mistura. Outros, como o íon bi-carbonato e o íon H+ são não-conser-vativos, pois podem ser consumidosou gerados no corpo aquático, e suasconcentrações variam independente-mente dos processos de mistura. Aságuas salgadas têm altas concentra-ções de íons quando comparadasàquelas encontradas tipicamente emáguas doces (Tabela 2). Além disso,as águas salgadas têm uma compo-sição química muito mais homogêneaem todo o planeta do que as águassubterrâneas, de rios e lagos. Frente aesta distinta composição, é de se es-

Embora para os sereshumanos a água docetenha uma importância

imediata na manutençãoda vida, os oceanos têm

um papel vital namanutenção da vida noplaneta Terra como um

todo.

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O estuário como um grande reator químico

O estuário é a conexão entre o continente e o oceano, sendo caracterizadopor uma região de mistura de águas com distintas composições químicas. Asregiões estuarinas caracterizam-se pela diluição da água salgada, gerandogrande variação na salinidade (e, conseqüentemente, na força iônica), isto é,de salinidade 35 na faixa oceânica (equivalente a cerca de 35 g de sais por kgde solução), até virtualmente zero de salinidade no interior do rio. Na zona demistura de águas em estuários, o material coloidal é desestabilizado por açãodo gradiente de íons, flocula e acaba precipitando, fenômeno este que ocorreprincipalmente em salinidades oscilando de zero até 5 formando, assim, zo-nas de alta turbidez. Por ação das marés e da vazão do rio, este materialparticulado é ressuspenso num processo cíclico. Os estuários são caracteri-zados como sendo regiões de grande diversidade biológica, devido à riquezada composição química das águas ali encontradas. Uma das maneiras clássi-cas de se investigar os processos químicos com respeito à conservação ounão de espécies de interesse em regiões estuarinas é analisar como varia aconcentração desta espécie em função da salinidade, a qual é usada comoreferência de diluição por se tratar de uma propriedade conservativa.

Obs: É importante notar que a salinidade não tem unidade, pois atualmenteesta é avaliada pela razão de condutividade entre a amostra e uma soluçãopadrão.

Exemplo de como calcular tempo de residência

A concentração média do íon sódio (Na+) em água doce é de 0,23 x 10-3 mol L-1

(Tabela 2). Assumindo-se que o volume de água doce lançado no oceano emtodo o planeta seja de 3,6 x 1016 L ano-1, qual o tempo de residência deste íonna água do mar?

Sabendo-se que τ = A/F, será necessário calcular o estoque de sódio no oce-ano e dividir este valor pelo fluxo (aporte) oriundo da água doce.A = 1,4 x 1021 L (volume do oceano) x 0,47 mol L-1 (concentração média) = 644x 1018 molF= 3,6 x 1016 L ano-1 x 0,23 x 10-3 mol L-1 = 8,28 x 1012 mol ano-1

τ = 644 x 1018 mol/8,28 x 1012 mol ano-1 = 78 x 106 anos

Este tempo de residência elevado permite que a concentração de sódio sejahomogênea em todo o oceano, independentemente da sua localização.

perar que as regiões estuarinas, ouseja, no encontro das águas interiores(doce) com o oceano (água salgada)sejam caracterizadas por uma dinâmi-ca complexa sob o aspecto químico.Estima-se que o volume de água queos rios lançam nos oceanos a cadaano seja da ordem de 3,6 x 1016 L, paraum volume de águas oceânicas de 1,4x 1021 L.

O tempo de residência de um íonmajoritário num dado reservatório ser-ve como indicador para se entenderos ciclos que atuam na coluna d’águae suas interfaces, além de poder serusado como traçador de alteraçõesantrópicas, ou seja, aquelas causadaspelo homem. O tempo de residênciade uma dada substância ou espéciequímica (íon) em um corpo aquático,τ, é definido como sendo:

τ = A/F

onde τ é o tempo de residência (uni-dade de tempo), A é o estoque da es-pécie de interesse no corpo aquático(em massa) e F é o fluxo de aporte (Fin)ou da retirada (Fout) da espécie no sis-tema sob estudo (em unidades demassa/tempo), sendo que no estadoestacionário, Fin = Fout. O quadro abai-

xo traz alguns exemplos do cálculo dotempo de residência no oceano.

