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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Estudos da Linguagem DIRCEU FERNANDES LIRA DE SENA ASPECTOS SEMÂNTICOS E MORFOSSINTÁTICOS DA INCORPORAÇÃO NOMINAL CAMPINAS 2017

ASPECTOS SEMÂNTICOS E MORFOSSINTÁTICOS DA … · os alinhamentos morfossintáticos como possíveis variáveis que determinem uma maior ou menor ... the morphosyntactic alignments

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Instituto de Estudos da Linguagem

DIRCEU FERNANDES LIRA DE SENA

ASPECTOS SEMÂNTICOS E MORFOSSINTÁTICOS DA INCORPORAÇÃO NOMINAL

CAMPINAS

2017

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DIRCEU FERNANDES LIRA DE SENA

ASPECTOS SEMÂNTICOS E MORFOSSINTÁTICOS DA INCORPORAÇÃO NOMINAL

Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Estudos

da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas para

obtenção do título de Mestre em Linguística.

Orientador: Prof. Dr. Angel Humberto Corbera Mori

Este exemplar corresponde à versão

final da Dissertação defendida pelo

aluno Dirceu Fernandes Lira de Sena

e orientada pelo Prof. Dr. Angel

Humberto Corbera Mori.

CAMPINAS

2017

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BANCA EXAMINADORA

Angel Humberto Corbera Mori

Aquiles Tescari Neto

Cláudio André Cavalcanti Couto

IEL/UNICAMP

2017

Ata da defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA

– Sistema de Gestão Acadêmica.

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DEDICATÓRIA

A Heitor

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AGRADECIMENTOS

À CAPES, pela concessão da bolsa de Mestrado, possibilitando o desenvolvimento desta pesquisa.

Ao meu orientador, Prof. Dr. Angel Humberto Corbera Mori, pela compreensão, paciência,

disponibilidade e dicas bibliográficas preciosas.

Ao Prof. Dr. Cláudio André Cavalcanti Couto, pela correção atenta desta dissertação e pelas dicas

expostas durante a defesa deste trabalho.

Ao Prof. Dr. Aquiles Tescari Neto, pelas valiosas dicas teóricas tanto na qualificação quanto na defesa

final. Agradeço também a leitura atenta do texto e as observações minuciosas que foram feitas.

À Profª Drª Zoraide dos Anjos Vieira, pelas observações feitas durante a qualificação.

À Ticiana, pelo amor e amizade que estamos cultivando há tantos anos.

À Cristina Blink, por ter despertado em mim o interesse pelas línguas estrangeiras e por ter me

ajudado financeira e intelectualmente a entrar na Unicamp.

Aos inúmeros tutores e professores que tenho tido desde meus primeiros anos de vida, pela dedicação

e entusiasmo em orientar meus estudos nas diversas áreas do conhecimento.

Aos meus amigos, pelas palavras e ações de conforto nos momentos de dificuldade.

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RESUMO

O principal objetivo deste trabalho é trazer para a literatura escrita em português uma revisão

bibliográfica dos principais textos que tratam da conceituação e da explicação de um fenômeno

conhecido da literatura como “incorporação nominal”. O trabalho é dividido em duas partes. Na

primeira parte, abordaremos as questões morfológicas, sintáticas e semânticas desse fenômeno. Nessa

parte, explicaremos com detalhes as principais teses explicativas que envolvem esse fenômeno: a

hipótese lexicalista e a hipótese sintática. Também traremos com detalhes a argumentação e a

classificação propostas por trabalhos como Mithun (1984), Baker (1988) e Farkas & Swart (2003).

Na segunda parte, o texto pretende dar atenção a algumas questões semânticas que envolvem a

incorporabilidade de certos substantivos em detrimento de outros. Nessa parte, usaremos a tipologia

proposta por Mithun (1984) como ponto de partida, embora o foco seja a semântica do nome

incorporado, com o objetivo de apontar padrões tipológicos que mostram que há uma assimetria

lexical quanto à possibilidade de um nome ser incorporado ou não. Além disso, pretende-se colocar

os alinhamentos morfossintáticos como possíveis variáveis que determinem uma maior ou menor

frequência dos raros casos de incorporação nominal de sujeito.

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ABSTRACT

The main objective of this work is to bring to linguistic literature in Portuguese a

bibliographical review of the main texts that deal with the conceptualization and explanation of a

phenomenon known in linguistic literature as "noun incorporation". This dissertation falls into two

parts. In the first section, we will address the morphological, syntactic and semantic issues regarding

this phenomenon. In this first section, we will explain in detail the main explanatory theses involving

this phenomenon: the lexicalist hypothesis and the syntactic hypothesis. We will also present the

argumentation and classification proposed by works such as Mithun (1984), Baker (1988) and Farkas

& Swart (2003). In the second section, we will focus on some semantic questions involving

incorporability of certain nouns and not of others. In this second section, we will use the typology

proposed by Mithun (1984) as a starting point, although the focus is on the semantics of the

incorporated noun, thereby aiming to point out typological patterns that show that there is a lexical

asymmetry as to the possibility of a name being incorporated or not. In addition, we intend to place

the morphosyntactic alignments as possible variables that might determine a greater or less frequency

of the rare cases of noun incorporation of subject.

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Lista de Abreviaturas

1 primeira pessoa singular

2 segunda pessoa singular

3 terceira pessoa singular

1S/2O primeira pessoa sujeito/segunda pessoa objeto

3SS concordância de terceira pessoa sujeito

ABS absolutivo

AC activo

APPL aplicativo

ASP marcador geral de aspecto

DUR duração

FUT futuro

IN inactivo

IND modo indicativo

IPRF aspecto imperfectivo

M gênero masculino

N gênero neutro

NEG negação

NOM nominalizador

NP sintama nominal

PASS passiva

PAST passado

R2 indicador de determinante não-contíguo

REDPL reduplicação indicando plural

RFL reflexivo

S marcador clítico de sujeito

SUF sufixo nominal inflexional

SP prefixo de concordância de sujeito

Obs.: Não foram citadas pelos autores as abreviaturas dos seguintes exemplos citados

nesta dissertação: (1) e (3)-(15) (Mithun, 1984); (36)-(38) (Axelrod, 1990); (39)-(41) e

(43-44) (Haugen, 2004).

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Sumário

Introdução .......................................................................................................................................... 11

Metodologia ....................................................................................................................................... 14

1. A Hipótese Lexicalista e a Classificação de Mithun (1984) .......................................................... 17

1.1. Tipos de IN por Mithun (1984) ............................................................................................... 17

1.2. Evidências de IN como um processo de lexicalização ........................................................... 20

1.3. Tipo IV de IN: um processo sintático ou morfológico? .......................................................... 23

1.4. IN ao longo do tempo.............................................................................................................. 25

1.5. Conclusões .............................................................................................................................. 31

2. As Hipóteses Sintáticas .................................................................................................................. 34

2.1. A hipótese sintática de Baker (1988) ...................................................................................... 34

2.2. Incorporação e os processos de mudança na função gramatical ............................................. 35

2.3. O Princípio do Espelho ........................................................................................................... 38

2.4. Composições de processos de mudança na função gramatical ............................................... 40

2.5. A estrutura profunda ............................................................................................................... 41

2.6. A estrutura superficial ............................................................................................................. 43

2.7. Movimento de um núcleo ....................................................................................................... 44

2.8. A incorporação nominal .......................................................................................................... 45

2.9. Poder explicativo do modelo proposto por Baker (1988) ....................................................... 47

2.10. A hipótese de pseudo-incorporação de Massam (2001) ....................................................... 48

3. O conceito de “palavra” e suas implicações para o conceito de “incorporação nominal” ............. 50

4. Incorporação semântica e incorporação nominal de partes do corpo ............................................ 55

4.1. Incorporação semântica........................................................................................................... 55

4.2. Partes do corpo humano e ascensão do possuidor .................................................................. 58

4.3. Incorporação nominal como um processo de desfocalização de zonas ativas ........................ 62

4.4. Quais termos de partes do corpo podem ser incorporados? .................................................... 63

5. O alinhamento morfossintático e a incorporação nominal de sujeito ............................................ 66

6. Conclusões ..................................................................................................................................... 73

Referências Bibliográficas ................................................................................................................. 74

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Introdução

Dentro da literatura linguística, a discussão que envolve o fenômeno conhecido como

“incorporação nominal” remonta aos trabalhos de Kroeber (1909) e de Sapir (1911). Se formos mais

a fundo dentro da história dos conceitos, pode-se afirmar que autores anteriores já tratavam do tema.

Wilhelm von Humboldt (1767-1835), linguista alemão famoso por suas obras de linguística e de

educação, irmão do famoso geógrafo e naturalista Alexander von Humboldt, já havia empregado o

termo “Einverleibung”, que pode ser encontrado em Humboldt (1936), obra editada um ano após sua

morte.

Nessa obra, Humboldt (1836) apresenta uma tipologia em que ele divide as línguas entre seus

processos predominantes no que diz respeito à unidade da palavra (Worteinheit) e no que diz respeito

à unidade da oração (Satzeinheit). Quanto à unidade da palavra, o autor coloca a flexão (Flexion) e o

isolamento (Isolierung) como os dois extremos quanto à unidade da palavra. Em uma flexão, temos

uma única palavra, tipicamente formada por uma raiz e por morfemas que se juntam à raiz com a qual

formam uma única unidade de palavra. No processo de isolamento, não há nenhuma junção de raízes

e morfemas, de modo que a distinção entre palavra e morfema é fraca e teríamos apenas palavras,

teoricamente. O processo de aglutinação (Agglutination) seria um processo intermediário quanto à

unidade da palavra.

Dentro dessa tipologia proposta por Humboldt (1836), teríamos as línguas flexionais, isolantes

e aglutinantes. Um exemplo de língua flexional é o Português, em que o morfema -o em “canto” tem

uma unidade com a raiz verbal cant-, formando uma única palavra. O morfema carrega várias

informações gramaticais, tais como primeira pessoa, singular, presente, modo indicativo, primeira

conjução. Um exemplo de língua isolante é o Vietnamita, em que o morfema aparece como palavra

independente, sem formar nenhuma unidade com a raiz. Por exemplo, em tôi chúng ‘nós’ [lit. ‘eu

plural’], o morfema de plural chúng aparece como palavra independente. Um exemplo de língua

aglutinante é o Turco, em que um radical carrega vários morfemas com cada morfema carregando

tipicamente uma única informação gramatical. Por exemplo, em da-kar-tza-t ‘eu os trago’, o morfema

da- indica tempo presente, kar- é a raiz do verbo ekarri ‘trazer’, o morfema -tza indica plural e o

morfema -t indica sujeito de primeira pessoa.

No que diz respeito à unidade da oração, o autor encontra três processos comuns entre as

línguas naturais. Analogamente, em um extremo, temos o “método sintático” (syntaktische

Verfahren), que seria ligado ao processo de flexão e com o qual a oração é construída a partir dos

pedaços já preparados segundo sua função na oração. No outro extremo, temos palavras

completamente isoladas, de modo que a unidade da oração é dada por “meios silenciosos” (lautlose

Mittel), como a posição (Stellung). Entre esses dois extremos, teríamos o processo chamado pelo

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autor literalmente de incorporação (Einverleibung), processo este em que a língua trata a oração como

uma única palavra. Esse processo foi chamado pelo autor de Einverleibungsmethode, segundo o qual

o verbo da oração e seu complemento seriam tratados como uma única palavra (TRABANT, 1986).

Em termos mais recentes, o que usualmente se chama de incorporação nominal seria um

subtipo do que Humboldt chamou de Einveileibung, já que este autor do século XIX não distinguia

se a formação do “verbo complexo”, palavra que conteria as informações de uma oração, seria

realizada por meio de morfemas ou por meio de raízes. Na literatura mais recente, quando este verbo

complexo, que também contém seu complemento, é formado por apenas uma raiz e diversos

morfemas, diz-se que se trata de um processo de polissíntese. Quando o verbo complexo contém,

além da raiz verbal, uma ou mais raízes nominais que usualmente são realizadas como complementos

verbais e que são palavras independentes em línguas indo-europeias, diz-se que se trata de um

processo de incorporação nominal (COMRIE, 1989:46).

Comrie (1989:45-46) traz alguns exemplos para ilustrar a diferença entre línguas

incorporantes e línguas polissintéticas. Um exemplo de língua incorporante é Chukchi. Nessa língua,

dizemos tɘ-meyŋɘ-levtɘ-pɘɣt-ɘrkɘn ‘Eu tenho uma dor de cabeça feroz’. Esta palavra-sentença

contém três morfemas lexicais (meyŋɘ- ‘grande’, levt- ‘cabeça’ e pɘɣt- ‘dor’), além dos morfemas

gramaticais t- (primeira pessoa do singular sujeito) e -rkɘn (aspecto imperfectivo). Um exemplo de

língua polissintética é o Esquimó. Nessa língua, dizemos angya-ghlla-ng-yug-tuq ‘ele quer adquirir

um barco grande’, literalmente ‘barco-aumentativo-adquirir-desiderativo-3singular. Segundo o autor,

no Esquimó, ao contrário do Chukchi, uma palavra contém apenas um morfema lexical, todos os

outros são gramaticais, de modo que Esquimó é uma língua polissintética, mas não incorporante.

Assim, incorporação é um caso particular de polissíntese, em que morfemas lexicais podem ser

combinados em um único complexo polissintético.

Na literatura mais recente, o tema continua sendo debatido em trabalhos de linguistas das mais

diversas formações e linhas teóricas, entre os quais podemos citar os trabalhos de Mithun (1984),

Baker (1988), Velázquez-Castillo (1995), Mithun e Corbett (1999), Muro (2009), etc. Por exemplo,

desde os trabalhos de Mithun (1984) e de Baker (1988), há um intenso debate sobre a natureza deste

fenômeno encontrado em diversas línguas naturais. Desde então, diversos autores trouxeram suas

visões e suas explicações formalizadas do que seria este fenômeno.

O foco desta dissertação é trazer uma revisão do estudo deste processo linguístico, com o

detalhamento das principais hipóteses explicativas. Após a apresentação da hipótese lexicalista e da

hipótese sintática, o texto se voltará para uma discussão paralela que afeta diretamente o debate que

envolve o fenômeno da incorporação nominal: trata-se da problemática em torno do conceito de

palavra e suas implicações para a hipótese lexicalista e a hipótese sintática. Após essa discussão em

torno do conceito de palavra, trataremos o conceito de “incorporação semântica” e faremos uma

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discussão sobre os casos de incorporação nominal que vem acompanhada de outro processo

conhecido como ascensão do possuidor. Após essa apresentação conceitual, com as diversas escolas

e alguns problemas conceituais, o trabalho se voltará para os casos de incorporação nominal de sujeito

e uma possível relação entre o alinhamento morfossintático da língua e a produtividade desses casos.

Desde os trabalhos do início do século XX, é sabido que, mesmo nas línguas em que este

fenômeno é extremamente produtivo, nem todas as construções estruturalmente idênticas às com

incorporação nominal são gramaticais nas línguas em que se encontra este processo. A

agramaticalidade de algumas sentenças com incorporação nominal pode ser explicada se

considerarmos os aspectos semânticos que envolvem o processo de incorporação nominal.

Em algumas línguas, quando envolve a incorporação de uma palavra que designa uma parte

do corpo humano, observa-se que ela não pode se referir a qualquer parte do corpo humano. Além

disso, observa-se que o “verbo complexo”, ao se unir com o nome incorporado, geralmente expressa

uma unidade semântica e o referente do nome incorporado é genérico. Assim, no estudo do processo

de incorporação nominal, há de se levar em consideração não apenas seus aspectos sintáticos e

morfológicos, mas também os semânticos.

O debate teórico sobre a possibilidade de se separar o campo da Morfologia do campo da

Sintaxe traz sérias implicações para as definições sintáticas e para as definições morfológicas da

incorporação nominal. Talvez uma solução seja justamente perscrutar o campo semântico e analisar

o comportamento da incorporação nominal no que diz respeito a algumas variáveis semânticas, para

quem sabe chegarmos a uma definição de incorporação nominal que seja válida em todas as línguas

naturais, independentemente desta discussão sobre o que é uma “palavra”.

Na seção sobre os casos de incorporação nominal de sujeito, fizemos uma pesquisa preliminar

na literatura para verificar se há alguma influência do alinhamento morfossintático sobre a

possibilidade de encontrarmos esses casos específicos de incorporação nominal de sujeito. Mais uma

vez, além dos aspectos morfológicos e dos aspectos sintáticos, tentaremos trazer algumas questões

semânticas que possam se relacionar com o tema em questão.

A partir deste momento, IN designa “incorporação nominal”, sem nenhuma pressuposição

teórica, exceto se expresso o contrário, e NI designa “nome incorporado”, também sem nenhuma

predefinição teórica do que significa ser um nome incorporado, a não ser que esteja expresso o

contrário.

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Metodologia

Toda a pesquisa foi feita com base na literatura publicada que estuda o processo linguístico

conhecido como incorporação nominal. Como o foco desta pesquisa foi trazer uma revisão

bibliográfica do estudo deste fenômeno, a pesquisa foi sempre feita em cima dos artigos, dissertações

e teses publicadas nas últimas décadas. Os exemplos foram retirados dessas publicações. Quanto aos

exemplos citados nesta dissertação, é importante notar que nem sempre os autores mostram como

seria a versão da sentença dada sem IN. Este detalhe é importante, pois tem implicações para a

discussão em torno da natureza do processo de IN, se morfológica ou sintática. Se a língua não tem a

versão sem IN, esse fato poderia contar a favor da hipótese sintática, pois seria mais uma evidência

de que se trata de um movimento sintático, e não um processo de formação de palavra.

Também quanto aos exemplos trazidos da literatura, é importante notar que nem sempre os

autores trouxeram as glosas. Os exemplos trazidos nesta dissertação estão transcritos extamente como

o foram pelos autores citados. Mesmo quando os autores trazem glosas de seus exemplos, nem sempre

eles trouxeram uma lista das abreviaturas.

No que diz respeito à seção que trata dos casos de incorporação nominal de sujeito e uma

possível relação entre o alinhamento morfossintático da língua e a produtividade desses casos, em

uma fase inicial da pesquisa, foram analisados os casos de IN em línguas descritas na literatura como

ergativo-absolutivas, com especial atenção para os casos de IN de sujeito. O objetivo por trás desta

pesquisa foi verificar se haveria alguma correlação estatística entre o alinhamento morfossintático e

o fato de a língua apresentar IN de sujeito de uma forma especialmente produtiva. Neste trabalho,

não se distinguiu se o sujeito incorporado desempenhava um papel semântico de paciente, de agente,

de experienciador, etc. Todos os casos de IN de sujeito foram analisados como se fizessem parte de

um mesmo processo.

Como os trabalhos que contêm os exemplos de IN não tratavam necessariamente do

alinhamento morfossintático das línguas em questão, as pesquisas sobre o alinhamento

morfossintático das línguas foram feitas em outras fontes bibliográficas. Em alguns casos, observa-

se que não há um consenso entre os linguistas sobre qual alinhamento morfossintático a língua

apresenta. O tema do alinhamento morfossintático é muito controverso e nem sempre sabemos

exatamente em que sentido o autor está usando o termo “alinhamento morfossintático”. Muito da

controversa entre os autores pode estar relacionada ao fato de o alinhamento poder surgir em diversos

âmbitos da língua, como na marcação de caso, na marcação de pessoa no verbo, na ordem em relação

ao verbo, etc.

Neste trabalho, foi entendido como ergatividade o alinhamento morfológico e/ou sintático do

argumento S (sujeito de verbo intransitivo) com o argumento O (objeto de verbos transitivos), em

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oposição ao argumento A (sujeito de verbo transitivo), como entendido em Dixon (1994:40). Esse

alinhamento pode ocorrer em diversas situações. Como os alinhamentos podem surgir em diversos

âmbitos da língua, escolhemos alguns dos principais encontrados na literatura, assim foram

considerados como padrões que podem distinguir um alinhamento os seguintes casos: 1) marcação

de caso; 2) marcação de pessoa no verbo; 3) ordem em relação ao verbo. Esses padrões são

semelhantes aos padrões considerados em obras como a de Gildea e Queixalós (2010).