A circulação dos oceanos e atransferência de calor

A circulação dos oceanos éprovocada pela energia do sol, de for-ma direta e indireta, e pela rotação daTerra. Os ventos transferem sua ener-gia para os oceanos, causando a mo-vimentação das águas da superfície.Portanto, podemos dizer que a circula-

ção na superfície dos oceanos é domi-nada por ventos que afetam uma ca-mada de água de até algumas cente-nas de metros levando, primariamen-te, à circulação horizontal, ou circula-circula-circula-circula-circula-ção geostrófica ção geostrófica ção geostrófica ção geostrófica ção geostrófica (Open University,1995b). Esta circulação oceânica ilus-tra muito bem a forte interação que háentre oceano e atmosfera. Como osventos e as águas na superfície se mo-vem relativamente devagar, o movimen-to de rotação da Terra contribui paraprovocar a circulação da atmosfera edo oceano. Essa força de rotação daTerra, que interfere na direção das cor-rentes, é chamada de força de Coriolis.

A Figura 1 mostra as principais cor-rentes marinhas quentes e frias na su-perfície dos oceanos. É muito impor-tante enfatizar que as correntes mos-tradas nesta figura são baseadas nasmédias de observações realizadas porperíodos muito longos, e que variaçõeslocais são muito freqüentes. Vemosque tanto no norte do Atlântico comono Pacífico as correntes seguem o sen-tido horário, enquanto que no hemis-fério sul, o sentido da circulação é anti-horário (isto se deve à força deCoriolis). No Oceano Índico, a circula-ção é complicada pelas variações sa-zonais dos importantes ventos Mon-ções. Observando a Figura 1 fica evi-dente, por exemplo, que a Corrente doGolfo leva águas mornas da região daFlórida para o norte-nordeste do Atlân-tico transportando, assim, uma gran-de quantidade de calor, que vem ame-nizar o clima do oeste Europeu.

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Figura 1: Principais correntes na superfície dos oceanos.

Figura 2: Representação da grande circulação oceânica, com a cor clara representandotemperaturas mais elevadas na superfície das águas, enquanto a cor escura representa acirculação profunda, com temperaturas mais baixas.

À medida que a massa d’água daCorrente do Golfo vai sendo transpor-tada para o norte, vai se tornando maisfria e mais densa, e acaba afundandoaté grandes profundidades (1000 –2000 m) provocando, assim, a movi-mentação das águas profundas. Estetipo de corrente é chamada de circu-circu-circu-circu-circu-lação termohalinalação termohalinalação termohalinalação termohalinalação termohalina, que é resultado dogradiente de densidade que, por suavez, é conseqüência da combinaçãoentre a temperatura (“termo”) e asalinidade (“haleto”) da água. A circu-lação de águas profundas forma umenorme “Cinturão Oceânico” (do inglêsConveyor Belt), que move todo o oce-ano (Figura 2; Millero, 1996). As cor-rentes superficiais e profundas são asgrandes responsáveis pela distribuiçãode calor nos oceanos e, conseqüen-temente, em todo o planeta.

Sabemos que a temperatura médiado planeta vem aumentando, e se estasubir o suficiente para derreter grandesquantidades de gelo na região do Árti-co, poderia haver um decréscimo nasalinidade da água do mar naquela re-gião. Levando em conta também o fatodas temperaturas estarem mais eleva-

das, isto poderia provocar uma diminui-ção na densidade das massas de águaque atingem o norte do Atlântico. Devi-do à sua baixa densidade, estas águaspoderiam deixar de afundar, enfraque-cendo a circulação termohalina. Segun-

do modelos matemáticos realizadospor pesquisadores da Universidade deEast Anglia na Inglaterra (http://www.cru.uea.ac.uk/cru/info/thc), casohaja um colapso da circulaçãotermohalina, em 30 anos poderia haver

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Figura 3: Isotermas das águas do Oceano Pacífico na longitude de 150oW, iniciando em latitude deaproximadamente 63 oS (perto da Antártida – km zero) e finalizando em cerca de 55oN, já próximo doAlaska (~13.500 km de percurso).

um decréscimo de cerca de 8 oC na re-gião da Groenlândia e cerca de 2 o Cem grande parte da Europa. Isto pode-ria ser traduzido em um decréscimo de3 a 5 oC na temperatura, o que seriaequivalente a 30 ou até 50% da quedade temperatura que ocorreu nas maio-res glaciações que já houve. Desta for-ma, fica estabelecido um paradoxo,pois um aquecimento global poderialevar a um clima mais frio.