Os critérios utilizados neste trabalho podem levar a certas contradições conceituais, como

aponta o trabalho de Siewierska (2003:339-344). Embora essa seja uma situação rara, é o que

acontece na língua Chorti (Maia), segundo o relato da linguista. Nessa língua da família Maia,

segundo a autora, há concordância de pessoa com S, A e P. No aspecto perfectivo, o alinhamento é

ergativo tanto em termos de forma fonológica quanto em relação à posição dos marcadores de pessoa

(as marcas tanto para S quanto para P são fonologicamente idênticas e são sufixadas à raiz verbal,

enquanto que os marcadores para A são fonologicamente distintos e são prefixos). Contudo, no

aspecto imperfectivo, os critérios fonológicos e posicionais para determinar o alinhamento não

convergem em direção a um único alinhamento. As formas fonológicas para S, A e P são todas

distintas entre si (portanto, pelo critério fonológico, a língua seria classificada como tripartite), mas,

enquanto as marcas de S e A são prefixos, as marcas de P são sufixos (originando um sistema

acusativo, segundo os critérios de posição em relação à raiz verbal).

Para as regiões do mundo em que há muitas línguas ergativas ou com ergatividade cindida,

foi mais fácil encontrar informações sobre o alinhamento morfossintático das línguas. Assim,

bibliografias como Derbyshire (1987) e Mithun (2000) ajudaram na identificação dos alinhamentos

morfossintáticos das línguas da Amazônia e do Noroeste dos EUA. Para as línguas amazônicas, foram

utilizados os trabalhos de Gildea e Queixalós (2010) e Campbell (1997). Durante essa pesquisa,

também foram encontradas línguas que eram conhecidas há muito tempo como ergativas, como o

Groenlandês (DIXON, 1994:5), mas que os casos de junção “nome-verbo” não são propriamente

casos de IN, pois os ditos “verbos” que ocorrem com alguns nomes não são verbos independentes na

língua e devem ser tratados como afixos verbais, segundo Gerdts (1998, tópico 4.3).

Dentre as línguas consultadas, as que apresentam alguma ergatividade (o que inclui as línguas

ergativas cindidas) são as seguintes: Cavineña (Tacanan), Chukoto (Chukotko-Kamchatkana),

Hixkaryana (Karib), Katukina-Kanamari (Katukina), Koryak (Chukotko-Kamchatkana), Maia

Yucateco (Maia), Nadëb (Makú), Paumari (Arauana), Samoano (Austonésia), Tapirapé (Tupi-

Guarani), Tonga (Austronésia), Waiwai (Karib), Yanomami dos Xamatauteri (Yanomami).

Para os objetivos deste trabalho, foram consideradas línguas ergativo-absolutivas qualquer

língua que apresentasse alguma ergatividade. Nesse sentido, os dados preliminares não distinguiram

línguas ergativos-absolutivas de línguas activo-stativas, já que por definição uma língua activo-stativa

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apresentará sempre alguma ergatividade, já que para alguns verbos intransitivos a língua tratará o

argumento (S) como um (P).

Em uma primeira etapa da pesquisa, foram reunidos em um único banco de dados exemplos

de todos os tipos de IN, estes tipos divididos segundo a tipologia proposta por Mithun (1984). Na

segunda etapa da pesquisa, foram observados apenas os casos de IN de sujeito, especialmente os

casos envolvendo línguas ergativo-absolutivas.

Para cada exemplo de IN colhido, foram pesquisadas as seguintes informações: língua, família,

localização, alinhamento morfossintático, tipo de IN segundo tipologia de Mithun (1984), função

semântica do nome incorporado, o nome incorporado, o nome independente, a sentença com IN e a

sentença sem IN. Nem sempre os autores apresentam a sentença sem IN, seja por não ser gramatical

a forma sem incorporação, seja simplesmente por não ter sido apresentada pelo autor.

Não podemos deixar de levar em conta que o próprio conceito de “língua ergativo-absolutiva”

ou “língua nominativo-acusativa” é relativamente problemático, tendo em vista que a língua pode

apresentar ergatividade quanto ao sistema de casos, mas não quanto à ordem dos constituintes. Como

afirmado acima, o trabalho de Siewierska (2003) aponta para algumas destas contradições. Langacker

(2008:373-378) também afirma que estes conceitos são controversos e que estender os conceitos de

ergativo/absolutivo, nominativo/acusativo, que são originalmente conceitos para os sistemas de casos,

e afirmar que uma língua é acusativa ou ergativa não é muito informativo, visto que uma língua como

um todo não exibe uma organização nominativa/acusativa ou ergativa/absolutiva, no máximo pode

haver uma predominância de um ou de outro padrão.

O objetivo dessa primeira pesquisa foi tentar encontrar padrões no funcionamento da IN em

línguas do alinhamento ergativo-absolutivo, em particular padrões relacionados aos casos de IN de

sujeito. Para isso, foi reunida algumas dezenas de dados disponíveis na literatura, sobretudo dados

provenientes de línguas de diferentes famílias e de diferentes localidades, para podermos verificar se

o alinhamento morfossintático pode influenciar de alguma maneira na produtividade da IN de sujeito.

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1. A Hipótese Lexicalista e a Classificação de Mithun (1984)

1.1. Tipos de IN por Mithun (1984)

Segundo a hipótese conhecida como “hipótese lexicalista”, a IN é apenas um tipo de

composição de palavra, em que um verbo e um nome formam um verbo complexo com sua própria

unidade semântica e tratado como uma única palavra segundo os padrões morfológicos e fonológicos

de palavra de cada língua. Segundo esta hipótese, a oração com IN não é derivada de movimentos

sintáticos aplicados à oração que seria sua contraparte analítica, em que o nome não está incorporado.

A IN seria apenas um tipo de composição de palavra em que, ao invés dos típicos dois ou mais nomes

ou nomes junto a morfemas ou a clíticos, os elementos compostos seriam um nome e um verbo. Ao

contrário desta interpretação, há a explicação proposta por Baker (1988), que interpreta o fenômeno

da IN como um fenômeno estritamente sintático. Para mais detalhes, ver seção “A Hipótese Sintática

de Baker (1988)”.

Entre os principais trabalhos que interpretam o fenômeno da IN como um fenômeno lexical,

podemos citar o de Mithun (1984), o de Di Sciullo e Williams (1987) e o de Rosen (1989). Segundo

Mithun (1984), embora o fenômeno seja aparentemente sintático e esse processo de composição de

palavras seja talvez o mais sintático de todos os processos morfológicos, a IN é um mecanismo

morfológico que produz itens lexicais, e não sentenças (MITHUN, 1984: 847).

Entre os três trabalhos citados acima, o de Mithun (1984) destaca-se por ter proposto uma

classificação tipológica do fenômeno entre diversas línguas do mundo, segundo uma hierarquia

implicacional encontrada pela autora em que a existência de um tipo de IN pressupõe a existência de

outros. Segundo a autora, podemos observar 4 principais tipos de IN entre as línguas naturais. Nesta

seção, traremos a classificação proposta por esta autora.

Já no início de seu artigo, Mithun (1984:847) afirma que a IN é um processo morfológico

muito próximo dos processos sintáticos. Contudo, um exame deste processo em línguas de diversas

regiões e geneticamente divergentes indica que, onde a sintaxe e a morfologia divergem, a IN é um

sólido mecanismo morfológico que produz itens lexicais, e não sentenças.

Após uma análise de casos de IN em mais de 100 línguas de diferentes famílias, a autora

observou quatro funções distintas, porém relacionadas, que a IN pode exercer em uma língua. Além

disso, a autora mostrou que essas funções são implicacionais, ou seja, se uma língua apresenta uma

determinada função (a do Tipo IV, por exemplo), ela necessariamente apresentaria as demais funções

anteriores (as dos Tipos I, II e III).

Esta hierarquia implicacional sugere um caminho ao longo do qual a IN se desenvolve

historicamente. As diferenças em sua produtividade entre as línguas mostram, para a autora, que este

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desenvolvimento pode ser detido em qualquer ponto. Uma vez que o processo de IN começa a decair

em uma língua, ele não necessariamente está destinado a desaparecer completamente em uma língua.

Em algumas línguas, relíquias de antigos processos de IN se transformaram em um sistema produtivo

de afixação, em que os afixos podem ser antigos nomes incorporados, antigos verbos incorporantes

ou ambos. Ao final desta seção, veremos que o trabalho de Fleck (2006) em línguas da família Pano

aborda exatamente a possibilidade de parte do atual sistema de afixação em Matsés ter sido derivada

de antigos processos de IN que não são mais produtivos atualmente.

No Tipo I, denominado pela autora como lexical compounding (composição lexical), a

composição nome-verbo é geralmente utilizada para nomear atividades habituais e o verbo complexo

derivado perde uma valência. Abaixo temos um exemplo de IN de Tipo I em Tupinambá, retirado de

Mithun (1984: 856). Em (1), o nome pɨsá ‘rede de pesca’ é incorporado ao verbo eytɨk ‘lançar/jogar’,

formando uma única palavra a-pɨsá-eytɨk ‘eu lanço a rede de pesca’. A autora não apresenta a versão

da sentença abaixo sem incorporação.

(1)1 a-pɨsá-eytɨk

‘I-fishnet-throw’

‘I net-throw’

No Tipo II, chamado de the manipulation of case (manipulação de caso), a IN não diminui a

valência verbal, pois um argumento oblíquo ocupa o espaço deixado pelo NI. Geralmente, o nome

possuído é inalienável e geralmente se refere a uma parte do corpo humano (MITHUN, 1984:858).

Nesse tipo de IN, o verbo não diminui de valência, pois o adjunto passa a ocupar a posição de objeto

deixada pelo nome incorporado. Essa ascensão do adjunto à posição de objeto é conhecida na

literatura como “ascensão do possuidor”.

Abaixo, temos um exemplo de IN em Guarani Paraguaio que seria classificado como de Tipo

II na tipologia proposta por Mithun (1984). O exemplo foi retirado da obra de Velázquez-Castillo

(1995:687). Em (2), o nome hova ‘rosto/face’ é incorporado ao verbo hei ‘lavar’, enquanto o

possuidor do rosto, pe-mitã ‘aquela criança’, passa a ser o objeto direto do verbo. A segunda sentença

de (2) é a versão sem IN.

1 Tradução: a-pɨsá-eytɨk

‘Eu-rede.de.pesca-lançar

‘Eu rede-lanço’

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(2)2 a. a-hova-hei-ta pe-mitã

‘1AC-face-wash-FUT that-child’

‘I’ll wash that child’s face’

lit. ‘I’ll face-wash the child’

b. a-johei-ta pe-mitã rova

1AC-wash-FUT that-child face

‘I’ll wash that child’s face’

No Tipo III, denominado the manipulation of discourse structure (manipulação da estrutura

discursiva), a IN é utilizada para fazer referência a um termo já conhecido, funcionando de modo

análogo ao sistema de pronomes das línguas indo-europeias. Geralmente, as línguas em que ocorre

esse tipo de IN são polissintéticas (MITHUN, 1984:859). Segundo Muro (2009:178), esse tipo de IN

remediaria a carência de um sistema de pronomes desenvolvido em línguas polissintéticas. Apesar de

esse tipo de IN ser altamente produtivo, Mithun (1984:862-863) observa que sua produtividade é

governada tanto por acidentes lexicais – há nomes que são incorporáveis, há outros que jamais o são,

há verbos mais incorporantes que outros – como por questões pragmáticas – por exemplo, a

animacidade geralmente afeta a incorporabilidade 3 dos nomes. Além disso os falantes estão

conscientes de quando se está criando uma nova palavra (MITHUN, 1984:863-864).

Mithun (1984:864) afirma que, em qualquer língua em que se encontre este Tipo III de IN,

algumas combinações foram criadas porque os falantes precisaram dessas combinações, enquanto

outras combinações ainda não foram criadas, mas podem ser a qualquer momento, e outras

combinações nunca serão criadas. Algumas raízes nominais podem ser facilmente incorporadas,

enquanto outras nunca o são. Algumas raízes verbais são altamente incorporantes, enquanto outras

não.

Abaixo temos um exemplo de diálogo em Huahtla Nahuatl em que ocorre o Tipo III de IN,

retirado de Mithun (1984:860-861). Em (3), quando o falante A se refere ao nome nakatl ‘carne’ pela

primeira vez no diálogo, o nome aparece como palavra independente. Quando o falante B retoma o

mesmo nome já citado anteriormente no diálogo, nakatl ‘carne’ aparece incorporado ao verbo kwa

‘comer’. Com este exemplo, observa-se claramente que o Tipo III de IN desempenha um papel

semelhante ao dos pronomes anafóricos em línguas indo-europeias.

2 Tradução: a. a-hova-hei-ta pe-mitã

‘1AC-rosto-lavar- FUT aquela-criança’

‘Eu lavarei o rosto daquela criança’

lit. ‘Eu rosto-lavarei a criança’

b. a-johei-ta pe-mitã rova

1AC-lavar-FUT aquela-criança rosto

‘Eu lavarei o rosto daquela criança’

3 O termo incorporabilidade se refere à condição de um nome poder ser incorporado, mas que não necessariamente aparece

sempre incorporado na língua.

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(3)4 A: askeman ti-'-kwa nakatl

‘never you-it-eat meat’

‘you never eat meat’

B: na' ipanima ni-naka-kwa

‘I always I-meat-eat’

‘I eat it (meat) all the time’

No Tipo IV, chamado de classificatory noun incorporation (incorporação nominal

classificatória), a IN permite a incorporação de um substantivo genérico, mas o verbo complexo não

reduz sua valência e esse substantivo genérico é “duplicado” na oração por um substantivo mais

específico que não se encontra incorporado. Visto que os substantivos incorporados são genéricos,

frequentemente surge na língua um “sistema classificatório” (MITHUN, 1984:863).

Abaixo temos um exemplo de Tipo IV de IN na língua Gunwinygu. O exemplo foi retirado

de Mihtun (1984:867). Em (4), o nome dulg ‘árvore’ é incorporado ao verbo naŋ ‘ver’, enquanto o

nome mangaralaljmayn ‘castanha de caju’ aparece como nome independente. Observa-se claramente

que o verbo não reduz sua valência e que há uma espécie de duplicação do objeto direto. A duplicação

segue o padrão geral encontrado nestes tipos de exemplo: o nome genérico é incorporado (no exemplo,

dulg ‘árvore’) e o nome específico (no exemplo, mangaralaljmayn ‘castanha de caju’) aparece como

nome independente.

(4)5 bene-dulg-naŋ mangaralaljmayn

‘they.two-tree-saw cashew.nut’

‘They saw a cashew tree’

1.2. Evidências de IN como um processo de lexicalização

Mithun (1984) defende em seu artigo que o processo de IN é essencialmente um processo

lexical, ou seja, um processo de formação de palavra. A IN seria apenas mais um tipo de formação

verbal, em que há uma raiz nominal incorporada ao verbo, formando-se um verbo complexo que teria

status de palavra em diversas línguas, sofrendo inclusive todos os processos fonológicos tipicamente

internos à palavra, segundo os próprios padrões da língua em questão quanto ao que é considerado

4 Tradução: A: askeman ti-'-kwa nakatl

‘nunca você-isto-comer carne’

‘você nunca come carne’

B: na' ipanima ni-naka-kwa

‘Eu sempre eu-carne-comer

‘Eu a (carne) como o tempo todo.’

5 Tradução: bene-dulg-naŋ mangaralaljmayn

‘eles.dois-árvore-viram castanha.de.caju’

‘Eles viram um pé de caju’

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palavra.

Ao introduzir o Tipo I de IN dentro de sua proposta tipológica, Mithun (1984:848) explica

como se comporta uma composição típica de palavras. No caso das formações de nomes, uma língua

costuma atribuir uma palavra apenas para atividades, entidades ou qualidades que sejam dignas de

receberem um léxico só para si. Dessa maneira, exemplifica a autora, “bus money” (dinheiro de ônibus)

ou “lunch money” (dinheiro de almoço) seriam considerados mais “name-worthy” (digno de ser

nomeado/lexicalizado) do que “sock money” (dinheiro de meia).

Analogamente, na formação de um verbo, a língua lexicaliza apenas determinadas ações e

atividades, naturalmente, as mais proeminentes dentro de uma determinada cultura. Segundo a autora,

a composição de palavras tem um status lexical que suas contrapartes sintáticas não têm. Mithun

(1984:848) exemplifica esse status lexical de algumas composições com algumas sentenças em inglês.

Por exemplo, se perguntam onde está determinada pessoa, pode-se responder em inglês: “He is out

berry-picking” (lit. “Ele está lá fora morango-colhendo”) ou “He is off mountain-climbing” (lit. “Ele

está montanha-subindo”). Contudo, não se pode responder “He is out ladder-climbing” (lit. “Ele está

escada-subindo”), teríamos que usar a contraparte sintática “He is out climbing a ladder” (“Ele está

lá foram subindo uma escada”). A razão é que “ladder-climbing” não é uma atividade

institucionalizada em inglês, como o são “berry-picking” e “mountain-climbing”, de modo que as

duas últimas são lexicalizadas em inglês, enquanto a primeira não tem um status lexical em inglês.

Se entendemos a IN como de fato um processo de formação de palavras, resta fácil entender

por que há uma assimetria na escolha dos NIs. Como toda composição de palavra, a IN só ocorreria

na formação de alguns verbos com alguns nomes, já que nem todas as combinações teóricas possíveis

de N-V produziriam verbos complexos que designassem uma atividade institucionalizada ou

reconhecida como proeminente na língua. Nesse sentido, a hipótese lexicalista é mais explicativa

quanto à assimetria lexical encontrada nos processos de IN em diversas línguas ao redor do mundo.

Mithun (1984:847-849) chama atenção para o fato de que toda língua natural que apresenta

essa estrutura de IN também preserva sua paráfrase sintática sem IN. A autora argumenta que seria

ineficiente que as línguas preservassem expressões equivalentes de maneira tão sistemática. Para ela

o fato de construções morfológicas produtivas desse tipo nunca existirem em uma língua sem a

existência de sentenças sintaticamente análogas indica que a morfologização deve ser funcional, ou

seja, deve ter um propósito/função na língua em questão. Segundo Mithun (1984:848), uma

comparação do processo em diversas líguas revela que os falantes sempre incorporam por um

propósito, embora este propósito não seja sempre o mesmo.

Os verbos complexos produzidos pelo processo de IN apresentam uma série de características.

Segundo Mithun (1984:856), embora haja uma diferença no grau de coesão entre as raízes N e V em

diferentes línguas (como apontam os dados da autora das línguas Mokilese, Mam, Lahu, Nisgha,

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Gurindji, Comanche), em todos os casos, a raiz verbal V se junta à raiz nominal N para formar um

verbo complexo N-V que denota um conceito unitário, de modo que o verbo complexo N-V seria

inclusive tratado como um predicado intransitivo pelas línguas. O nome incorporado (NI) perde sua

saliência tanto semântica quanto sintática. O NI não se refere a nenhuma entidade específica. Ele

funciona apenas como um especificador do verbo, que restringe ou especifica o escopo do verbo sem

incorporação nominal.

A autora também afirma que o nome incorporado não é acompanhado por marcadores de

definitude, número ou demonstrativos. Embora o nome possa funcionar semanticamente como um

paciente, locativo ou instrumento, ele não tem um papel sintático independente na sentença como um

todo e, portanto, não é marcado por caso. Como consequência dessa falta de definitude, essas

construções não são usadas em quaisquer contextos. Os contextos mais naturais para se usar as

sentenças em que o N está incorporado ao V seriam aqueles em que o paciente da ação verbal não se

refere a um paciente específico, individualizado. O paciente da ação verbal deve ser genérico, e o

verbo complexo N-V geralmente designa uma ação habitual.

Segundo Mithun (1984:856), de uma forma geral, essas construções com IN podem designar

ou ser: 1) afirmações genéricas; 2) descrições de atividades em processo nas quais o paciente não está

sendo afetado de forma completa; 3) atividades habituais nas quais o paciente específico pode mudar;

4) atividades projetadas nas quais o paciente específico ainda não é identificável; 5) atividades

coletivas, onde um agente individual não afeta de forma completa o paciente; ou 6) atividades

direcionadas para uma porção não específica de uma massa.

A argumentação de Mithun (1984) de que a IN é um processo essencialmente lexical é

convincente para os Tipos I e II de IN, dentro de sua terminologia. Contudo, o Tipo III de IN mostra-

se, aparentemente, como um contra-exemplo. Potencialmente, essa funcionalidade da IN é muito mais

produtiva que as demais e poderia ser interpretada como essencialmente sintática por causa de sua

aparente liberdade de uso e produtividade. Contudo, a autora rejeita essa hipótese. Em sua visão, essa

alta produtividade não significa total liberdade de uso, pelo menos não como no sentido sintático.

Ainda assim, diz ela, esse processo poderia ser visto como lexical, já que os falantes normalmente

têm consciência de que estão criando uma nova palavra ao usar a sentença com o NI. Além disso, a

produtividade do processo seria governada tanto por acidente lexical quanto por considerações

pragmáticas (MITHUN, 1984:862-863).

Para Mithun (1984:863), mesmo o Tipo III de IN é um processo essencialmente lexical. Ela

argumenta que há uma clara assimetria lexical entre os NIs quanto à possibilidade de se incorporarem

ao verbo, algo que não seria comum em um processo puramente sintático. Segundo Mithun, certos

nomes são mais prováveis de ser incorporados que outros e nomes com um escopo estreito não tendem

a ser incorporados. Além disso, a animacidade também afetaria a incorporabilidade dos nomes: nomes

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animados tendem a não ser incorporados e, quando o são, tipicamente aparecem nas composições do

Tipo I de IN e são genéricos como em “ser uma boa pessoa”. Nomes que refletem pacientes

individuais de verbos como em “estar doente” ou “morrer” são raramente incorporados.

A autora também chama atenção para o fato de certos tipos de verbos serem mais

incorporantes que outros. Verbos como “assassinar” raramente incorporaria seu paciente porque a

vítima provavelmente é importante e individualizada. Além da animacidade, a agentividade também

é um fator importante, de forma que o verbo “correr” é improvável de incorporar porque seu único

argumento é um agente. Além da animacidade, agentividade e individualidade dos pacientes dos

verbos, um segundo fator importante é o escopo de verbo. Verbos de semântica mais geral, em que

seu sentido é muitas vezes determinado pelo seu argumento, são mais prováveis de incorporar seu

argumento do que verbos de escopo mais estreito.

O grau em que uma ação afeta um paciente também é um fator na incorporabilidade. Por

exemplo, verbos em que provavelmente o evento afetará significantemente seus pacientes, tais como

“fazer” ou “comer”, são mais incorporantes que verbos com menos efeito em seus pacientes, tais

como “olhar para” ou “ouvir”.

Esses padrões de assimetria de nomes mais incorporados que outros e de verbos mais

incorporantes que outros são indícios de que o mecanismo de incorporação nominal é um tipo

específico de formação de palavra, um processo lexical, e não sintático.

1.3. Tipo IV de IN: um processo sintático ou morfológico?

O Tipo IV de IN também apresenta uma característica que aparentemente contradiz a natureza

lexical e endossa a natureza sintática desse processo. Como vimos no início dessa seção, no Tipo IV

de IN, uma raiz N semanticamente genérica se incorpora ao verbo, enquanto um NP (sintagma

nominal) semanticamente específico identifica o verdadeiro paciente da ação. Em algumas situações,

o NI é um verdadeiro hiperônimo do NP independente e frequentemente esses NIs funcionam como

classificadores.

Contudo, nem sempre o “nome independente” é mesmo um sintagma nominal. Muitas vezes,

o que resta não incorporado aparenta ser, de fato, o adjunto do núcleo de um sintagma nominal, de

modo que aparentemente estaríamos diante de um caso explícito em que o núcleo do sintagma

nominal se incorporou ao verbo por meio de um movimento sintático e que o que temos como “nome

independente” seria apenas os adjuntos desse sintagma nominal, como podemos observar no exemplo

(5) abaixo. Esses exemplos de IN parecem ser claramente de natureza sintática. Contudo, essa

natureza aparentemente sintática do Tipo IV de IN é rejeitada pela autora.

Segundo Mithun (1984:870), no Tipo IV de IN, um determinante, número ou verbo adjetival

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pode estar sozinho e o núcleo estaria incorporado ao verbo. Abaixo temos um exemplo do Tipo IV

de IN. Em (5), vemos que há um processo que aparentemente é sintático: o núcleo de um sintagma

nominal, akya'tawi'tsher ‘vestido’, aparece incorporado ao verbo, enquanto o adjunto deste núcleo,

kanekwarunyu ‘pontilhado/de bolinhas’, aparece como elemento independente.

(5)6 Kanekwarunyu wa'-k-akya'tawi'tsher-ui:ni.

it.dotted.DIST PAST-I-dress-make

'I dress-made a polka-dotted one.' ('I made a polka-dotted dress.')

Segundo a autora, tais construções sugerem que a incorporação nominal é um mecanismo

sintático, e não lexical. Ela afirma que poderia ser argumentado que um sintagma nominal equivalente

a “polka-dotted dress” (vestido de bolinhas) deve ter sido gerado inicialmente e que o núcleo se

moveu para o verbo por meio de uma regra sintática. Contudo, a autora descarta esta hipótese,

afirmando que línguas que exibem estruturas como as do exemplo acima também exibem estruturas

como em (6):

(6)7 Kanekwarunyu wa'katkdhtho.

it.dotted.DIST PAST.I.see

'I saw a polka-dotted (one).'

Como vemos neste último exemplo, kanekwarunyu ‘pontilhado/de bolinhas’ funciona como

um sintagma independente sem a presença de IN. O último exemplo seria apropriado sempre que o

objeto está claro pelo contexo, linguístico ou pragmático. O nome não precisa ter sido explicitamente

mencionado em um discurso precedente, segundo a autora.

Apesar da alta produtividade do processo de IN atestada em algumas línguas, o mecanismo

ainda seria lexical para Mithun. Em Mohawk, a alta produtividade deste processo traz uma aparência

sintática para o processo, mas os falantes teriam consciência do status lexical desses verbos

complexos, segundo o relato da autora. Mithun (1984:872) afirma que, embora o número de

combinações N-V seja aparentemente ilimitado, os falantes têm consciência da natureza lexical das

combinações. Segundo a autora, eles não só sabem quando essas construções seriam possíveis, mas

também quais dessas combinações realmente existem, ou seja, quais dessas combinações seriam de

fato lexicalizadas. Processos puramente sintáticos não apresentam estas características, o que reforça

6 Tradução: Kanekwarunyu wa'-k-akya'tawi'tsher-ui:ni.

isto.de.bolinhas.DIST PAST-eu-vestido-fazer

'Eu vestido-fiz um de bolinhas.' ('Eu fiz um vestido de bolinhas')

7 Tradução: Kanekwarunyu wa'katkdhtho.

isto.de.bolinhas.DIST PAST.I.ver

'Eu vi um de bolinhas.'

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a hipótese lexicalista. Mithun (1984:872) relata que os falantes da língua Mohawk se lembram de

quem usa uma palavra não usada por outros, mesmo quando se trata de combinações que são feitas a

partir de raízes altamente incorporáveis (N) ou incorporantes (V). Embora o léxico de um falante de

Mohawk possa ser muito grande por causa da alta produtividade do Tipo IV de IN, ele ainda assim é

bem definido e limitado.

1.4. IN ao longo do tempo

Outro ponto relevante para a tese de Mithun (1984) é a questão diacrônica. Para a autora, a

hierarquia implicacional encontrada por ela entre as funções que a IN pode desempenhar mostra como

a IN pode ter se desenvolvido historicamente nas línguas naturais. Segundo a autora, uma comparação

de processos de IN em línguas aparentadas mostra que o processo não dura para sempre em uma

língua. Muitas famílias contêm línguas que apresentam a IN como processo produtivo, mas também

contêm línguas em que não há nenhum processo de IN. Esse fato é uma evidência de que esse

processo morfológico pode, a priori, surgir ou desaparecer (MITHUN, 1984:872).

Embora em nenhuma língua se tenha documentado o surgimento espontâneo desse processo,

em algumas línguas há processos que potencialmente poderiam vir a ser de fato uma IN. A autora

cita o trabalho de Hopper & Thompson (1980), em que os autores afirmam haver uma forte pressão

tipológica entre as línguas ao redor do mundo para que os Vs fusionem com objetos diretos

indefinidos. A autora traz algumas sentenças do Húngaro retiradas do trabalho de Hooper &

Thompson (1980), que por sua vez retiraram de Bese et al. (1970).

Entre os exemplos abaixo, retirados de Mithun (1984:872), o exemplo (7) mostra que, em

Húngaro, os objetos diretos que são referenciais e definidos seguem o verbo e são indexados no verbo

por meio de um marcador de definite transitivity “transitividade definida”. Em (8), observamos que,

quando o objeto é referencial, mas é indefinido, o marcador verbal -sa não aparece mais como sufixo

do verbo olvas ‘ler’, mas o objeto direto újságot ‘jornal’ continua sendo posto após o verbo, como

ocorre quando o objeto é definido. Em (9), observamos que, quando o objeto gramatical não é nem

definido nem referencial, o objeto újságot ‘jornal’ precede o verbo olvas ‘ler’, que por sua vez não

apresenta o marcador -sa. O último dos três exemplos apresenta características típicas de IN, como a

falta de definitude e referencialidade do objeto direto e a coesão entre esse objeto e o verbo.

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(7)8 Peter olvas-sa az újságot.

Peter reads-OBJ the newspaper

'Peter is reading the newspaper.'

(8)9 Peter olvas egy újságot

Peter reads a newspaper.

'Peter is reading a [specific] newspaper.'

(9)10 Peter újságot olvas.

Peter newspaper reads

'Peter is reading a newspaper.'

Mithun (1984:872-873) faz referência também ao Turco, em que os objetos diretos geralmente

recebem um sufixo marcador do caso acusativo, com exceção dos objetos diretos indefinidos, que

não recebem nenhuma marca. Em (11), quando o objeto direto pipo ‘cachimbo’ é utilizado como um

objeto indefinido, ele não recebe nenhuma marca de acusativo, enquanto em (10), em que pipo se

refere a um elemento específico, o nome recebe o sufixo -u, marca de acusativo, além do sufixo -sun,

marca de possessivo, que indica a definitude do objeto direto.

(10)11 Ahmet pipo-sun-u ič -iyor.

Ahmet pipe-his-ACC drink-AOR

'Ahmet is smoking his pipe.'

(11)12 Ahmet (bir) pipo ič-iyor.

Ahmet (a/one) pipe drink-AOR

'Ahmet is smoking a pipe; Ahmet pipe-smokes.'

Outra evidência que indica que o exemplo (11) é de fato algo muito próximo de IN é que, em

Turco, exemplos como esses não permitem que algum elemento se interponha entre o nome

supostamente incorporado e o verbo. Assim, como mostram os exemplos abaixo, retirados de Mithun

8 Tradução: Peter olvas-as az újságot.

Peter lê-OBJ o jornal

'Peter está lendo o jornal.'

9 Tradução: Peter olvas egy újságot

Peter lê o jornal.

'Peter está lendo um jornal [específico].'

10 Tradução: Peter újságot olvas.

Peter jornal lê.

Peter está lendo um jornal.'

11 Tradução: Ahmet pipo-sun-u ič -iyor.

Ahmet cachimbo-seu- ACC beber-AOR

'Ahmet está fumando seu cachimbo.'

12 Tradução: Ahmet (bir) pipo ič-iyor.

Ahmet (um) cachimbo beber -AOR

'Ahmet está fumando um cachimbo; Ahmet cachimbo-fuma'

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(1984:873), o adjunto adverbial hergün ‘todo dia’, cuja posição natural seria logo antes do verbo e

após o objeto, como em (12), será realizado antes do objeto direto em (13), quando este é indefinido.

Além disso, quando o objeto direto pipo ‘cachinbo’ é indefinido, como em (13), ele não recebe

nenhuma marca de acusativo, enquanto em (12), em que pipo é definido, o nome recebe o sufixo -u,

marca de acusativo, bem como o sufixo -sun, marca de possessivo. A autora conclui que o Turco

segue a tendência geral de os verbos se fundirem com seus objetos diretos indefinidos e que isso

poderia ser um prenúncio de um mecanismo de IN, mais especificamente o Tipo I de IN.

(12)13 Ahmet pipo-sun-u hergün ič-iyor.

Ahmet pipe-his-ACC every.day drink-AOR

'Ahmet smokes his pipe every day.'

(13)14 Ahmet hergün pipo ič-iyor.

Ahmet every.day pipe drink-AOR

'Ahmet pipe-smokes every day.'

A autora afirma que esses exemplos de fusão entre o verbo e um objeto direto indefinido,

como os encontrados em Húngaro e em Turco, dão uma pista preciosa de como o processo de IN

pode surgir em uma língua. Para Mithun, o grau de coesão entre o V e o NI é primariamente uma

característica morfológica geral da língua em questão, de modo que, em línguas analíticas, como o

Lahu, o constituinte das composições usualmente retêm sua identidade como palavras independentes.

Em línguas mais sintéticas, como Nisgha, os constituintes são geralmente fundidos em uma única

palavra (MITHUN, 1984:873-874).

O mais interessante dos dados das línguas geneticamente aparentadas é a hierarquia

implicacional encontrada pela pesquisadora. Para Mithun (1984:891), essa hierarquia implicacional

aponta para uma trilha específica de desenvolvimento a ser trilhada pela IN, quando esta surge em

uma língua. Na opinião da linguista, o ponto de partida é o Tipo I de IN, na qual uma raiz nominal e

uma raiz verbal se combinam para formar um verbo complexo N-V intransitivo que denota uma

atividade unitária e digna de ser lexicalizada.

Quando a língua apresenta o Tipo I de IN, ela pode começar a apresentar o Tipo II, pois o

sistema pode ser estendido para permitir que um argumento oblíquo significante assuma a posição

deixada pelo NI. Nesse segundo estágio, a IN afeta as relações de caso dentro da oração, mas o verbo

mantém sua valência, já que um argumento interno é incorporado ao verbo e outro argumento oblíquo,

13 Tradução: Ahmet pipo-sun-u hergün ič-iyor.

Ahmet cachimbo-seu-ACC todo.dia beber-AOR

'Ahmet fuma seu cachimbo todo dia.'

14 Tradução: Ahmet hergün pipo ič-iyor.

Ahmet todo.dia cachimbo beber-AOR

'Ahmet cachimbo-fuma todo dia.'

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geralmente proeminente, assume o lugar como novo argumento interno.

A autora prossegue em sua explicação quanto ao caminho trilhado pela IN nas línguas naturais

e afirma que, em línguas polissintéticas, o sistema pode evoluir e se estender para o nível do discurso,

em que Ns que se referem a uma informação já sabida ou pouco significante podem ser incorporados

à raiz verbal para estreitar o escopo do verbo sem a necessidade de um sintagma nominal adicional

(a língua estaria aqui já no terceiro estágio de desenvolvimento).

Por fim, afirma a autora, um sistema classificatório pode surgir na língua, de modo que Ns

genéricos são sistematicamente incorporados para estreitar o escopo semântico dos Vs incorporantes

que não reduz sua valência, enquanto sintagmas mais específicos identificam o verdadeiro referente.

É interessante notar que o nome incorporado só pode exercer alguns papeis semânticos, como

o de paciente, locativo, instrumento. Embora na IN prototípica o NI é o paciente de verbos transitivos

ou intransitivos, há registro de línguas que incorporam o locativo ou o instrumento, ou seja, um

adjunto adverbial. Mithun (1984:875) cita algumas dessas línguas junto com suas referências: Nahuatl

(ANDREWS, 1975); Takelma (SAPIR, 1922); Sora (RAMAMURTI, 1931). Abaixo temos exemplos

com incorporação de instrumento e de locativo.

Os dois exemplos abaixo são, respectivamente, das línguas Takelma e Sora e foram retirados

de Mithun (1984:875). Em (14), da língua Takelma, observa-se que tanto o paciente gwen ‘pescoço’

quanto o instrumento waya ‘faca’ são incorporados ao verbo sgo ̄́ut ‘cortar’. Em (15), da língua Sora,

observa-se que o locativo 'ɟeŋ ‘perna’ (no contexto, “até a sua perna”) está incorporado ao verbo.

(14)15 gwen-waya-sgo ̄́ut-hi.

neck-knife-cut-he/them

'He cut their necks off with his knife.'

(15)16 ɟi-lo:-'ɟeŋ-t-am.

Stick-mud-leg-will-you

'Mud will stick to your leg.'

Segundo Mithun (1984:875-876), essas incorporações de elementos que funcionam como

adjuntos adverbiais aparentemente não são nem mais nem menos prováveis de ocorrerem em função

do nível em que a língua se encontra dentro de sua tipologia. As línguas também diferem quanto à

similaridade das formas entre as raízes do NI e sua contraparte independente. Assim, em Tupinambá,

o N poro ‘carne humana’ é incorporado como -por-, e kawi ‘cauim’ é incorporado como -ka-. Em

15 Tradução: gwen-waya-sgo ̄́ut-hi.

pescoço-faca-cortar-ele/eles

'Ele corta fora o pescoço deles com sua faca.'

16 Tradução: ɟi-lo:-'ɟeŋ-t-am.

grudar-lama-perna-vai-você

'A lama vai grudar em sua perna.'

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algumas línguas, a discrepância entre o nome incorporado e o nome independente é muito maior,

como o caso de Mohawk.

Segundo Mithun (1984:876), em Mohawk, em alguns casos de IN, os falantes precisam

aprender uma raiz que será usada apenas incorporadas a um V e outra raiz semanticamente

equivalente que será usada como palavra independente. Assim, -nahskw- ‘animal doméstico’ só

aparece incorporado a um V, enquanto o equivalente semântico -tshenv aparece apenas como um N

independente. Analogamente, em algumas línguas, há raízes verbais V que são usadas apenas com

um N incorporado, enquanto há outra raiz verbal semanticamente equivalente que é usada apenas

como palavra independente e que não necessariamente é cognata à raiz V incorporante.

Em algumas línguas, afirma Mithun (1984:887), há “afixos” que podem corresponder a Vs

incorporantes em outras línguas. Segundo a pesquisadora, as línguas Chukotko-Kamchatkan, que

apresentam o Tipo III de IN, também têm pequenos conjuntos de afixos que, quando adicionados a

Ns, funcionam exatamente como Vs incorporantes.

Mithun (1984:887) afirma que Bogoras (1922) nunca justificou a distinção feita por ele entre

“sufixos derivacionais” e raízes de Vs incorporantes. O mais provável, diz Mithun, é que esses sufixos

derivacionais encontrados em Koryak e Chukchi nada mais sejam do que antigas raízes de Vs que,

no estado atual da língua, nunca ocorrem sem um NI.

Mithun (1984:887-889) também faz referência ao trabalho de Swadesh (1948), em que o autor

afirma que há um conjunto de 400 sufixos em Nootka, alguns dos quais cognatos com raízes e sufixos

de outras línguas aparentadas ou próximas geograficamente. Segundo a autora, Swadesh sugere que

alguns desses sufixos-raízes em Nootka podem ter sido gerados de palavras pospostas que se

transformaram em sufixos.

Essa relação discrônica entre um sistema atual de afixos e antigos Ns incorporados e Vs

incorporantes é observada por outros autores em línguas de outras famílias e de diferentes regiões

geográficas. Fleck (2006:59) fez uma análise da língua Matsés (Pano) com o objetivo de abordar a

questão do status de um conjunto de 28 formas monossilábicas que se anexam a raízes verbais,

adjetivais e nominais e que representam frequentemente partes do corpo humano. Segundo o autor,

conjuntos similares são encontrados em outras línguas da família Pano, e há uma discussão entre os

especialistas se o correto seria considerar essas formas como casos de afixação lexical ou como casos

de incorporação nominal (IN). O autor defende a tese da afixação lexical.

Em um artigo mais recente, Biondi & Fleck (2012) analisam essas formas monossilábicas na

língua Kashibo-Kakataibo (Pano) e defendem a tese de que esses prefixos não são alomorfes de

nomes que designam parte do corpo humano, mas sim morfemas sincronicamente independentes

desses nomes.