Vemos portanto que os oceanos,além de terem uma enorme capacida-de térmica (devido ao alto calor espe-cífico da água), são os principais res-ponsáveis pelo transporte de calor aoredor do planeta (calor latente de va-porização e correntes marinhas), o quevem demonstrar sua grande importân-cia na estabilização do nosso sistemaclimático.

Distribuição da temperatura noscorpos aquáticos

Já discutimos sobre a distribuiçãode calor na superfície dos oceanos,mas agora temos que entender comoé a distribuição do calor nas águas à

medida que “mergulhamos” em dire-ção ao fundo dos corpos aquáticos. AFigura 3 mostra a temperatura daságuas de acordo com a profundidadeem uma seção do Oceano Pacífico,que vai desde a região da Antártida atéperto do Alaska (fonte: http://probbins.ucsd.edu/sio210/yr2001/thermo/p16_ptem.gif).

É muito fácil entendermos que atemperatura da água em qualquer cor-po aquático profundodecresce com a profun-didade, visto que a con-dução de calor ocorrede forma muito lenta.Portanto, as camadassuperiores de água, querecebem maior insola-ção, mantém uma tem-peratura mais elevadaque as camadas infe-riores, com exceção das regiões pola-res, onde a insolação é muito baixa.Além da temperatura, a ação dos ven-tos é também de suma importânciapara manter a camada superior deágua bem misturada, formando assima chamada camada de misturacamada de misturacamada de misturacamada de misturacamada de mistura. Este

fenômeno não é exclusivo dos ocea-nos, e ocorre de modo muito similarem lagos relativamente profundos(> 10 m), ou naqueles que, emborarasos, ficam protegidos da misturacausada pelo vento.

Abaixo da camada de mistura, a tem-peratura decresce rapidamente até apro-ximadamente 1000 m de profundidade,formando a chamada termotermotermotermotermoclinaclinaclinaclinaclina (Figu-ra 4). Em latitudes mais baixas (trópicos),

onde a variação detemperatura atmosféri-ca durante o ano é re-lativamente pequena, atermoclina é permanen-te, isto é, há uma estra-tificação permanente dacoluna d’água, que im-pede a mistura entreas camadas de água(pois estas apresentam

densidades distintas). Abaixo datermoclina (zona profundazona profundazona profundazona profundazona profunda) a tempera-tura decresce muito lentamente até oleito do oceano. Essa pequena variaçãode temperatura nas águas profundasocorre em todo o oceano e independeda estação do ano.

Com a entrada do outo-no nas regiões temperadas,a camada de água da su-perfície começa a resfriar,levando a um aumento dasua densidade. Tal aumen-to da densidade faz comque essa massa de águaafunde, provocando entãouma mistura da colunad’água, com conseqüentequebra parcial da termo-clina (Figura 4). No inverno,além das grandes turbulên-cias provocadas pelas tem-pestades, a densidade daágua superficial chega aseu máximo (devido à gran-de perda de calor), afun-dando para profundidadesainda maiores (100 – 300m), atingindo assim o má-ximo de quebra da ter-moclina sazonal (OpenUnivesity, 1995a). Note queeste tipo de circulação ver-tical é bastante distinto dosoutros tipos de circulaçãoanteriormente menciona-

O elevado calorespecífico da água fazcom que apenas 2,5 mde coluna d’água do

oceano seja equivalenteà toda capacidade

calorífica da atmosferaque está sobre o oceano.

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dos. A circulação verticalcirculação verticalcirculação verticalcirculação verticalcirculação vertical ocorre deforma sazonal, e restringe-se a apenasalgumas centenas de metros nasregiões oceânicas temperadas, poissão nessas regiões que ocorrem asgrandes variações anuais de tempe-ratura.

Produtividade primária, distribuiçãode nutrientes e oxigênio na hidrosfera

Embora vários elementos sejamnecessários para manter a vida, o ter-mo “nutrientesnutrientesnutrientesnutrientesnutrientes” tem sido tradicional-mente utilizado para designar nitrogê-nio, fósforo e silício. Estes nutrientessão também chamados de biolimi-tantes, isto é, limitantes da vida.