Biondi & Fleck (2012:405) afirmam que pelo menos 65% dos prefixos nessa língua não

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devem ser analisados como alomorfes sincrônicos dos nomes correspondentes, mas sim como um

conjunto fechado de prefixos que são sincronicamente independentes de suas raízes correspondentes.

Biondi & Fleck (2012:386) rejeitam a hipótese de que se trata de incorporação nominal, embora

reconheçam que outros trabalhos trazem esta abordagem. Eles afirmam que se esses afixos fossem

processos de IN, haveria uma relação sincrônica entre os prefixos e os nomes independentes, relação

que segundo eles não existe.

Segundo Biondi & Fleck (2012:399-400), há duas análises possíveis desses prefixos: a

sincrônica e a diacrônica. Na análise sincrônica, esses prefixos seriam alomorfes de raízes que são

nomes independentes. Segundo os autores, alguns especialistas em línguas Pano sugerem que estes

prefixos seriam derivados, por regra sincrônica, de nomes completos que seriam reduzidos a seus

primeiros segmentos quando anexados à frente de um nome, adjetivo ou verbo. Os prefixos que não

correspondem exatamente aos primeiros segmentos do nome que designa uma parte do corpo humano

seriam irregularidades. Na análise diacrônica, esses prefixos representam um conjunto fechado de

prefixos independentes. As semelhanças com as raízes correspondentes que designam partes do corpo

humano seriam apenas uma relação passada. A relação exata entre os prefixos e as raízes

correpondentes permanece desconhecida, no sentido de que é difícil chegar a uma conclusão final

sobre qual seria a forma primitiva. Embora seja tentador afirmar que os prefixos são derivados

diacronicamente dos nomes, e não o contrário, os autores sugerem que pelo menos alguns dos prefixos

parecem ser mais antigos que as raízes correspondentes (BIONDI & FLECK, 2012:399-400).

Como vimos, Mithun (1984:885-889) cita diversos trabalhos, entre os quais o de Bogoras

(1922) e o de Jacobsen (1980), para mostrar que é comum que raízes dentro de composições

permaneçam no léxico da língua, ainda que seus cognatos independentes tenham sido substituídos.

As línguas Nadëb (Maku) e Tonga (Austronésia) também apresentam um fenômeno que não é

exatamente IN, mas que está relacionado a este fenômeno morfossintático sob uma perspectiva

diacrônica. O que estas duas línguas apresentam são casos conhecidos na literatura como noun

stripping. Gerdts (1998) afirma que, quando ocorre um noun stripping, os dois elementos (nome e

verbo) permanecem como palavras separadas de acordo com critérios fonológicos, como o

deslocamento tônico. De qualquer forma, há uma unidade entre o nome e o verbo. Em Kusaiean

(Austronésia), afirma Gerdts, os advérbios podem aparecer após um verbo, mas não entre um verbo

e um stripped noun, por exemplo. Ou seja, se por um lado não podemos considerar essa construção

N-V como uma única palavra dentro dos padrões fonológicos do que seja palavra em cada língua em

questão, por outro lado há uma coesão, uma unidade sintática entre o N e o V, que proíbe, por exemplo,

a interposição de nenhum outro elemento oracional.

De forma intuitiva, poderíamos afirmar que o noun stripping seja uma espécie de precursor

da IN. Poderíamos falar de um estágio inicial a partir do qual a língua pode, ou não, desenvolver

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casos de IN morfológica, como acontece, por exemplo, em línguas como Munduruku (Munduruku),

estudada em Gomes (2008). Em seu trabalho clássico sobre IN, Sapir (1911) afirma que a IN deve

ser vista sempre do ponto de vista sincrônico. O autor chama atenção para o perigo de se fazer uma

análise descritiva sincrônica enviesada por considerações históricas. De fato, deve-se ter em mente

que, do ponto de vista diacrônico, é comum que as línguas naturais sofram processos de

gramaticalização, conceito introduzido pelo linguista francês Meillet (1912).

Sincronicamente, há diferenças entre o que poderíamos definir como noun stripping, IN

morfológica e afixação lexical, muito embora possamos intuir uma relação histórica entre esses

processos. Contudo, essa intuição histórica reforça a tese de que a IN seja essencialmente um processo

sintático. Como vimos desde o início dessa seção, essa tese é rejeitada por Mithun (1984) por diversas

evidências que mostrariam o status de palavra do verbo complexo N-V. A linguista admite que a

produtividade da IN possa ser tão grande a ponto de o léxico da língua ser enorme. Contudo, Mithun

rejeita a ideia de essa alta produtividade indicar que se trata de um processo tão livre e tão produtivo

quanto um processo verdadeiramente sintático. A autora cita as evidências fonológicas, já que a

lexicalização resulta em idiossincrasias fonológicas e semânticas não encontradas em construções

genuinamente sintáticas.

Mithun (1984:889) também cita a consciência por partes dos falantes de que essas construções

são, de fato, novas palavras do léxico, enquanto novas sentenças com construções sintáticas não

lexicalizadas não são percebidas. Segundo a autora, em Mohawk, os falantes nativos relatam o prazer

em visitar alguém de outra comunidade e ouvir novas INs pela primeira vez. Embora os nativos não

tenham nenhum problema em entender o significado da nova palavra, eles reconhecem que essas

palavras não fazem parte do seu amplo léxico. Além disso, quando eles estão criando novas

combinados, eles estão conscientes de estar criando novas palavras e muita discussão frequentemente

envolve esses eventos.

1.5. Conclusões

Mithun (1984:877) conclui seu artigo afirmando que a IN se comporta como outros processos

morfológicos, não importa quão produtivos eles sejam na língua. Como outros morfemas, nomes

incorporáveis e V incorporantes se submetem a todas as regras fonológicas sincrônicas da língua. Na

visão desta autora, a IN não é de maneira alguma um equivalente às estruturas sintáticas básicas

comumente encontradas em línguas indo-europeias. Para ela, a IN é essencialmente um processo

morfológico, um processo de formação de palavra, não um processo sintático. A IN é sempre

funcional e pode ser usada para alcançar, inclusive, efeitos estilísticos. Segundo Mithun (1984:891),

os falantes que usam bem o processo de IN podem ser especialmente adimirados, enqanto falantes

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marginais podem não ser capazes de usar isso de forma alguma. IN pode ser um recurso linguístico

poderoso, embora também frágil. Para Mithun, os falantes das línguas em que há IN, por mais

produtivo que este processo seja na língua, têm plena consciência do status lexical desses verbos

complexos e reconhecem não só quando se usa uma nova palavra, mas também a habilidade dos

poucos que sabem construir esses verbos com perfeição estilística.

Embora haja evidências sólidas de que a IN seja um processo morfológico, ou seja, um

processo de formação de palavra, como defendido por diversos autores na literatura [(MITHUN,

1984), (DI SCIULLO & WILLIAMS, 1987), (ROSEN, 1989)], este processo também pode ser

entendido de outras formas. Há outras questões que envolvem este fenômeno e que devem ser levadas

em conta. Apesar das evidências que fortalecem a hipótese lexicalista, como as apontadas por Mithun

(1984), observam-se também evidências de que estamos diante de um processo sintático, como

veremos na seção específica para a hipótese sintática.

Há também estudos que apontam para os aspectos semânticos como elementos essenciais para

entender o processo de IN. Em uma seção específica abaixo, veremos que geralmente o Tipo II de IN

ocorre simultaneamente a outro processo conhecido na literatura como “ascensão do possuidor” (AP)

(VELÁZQUEZ-CASTILLO, 1995:685-702; MURO, 2009:87). O mais interessante a ser observado

é que aparentemente há regras semânticas explícitas que proibem a IN de termos que designam

determinadas partes do corpo humano. Velázquez-Castillo (1995) mostra que, em Guarani Paraguaio,

a IN e a AP não ocorrem com qualquer parte do corpo humano: há determinadas partes do corpo

humano que são incorporáveis e há outras que nunca o são, mesmo quando se satisfazem outros pré-

requisitos da língua em questão para que haja IN.

Quanto ao Tipo IV de IN, segundo Muro (2009:103), o processo de duplicação, em que há

um nome genérico incorporado à raiz verbal e um nome específico como palavra independente e

complemento do verbo, não é completamente livre: há construções em que a presença do NI genérico

é obrigatória; há outros casos em que ela é proibida. Naturalmente, seria interessante fazer uma

reanálise dos dados das línguas com novas pesquisas de campo, em que se possam fazer testes

adequados para identificar a presença ou a ausência de fatores semânticos restritivos que definam a

elegibilidade dessas construções, assim como veremos mais adiante que já foram apontados fatores

semânticos que restringem a possibilidade de se fazer IN ou não, como nos casos de IN + AP, em que

há regras semânticas que predeterminam se um nome é incorporável ou não.

Em ambos os tipos de IN, segundo a tipologia proposta por Mithun (1984), observa-se que há

um forte fator semântico que prediz em algum sentido o comportamento do fenômeno. Seria

necessária uma elicitação dos dados com mais profundidade em diversas línguas do mundo, para

verificar se em determinados casos há regras semânticas que não só proíbam a forma incorporada,

mas também há regras que obrigam o uso da forma incorporada. Naturalmente, se encontrarmos

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regras que não só restringem, mas também preveem o resultado, restará mais claro que a semântica é

de fato um fator relevante para explicar o fenômeno e sua produtividade em uma língua.

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2. As Hipóteses Sintáticas

2.1. A hipótese sintática de Baker (1988)

O principal expoente da hipótese sintática é Baker (1988). Segundo este autor, a IN pode ser

explicada como sendo um subcaso de uma transformação mais geral conhecida na literatura gerativa

como Move-Alpha. Sua explicação insere-se no contexto do modelo teórico conhecido como

Regência e Ligação (Government and Binding). Antes de adentrarmos especificamente nas

evidências mostradas por Baker, faremos uma breve contextualização dos propósitos do seu trabalho.

Logo no início de sua tese de doutorado, o autor deixa claro o objetivo de seu trabalho: unificar

em uma única teoria linguística formal duas classes de alternâncias de como as línguas naturais

expressam proposições: a primeira classe se refere aos modos alternativos de codificar expressões

referenciais em funções gramaticais, e a segunda classe se refere aos modos de construir predicados

complexos por meio de unidades elementares.

As alternâncias de como as línguas codificam expressões referenciais em funções gramaticais

poderiam ser explicadas pela existência de regras de mudança na função gramatical (“grammatical

function changing rules”), tais como as regras de construção de passiva, de causativo, de aplicativo,

etc. Contudo, para Baker (1988:1), essas regras não estão na cognição humana e são efeitos colaterais

de outro processo linguístico, puramente sintático.

O autor tenta demonstrar que a mudança na função gramatical nada mais é do que um efeito

colateral de um movimento sintático específico, o movimento de uma palavra ao invés do movimento

de um sintagma nominal. Em termos do modelo teórico Regência e Ligação, Baker tenta mostrar que

a mudança na função gramatical é uma consequência do movimento de um X0, que se incorpora em

um Y0 da sentença.

Dentro desse quadro teórico, conhecem-se bem as propriedades de um movimento de um XP

e de um Wh. Segundo esse quadro teórico, esses movimentos sintáticos não são imprevisíveis. Ao

contrário, eles respeitam certos princípios universais. Assim, quando se trata de mostrar que certo

processo linguístico é um movimento sintático, dentro deste quadro teórico, deve-se mostrar que esse

movimento respeita esses princípios universais, que serão explorados abaixo. Neste sentido, Baker se

propõe a mostrar que os movimentos possíveis de um X0 também são previsíveis e restritos aos

mesmos princípios universais que restringem os movimentos de um XP e de Wh. Em suma, o autor

tenta mostrar que o movimento de um X0 é só mais um tipo de movimento conhecido na literatura

como Move-Alpha.

Com base em dados provenientes da extensa literatura descritiva acerca do fenômeno da IN,

Baker (1988) tenta dar uma explicação sintática para esses processos. Além disso, o autor tenta

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coadunar esse processo de incorporação nominal (e de outras incorporações) com os processos de

mudança na função gramatical conhecidos na literatura descritiva.

O autor nega a existência de regras de mudança na função gramatical na cognição humana.

Baker mostra, em sua tese, que essas regras são apenas efeitos colaterais da incorporação de um X0

em um Y0 por meio de um movimento sintático limitado por princípios universais bem estabelecidos.

Em outras palavras, os processos de mudança na função gramatical têm uma explicação sintática

dentro do modelo proposto por Baker. Assim, para o autor, aquelas duas classes de alternâncias em

como as línguas naturais expressam proposições, que foram citadas no início dessa seção, são, na

verdade, de um só tipo.

2.2. Incorporação e os processos de mudança na função gramatical

Em um primeiro momento, Baker chama a atenção para o fato de que, em muitas línguas, há

estruturas que apresentam uma distribuição temática idêntica. Sentenças como “João ajudou Pedro”

e “Pedro foi ajudado por João” são sentenças em que as expressões referenciais recebem os mesmos

papeis temáticos, embora as relações gramaticais sejam expressas de forma distinta (Baker, 1988:7).

A passiva é apenas um entre outros processos que provocam o que o Baker chama de fenômeno da

mudança na função gramatical. Baker aponta cinco processos conhecidos na literatura descritiva:

passiva, antipassiva, aplicativo, causativo e ascensão do possuidor (Baker, 1988:9-13). Desses cinco

processos, três deles, o processo de passiva, o de antipassiva e o de ascensão do possuidor, são

considerados pelo autor como sendo subtipos de IN. O aplicativo e o causativo são incorporações de

outra natureza.

Do ponto de vista descritivo, há padrões interessantes que envolvem todos esses cinco

processos de mudança na função gramatical. Por exemplo, em todos eles, há uma mudança na

morfologia verbal. Além disso, muitas línguas naturais apresentam apenas alguns desses processos

de mudança na função gramatical. Outra observação interessante feita pelo autor, esta na direção de

mostrar que esses processos não são regras da cognição humana, é o fato de que línguas artificiais

não apresentam processos semelhantes a esses processos que são encontrados em muitas línguas

naturais e que geralmente implicam a existência de paráfrases temáticas. Além disso, segundo o autor,

o trabalho de Hale (1982) mostra que, em Warlpiri, parece não haver nenhum desses processos. Outro

fato relevante é que o número de possibilidades dessas estruturas é restrito (apenas cinco processos

conhecidos e identificados translinguisticamente). O autor apresenta uma explicação sintática formal

para todos esses cinco padrões comumente descritos na literatura (BAKER, 1988:8).

Logo após essa argumentação inicial de que as mudanças nas funções gramaticais não fazem

parte necessariamente da cognição humana, Baker (1988:8-9) apresenta o objetivo principal de sua

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tese: mostrar evidências de que a mudança na função grammatical não existe em um sentido

fundamental, ela é apenas um efeito colateral de incorporar uma palavra em outra. Neste caminho, o

autor procura explicar quatro questões fundamentais relacionadas a tais processos.

Em sua tese, o autor pretende relacionar esses processos de mudança na função gramatical

encontrados em várias línguas do mundo com o fenômeno da incorporação de uma maneira geral.

Para o autor, esses processos de mudança na função gramatical é o simples resultado de um processo

de incorporação de uma palavra em outra. Para demonstrar isso, o autor mostra dados de várias

línguas que são evidências de que esses processos de mudança na função gramatical (passiva,

antipassiva, etc.) estão relacionados a movimentos sintáticos de núcleo para núcleo. Baker tenta

mostrar que, por exemplo, sentenças causativas em que o verbo marca o causativo morfologicamente

tem a mesma estrutura profunda que suas paráfrases temáticas superficiais em que não há o morfema

causativo no verbo. Ele tenta demonstrar que esses morfemas são gerados na estrutura profunda

(“base-generated”) como um item lexical independente.

Para demonstrar que esses processos são o resultado de um movimento sintático, o autor

mostra que o movimento sintático de um X0 respeita os mesmos princípios universais que restringem

o movimento de um XP e de Wh. Assim, para o autor, a IN é um processo estritamente sintático, e

não um processo morfológico, como proposto por Mithun (1984), cuja visão é a de que a IN é um

tipo especial de formação de palavra.

Abaixo segue um dos exemplos citados pelo autor como evidências de que os morfemas de

estruturas causativas, etc. são gerados na estrutura profunda como itens lexicais independentes. O

exemplo abaixo, da língua Chichewa (Bantu), foi retirado de Baker (1988: 21).

(16)17 a. Mtsikana a-na-chit-its-a kuti mtsuko u-gw-e

Girl do-cause that waterpot fall

‘The girl made waterpot fall’

b. Mtsikana a-na-gw-ets-a mtsuko

Girl fall-cause waterpot

‘The girl made waterpot fall’

Para Baker (1988:21-22), é importante observar que essas sentenças não são apenas paráfrases

temáticas, elas contêm as mesmas raízes lexicais. A alternânica encontrada no morfema causativo -

its-/-ets- ‘causar’ entre as vogais “i” e “e” ocorre por regras de harmonia vocálica da língua. A

17 Tradução: a. Mtsikana a-na-chit-its-a kuti mtsuko u-gw-e

Garota fazer-causar este pote.de.água cair

‘A garota fez o pote de água cair’

b. Mtsikana a-na-gw-ets-a mtsuko

Garota cair-causar pote.de.água

‘A garota fez o pote de água cair’

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principal diferença entre as duas sentenças acima é que -gw- ‘cair’ e -its- ‘causar’ na primeira sentença

são verbos morfologicamente distintos, enquanto na segunda sentença esses verbos formam uma

única palavra que é realizada na posição do verbo -its ‘causar’. Segundo o autor, é natural

relacionarmos essas duas sentenças atribuindo-lhes estruturas sintáticas subjacentes paralelas em que

o verbo -gw- ‘cair’ se move para a posição do verbo -its- ‘causar’, como podemos observar em (17).

(17)

Para o autor, movimentos como o descrito no exemplo acima não só explicam os processos

de mudança na função gramatical, mas também mantêm semelhanças estruturais com o fenômeno de

IN descrito acima. Na linguística descritiva, esses processos são vistos como fenômenos totalmente

independentes e não inter-relacionados. Para Baker, há uma explicação formal que unifica todos estes

processos linguísticos: a IN e os processos de mudança na função gramatical. Todos esses fenômenos

linguísticos podem ser explicados por meio de movimentos sintáticos no modelo proposto pelo autor.

Na incorporação, há um movimento sintático de um X0 que se une a um Y0. Do ponto de vista

estrutural, a IN e os processos de mudança na função gramatical são processos idênticos, pois ambos

os fenômenos são explicados estruturalmente por meio de um modelo linguístico que permite o

movimento de um X0, além dos tradicionais movimentos de XP e de Wh. Para demonstrar tudo isso,

Baker (1988) mostra que a IN (também descrita como um movimento de um X0 para dentro de um

Y0) respeita todos os princípios universais que restringem outros movimentos sintáticos já conhecidos

e bem aceitos pelo modelo Regência e Ligação.

O autor utiliza os primeiros capítulos de sua tese para mostrar, essencialmente, que o

movimento de um X0 para dentro de um Y0 é um movimento válido do ponto de vista do modelo da

Regência e Ligação. Além disso, o autor mostra que as restrições universais a movimentos sintáticos

de qualquer natureza (X0, XP, Wh, …) explicam dois padrões interessantes apresentados na

linguística descritiva: 1) as limitações encontradas na IN (por exemplo, não há nenhuma língua que

permita a IN de um N que exerça a função de agente da oração); 2) o número limitado de processos

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de mudança na função gramatical (são apenas cinco processos conhecidos na literatura). As

limitações encontradas translinguisticamente em sentenças com IN são consequências das limitações

estruturais impostas pelos princípios universais que restringem o movimento sintático de todos os

elementos “movimentáveis” do ponto de vista técnico do modelo da Regência e Ligação. O número

limitado de processos de mudança na função gramatical é explicado pelas mesmas restrições.

2.3. O Princípio do Espelho

Um dos padrões encontrados entre as línguas no que diz respeito aos processos de mudança

na função gramatical é o fato de que a forma verbal da paráfrase temática que não segue os padrões

canônicos da língua está sempre associada à forma verbal da sentença canônica e pode ser derivada

desta última forma verbal por meio de uma afixação produtiva. Em outras palavras, em todos os

processos de mudança na função gramatical, há uma morfologia associada a esses processos e esta

morfologia é verbal. Baker se pergunta qual a explicação para a morfologia estar associada a esses

processos de mudança na função gramatical em todas as línguas naturais.