A grande maioria dos organismosvegetais microscópicos que compõemo primeiro elo da cadeia alimentar emáguas é chamada de fitoplânctonfitoplânctonfitoplânctonfitoplânctonfitoplâncton.Uma série de micronutrientes conten-do, por exemplo, ferro, cobre e zinco,também são es-senciais para om e t a b o l i s m oadequado do fito-plâncton. Nitratoe fosfato, além dedióxido de carbo-no e água, são in-corporados pelofitoplâncton du-rante o processode fotossíntese,que transforma compostosinorgânicos dissolvidos na água, em

matéria orgânica particulada, isto é, emtecido vegetal. Foi observado que otecido do fitoplâncton marinho possuiem média a proporção atômica C:N:Pde 106:16:1, chamada de razão deRedfield, o qual propôs a seguinteestequiometria de reação para o pro-cesso de fotossíntese:

106 CO2 + 16 NO3- + HPO4

2- + 122 H2O+ 18 H+ + luz⇔⇔⇔⇔⇔ C106H263O110N16P + 138 O2

Esta reação no sentido inver-so representa o processo de res-piração ou de decomposição damatéria orgânica. Silicato é utili-zado por alguns organismos,particularmente diatomáceas(fitoplâncton) e radiolárias(zooplânctonzooplânctonzooplânctonzooplânctonzooplâncton – pequenos ani-mais sem locomoção própria)para a formação do esqueleto ouconchas (Libes, 1992).

A fotossíntesefotossíntesefotossíntesefotossíntesefotossíntese pode serdefinida como o processofísico-químico pelo qualplantas, algas e certasespécies de bactérias usamenergia solar para sintetizarcompostos orgânicos. É oprocesso de fotossíntese quefornece a energia necessáriapara a manutenção de pra-ticamente toda a vida naTerra. Até mesmo os com-

bustíveis fósseis, que são tão indis-pensáveis hoje para fornecer energia

para as atividades antrópicas, foramproduzidos por organismos fotos-sintéticos há milhões de anos. Aprodutividade primáriaprodutividade primáriaprodutividade primáriaprodutividade primáriaprodutividade primária refere-se aoacúmulo de biomassa de plantas como tempo, que ocorre pelo processofotossintético. Portanto, a produtividadeprimária é quantificada pela massa decarbono orgânico fixado em umadeterminada área (no caso de plantasterrestres) ou volume de água, dentrode um certo período de tempo. Nósveremos mais adiante que a produ-tividade primária tem grande influênciasobre a atmosfera e o clima da Terra.

Se para ocorrer a fotossíntese é in-dispensável a presença de luz, então éóbvio que este processo só poderáocorrer na zona fóticazona fóticazona fóticazona fóticazona fótica (ou eufótica, comluz) que vai de 100 a 200 m de profun-didade no oceano, e até 10-20 m emáguas interiores. É nessa zona queocorre grande consumo de nutrientespelo fitoplâncton. É interessante obser-var que os oceanos são relativamentepobres em nitrogênio, enquanto queáguas doces têm deficiência de fósfo-ro. Como mostrado na Figura 5a, emáguas oceânicas, nas primeiras deze-nas de metros da coluna d’água, partedos nutrientes “retorna” para a formadissolvida pelo processo de decompo-

sição do ma-terial morto edejetos mas,visto que arec ic lagemde nutrientesna zona fóticanão é 100%eficiente, umaparte da ma-téria orgânica

particulada afunda para águas maisprofundas (zona afóticazona afóticazona afóticazona afóticazona afótica- sem luz). Por-tanto, a concentração de nutrientes vaiaumentando com a profundidade, poisna zona afótica estes já não são maisconsumidos, predominando apenas oprocesso de decomposição da maté-ria orgânica. Uma pequena quantida-de de material particulado atinge as re-giões mais profundas, e por isto a con-centração de nutrientes não continuaaumentando indefinidamente. A ausên-cia do processo fotossintético na zonaafótica impede a produção de oxigê-nio, restando apenas o processo de

Figura 4: Detalhe da quebra gradual da termoclina em regiões temperadas, de acordocom o mês do ano no Hemisfério Norte.

A Corrente do Golfo levaáguas mornas da regiãoda Flórida para o norte-nordeste do Atlântico,transportando, assim,

uma grande quantidadede calor, que vem

amenizar o clima dooeste Europeu.

Caso haja um colapso dacirculação termohalina,

em 30 anos poderiahaver um decréscimo decerca de 8 oC na regiãoda Groenlândia e cerca

de 2 oC em grande parteda Europa.

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Aspectos relevantes da biogeoquímica

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Figura 5: Ilustração esquemática da: a) produção e mineralização da matéria orgânica no oceano com a profundidade e b) reciclagem etransporte de carbono orgânico fixado para o sedimento marinho.

b

a

Quanto maior aexportação de carbono

orgânico para osedimento, maior seráconsumo de CO2 da

coluna d’água e,conseqüentemente, maisCO2 da atmosfera poderá

ser dissolvido nosoceanos por simples

difusão.

consumo de oxigênio durante a oxida-ção da matéria orgânica (Figura 5a). Oprocesso de fotossíntese nos oceanosé responsável pela supersaturação deoxigênio na água em cerca de 3% nosprimeiros metros da coluna d’água, atin-gindo cerca de 10% de supersaturaçãoem 50-70 m de profundidade (Millero,1996), mas em água doce pode atingirfacilmente 150% na superfície de cor-pos hipereutrofizados.

A Figura 5b mostra que para cada100 unidades de carbono fixado naforma de carbono orgânico, 10 unida-des atingem profundidades maiores,e menos de 1% é “enterrado” no sedi-mento (Open University, 1995a). Ain-da que pareça pequena, esta exporexporexporexporexpor-----taçãotaçãotaçãotaçãotação de carbono orgânico para o se-dimento é de suma importância, poiseste carbono se refere ao CO2 que es-tava dissolvido na água da superfíciedo oceano. Quanto maior a exporta-ção de carbono orgânico para o sedi-mento, maior será o consumo de CO2da coluna d’água e, conseqüentemen-te, mais CO2 da atmosfera poderá ser

dissolvido nos oceanos por simples di-fusão.

Como nenhuma reciclagem é 100%eficiente, uma fraçãodos nutrientes produzi-dos também “escapa”da zona fótica, e étransportada na formaparticulada para águasmais profundas. Estenutriente vai sendoredissolvido e, no inver-no, nas regiões tempe-radas, o aumento dadensidade da água nasuperfície provoca amistura das águas su-perficiais (quebra da termoclina), pro-movendo a reintrodução de nutrientespara a zona fótica (Figura 6; Libes,1992). Porém, nesta época do ano, ocrescimento fitoplanctônico é limitadopela baixa quantidade de luz disponí-vel. Como a população de fitoplânctoné baixa, isto também irá limitar a po-pulação de zooplâncton. Quando a in-tensidade luminosa aumenta no inícioda primavera, a taxa de crescimentodo fitoplâncton é bastante rápida (cha-mada de floração), provocando tam-

bém o crescimento dapopulação de zooplânc-ton (consumidores). Du-rante o verão, a produti-vidade primária é bas-tante baixa, apesar da

abundância de luz, devido ao esgota-mento de nitrogênio (primeiro nutrien-te a ser esgotado). Na chegada do ou-

tono, a temperatura at-mosférica começa adeclinar e, com as tem-pestades, a termoclinaé parcialmente destruí-da. Assim, há uma pe-quena injeção de nutri-entes de volta para azona fótica, causandouma segunda floraçãodo fitoplâncton (porémmenos intensa), poisainda há luz suficiente.Com a entrada do in-

verno, o nível de luz cai drasticamen-te, levando a uma grande diminuiçãoda taxa de crescimento do fitoplâncton.

Em águas interiores, este fenôme-no também ocorre, mas com algumaspeculiaridades. Em lagos profundos oumesmo naqueles mais protegidos deventos, a estratificação térmica faz comque as águas do fundo, quase sempremantidas no escuro, também sejam re-novadas por convecção no início do ou-tono, quando as temperaturas mais bai-xas resfriam as camadas superioresdestes corpos aquáticos, conforme jádiscutido. A água mais fria (e mais den-sa) afunda, trazendo as águas do fun-do do lago agora ricas em nutrientesque foram exportados pelo sedimento,o qual está normalmente sob anoxia. E

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assim, o ciclo biológico de assimilaçãode carbono ocorre em todos os reser-vatórios da hidrosfera abertos para a at-mosfera, com grande quantidade de flu-xo de matéria nesta interface.