Segundo Baker (1988:13), uma explicação funcional de por que a morfologia está sempre

associada à mudança na função gramatical poderia ser formulada da seguinte maneira: como os

processos de mudança na função gramatical distribuem os papeis temáticos de uma forma não-

canônica na sentença, precisa haver um sinal explícito de que houve tal mudança, daí a necessidade

de haver uma morfologia associada a esses processos de mudança na função gramatical. Contudo,

pergunta-se o autor, por que a morfologia associada a esses processos é sempre uma morfologia

verbal? Por que as línguas não permitem que esse sinal seja colocado, por exemplo, no sintagma

nominal que se torna sujeito? Esta última estratégia seria tão funcional quanto a estratégia de

morfologia verbal. A explicação funcional não responde a essas questões, na visão do autor.

Dados da língua Chichewa (Bantu) dão evidências de que esses processos morfológicos estão

intimamente ligados aos processos sintáticos associados aos processos de mudança na função

gramatical. Em um artigo anterior à tese, Baker (1985) mostra que, quando uma língua permite que

ocorra mais de um dos processos citados em uma mesma sentença, as mudanças morfológicas

associadas a esses processos ocorrem na mesma ordem em que ocorrem as mudanças sintáticas

associadas a esses processos. Baker traduziu esse fato em uma generalização conhecida como

“Princípio do Espelho”. Segundo esse princípio, derivações morfológicas devem refletir diretamente

as derivações sintáticas (e vice-versa) (Baker, 1988: 13).

No exemplo abaixo, da língua Chichewa (Bantu), retirado de Baker (1988:13-15), observam-

se duas mudanças das funções gramaticais: o aplicativo e a passiva. A primeira sentença de (18) é a

forma sem aplicativo e sem passiva. Na segunda sentença de (18), temos um aplicativo, processo em

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que um argumento oblíquo (neste exemplo, mpiringidzo ‘pé de cabra’) torna-se um objeto direto,

enquanto o antigo objeto direto (neste exemplo, chitseko ‘porta’) torna-se um segundo objeto ou um

argumento oblíquo. O inglês não tem aplicativo, de modo que a tradução destas duas sentenças é a

mesma. A morfologia verbal associada ao aplicativo em Chichewa é o sufixo -ir, como observamos

na segunda sentença do exemplo abaixo. Na terceira sentença de (18), temos uma passiva, processo

em que um objeto direto (neste exemplo, chitseko ‘porta’) torna-se sujeito, enquanto o antigo sujeito

(neste exemplo, nkhosa ‘ovelha’) aparece como argumento oblíquo ou nem aparece. A marca para

argumentos oblíquos em Chichewa é a preposição ndi ‘por/com’. A morfologia verbal associada à

passiva em Chichewa é o sufixo -idw.

(18)18 a. Nkhosa zi-na-tsekul-a chitseko ndi mpiringidzo

Sheep SP-PAST-open-ASP door with crowbar

‘The sheep opened the door with a crowbar’

b. Nkhosa zi-na-tsekul-ir-a mpiringidzo chitseko

Sheep SP-PAST-open-APPL-ASP crowbar door

‘The sheep opened the door with a crowbar’

c. Chitseko chi-na-tsekul-idw-a ndi mpiringidzo ndi nkhosa

Door SP-PAST-open-PASS-ASP with crowbar with sheep

‘The door was opened with a crowbar by the sheep’

O Princípio do Espelho afirma que, se utilizarmos tanto o aplicativo quanto a passiva, a

morfologia associada ao aplicativo necessariamente será usada no verbo antes da morfologia

associada à passiva. Em uma língua aglutinativa com claros prefixos e sufixos, isso significa que o

afixo verbal usado para o aplicativo estará mais próximo da raiz verbal que a o afixo usado para a

passiva.

Em seguida, o autor mostra como seriam as duas potenciais sentenças em que se usam tanto

o aplicativo quanto a passiva. A passiva vem da oração já com aplicativo, pois o sujeito da oração

não é o objeto direto da forma canônica, mas sim o instrumento, indicando que se usou primeiramente

o aplicativo (de modo que o argumento oblíquo se tornou objeto direto) para em seguida se usar a

passiva (de modo que aquele argumento oblíquo que se tornou objeto direto com o aplicativo veio a

se tornar o sujeito da oração com a passiva). Também se observa que o morfema verbal -ir, associado

18 Tradução: a. Nkhosa zi-na-tsekul-a chitseko ndi mpiringidzo

Ovelha SP-PAST-abrir-ASP porta com pé.de.cabra

‘A ovelha abriu a porta com um pé de cabra’

b. Nkhosa zi-na-tsekul-ir-a mpiringidzo chitseko

Ovelha SP-PAST-abrir-APPL-ASP pé.de.cabra porta

‘A ovelha abriu a porta com um pé de cabra’

c. Chitseko chi-na-tsekul-idw-a ndi mpiringidzo ndi nkhosa

Porta SP-PAST-abrir-PASS-ASP com pé.de.cabra com ovelha

‘A porta foi aberta com um pé de cabra pela ovelha’

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ao aplicativo, deve vir necessariamente antes do morfema -idw, associado à passiva. Assim, a segunda

sentença de (19) é agramatical. Ou seja, os morfemas verbais associados a esses processos são usados

na mesma ordem em que ocorrem as mudanças sintáticas associadas a esses processos.

(19)19 a. Mpiringidzo u-na-tsekul-ir-idw-a chitseko ndi nkhosa

Crowbar SP-PAST-open-APPL-PASS-ASP door by sheep

‘The crowbar was used by the sheep to open the door’

b. *Mpiringidzo u-na-tsekul-idw-ir-a chitseko ndi nkhosa

Crowbar SP-PAST-open-PASS-APPL-ASP door by sheep

‘The crowbar was used by the sheep to open the door’

Para o autor, o fato de a morfologia e a sintaxe estarem intimamente associadas nos processos

de mudança na função gramatical mostra que a morfologia e a sintaxe desses processos são dois

aspectos de um único processo. Portanto, uma teoria explicativa dos fenômenos de mudança na

função gramatical deve unificar os aspectos sintáticos e os aspectos morfológicos associados a esses

processos, a fim de explicar o padrão descrito no Princípio do Espelho.

2.4. Composições de processos de mudança na função gramatical

Como afirmado na subseção anterior, há línguas em que uma mesma sentença pode apresentar

mais de um processo de mudança na função gramatical. Foram dados de sentenças dessa natureza

que levaram Baker a formular o Princípio do Espelho. Baker fez observações e generalizações

importantes baseadas em estruturas dessa maneira. Além da generalização formulada no Princípio do

Espelho, o autor encontrou outro padrão translinguístico muito interessante.

Baker percebeu que, em nenhuma língua em que é permitida a composição de mais de um

processo de mudança gramatical, são consideradas gramaticais as sentenças que espelhavam a

aplicação da “função passiva” e, em seguida, a aplicação da “função aplicativa”, embora seja possível

a aplicação da “função aplicativa” e, em seguida, a aplicação da “função passiva”. Ou seja, em todas

as línguas que permitiam a composição de mais uma função, sentenças que mostram o aplicativo de

passivas são consideradas agramaticais, embora as sentenças que mostram a passiva de aplicativos

sejam consideradas gramaticais. Observe o exemplo abaixo, da língua Chichewa, retirado de Baker

(1988:16). Na primeira sentença de (20), temos um aplicativo seguido de passiva. A ordem dos

19 Tradução: a. Mpiringidzo u-na-tsekul-ir-idw-a chitseko ndi nkhosa

Pé.de.cabra SP-PAST-abrir-APPL-PASS-ASP porta por ovelha

‘O pé de cabra foi usado pela ovelha para abrir a porta’

b. *Mpiringidzo u-na-tsekul-idw-ir-a chitseko ndi nkhosa

Pé.de.cabra SP-PAST-abrir-PASS-APPL-ASP porta por ovelha

‘O pé de cabra foi usado pela ovelha para abrir a porta’

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morfemas deixa claro que primeiro se fez um aplicativo e depois uma passiva. O morfema verbal -er,

marca de aplicativo, vem contíguo à raiz verbal na primeira sentença, seguido do morfema -edw,

marca de passiva. Quando os morfemas estão dispostos em outra ordem, que evidencia o uso da

passiva primeiro e depois do aplicativo, como na segunda sentença de (20), a sentença se torna

agramatical em Chichewa.

(20)20 a. Mtsikana a-na-perek-er-edw-a mpiringidzo ndi mbidzi

Girl SP-PAST-hand-APPL-PASS-ASP crowbar by zebras

‘The girl was handed the crowbar by the zebras.’

b. *Mtsikana a-na-perek-edw-er-a mpiringidzo ndi mbidzi

Girl SP-PAST-hand-PASS-APPL-ASP crowbar by zebras

‘The girl was handed the crowbar by the zebras.’

Baker observa que a agramaticalidade de aplicativos de passivas não é verdade apenas para a

língua Chichewa, mas também para todas as línguas que permitem a composição dessas duas funções.

O autor sugere que deva haver algo na natureza desses processos que impeça a composição dessas

funções na ordem passiva e depois aplicativo.

2.5. A estrutura profunda

Após colocar os objetivos principais de sua tese, Baker (1988) faz uma breve recapitulação

de conceitos importantes para o modelo teórico da Regência e Ligação. O autor apresenta um breve

resumo da teoria X-barra, da teoria da predicação, da teoria da regência, da teoria do caso, da teoria

da ligação, etc. Dentro desse quadro de recapitulação do que havia sido feito até então, Baker

apresenta uma hipótese acerca da estrutura profunda. Essa hipótese será a base para a explicação

sintática do fenômeno conhecido na literatura como IN. Além disso, a hipótese tenta ser abrangente,

de modo que ela consiga explicar outros fatos linguísticos conhecidos, como os expressos na Hipótese

Inacusativa de Perlmutter (1978)e Burzio (1986) e os expressos no trabalho de Chomsky (1981) em

relação à caracterização da estrutura profunda como o nível que representa as funções gramaticais

tematicamente relevantes.

A hipótese elaborada por Baker (1988: 46) é a que as relações temáticas idênticas entre itens

são representadas por relações estruturais idênticas entre esses itens no nível da estrutura profunda.

20 Tradução: a. Mtsikana a-na-perek-er-edw-a mpiringidzo ndi mbidzi

Garota SP-PAST-dar-APPL-PASS-ASP pé.de.cabra por zebras

‘À garota foi dado o pé de cabra pelas zebras.’

b. *Mtsikana a-na-perek-edw-er-a mpiringidzo ndi mbidzi

Garota SP-PAST-dar-PASS-APPL-ASP pé.de.cabra por zebras

‘À garota foi dado o pé de cabra pelas zebras.’

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A hipótese é nomeada pelo autor como The Uniformity of Theta Assignment Hypothesis (UTAH). Se

essa hipótese for verdadeira, a Hipótese Inacusativa também será verdadeira. Além disso, essa

hipótese inclui a ideia proposta por Chomsky (1981) de que a estrutura profunda é o nível em que os

papeis temáticos são atribuídos. Essa hipótese proposta por Baker não é útil apenas para unificar essas

ideias que já estavam sendo desenvolvidas dentro do quadro teórico da Regência e Ligação. A UTAH

tem consequências também para os processos de mudança na função gramatical.

Em particular, essa hipótese afirma que as seguintes paráfrases temáticas, uma das quais

envolve uma estrutura causativa, têm as mesmas relações estruturais no nível da estrutura profunda.

As sentenças do exemplo (21) são da língua Chichewa (Bantu) e foram retiradas de Baker (1988: 21).

Neste nível de representação, a sentença com estrutura causativa é representada com o morfema

causativo sendo uma raiz verbal independente de uma oração encaixada. No nível da estrutura

profunda, ambas as sentenças abaixo têm a mesma representação sintática.

Como vimos no início desta seção, para o autor, os morfemas de estruturas causativas são

gerados na estrutura profunda como itens lexicais independentes. A alternânica encontrada no

morfema causativo -its-/-ets- ‘causar’ entre as vogais “i” e “e” nas sentenças do exemplo abaixo

ocorre por regras de harmonia vocálica da língua Chichewa. A principal diferença entre as duas

sentenças acima é que -gw- ‘cair’ e -its- ‘causar’ na primeira sentença são verbos morfologicamente

distintos, enquanto na segunda sentença esses verbos formam uma única palavra que é realizada na

posição do verbo -its ‘causar’. Segundo o autor, é natural relacionarmos essas duas sentenças

atribuindo-lhes estruturas sintáticas subjacentes paralelas em que o verbo -gw- ‘cair’ se move para a

posição do verbo -its- ‘causar’, como podemos observar em (21) e (22).

(21)21 a. Mtsikana a-na-chit-its-a kuti mtsuko u-na-gw-e

Girl do-cause that waterpot fall

‘The girl made waterpot fall’

b. Mtsikana a-na-gw-ets-a mtsuko

Girl fall-cause waterpot

‘The girl made waterpot fall’

21 Tradução: a. Mtsikana a-na-chit-its-a kuti mtsuko u-na-gw-e

Garota fazer-causar este pote.de.água cair

‘A garota fez o pote de água cair’

b. Mtsikana a-na-gw-ets-a mtsuko

Garota cair-causar pote.de.água

‘A garota fez o pote de água cair’

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(22)

2.6. A estrutura superficial

Segundo Baker (1988:49-51), enquanto o UTAH é um princípio da gramática universal que

caracteriza a estrutura profunda, o Princípio da Projeção caracteriza a estrutura superficial. Esse

princípio foi desenvolvido em Chomsky (1981). Entre outras implicações, segundo esse princípio da

gramática universal, processos transformacionais nem criam nem destroem a estrutura categorial que

é relevante para as propriedades lexicais dos itens, inclusive as relações temáticas que estes

determinam.

No que se refere à proposta de Baker de que os processos de mudança na função gramatical

são resultados de um tipo específico de movimento, o Princípio da Projeção afirmará que movimentos

de X0s devem preservar estrutura por meio de vestígios, exatamente da mesma maneira que

movimentos de XPs (BAKER, 1988:49-51).

Vejamos o exemplo abaixo, da língua Mohawk, e a representação superficial dessas sentenças

com IN após o movimento sintático. Os dados foram retirados de Baker (1988:46-50). Em (23),

observamos duas sentenças que são paráfrases temáticas uma da outra. A segunda sentença apresenta

IN: o nome nuhs ‘casa’ é incorporado ao verbo rakv ‘ser branco’.

(23)22 a. ka-rakv ne sawatis hrao-nuhs-a?

3N-be.white John 3M-house-SUF

‘John’s house is white’

b. hrao-nuhs-rakv ne sawatis

3M-house-be.white John

‘John’s house is white’

22 Tradução: a. ka-rakv ne sawatis hrao-nuhs-a?

3N-ser.branco João 3M-casa-SUF

‘A casa de João é branca’

b. hrao-nuhs-rakv ne sawatis

3M-casa-ser.branco João

‘A casa de João é branca’

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O nome nuhs ‘casa’ tem o mesmo papel temático nas duas sentenças. Portanto, a configuração

dessas duas sentenças naestrutura profunda deve ser a mesma. Em (24), vemos como seria a

representação dessas duas sentenças na estrutura profunda e como seria a representação superficial

da sentença com incorporação nominal após o movimento sintático, com o vestígios explicitado. As

representações foram retiradas de Baker (1988:50):

(24)

De maneira geral, sempre que uma palavra mostra sinais sintáticos de atribuir ou de receber

um papel temático do mesmo modo que constituintes morfologicamente independentes o fazem, a

UTAH sugere que esta parte da palavra aparece em uma posição estrutural independente na estrutura

profunda, como podemos observar na primeira representação explicitada no último exemplo.

Ao invés de uma análise em que o causativo, o aplicativo e a incorporação nominal são

gerados na estrutura profunda, a UTAH sugere que tais processos são apenas movimentos sintáticos

de X0s que devem preservar estrutura por meio de vestígios, exatamente da mesma maneira que

movimentos de XPs.

2.7. Movimento de um núcleo

Para mostrar que a incorporação é um subcaso da transformação mais geral conhecida na

literatura gerativa como Move-Alpha, Baker (1988:51-53) mostra que, quando ocorre um movimento

de um X0, a relação entre o traço deixado por X0 e seu antecedente que o c-comanda respeita as três

propriedades gerais apontadas por Chomsky (1981) em relação aos movimentos de XP e de Wh:

1) O vestígio é propriamente regido (isto é, ele é sujeito ao Princípio da Categoria Vazia);

2) O antecedente do vestígio não está em uma posição-theta.

3) A relação antecedente-vestígio satisfaz a condição de subjacência.

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O autor mostra que todos os cinco processos de mudança na função gramatical descritos em

diversas línguas do mundo podem ser entendidos como processos de incorporação (definido pelo

linguista como o movimento de um X0 que se incorpora em um Y0) e que, do ponto de vista estrutural,

a incorporação é um tipo de Move-Alpha. Tomadas essas duas conclusões em conjunto, Baker (1988)

mostra que os processos de mudança na função gramatical são estruturalmente idênticos aos

processos de construção de predicados complexos por meio de unidades elementares. Ou seja, para o

autor, esses processos de mudança na função gramatical são processos puramente sintáticos. A

morfologia associada a todos esses processos pode ser explicada como um efeito colateral dos

movimentos sintáticos associados a esses processos, movimentos sintáticos estes que obedecem e são

restringidos pelos princípios universais de outros Move-Alpha.

2.8. A incorporação nominal

A IN é vista por Baker (1988) como associada a três dos cinco processos de mudança na

função gramatical: a passiva, a antipassiva e a ascensão do possuidor. O capítulo da tese intitulado

“Noun Incorporation” é usado para mostrar que esses três processos de mudança na função gramatical

são, na verdade, subtipos de IN. Já no início deste capítulo, o autor afirma que a produtividade e a

transparência referencial da IN sugerem que esta é um processo sintático, e não um processo lexical

de formação de palavra (BAKER, 1988:80).

Como afirmado no início desta seção, há certas limitações nas construções com IN. A

literatura descritiva aponta para o fato de que certos tipos de IN não são atestados em nenhuma língua

natural. Por exemplo, em nenhuma língua, foi descrita uma IN de um sujeito agente. Os nomes

incorporados são, geralmente, argumentos internos do verbo, como explicado por Cabrera (2000:517-

524). Os argumentos externos que são incorporados não seriam argumentos externos verdadeiros, do

ponto de vista da teoria gerativa, se aceitarmos como verdade a Hipótese Inacusativa. Em sentenças

com IN de “sujeito”, os verbos são do tipo inacusativo (terminologia do modelo gerativo), de modo

que esses sujeitos seriam objetos do ponto de vista estrutural, ou seja, nasceriam como objetos na

estrutura profunda.

Portanto, os dados de diversas línguas apontam que a IN obedece a principal propriedade dos

movimentos de XP e de Wh, a de que o vestígio é propriamente regido. De fato, um X0 só pode se

mover para um Y0 que propriamente o governa. Segundo Baker (1988:53), os exemplos de IN citados

na literatura obedece esta condição: sempre um verbo, um nome ou uma preposição se move para um

verbo que governa o verbo/ preposição/nome incorporado.

Há uma controversa em torno da possibilidade de um argumento externo poder ser

incorporado ao verbo ou não. Para autores como Ozturk (2004), os exemplos citados na literatura

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como IN de agentes em línguas como o Turco, o Hindi e o Húngaro são, na verdade, exemplos de

pseudo-incorporação nominal. Ozturk (2004) estende para argumentos externos a análise feita por

Massam (2001) para argumentos internos. Segundo Ozturk (2004), em línguas que apresentam

pseudo-incorporação nominal, o nome pseudo-incorporado não está sujeito a nenhuma restrição em

termos de papeis temáticos. Tanto argumentos internos quanto argumentos externos podem ser

pseudo-incorporados, pois a pseudo-incorporação não está sujeita à restrição de que X0 só pode se

mover para um Y0 que propriamente o governa.