Neste exemplo, ilustrado na Figura6, podemos perceber claramente queo fenômeno físico de diminuição datemperatura levou a uma drástica mu-dança na composição química daságuas daquela região oceânica (dis-tribuição de nutrientes) que, por suavez, causou grande alteração no ciclobiológico. Vemos que não é possívelentender a composição química daágua do mar (ou dos sedimentos ma-rinhos) sem considerar os processosbiológicos. Já podemos entendercomo o fluxo de carbono orgânico(produzido biologicamente) para o fun-do do oceano pode controlar a con-centração de CO2 na atmosfera. A prin-cipal explicação para as baixas con-centrações de CO2 na atmosfera du-rante os períodos glaciais é, justamen-te, maior exportação de carbono parao sedimento.

A produtividade primária líquidaprodutividade primária líquidaprodutividade primária líquidaprodutividade primária líquidaprodutividade primária líquidarefere-se à diferença entre o carbonofixado pela fotossíntese e aquele emi-tido pela respiração. Hoje, estima-seque a produtividade primária líquidatotal (marinha e terrestre) éde 105 GtC (gigatonelada decarbono) por ano, sendo que46% se refere à produtivida-de oceânica (Field et al.,1998). Dos estimados 5,5 GtCemitidos para a atmosfera acada ano por meio da quei-ma de combustíveis fósseis,os oceanos são responsá-veis pela absorção de cercade 35% deste total. Porém,nos oceanos, a produtivida-de primária é muito variável.Visto que a costa oceânicarecebe grandes incrementosde nutrientes pelo transportede águas fluviais ricas em nu-trientes, e como estas águaspermanecem bem mistura-das o ano todo, nessa regiãohá uma elevada produtivida-de primária (Figura 7).

Em águas tropicais eequatoriais, a baixa produtivi-dade é praticamente uniforme

durante todo o ano (Andrews et al.,1996). Isto ocorre porque a estra-tificação térmica não é quebrada duran-te o ano, causando uma deficiência denutrientes permanente. Uma exceção aesta regra ocorre na região equatorialdo Pacífico, próximo à costa do Peru.Ali existe um fenômeno hidrodinâmico(ressurgência) que bombeia águas pro-fundas para a superfície, promovendoum enriquecimento nutritivo dessaságuas, que eleva a atividade biológica.À medida que a latitude aumenta, po-

demos observar um incremento na pro-dutividade primária devido à quebra sa-zonal da termoclina em regiões tempe-radas e à ausência total da termoclinanas regiões polares.

Fluxos na interface água-ar

A interface água-ar é uma regiãomuito dinâmica, onde a troca de ener-gia e de matéria ocorrem continuamen-te. Muito embora para todos nós a per-cepção do fluxo de energia nesta

Figura 6: Variações sazonais na concentração relativa de nutrientes, fitoplâncton e deconsumidores heterótrofos (bactérias, protozoários e zooplâncton) em águas oceânicastemperadas.

Figura 7: Distribuição da produtividade primária média nos oceanos em 1998, obtida pelo satéliteSeaWiFES. (fonte: NASA)

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interface seja algo muito natural (videa luz solar e a fotossíntese, por exem-plo), o fluxo de espécies gasosas temsido muito pouco estudado. Gasesbiogênicos, gerados ou consumidospor atividade biológica (respiração efotossíntese, por exemplo) como o CO2e O2, causam um desequilíbrio de con-centração na fase aquosa, fato esteque se reflete na trans-ferência de massa nes-ta interface.

De acordo com aLei de HenryLei de HenryLei de HenryLei de HenryLei de Henry, todo cor-po aquático tende aentrar em equilíbriocom a atmosfera exis-tente sobre ele, o queimplica em dizer que osgases presentes nafase gasosa irão se dis-solver na fase aquosa, sendo que aconcentração esperada na fase líqui-da é dada por:

CA = KH pA

onde CA é a concentração (atividade)da espécie A na fase líquida, KH é aconstante de Henry e pA é a pressãoparcial da espécie A. É intuitivo assu-mir que se um gás está sendo geradona fase líquida e esta vai se tornandosuper-saturada com respeito a este gás,o mesmo tende a fluir para a atmosfe-ra, num fluxo chamado evasivo (comrespeito ao corpo aquático). No entan-to, se num corpo iluminado a fotos-síntese consome muito do CO2 dissol-vido, a fase aquosa tende a ficar insa-turada com respeito a este gás, e é dese esperar que, para compensar estainsaturação, haja um fluxo invasivo dogás para a fase aquosa. De acordo coma primeira lei de difusão molecular delei de difusão molecular delei de difusão molecular delei de difusão molecular delei de difusão molecular deFickFickFickFickFick, o fluxo de massa na interfaceágua-ar é movido pela diferença deconcentração, de acordo com:

F = -K (Catm/KH – Caq.)

onde F é o fluxo de massa numa dadaárea e num período de tempo, o sinalmenos indica que o mesmo ocorre nosentido ar-água, K é a chamada cons-tante de transferência (função datemperarura, turbulência na interface,etc), Catm - a concentração da espécie

na atmosfera, Caq - a concentração daespécie na água e KH, a constante deHenry. A Tabela 3 mostra alguns resul-tados de fluxo de CO2 obtidos nos re-servatórios de três usinas hidrelétricasdo Estado de São Paulo. Estas medi-das são quase sempre feitas com oauxílio de câmaras colocadas sobre asuperfície da água, monitorando-se o

gás de interesse no in-terior da mesma, emintervalos de tempopré-estabelecidos.

É interessante ob-servar que, enquantoos reservatórios deBariri e Barra Bonita sãocorpos emissores dedióxido de carbono, oreservatório de Promis-são atua como um

absorvedor (sumidouro ou túmulo) deCO2. Esta diferença de comportamen-to quanto ao CO2 é fruto da atividadebiológica existente nos reservatórios,onde a predominância da respiraçãosobre a fotossíntese gera corpos aquá-ticos super-saturados com respeito aeste gás.

A fertilização dos oceanos por ferro

Com base na Figura 7, vemos quehá uma elevada produtividade primá-ria nas regiões polares, porém, desdeos anos 20 foi observado que, nessasregiões, há concentra-ção suficientementeelevada de nutrientespara manter uma pro-dutividade muito mai-or, ainda que levandoem consideração as li-mitações impostas pela luz e pelapressão dos consumidores. Já nosanos 30 foi levantada a hipótese deque a produtividade, abaixo do espe-

Tabela 3: Fluxos de CO2 medidos em reservatórios de usinas hidrelétricas no Estado deSão Paulo. O total de CO2 emitido foi estimado pelo produto do fluxo médio pela área darepresa.

Reservatório Fluxo Médio Total Emitido(mg CO2 m

-2 dia –1) (toneladas de CO2 dia-1)

Barra Bonita + 4.080 + 1265

Promissão – 1328 – 704

Bariri + 6.117 + 385

Adaptado de Furtado, 2001.

rado, poderia ser causada pela escas-sez de elementos traços ou compos-tos orgânicos. Mas, só no final da dé-cada de 80 (com o avanço da Quími-ca Analítica), é que foi levantada a hi-pótese de que o elemento ferro pode-ria ser o micronutriente limitante. Foientão estabelecida pelo cientista ame-ricano John H. Martin, a chamada “hi-hi-hi-hi-hi-pótese do ferropótese do ferropótese do ferropótese do ferropótese do ferro” (Boyd e Law, 2001).Em 1986 ele disse a célebre frase: “Dê-me meio cargueiro de ferro que eu tedarei uma nova era glacial”. A partirdesta data, vários experimentos in vitroe in situ foram idealizados para se tes-tar esta hipótese.

Os primeiros experimentos em lar-ga escala foram o IronEx I e IronEx II(abreviação de Iron Experiement), rea-lizados nas águas do Pacífico Equato-rial, onde foram introduzidas algumastoneladas de sulfato ferroso, acompa-nhando as respostas química e bioló-gica que se seguiram. Sete dias apósa introdução de ferro (IronEx II), a con-centração de CO2 na superfície daáguas decresceu de 530 µatm paraaproximadamente 420 µatm devido àatividade fotossintética, ou em outraspalavras, a adição de meia toneladade ferro resultou na retenção de 100toneladas de CO2 (Coale et al., 1996).

Em fevereiro de 1999 foi realizadoo experimento “SSSSSouthern OOOOOcean IIIIIronRERERERERElease EEEEExperiment” (SOIREESOIREESOIREESOIREESOIREE) naságuas próximas do continente Antárti-

co, cuja concentraçãoinicial de ferro era de0,08 nmol L-1 (Boyd eLaw, 2001). Neste ex-perimento, em umaárea de 50 km2 foramadicionadas 4 tonela-

das de FeSO4 (correspondente a 3,8nmol L-1 Fe na camada de mistura de65 m) e depois mais 1,5 toneladas no3o, 5o, e 7o dia do experimento. No 13o

Dos estimados 5,5 GtCemitidos para a

atmosfera a cada ano pormeio da queima de

combustíveis fósseis, osoceanos são

responsáveis pelaabsorção de cerca de

35% deste total.