No capítulo intitulado Noun Incorporation, Baker (1988:76-146) busca explicar todas as

limitações descritas na literatura no que se refere ao fenômeno da IN. Em particular, o modelo

proposto pelo autor pretende explicar essa assimetria entre sujeito e objeto como elementos passíveis

de sofrer incorporação nominal nas línguas em que esse processo é verificado. O modelo formal

proposto por Baker neste capítulo explica essa assimetria como uma consequência dos princípios que

restringem o movimento sintático de qualquer natureza, em particular, o movimento de um X0. De

fato, os princípios universais propostos por Chomsky (1981) sugerem que a IN de um sujeito

estrutural no núcleo do VP seria impossível, tendo em vista que o vestígio deixado pelo X0 sujeito c-

comandaria o antecedente, o que viola um dos princípios relacionados a movimentos do tipo Move-

Alpha. Essa assimetria é imediatamente entendida se assumirmos que a IN é derivada sintaticamente,

com um movimento do tipo Move-Alpha (BAKER, 1988:82).

Segundo o autor, sua análise de IN é semelhante à feita por Belletti e Rizzi (1981) (BAKER,

1988:84-92) em relação ao clítico ne do italiano. Esses dois autores afirmam que o clítico é um item

nominal que é núcleo de um sintagma nominal que contém o quantificador na estrutura profunda. O

ne se move sintaticamente para o verbo, deixando um vestígio. As limitações encontradas nessa

transformação são as mesmas encontradas por Baker em relação à IN. Assim como a IN, a cliticização

do ne também apresenta a mesma assimetria entre o sujeito e o objeto da sentença. No modelo

proposto por Belletti e Rizzi (1981), essas propriedades são consequências dos princípios universais

que restringem o movimento sintático.

Outros fatos relevantes acerca de propriedades da IN são explicados e previstos pelo modelo

proposto por Baker (1988). Por exemplo, o fato de que nomes nunca podem ser incorporados de fora

de um sintagma preposicional. Se a IN é vista como um Move-Alpha, essa propriedade atestada

translinguisticamente pode ser explicada facilmente, já que a projeção máxima PP funcionaria como

uma barreira para o movimento do N (BAKER, 1988:86).

Ao estudar o processo de IN, o autor também traz propriedades estruturais importantes para o

desenvolvimento da teoria gerativa. Por exemplo, em relação à teoria do caso, Baker mostra que um

sintagma nominal cujo núcleo é incorporado não necessita de caso estrutural (BAKER, 1988:105-

108). O fato de esses NPs não precisarem de caso estrutural explica os exemplos de sentenças em que

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ocorre toda uma reestruturação dos argumentos da sentença, em uma estrutura conhecida na literatura

como ascensão do possuidor. Quando o núcleo de um objeto de um verbo que atribui caso acusativo

é incorporado, o potencial do verbo em atribuir caso acusativo não é exaurido, de modo que o verbo

atribuirá o caso estrutural acusativo para outro NP da sentença (BAKER, 1988:110).

Com base nas evidências de que esses sintagmas nominais que permitem que seu núcleo se

incorpore a outro núcleo não necessitam de caso estrutural, o que seria uma aparente violação do

Filtro de Caso, o autor repensa o porquê de NPs necessitarem de caso. Para o autor, essa propriedade

da IN não é uma exceção periférica na teoria do caso. Neste sentido, Baker (1988:112) busca uma

perspectiva em que esse fato seja previsível e explicável. O autor argumenta que o Filtro de Caso é

só um caso especial de um requerimento mais geral de “visibilidade”.

2.9. Poder explicativo do modelo proposto por Baker (1988)

O modelo formal proposto por Baker é satisfatório em seu intento de explicar as diversas

propriedades compartilhadas pelos processos conhecidos na literatura como IN, passiva, antipassiva,

ascensão do possuidor, aplicativo e causativo. O modelo proposto pelo autor é ao mesmo tempo

abrangente, simples e explicativo. Abrangente porque unifica vários fenômenos conhecidos pela

linguística descritiva em um único processo linguístico, nomeado por Baker como Incorporação (esta

entendida do ponto de vista estrutural). Simples porque esse processo geral de Incorporação nada

mais é do que um tipo específico de movimento, como visto extensivamente nos parágrafos anteriores.

Explicativo porque dá conta das propriedades compartilhadas por todos esses processos apresentados

como processos que são vistos tradicionalmente como relativamente independentes na linguística

descritiva.

Em relação à IN propriamente dita, há algumas questões a serem explicadas, contudo. Uma

questão que poderia ser levantada e que poderia abalar o poder explicativo do modelo de Baker é o

fato de que a produtividade da IN defendida pelo autor no capítulo “Noun Incorporation” não se

verifica no grau em que se deveria verificar. Em línguas em que há processos produtivos de IN, nunca

essa produtividade é irrestrita, mesmo quando se leva em consideração os princípios universais que

restringem um Move-Alpha. Em outras palavras, sentenças com IN que, a priori, respeitariam todos

os princípios de um movimento do tipo Move-Alpha são, apesar disso, agramaticais, embora

sentenças estruturalmente idênticas sejam gramaticais nas mesmas línguas.

Para Velázquez-Castillo (1995:676), excluir a semântica da análise da IN pode resultar em

perdas de generalizações. Para ela, devemos observar as diferenças semânticas entre estruturas com

IN e sem IN, para podermos explicar por que termos que designam determinadas partes do corpo

podem aparecer incorporados ao verbo, mas termos que designam outras partes do corpo nunca

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aparecem incorporadas. Os detalhes da argumentação da autora, bem como os exemplos relacionados,

podem ser encontrados no capítulo 4 dessa dissertação.

Segundo a tipologia proposta por Mithun (1984), no Tipo II de IN, o processo de IN não

diminui a valência verbal, pois um argumento oblíquo ocupa o espaço deixado pelo nome incorporado.

Em algumas línguas, esse tipo específico de IN geralmente ocorre junto ao processo de “ascensão do

possuidor”. Segundo a autora, geralmente, o nome possuído é inalienável e designa principalmente

alguma parte do corpo humano (Mithun, 1984:858). Contudo, é sabido que, pelo menos em algumas

línguas, só se permite a IN de termos que designam determinadas partes do corpo humano, e não

todas, mesmo que os demais pré-requisitos, de natureza sintática e morfológica, estejam satisfeitos.

Essa assimetria lexical, contendo forte viés semântico, precisa ser investigada mais a fundo.

Velázquez-Castillo (1995:687-702) observa que, em Guarani Paraguaio, as sentenças que

apresentam IN e ascensão do possuidor não ocorrem com qualquer parte do corpo humano. De fato,

há determinadas partes do corpo humano que são incorporáveis e há outras que não. Nesse artigo, a

pesquisadora mostra inclusive um padrão encontrado na língua: há uma tendência de os NIs nessas

estruturas serem termos que coincidem com os termos de nível básico das categorias partonômicas

para o corpo humano propostas por Andersen (1978).

Essa assimetria lexical encontrada por Velázquez-Castillo (1995) em relação aos nomes de

determinadas partes do corpo humano poderem ser incorporados e outros não o serem de jeito nenhum

é um problema para o modelo formal de Baker (1988), no sentido de que esse modelo não explica

nem prevê essa assimetria, embora tenha explicado outra assimetria importante (a do objeto paciente

em relação ao sujeito agente como elemento incorporável). Esta última assimetria pôde ser explicada

facilmente em termos estruturais e é uma simples consequência das restrições universais ao

movimento sintático, dentro do modelo da Regência e Ligação. Contudo, a assimetria lexical

encontrada por Velázquez-Castillo (1995) dificilmente poderia ser explicada em termos puramente

sintáticos. Para explicar essa assimetria lexical, provavelmente teríamos de colocar a semântica como

variável importante na explicação da gramaticalidade e da agramaticalidade de sentenças que

envolvem a incorporação nominal de nomes que designam partes do corpo humano.

2.10. A hipótese de pseudo-incorporação de Massam (2001)

Segundo Baker (2009), a análise de pseudo-incorporação de Massam (2001) propõe que o que

tem sido chamado de IN na língua Niuean é simplesmente o resultado de formar um sintagma verbal

por meio de um Merge sintático comum. Massam (2001) defende que o que ocorre na língua Niuean

não é um movimento de núcleo como proposto por Baker (1988; 2009).

Como podemos observar no exemplo abaixo, uma combinação nome+modificador pode ser

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incorporada em Niuean, e não apenas o núcleo. Para autora, isso seria um exemplo de Merge, e não

de movimento de núcleo. Em (25), observamos a incorporação do nome kapiniu ‘prato’ e o

modificador kiva ‘sujo’ ao verbo holoholo ‘lavar’.

(25)23 Ne holoholo kapiniu kiva fakaeneene a Sione.

PAST wash dish dirty carefully ABS Sione

‘Sione washed dirty dishes carefully.’

Baker (2009) defende que esse processo seria de outra natureza, similar mas não igual aos

casos de movimento de núcleo. Por exemplo, em Mapudungun, é agramatical os casos em que o nome

incorporado recebe um modificador, ao contrário dos casos de pseudo-incorporação em Niuean. Em

(26), na segunda sentença, observamos que pulku ‘vinho’ pode vir incorporado ao verbo ngilla

‘comprar’. Quando o modificador küme ‘bom’ aparece junto ao nome incorporado polku ‘vinho’, a

sentença é agramatical em Mapudungun.

(26)24 a. Pedro ngilla-fi-y küme pulku. (FM)

Pedro buy-IND-3SS good wine

‘Pedro bought good wine.’

b. Pedro ngilla-(*küme)-pulku-pe-y.

Pedro buy-good-wine-PAST-IND.3SS

‘Pedro bought (*good) wine.’

Para Baker (2009), a análise feita por Massam (2001) parece ser válida para Niuean, mas não

para Mapudungun ou Mohawk. O autor afirma que parece haver diferenças no comportamento da IN

nas línguas. Por exemplo, modificadores podem incorporar junto com os nomes em Niuean, mas

nunca em Mapudungun. O autor termina o artigo afirmando que as construções com IN nas línguas

parecem ser diferentes sintaticamente o suficiente para apoiar análises distintas. Para Mapundungun

e Mohawk, Baker (2009) defende que a melhor análise sintática ainda é a tese do movimento de

núcleo.

23 Tradução: Ne holoholo kapiniu kiva fakaeneene a Sione.

PAST lavar prato sujo cuidadosamente ABS Sione

‘Sione lavou pratos sujos cuidadosamente.’

24 Tradução: a. Pedro ngilla-fi-y küme pulku. (FM)

Pedro comprar-IND-3SS bom vinho

‘Pedro comprou vinho bom.’

b. Pedro ngilla-(*küme)-pulku-pe-y.

Pedro comprar-bom-vinho-PAST-IND.3SS

‘Pedro comprou (*bom) vinho.’

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3. O conceito de “palavra” e suas implicações para o conceito de “incorporação nominal”

Haspelmath (2011) defende que não há um bom critério para diferenciar palavra de morfema

que seja válido para todas as línguas naturais, de modo que a distinção entre sintaxe e morfologia só

poderia se dar dentro de regras estabelecidas por cada língua em específico, e não por uma questão

universal da linguagem humana. O autor examina 10 critérios distintos comumente utilizados na

literatura linguística do que seria palavra: potential pauses, free occurrence, mobility,

uninterruptibility, non-selectivity, non-coordinatability, anaphoric islandhood, nonextractability,

morphophonological idiosyncrasies, deviations from biuniqueness. Para cada um deles, Haspelmath

(2011) mostra que o critério não é nem necessário nem é suficiente por si só para se definir palavra.

O autor defende que “palavra” até pode ser definido como um conceito de uma língua específica, mas

isso não é suficiente para se concluir que “sintaxe” e “morfologia” são mecanismos independentes

universalmente.

Por exemplo, segundo o critério de pausas potenciais (potencial pauses), o autor mostra que

este critério não é nem necessário nem suficiente para a indicação de um limite claro do que seja

palavra. Clíticos, argumenta o autor, são geralmente considerados palavras, mas nenhuma pausa é

possível entre um clítico e seu hospedeiro. Além disso, em línguas em que os linguistas

tradicionalmente identificam palavras particularmente longas, parece haver uma tendência de

permitir pausas no meio de palavras.

Nesta seção, não serão apresentados todos os argumentos do autor para concluir que nenhum

dos 10 critérios citados acima são válidos para todas as línguas; apenas a conclusão do artigo e a ideia

de indivisibilidade da sintaxe e morfologia são importantes para o desenvolvimento desta seção. Para

mais detalhes sobre esse tema, vide Haspelmath (2011).

Para Haspelmath, em cada língua, pode-se encontrar um critério que defina suficientemente

bem o que seja uma palavra e o que seja morfema. Contudo, no fundo, os critérios são apenas

simplificações heurísticas para ajudar a identificar o que seria uma palavra em uma determinada

língua. Quando analisamos todas as línguas naturais, não conseguimos encontrar um critério que seja

válido simultaneamente em todas as línguas e que seja suficiente para englobar todas as

complexidades e nuances que cada língua apresenta.

Haspelmath (2011:28) relembra que, na sessão de encerramento do 6º Congresso

Internacional de Linguistas, em Paris, em 1948, o linguista Joseph Vendryes, então presidente do

congresso, afirmou que a linguística estava em crise, tendo em vista que não havia um consenso nem

do que seria uma “palavra”. Após analisar os 10 critérios citados acima, bem como algumas

combinações deles, Haspelmath conclui que ele não pode oferecer uma conclusão mais otimista do

que Joseph em 1948 sobre um consenso em torno do que seria uma “palavra”.

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Contudo, para Haspelmath, essa falta de uma definição que seja válida universalmente não

expressa uma crise para a linguística, pois devemos levar em consideração que ainda somos muito

influenciados pela tradição ortográfica e pelos nossos conhecimentos em algumas poucas línguas

naturais que são extremamente estudadas e bem conhecidas. Segundo Haspelmath (2011:28), a busca

por uma definição do conceito de “palavra” parece ser guiada pela pressuposição não dita de que algo

como a palavra deve existir em línguas, assim como existe na ortografia. Contudo, uma abordagem

científica da estrutura linguística não deve tomar nenhum conceito tradicional como automaticamente

válido. Além disso, nós devemos descrever cada língua em seus próprios termos, e não assumir

aprioristicamente que um conceito que foi útil para uma língua deva ser também aplicável para outra

língua.

Ao analisar a morfologia de diversas línguas, Comrie (1989:46) propõe abandonarmos uma

tipologia morfológica em termos de um único parâmetro. Para Comrie, podemos observar

basicamente dois parâmetros que operam nos diversos tipos de línguas do ponto de vista da

morfologia: um dos parâmetros seria o número de morfemas; o outro parâmetro seria a segmentação

dos morfemas, ou seja, a quantidade de informações que um morfema carrega. No que diz respeito

ao número de morfemas, os dois extremos seriam as línguas isolantes25 e as línguas polissintéticas26.

No que diz respeito à quantidade de informações que carrega um único morfema segmentável, os dois

extremos seriam as línguas aglutinantes27 (em que a segmentação entre os morfemas é óbvia) e as

línguas fusionantes 28 (“flexionais”) (em que não há segmentação). O autor chama o primeiro

parâmetro de “índice de síntese” (index of synthesis) e o segundo parâmetro de “índice de fusão”

(index of fusion).

Para analisarmos o índice de síntese de uma língua, precisamos saber se o que estamos

analisando é uma palavra ou se é um morfema. Comrie (1989:48), assim como Haspelmath (2011:28),

também admite que a ortografia pode atrapalhar nossa análise e, portanto, nossa classificação

tipológica entre as línguas. Para Comrie, na análise de exemplos banais como the man ‘o homem’ em

Inglês ou je le vois ‘eu o vejo’ em Francês, a ortografia nos ilude e nos faz concluir que essas línguas

25 As línguas isolantes não têm flexão, de modo que morfemas e palavras se confundem ou a distinção não faz sentido.

As informações gramaticais são expressas por palavras independentes. Uma língua prototípica é o Vietnamita, da família

Austro-Asiáticas.

26 As línguas polissintéticas usam muitos afixos e frequentemente incorporam o que outras línguas expressariam por meio

de nomes, advérbios e verbos. Uma palavra pode carregar muitos morfemas. As línguas Yupik, da família Esquimó-

Aleúte, são línguas polissintéticas.

27 As línguas aglutinantes unem afixos, em que cada um deles tipicamente só representa uma informação gramatical. Ou

seja, os morfemas não são fundidos com outros, de modo que um morfema carregue mais de uma informação. O Turco,

da família Altaica, é um exemplo de língua aglutinante.

28 As línguas fusionantes, também conhecidas como línguas flexionais, usam morfemas que são representados por afixos

em que cada um deles carrega mais de uma informação gramatical, de modo que é difícil identificar as diferentes partes

dos afixos. O Português é um exemplo de língua fusionante.

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têm um nível de síntese menor do que fato elas têm no atual estado da língua. Se tomarmos a definição

de plavra como forma livre mínima, para o autor, não há razão para assumirmos que the, je ou le são

formas livres e, portanto, palavras distintas. Embora sejam “palavras” distintas na tradição ortógráfica,

os falantes nativos não as pronunciam em separado. Se a expressão je le vois é contada como uma

palavra ou como três pode fazer uma diferença significante para o índice de síntese do Francês.

Outro problema, ainda mais sutil, relacionado à análise do índice de síntese das línguas surge

quando vamos contar com exatidão o número de morfemas em línguas em que há morfemas vazios

fonologicamente ou morfemas portmanteau. Comrie (1989:48) cita a formação do singular/plural em

línguas como o Inglês e o Russo e a conjugação verbal de línguas como o Espanhol e o Turco, para

mostrar a dificuldade em chegarmos a uma conclusão quanto ao nível de síntese de uma língua. Por

exemplo, em Inglês, o plural cats ‘gatos’ é claramente dois morfemas, mas é menos claro o número

de morfemas no singular cat: apenas um morfema ou dois morfemas, um lexical cat mais um morfema

gramatical nulo? Em termos de comparação entre as línguas, uma decisão pode ser importante para

as estatísticas envolvidas, visto que se cat consiste de apenas um morfema, então o Inglês será

reduzido no grau de síntese relativo ao Russo, onde o singular košk-a tem um sufixo assim como o

plural košk-i. Ao analisarmos um verbo em Espanhol como cantas ‘cantas’, deveríamos analisá-lo

como dois morfemas (raiz cant- ou canta- e sufixo -s ou -as) ou deveríamos fatorar todas as categorias

que estão fusionadas no final do verbo (segunda pessoa, singular, presente, modo indicativo, primeira

conjução), resultando em seis morfemas junto com o morfema lexical? Embora uma decisão

consistente possa ser feita, ao menos arbitrariamente, a decisão feita irá alterar radicalmente a

comparação entre uma língua como o Espanhol, em que ocorre comumente morfemas do tipo

portmanteau, e uma língua aglutinante como o Turco, em que há pouca ou nenhuma controvérsia

envolvendo o número de morfemas em uma palavra, exceto talvez pela contagem do morfema nulo

Como vimos no início desta seção, Haspelmath (2011:28) defende que devemos descrever

cada língua em seus próprios termos, sem assumirmos aprioristicamente que um conceito que é válido

em uma língua em específico possa/deva ser aplicável para outra língua. Para este autor, não há uma

boa base para dividirmos o domínio da morfossintaxe em “morfologia” e “sintaxe”, de modo que os

linguistas que trabalham com generalizações que fazem uma referência necessária para uma noção

universal do que seja palavra devem estar atentos a suas generalizações, pois elas podem estar

baseadas em uma suposição inverificável ou errônea.

O autor conclui que não há nenhuma definição de “palavra” na literatura linguística atual que

seja aplicável a todas as línguas naturais. Contudo, para o autor, isso não é um problema para a

linguística descritiva, já que noções ad hoc poderiam ser usadas de forma consistente para cada língua

em específico e frequentemente seria possível definir o que seja “palavra na língua X”, de tal maneira

que a ortografia seja prevista pela definição. O problema é quando queremos comparar as línguas e

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agrupá-las em grupos tipológicos, como Comrie estava fazendo ao propor os parâmetros de síntese e

de fusão para comparar as línguas segundo sua morfologia. Ou seja, o problema de não termos uma

definição universal do que seja palavra, conclui Haspelmath (1989:29), aparece quando queremos

comparar, por exemplo, as línguas em termos de analiticidade versus sinteticidade. Para uma questão

como esta, precisamos de conceitos comparativos e aceitos universalmente, caso contrário a

comparação não seria muito lógica.

A conclusão a que chega o pesquisador é que, como não sabemos o que são palavras do ponto

de vista universal, não temos base suficiente para separar o domínio da morfologia do domínio da

sintaxe. Segundo Haspelmath (2011:29), o estudo da estrutura linguística que lida com combinações

de sinais pode ser chamada de morfosintaxe e para propósitos teóricos esta é melhor vista como um

domínio unitário, e não dois domínios independentes.

O que essa discussão diz respeito à IN? Em primeiro lugar, se não temos uma definição de

“palavra” válida para todas as línguas, também a definição de IN estará comprometida, já que esta

última utiliza o conceito de palavra em sua definição. Além disso, se não podemos separar o domínio

da morfologia e da sintaxe, não há como dizer que a IN é um processo morfológico ou sintático.

Se definirmos IN como um tipo de composição de palavra, como propõe Mithun (1984),

entraremos consequentemente na discussão de se há uma boa definição do que seja composição de

palavra e na discussão de como diferenciar uma composição de um sintagma sintático. Segundo

Rochelle Lieber & Pavol Štekauer (2009:14), quase não há critérios confiáveis para distinguir

composições de sintagmas.

Uma possibilidade de nos livrarmos desse problema conceitual seria chegarmos a uma

definição tipológica de IN que não se apoiasse exclusivamente neste conceito. Essa é a sugestão dada

por Haspelmath em um artigo de 06/05/201229, em seu blog profissional. Segundo o autor, nos

últimos anos, o conceito de “incorporação nominal” tem sido ampliado por diversos linguistas que

têm ressaltado amplamente as características semânticas da IN.

O autor propõe que, quando um termo adquire muitos sentidos, como é o caso do termo

“incorporação”, o melhor a se fazer é simplesmente abandonar o tal termo polissêmico e usar outros

termos para definir o processo linguístico em análise. No caso da IN, o autor faz um esboço de como

seria uma generalização que englobasse, entre outros fenômenos, o que chamamos de IN, mas que

não utilizasse o termo “incorporação”. Para ele, se um nome é usado como um argumento, mas é

indefinido, não se refere a um referente específico, tem um escopo estreito, é neutro de número

(number-neutral), então as línguas naturais tendem a expressar este nome sem artigo, tendem a não

permitir modificadores e tendem a dar-lhe pouca liberdade posicional com relação ao verbo. Nesta

29 Disponível em: http://dlc.hypotheses.org/135

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última definição, não se utilizou o conceito de palavra. Além disso, o conceito é bem geral e engloba

não só o que é descrito na literatura como incorporação nominal como outros fenômenos como a

proibição de artigos e modificadores com substantivos em determinados contextos.

O autor afirma que esta última definição, de caráter mais semântico, poderia ser vista como

uma generalização do que seria IN formal. Em sua visão, esta última definição é equivalente à

afirmação de que “nomes incorporados formalmente tendem a ser incorporados também

semanticamente”, mas sem o uso do termo “incorporação nominal”. O autor conclui seu artigo

afirmando que esta última definição tem muito mais chances de ser testada do que a correspondente

afirmação que se utiliza do indefinível termo “incorporação”.

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4. Incorporação semântica e incorporação nominal de partes do corpo

4.1. Incorporação semântica

Como vimos na seção anterior, a discussão acerca da natureza da IN vai além da discussão

entre se se trata de um fenômeno sintático ou de um fenômeno morfológico. Essa discussão pode ser

entendida como uma discussão lateral de uma discussão mais abrangente: se há a possibilidade de

separar o campo da morfologia do campo da sintaxe. Como veremos na seção abaixo, essa discussão

remonta a uma discussão ainda mais basilar: é possível ter uma definição universal do que seria

palavra? Sem uma definição translinguística de palavra, sempre teremos de admitir que, embora

possamos definir o que seria uma morfologia e uma sintaxe em termos de uma língua em específico,

não podemos definir a morfologia e a sintaxe como elementos separados e independentes dentro da

cognição humana.

Embora essa discussão conceitual em torno da IN seja produtiva e até possa contribuir para o

desenvolvimento da teoria linguística em geral, há um senão potencialmente problemático: se não

podemos definir o que é uma palavra translinguisticamente e se não podemos separar a sintaxe da

morfologia, então a IN não pode ser bem definida em termos universais e translinguísticos, pelo

menos não no sentido em que vem sendo utilizado na literatura. Se utilizarmos as definições clássicas

de IN, sempre definimos a IN em termos do que é palavra para cada língua em questão e, portanto, o

processo de IN teria de ser entendido sempre em termos de cada língua em questão, e não em termos

translinguísticos.

Qual a contribuição de um estudo tipológico da IN, se não podemos defini-la em termos

universais? Talvez a contribuição venha exatamente em deixarmos de lado as definições que usem a

sintaxe e/ou a morfologia como centrais para descrever este processo. Ao analisar os dados sob uma

perspectiva semântica, por exemplo, talvez possamos entender esse fenômeno como consequência de

outros fenômenos semânticos mais abrangentes, que talvez se expressem de outra forma em outras

línguas, daí por exemplo o fato de nem todas as línguas naturais apresentarem o processo de IN. Há

a possibilidade de definirmos a IN em termos semânticos? A teoria semântica poderia explicar e

prever todos os comportamentos apontados pelas obras já consagradas na literatura descritiva?

Embora defenda a hipótese lexicalista, Mithun (1984:847) admite já no início de seu artigo

que esse processo de composição de palavra seria especial e que seria o processo mais sintático entre

todos os processos morfológicos. Alguns casos de Tipo IV de IN são especialmente desafiadores para

a hipótese lexicalista: como vimos na seção sobre a hipótese lexicalista, em alguns casos, a parte não

incorporada parece ser o adjunto do núcleo de um sintagma nominal, o que reforça a tese de estarmos

diante de um caso explícito em que o núcleo do sintagma nominal se incorporou ao verbo por meio

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de um movimento sintático e que o que temos como “nome independente” seria apenas os adjuntos

desse sintagma nominal.

Analogamente, Baker (1988) é convincente em sua tese de que a morfologia verbal associada

a processos como a passiva, a antipassiva e a ascensão do possuidor são apenas consequências dos

movimentos sintáticos associados a esses processos e de que todos esses três fenômenos podem ser

entendidos como subtipos de IN, esta definida como um movimento de um núcleo de um sintagma

nominal que se incorpora ao núcleo de um sintagma verbal que o governa. Contudo, o modelo

proposto por Baker (1988) não consegue predizer a assimetria lexical de termos de partes do corpo

humano em processos como a ascensão do possuidor, o que daria indícios de que a IN pode ser mesmo

um tipo de composição de palavras e, assim como outros tipos de formação de palavras, apresentaria

uma assimetria lexical.

A discussão de se a IN é lexical ou se é sintática parece atravessar o século sem um fim

definitivo. Em seu trabalho sobre o Hindi, Mohanan (1995) estuda diversos aspectos morfológicos,

sintáticos, fonológicos e semânticos de certas construções N-V, para defender que essas construções

são IN em Hindi. Já no início do artigo, Mohanan (1995:75-76) afirma que há evidências de que se

trata de um processo lexical em Hindi, mas também há uma série de evidências que apontam para um

fenômeno sintático.

Em Farkas e Swart (2003), encontramos um modelo proposto que tenta explicar tanto a

natureza morfológica como a natureza sintática como consequências da natureza semântica da IN. Os

dois autores tentam propor uma explicação semântica para a IN. Para Farkas & Swart (2003:5), o

fenômeno da IN é relevante para pelo menos quatro problemas clássicos da teoria semântica:

argument structure (estrutura do argumento), bare plurals (plurais nus), scope (escopo) e number

interpretation (interpretação de número). O tema seria relevante também para uma questão central da

semântica dinâmica, a transparência do discurso.

Já no início do trabalho, Farkas e Swart (2003:18) afirmam que a distinção entre a morfologia

e a sintaxe não é o que importa em seu modelo explicativo, o que importa é a “transparência do

discurso”. Para esses autores, a questão central é se o nome incorporado é discourse transparent ou

discourse opaque. Segundo Farkas & Swart (2003:17), os nominais que podem servir como

antecedentes de pronomes no discurso são chamados de discourse transparent, enquanto aqueles que

não podem são chamados de discourse opaque. Assim, a questão relevante para os autores é se os

nomes incorporados podem ou não servir como antecedentes de pronomes no discurso. Os autores

defendem que a resposta definitiva de se o nome incorporado é discourse transparent ou discourse

opaque depende de alguns fatores, tais como a língua em que se está considerando, o número

morfológico do nome incorporado, e o tipo de anáfora considerada.

Farkas & Swart (2003:21) se utilizam do arcabouço teórico da Teoria da Representação do

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Discurso (Discourse Representation Theory), modelo teórico que tenta conectar a semântica do nível

da sentença com a semântica do nível do discurso. A Teoria da Representação do Discurso foi

elaborada por Kamp & Reyle (1993). Segundo Van Eijck (2005:1), neste modelo semântico formal,

cada nova sentença é interpretada em termos da contribuição que ela dá para um pedaço existente do

discurso interpretado. As condições para que as sentenças sejam interpretadas são dadas como

instruções para atualizar a representação do discurso.

A ideia básica por trás desse modelo teórico é que um discurso em uma língua natural (ou seja,

uma sequência de sentenças emitidas pelo mesmo falante) é interpretado dentro do contexto de uma

estrutura de representação. Assim, o resultado do processamento de um pedaço de discurso no

contexto de representação R é uma nova estrutura de representação R', esta última podendo ser vista

como uma espécie de versão atualizada de R. Portanto, dentro desse modelo de semântica formal, a

interpretação semântica é tratada como um processo dinâmico que funciona sempre em dois níveis:

no nível da sentença e no nível do discurso. Segundo Van Eijck (2005:3), o processamento de um

pedaço do discurso é incremental. Cada nova sentença a ser processada é relacionada ao contexto da

estrutura que resulta de processar sentenças anteriores.

Farkas & Swart (2003:3) afirmam que o termo semantic incorporation (incorporação

semântica) foi introduzido por Van Geenhoven (1998), cujo trabalho destaca as similaridades

semânticas entre “nominais incorporados” na língua West Greenlandic e os “indefinidos” fracos e de

escopo estreito em Inglês e em Alemão. Independentemente das características morfossintáticas de

cada língua em questão, Van Geenhoven atribui o mesmo selo tanto para os indefinidos do Inglês e

do Alemão quanto para os nominais incorporados do West Greenlandic, em virtude das semelhanças

semânticas entre esses processos. Para Farkas e Swart, o fenômeno da IN chamou a atenção de

semanticistas não por causa da conexão entre IN e a transparência do discurso, mas por causa de sua

relevância para os estudos de escopo e para os estudos de semântica de sintagmas nominais. Segundo

Farks & Farkas (2003:3), uma propriedade estável transliguisticamente dos nominais incorporados é

sua incapacidade de tomar um escopo maior.

A semântica parece desempenhar um papel relevante na questão que envolve a incorporação

de partes do corpo humano. O trabalho da Velázquez-Castillo (1995) chama atenção para o fato de

que em Guarani Paraguaio certas partes do corpo humano nunca são incorporadas, mesmo quando

empregadas em exemplos estruturalmente iguais a outros exemplos com partes do corpo humano que

são comumente incorporadas. Por que essa assimetria? Por que o nome “unha” nunca é incorporado,

enquanto o nome “mão” pode ser? Pode ser que o nome “unha” não tenha as mesmas propriedades

semânticas que “mão”. Como observou Farks & Farkas (2003:3), uma propriedade dos nominais

incorporados encontrada em diversas línguas é a incapacidade de esses nominais tomar um escopo

maior. Um modelo puramente sintático dificilmente consegueria explicar por que alguns nomes nunca

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são incorporados, mesmo quando estruturalmente são empregados de maneira análoga a outros nomes

que são comumente incorporados.

4.2. Partes do corpo humano e ascensão do possuidor

Como vimos nas seções iniciais deste texto, em algumas línguas, o Tipo II de IN geralmente

ocorre junto a outro processo conhecido na literatura como “ascensão do possuidor” (AP)

(VELÁZQUEZ-CASTILLO, 1995:685-702; MURO, 2009:87). Contudo, há línguas que só permitem

a IN de termos que designam determinadas partes do corpo humano. Um exemplo citado na literatura

é o do Guarani Paraguaio. Velázquez-Castillo (1995:687-702) observa que, nesta língua, a IN e a AP

não ocorrem com qualquer parte do corpo humano: há determinadas partes do corpo humano que são

incorporáveis e há outras que nunca o são, mesmo quando se satisfazem outros pré-requisitos da

língua para que haja IN.

Nesse artigo, a pesquisadora mostra que há uma tendência de os NIs nessas estruturas serem

termos que coincidem com os termos de nível básico das categorias partonômicas para o corpo

humano propostas por Andersen (1978), segundo o qual há uma tendência universal nas línguas

naturais para designar determinadas partes do corpo humano com formas básicas, que não são

morfologicamente derivadas de outras palavras. Essas partes do corpo mais proeminentes seriam do

nível básico das categorias partonômicas.

O conceito de categorias partonômicas se refere ao fato de que as partes do corpo humano

podem ser categorizadas como uma relação de “parte de”. Por exemplo, o dedo da mão é considerado

em português como uma parte da mão, mas não do braço. Não imaginamos o dedo como uma parte

do braço, mas sim da mão. As relações partonômicas podem ser diferentes de língua para língua, mas

Andersen (1978) observou que há um padrão universal em designar determinadas partes do corpo

que seriam mais proeminentes e que seriam também as primeiras partes do corpo a ser adquiridas na

aquisição da linguagem pelas crianças.

Abaixo, temos um exemplo de IN + AP em Guarani Paraguaio. O exemplo foi retirado da

obra de Velázquez-Castillo (1995:687). No exemplo (27), o nome hova ‘rosto/face’ é incorporado ao

verbo hei ‘lavar’, enquanto o possuidor do rosto, pe-mitã ‘aquela criança’, passa a ser o objeto direto

do verbo. A segunda sentença do exemplo abaixo é a versão sem o processo de IN.

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(27)30 a. a-hova-hei-ta pe-mitã

‘1AC-face-wash-FUT that-child’

‘I’ll wash that child’s face’

lit. ‘I’ll face-wash the child’

b. a-johei-ta pe-mitã rova

1AC-wash-FUT that-child face

‘I’ll wash that child’s face’

Há exemplos de IN + AP que envolvem partes de plantas em vez de partes do corpo humano.

Por exemplo, em Munduruku, encontramos o exemplo abaixo, retirado de Gomes (2008:36). Em (28),

o núcleo do sintagma nominal, tup- ‘folha’, foi incorporado ao verbo 'at ‘cair’, enquanto o adjunto

do sintagma, ako ‘bananeira’, ascende à posição de sujeito, que era a posição ocupada pelo núcleo.

(28) ako o'=tup-'at

bananeira 3S=R2.folha-cair.PRF

‘A folha da baneira caiu’

O processo de AP não envolve necessariamente IN em outras línguas, a ocorrência de nenhum

desses dois processos é condição necessária para a acorrência do outro. Por exemplo, em Português,

quando se diz “Maria beijou João na bochecha”, ocorre uma ascenção do possuidor, já que o possuidor

da bochecha ascendeu à posição de objeto direto do verbo, enquanto o núcleo do sintagma “a

bochecha de João” passou a desempenhar o papel de argumento oblíquo na sentença.

Segundo Velázquez-Castillo (1995:686), embora as abordagens teóricas do processo de AP

tenham focado em seus aspectos estruturais, outros estudos sugerem que considerações semânticas

devam ser levadas em conta, visto que a AP é invariavelmente acompanhada de restrições semânticas.

Segundo a autora, os estudos de Croft (1985) e Tuggy (1980) propõem abordagens semânticas para

a AP. De acordo com Croft (1985:46-47, apud Velázquez-Castillo: 1995:686-687), o principal fato

que permite a AP é que algo é diretamente afetado por uma ação pelo fato de ser o possuidor da

entidade que a ação afeta.

Velázquez-Castillo (1995:686-687) também cita Wierzbicka (1988), que também tem uma

abordagem semântica segundo a qual a AP é um mecanismo de escolha para expressar uma

conceitualização de partes do corpo como integralmente conectadas a seus possuidores e que esta

construção gramatical só é permitida com um número limitado de nomes, entre os quais os termos de

30 Tradução: a. a-hova-hei-ta pe-mitã

‘1AC-rosto-lavar- FUT aquela-criança’

‘Eu lavarei o rosto daquela criança’

lit. ‘Eu rosto-lavarei a criança’

b. a-johei-ta pe-mitã rova

1AC-lavar-FUT aquela-criança rosto

‘Eu lavarei o rosto daquela criança’

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parte do corpo são os mais proeminentes.

Para Velázquez-Castillo (1995), há evidências de que em Guarani Paraguaio é o possuidor, e

não a parte do corpo incorporada ao verbo, o verdadeiro objeto do verbo. A primeira evidência é que,

quando o possuidor é um nome lexical, como em (29), o possuidor ocupa a posição do objeto direto.

(29)31 a. a-hova-hei-ta pe-mitã

‘1AC-face-wash-FUT that-child’

‘I’ll wash that child’s face’

lit. ‘I’ll face-wash the child’

b. a-johei-ta pe-mitã rova

1AC-wash-FUT that-child face

‘I’ll wash that child’s face’

A segunda evidência para o possuidor ser o verdadeiro objeto é que, quando o sujeito é um

pronome de primeira pessoa e o objeto é um pronome de segunda pessoa, um prefixo portmanteau

ro-, que indexa sujeito de primeira pessoa e objeto de segunda pessoa, é prefixado ao complexo verbal,

como podemos observar em (30).

(30)32 a. (che) ro-hova-hei

I 1S/2O-face-wash

‘I washed your face’

lit. ‘I face-wash you’

b. (che) a-johei nde-rova

I 1AC-wash 2IN-face

‘I washed your face’

A terceira evidência é que a passiva torna o possuidor, e não a parte do corpo, o sujeito da

sentença passiva, como indicado pelo marcador de concordância a-, marcador de sujeito de primeira

pessoa, como podemos observar em (31).

31 Tradução: a. a-hova-hei-ta pe-mitã

‘1AC-rosto-lavar- FUT aquela-criança’

‘Eu lavarei o rosto daquela criança’

lit. ‘Eu rosto-lavarei a criança’

b. a-johei-ta pe-mitã rova

1AC-lavar-FUT aquela-criança rosto

‘Eu lavarei o rosto daquela criança’

32 Tradução: a. (che) ro-hova-hei

Eu 1S/2O-rosto-lavar

‘Eu lavo seu rosto’

lit. ‘Eu rosto-lavo você’

b. (che) a-johei nde-rova

Eu 1AC-lavar 2IN-rosto

‘Eu lavei seu rosto’

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(31)33 (che) a-je-hova-pete ange pyhare jeroky-ha-pe

I 1AC-PASS-face-slap last night dance-NOM-in

‘I was slapped in the face last night at the dance’

A quarta evidência é que se o possuidor é o mesmo que o sujeito, um prefixo reflexivo é

colocado no complexo verbal, como podemos observar em (32) com o prefixo verbal -j, marcador de

reflexivo na língua.