“Dê-me meio cargueirode ferro que eu te dareiuma nova era glacial”.

John H. Martin

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dia, a biomassa fitoplanctônica aumen-tou 6 vezes, e houve uma importantealteração na distribuição da populaçãode diferentes espécies de fitoplânctonna região. Neste experimento, houvea remoção de 2000 toneladas de CO2

da atmosfera, sendo que depois demais de 40 dias da fertilização, abiomassa fitoplanctônica ainda era ele-vada. Poderíamos então dizer que or-ganismos microscópicos dos oceanospoderiam regular o sistema climáticodo nosso planeta?

A grande questão que ainda não foirespondida é: este carbono orgânicofixado durante a floração do fitoplânctonvai ser enterrado no fundo do oceano,ou vai apenas ser reciclado na colunad’água? Embora no início do experi-mento tenha sido observado que ocrescimento do fitoplâncton foi mais efi-ciente do que o crescimento do zoo-plâncton, havendo um desequilíbrio, emum tempo maior es-pera-se que o equilí-brio seja novamenteatingido, e todo ofitoplâncton produzidoseja consumido. Poreste motivo, alguns ci-entistas acreditamque, mesmo que hajaum aumento da produtividade primá-ria, haverá um aumento da pastagem(consumo) pelo zooplâncton na mes-ma proporção, apenas aumentando aquantidade de nutrientes reciclados,sem necessariamente aumentar a ex-

portação de carbono para o sedimen-to. Portanto, o efeito da fertilização porferro nos oceanos po-deria ser apenas tran-sitório, sem resultar naperda efetiva de CO2

da atmosfera. Mode-los matemáticos ela-borados a partir dosresultados observadosno SOIREE sugeremque, se o carbono in-corporado pelo fito-plâncton naquele ex-perimento permanecer na superfície dooceano, em cerca de 12 meses esteretornará na forma de CO2 para a at-mosfera.

Conclusões

Fica evidente que o nosso planetatem um estoque imenso de água, um

composto tão simplessob o ponto de vista quí-mico, mas muito impor-tante no controle de vári-os parâmetros que afe-tam diretamente a nossaqualidade de vida. Muitoembora a água doce sejaessencial para a manu-

tenção da nossa vida, seu estoque noplaneta é pequeno, e tem dado mos-tras de que embora seja um recursorenovável, não pode ser confundidocom um recurso inesgotável. O desca-so com a preservação da qualidade das

Nas águas próximas aocontinente Antártico, a

adição de 4 toneladas deferro levou à remoção de2000 toneladas de CO2

da atmosfera.

Impossível pensar numdesenvolvimento

harmonioso, em termosde sustentabilidade, sempensar na preservação ena exploração racionalde todos os recursos

hídricos no nossoplaneta.

águas superficiais faz com que a cadadia diminua o número de mananciais

que podem ser usadospara suprir a demandaimposta pela crescentepopulação, aumentandoos custos para torná-laadequada aos seus vá-rios usos.

Por outro lado, ooceano confina mais doque 97% da água daTerra, mas para os se-res humanos o fato des-

ta água não poder ser usada tal qualdevido à sua alta salinidade, faz comque este reservatório seja relegado aum segundo plano no tocante a suaconservação. No entanto, foi mostra-do que seu papel é fundamental namanutenção e no controle do climaplanetário, seja pelas correntes mari-nhas ou pelo aprisionamento do car-bono, além de ser o grande responsá-vel pelo estoque de biomassa que su-pre grande parte das necessidades dealimentos para a humanidade. Impos-sível pensar num desenvolvimento har-monioso, em termos de sustentabili-dade, sem pensar na preservação ena exploração racional de todos os re-cursos hídricos no nosso planeta.

Maria Lúcia A. M. Campos é professora Doutora doDepartamento de Química, Faculdade de FilosofiaCiências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade deSão Paulo, 14040-901, Ribeirão Preto, [email protected]. Wilson F. Jardim - Instituto deQuímica, UNICAMP. Caixa Postal 6154, 13084-971Campinas, SP.

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