(32)34 a. a-j-ova-hei

1AC-RFL-face-wash

‘I wash my face’

lit. ‘I face-wash myself’

b. a-johei che-rova

1AC-wash 1IN-face

‘I wash my face’

Velázquez-Castillo (1995:689) afirma que, além desses testes citados nos parágrafos

anteriores, o possuidor satisfaz a caracterização semântica de objeto. Para a autora, as propriedades

semânticas de um objeto prototípico são as seguintes: 1) alto grau de individualização; 2) completa

afetação pela ação designada; 3) alto grau de saliência. Estas propriedades semânticas colocam os

objetos em um espectro contínuo em que, quanto mais forte essas propriedades estiverem presentes,

mais prototípico é o objeto. Geralmente, conclui a autora, partes do corpo ranqueam muito baixo em

cada um desses parâmetros semânticos, em comparação ao possuidor da parte do corpo humano. As

partes do corpo carecem de individualização, já que elas são conceitualmente relacionadas ao seu

possuidor, as partes não são totalmente distintas de seu possuidor. Além disso, por essa falta de

individualização, as partes do corpo também ranqueam baixo no parâmetro de afetação pela ação,

pois caso uma ação seja direcionada para uma parte do corpo, a ação afetará a parte, mas igualmente

afetará o todo, ou seja, o possuidor, pois há uma relação clara de contiguidade entre os dois. Ademais,

visto que os possuidores das partes (especialmente, se humanos) ranqueam mais alto em termos de

empatia, os possuidores tendem a naturalmente ser mais importantes para os falantes que suas partes.

33 Tradução: (che) a-je-hova-pete ange pyhare jeroky-ha-pe

Eu 1AC-PAS-rosto-bater última noite dança-NOM-em

‘Eu fui esbofeteado na face noite passada na dança’

34 Tradução a. a-j-ova-hei

1AC-RFL-rosto-lavar

‘Eu lavo meu rosto’

lit. ‘Eu rosto-lavo eu mesmo’

b. a-johei che-rova

1AC-lavar 1IN-rosto

‘Eu lavo meu rosto’

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A autora conclui que, por esses motivos, uma ação direcionada para uma parte do corpo tende a ser

retratada como afetando a pessoa, e não a parte.

Se assumirmos a definição semântica de objeto como um elemento que tem alto grau de

individualização, completa afetação pela ação designada e alto grau de saliência, concluímos que não

há nenhum desencontro entre a “superfície” e “relações abstratas”, já que o possuidor se comporta

como um objeto nas sentenças com IN porque o possuidor é de fato o objeto, a entidade relevante e

individualizada que é afetada pela ação.

Termos que designam partes do corpo e que são usados como NIs tendem a exibir pouco

comportamento nominal, no sentido de que eles não aceitam modificadores nem flexão. Segundo

Velázquez-Castillo (1995:694-695), Hopper e Thompson (1984) e Fox (1981) mostram que a classe

de termos de parte do corpo mostra baixa categorialidade. Este comportamento torna esses termos

candidatos fracos para a função de objeto. Velázquez-Castillo propõe que os NIs de uma forma geral

poderiam ser considerados satélites do verbo, em que satélite é definido como um elemento interno

do complexo verbal que forma uma unidade semântica e formal com a raiz verbal.

Em Guarani Paraguaio, a unidade formal entre o NI, que é um satélite, e o verbo pode ser

observada no exemplo abaixo. Em (33), observa-se que o circunfixo de negação nd- ... -i não é

colocado antes e depois da raiz verbal pete ‘bater’, mas sim antes e depois de todo o complexo verbal,

que inclui também o nome po ‘mão’ (quando incorporado, torna-se -o-.

(33)35 (che) nd-ai-o-pete-i la-mitã

I NEG-1AC-hand-slap-NEG the-child

‘I didn’t slap the child on the hand’

4.3. Incorporação nominal como um processo de desfocalização de zonas ativas

Velázquez-Castillo (1995:695) também traz o conceito de “zona ativa”, conceito este

desenvolvido por Langacker (1984) para descrever a assimetria de proeminência entre as partes e o

todo de uma entidade. As zonas ativas são as entidades diretamente envolvidas em um processo ou

uma relação. Por exemplo, em “Pedro piscou para Maria”, a zona ativa não é “Pedro”, mas sim os

“olhos de Pedro”. Na sentença “Pedro piscou para Maria”, temos uma zona ativa desfocalizada, já

que o sujeito gramatical é Pedro, e não os seus olhos, verdadeira zona ativa da ação.

Segundo a autora, Langacker argumenta que expressões em que as zonas ativas são

desfocalizadas são a norma nas línguas, e não a exceção. Esse processo de desfocalização das zonas

35 Tradução: (che) nd-ai-o-pete-i la-mitã

Eu NEG-1AC-mão-bater-NEG a-criança

‘Eu não bati na criança na mão’

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ativas permite um certo grau de liberdade linguística para dar proeminência para outra entidade que

não seja exatamente a zona ativa, mas que mantenha uma relação com ela (por exemplo, de

contiguidade) e que seja mais proeminente que a zona ativa.

Para a autora, os exemplos (29)-(33) de Guarani Paraguaio são exemplos de desfocalização

de zonas ativas. A falta de proeminência de nomes incorporados que designam partes do corpo é

capturada pela caracterização deles como zonas ativas desfocalizadas. Esta caracterização é adequada

para a abordagem que não os considera nem objetos nem sujeitos, mas sim satélites verbais.

4.4. Quais termos de partes do corpo podem ser incorporados?

Velázquez-Castillo (1995:697-699) chama a atenção para o fato de que nem todos os

possuidores são codificados como argumentos da oração. Vejamos os dois exemplos abaixo. A

primeira sentença de cada um dos exemplos é agramatical. Visto que as construções agramaticais

abaixo são estruturalmente idênticas às construções gramaticais que envolvem partes do corpo

humano citadas nos exemplos (29)-(33), qualquer explicação estritamente formal da discrepância na

gramaticalidade é excluída.

Segundo a autora, vaka ‘vaca’ é um nome que pode aparecer incorporado ao verbo, como em

sentenças como a-vaka-ami ‘eu vaca-ordenho’, quando o nome não é possuído. Além disso, os verbos

ñami ‘ordenhar’ e nupã ‘bater’ aparecem frequentemente em estruturas com IN, como em a-vaka-

ami-ta ‘eu vou vaca-ordenhar’ e em a-ña-kã-nupã ‘eu bato em minha cabeça’. Portanto, a

agramaticalidade das primeiras sentenças de (34) e (35) não ocorre porque os verbos em questão não

são capazes de incorporar seus objetos, ocorre porque os possuidores nas sentenças não podem ser

codificados como objetos, ao contrário dos exemplos que envolvem partes do corpo, como

abservamos acima.

(34)36 a. *(che) ro-rymba-vaka-ami

I 1S/2O-domestic-cow-milk

‘I cow-milk you

b. (che) a-ñami ne-rymba-vaka

I 1AC-milk 2IN-domestic-cow

‘I milk your cow’

36 Tradução: a. *(che) ro-rymba-vaka-ami

Eu 1S/2O-doméstico-vaca-ordenhar

‘Eu vaca-ordenho você’

b. (che) a-ñami ne-rymba-vaka

I 1AC-ordenhar 2IN-doméstico-vaca

‘Eu ordenho sua vaca’

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(35)37 a. *(che) ro-memby-nupã

I 1S/2O-offspring-beat

‘I son-beat you’

b. (che) ai-nupã ne-memby

I 1AC-beat 2IN-offspring

‘I beat your son’

A autora prossegue sua argumentação e afirma que, visto que o único tipo de possuidor que

pode ser considerado um objeto em construções com IN + AP é o possuidor de partes do corpo, é

razoável inferir que o que permite esta construção é a inalienabilidade da relação de posse em questão.

Contudo, o segundo dos dois exemplos acima também designa uma relação de posse inalienável

(parentesco), mas o possuidor não pode ser codificado como objeto. Para a autora, não é apenas o

fato de que a relação de posse é inalienável o que permite as construções de IN + AP, mas também a

relação de identificação muito próxima entre o possuidor e o possuído, o que permite considerarmos

o possuidor o verdadeiro paciente de uma ação que é direcionada a uma parte de seu corpo.

Outra questão relevante é que nem todas as partes do corpo são encontradas em estruturas

com IN. Segundo Velázquez-Castillo (1995:700-702), apenas as partes do corpo com alguma

relevância cultural aparecem em construções com IN. Assim, em Guarani Paraguaio, akã ‘cabeça’,

rova ‘rosto/face’, resa ‘olhos’, juru ‘boca’, po ‘mão’ e py’a ‘peito/estômago’ aparecem comumente

em construções com IN. Segundo a autora, na cultura popular paraguaia, o rosto é associado à honra,

a cabeça é associada ao auto-controle, as mãos são associadas à habilidade, peito/estômago é o lugar

dos sentimentos, emoções. Raramente ou nunca encontradas em construções com IN são os termos

que designam partes do corpo humano que não são culturalmente relevantes, tais como rope-pi

‘pálpebra’, ropea ‘cílios’, kuã ‘dedo da mão’, py-sã ‘dedo do pé’ e py-ape ‘unhas’.

Velázquez-Castillo (1995:700-701) conclui que a propriedade de contiguidade não é

suficiente para codificarmos o possuidor como o objeto da sentença, já que certas partes do corpo

raramente ou nunca são incorporadas. Para a autora, parece que apenas poucas partes do corpo são

percebidas como tão integralmente associadas aos seus possuidores a ponto de ser virtualmente

indentificadas como se fossem eles.

A autora percebeu um padrão nessa assimetria encontrada entre as partes do corpo humano:

as partes do corpo humano que aparecem em construções com IN coincidem com os termos de nível

básico das categorias partonômicas para o corpo humano propostas por Andersen (1978). O estudo

37 Tradução: a. *(che) ro-memby-nupã

Eu 1S/2O-filhos-bater

‘Eu filho-bato em você’

b. (che) ai-nupã ne-memby

Eu 1AC-bater 2IN-filhos

‘Eu bato em seu filho’

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de Andersen (1978) chama atenção para o fato de que há uma tendência universal nas línguas naturais

para designar determinadas partes do corpo humano com formas básicas, que não são

morfologicamente derivadas de outras palavras. A proeminência dessas partes do corpo em

detrimento das demais seria atribuída à perceptibilidade de formas particulares (redondo mais

proeminente que longo e fino), dimensões espaciais (partes superiores mais proeminentes que as

inferiores) e orientação espacial (a parte frontal mais proeminente que a parte de trás). Andersen

(1978) também encontrou evidências para estas generalizações em estudos de aquisição de linguagem

que focam na ordem da aquisição de termos de partes do corpo humano: a ordem vai dos termos mais

perceptíveis (redondo e frontal superior, como cabeça, rosto, olhos, boca, ouvidos) para os termos um

pouco menos proeminentes e em seguida para os menos proeminentes.

Segundo Velázquez-Castillo, nem todos os termos de partes do corpo que aparecem em

construções com IN em Guarani Paraguaio são termos categorizados como de nível básico por

Andersen (1978). As exceções são revi ‘ânus’ e py’a ‘peito/estômago’. A autora conclui que não

apenas o nível de perceptibilidade desempenha um papel relevante na “escolha” das partes do corpo

que podem ser percebidas como integralmente conectadas ao possuidor, mas também o seu status

cultural de proeminência.

O que permite que determinadas partes do corpo sejam virtualmente identificadas com seus

possuidores e que esses possuidores sejam codificados como objetos das sentenças? Para Velázquez-

Castillo (1995:701-702), é a co-ocorrência de três propriedades semânticas: 1) contiguidade física

entre o possuidor e o possuído; 2) natureza viva do possuidor (o possuidor é um ser vivo); e 3)

proeminência cognitiva (perceptibilidade) e cultural das partes do corpo selecionadas.

Seria interessante averiguar se o que foi observado por Velázquez-Castillo (1995) é uma

característica particular do Guarani ou se é uma tendência apresentada por outras línguas. Ao colocar

a semântica como elemento cognitivo importante para explicar a IN, podemos chegar a

generalizações ainda maiores. Os exemplos descritos na literatura como IN podem ser vistos como

subtipos de um fenômeno mais abrangente.

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5. O alinhamento morfossintático e a incorporação nominal de sujeito

É sabido que a incorporação de sujeito a um verbo é um fenômeno menos frequente que a

incorporação de objeto (GIVÓN, 1995:190). Em um estudo dos exemplos de IN do artigo de Mithun

(1984), observa-se que nos casos de IN de sujeito o NI é sempre sujeito de verbo intransitivo (S).

Nesta seção, o conceito de sujeito é tomado de Comrie (1989). Segundo Comrie (1989: 106-107), o

sujeito prototípico representa a intersecção de agente e tópico, ou seja, os exemplos de sujeitos

prototípicos são, translinguisticamente, agentes que também são tópicos. Esse conceito é definido em

termos de protótipos, e não em termos de critérios que são necessários e suficientes. Nesse sentido,

podemos concluir que a noção de sujeito deve ser tomada como um contínuo, de modo que há sujeitos

mais ptototípicos que outros.

Qualquer definição que privilegie as propriedades semânticas do sujeito traz, potencialmente,

essa noção de continuidade. Na seção em que discutimos a incorporação nominal de partes do corpo

humano em Guarani Paraguaio e a tese de Velázquez-Castillo (1995) de que essas partes são os

verdadeiros objetos da sentença, e não o possuidor, também trouxemos uma definição semântica de

objeto, em que um objeto prototípico tem alto grau de individualização, completa afetação pela ação

designada e alto grau de saliência. Estas propriedades semânticas também colocaram os objetos em

um espectro contínuo em que, quanto mais forte essas propriedades estiverem presentes, mais

prototípico é o objeto.

Segundo Dixon (1994:40), os sujeitos de verbos instransitivos ora se comportam como um

sujeito de verbo transitivo (A), ora se comportam como um objeto de verbo transitivo (P). Segundo

este autor, por causa dessa particularidade de S, há uma pressão para que as línguas deem o mesmo

tratamento morfossintático dado para S também para A ou para P, surgindo os alinhamentos

nominativo-acusativo e ergativo-absolutivo, respectivamente. Há também o alinhamento activo-

stativo, em que S é tratado ora como A, ora como P, e o alinhamento tripartite, extremamente raro

entre as línguas, em que S, A e P são tratados distintamente pela língua, do ponto de vista da

morfossintaxe.

Geralmente, quando há IN de sujeito, o S incorporado tem função de paciente, mas há línguas

que permitem a IN de sujeito em que S não é semanticamente um paciente, mas também não é um

agente (ao menos não um agente consciente): seria o caso de Koyukon Atabascano, em que há IN em

situações em que o NI é um S que designa uma força natural (AXELROD, 1990:187-190). Para uma

discussão sobre os conceitos de agente consciente, experimentador, paciente, força natural,

instrumento, etc., vide Comrie (1989:58-60). Segue um exemplo retirado de Axelrod (1990:188):

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(36)38 John holyo

John ho-le-Ø-yo

John up.the.bank-M/A-CL-SG.go

‘John went up the bank’

(37)39 hotolyo

ho-to-le-Ø-yo

up.bank-water-M/A-CL-SG.go

‘the water rose over the bank’

(38) * too holyo

Segundo o autor, o informante teria dito que o exemplo (38), agramatical na língua,

significaria algo como “a água está caminhando até o barranco do rio”, indicando que a água teria

feito a ação de forma consciente ou volitiva. Segundo Axelrod (1990:188), o status da incorporação

denota uma falta de intencionalidade de parte do sujeito, por isso o sujeito too/to- ‘água’ deve ser

obrigatoriamente incorporado ao verbo yo ‘ir/caminhar’ como podemos observar na gramaticalidade

de (37), em contraposição à agramaticalidade de (38). A tradução do verbo yo ‘ir/caminhar’ neste

caso seria mais adequada como ‘subir’, já que que ‘ir/caminhar’ denotaria uma intenção/controle do

sujeito agente, algo que não faz sentido no contexto de o sujeito ser too/to- ‘água’. Em (36), quando

o sujeito é um ser humano, o status de sujeito agente com controle faz com que a incorporação não

seja aceita como gramatical na língua e a sentença gramatical seja John holyo ‘John foi/caminhou até

a beira do rio’.

O tema da IN de sujeito traz implicações para alguns modelos linguísticos. Dentro do modelo

gerativista, a IN de sujeito problemática é a dos sujeitos agentes, pois estes casos violariam a restrição

de movimento de núcleo (Head Movement Constraint – HMC) proposta por Travis (1984:131),

segundo a qual um X0 só pode se mover para um Y0 que o governa. Neste sentido, exemplos como o

abaixo não seriam problemáticos, tendo em vista que estes sujeitos poderiam ser considerados como

objetos do ponto de vista formal, eles seriam originados na posição de objeto. O exemplo seguinte é

da língua Náuatle (Uto-Azteca) e foi retirado de Haugen (2004:216). Observa-se claramente em (39)

que o sujeito toonal ‘sol’ se incorpora ao verbo kisa ‘emergir’, formando uma única palavra toonal-

kisa ‘o sol emerge/nasce’.

38 Tradução: John holyo

João ho-le-Ø-yo

João até.a.beira.do.rio-M/A-CL-SG.ir

‘João foi até a beira do rio’

39 Tradução: hotolyo

ho-to-le-Ø-yo

acima.da.beira.do.rio-água-M/A-CL-SG.ir

‘a água subiu acima da beira do rio’

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(39)40 toonal-kisa

sun-emerge

‘the sun comes out’

Na língua Hopi, também da família Uto-Azteca, temos alguns exemplos em que os sujeitos

têm um grau maior de agentividade. Os exemplos abaixo foram retirados de Haugen (2004:217). Na

primeira sentença de (40), temos a incorporação do sujeito hon ‘urso’ ao verbo wari ‘correr’. Na

segunda sentença, temos a incorporação do sujeito poli ‘borboleta’ ao verbo wayma ‘caminhar’.

Todos as quatro sentenças do exemplo abaixo envolvem verbos de movimento.

(40)41 a. Hon-wari bear-run(SG)

'The bear ran.'

b. Poli-wayma butterfly-walk(SG)

'The butterfly walked along.'

c. Uy-hongva

plant-stand.up(PL)

'The corn plants stood up.'

d. Posiw-yes-va

magpie-sit(PL)-INGR

'The magpies alighted.

Haugen (2004:215-219) afirma que os verbos de movimento poderiam concebivelmente ser

vistos como verbos inacusativos, de modo que seus sujeitos gramaticais seriam originados como

objetos na estrutura profunda. Contudo, a sentença abaixo, do Náuatle Clássico, seria ainda mais

intrigante (HAUGEN, 2004:218). Em (41), temos algo como “o senhor franziu as sobrancelhas de

raiva”. Neste caso, é mais difícil aceitar que este sujeito não seria um argumento externo.

40 Tradução: toonal-kisa

sol-emergir

‘o sol nasce’

41 Tradução: a. Hon-wari

urso-correr(SG)

'O urso correu.'

b. Poli-wayma

borboleta-caminhar (SG)

'A borboleta caminhou.'

c. Uy-hongva

planta-levantar.se (PL)

'Os pés de milho se levantaram.'

d. Posiw-yes-va

pássaro.pega.rabuda-sentar.se(PL)-INGR

'O pega-rabudas pousaram'.

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(41) Mo-tēuc-zōmah (In tēuctli ōmozōmah.)

'The lord frowned in anger.'

No entanto, temos que ressaltar que no texto de onde foi retirado o último exemplo a expressão

estava sendo usada como um nome, e não como uma sentença de fato. Haugen (2004:219) tenta dar

uma explicação para estes casos e lança a hipótese de que estes exemplos de IN de sujeito agente não

seriam uma IN sintática, seria um processo puramente lexical. Segundo o autor, a solução para este

problema é que tais exemplos de incorporação de sujeito agente não podem ser derivados por meio

de um movimento de um núcleo, como sugere a teoria de Baker (1988). No entanto, diz o autor, há

uma outra maneira de gerar uma construção incorporada N-V, que envolve simplesmente uma

composição. Ele hipotetiza que estes exemplos acima são resultados de simples fusões de uma raiz

nominal com uma raiz verbal. Estas composições conduzem a uma interpretação idiomática em que

o nome incorporado é entendido como sujeito do seu verbo. A idiomatização destas expressões pode

levar a uma leitura agentiva em alguns casos e passivas em outros. Para o autor, essas construções

não seriam incorporações nominais sintáticas, em que o nome incorporado é derivado de uma posição

de um objeto subjacente, deixando um vestígio.

Esta explicação de Haugen (2004:219) parece ser uma solução ad hoc e tem a desvantagem

de separar algo que intuitivamente parece ser um em dois processos distintos. Esta separação e

confusão quanto à natureza desse processo linguístico, se sintática ou se lexical, retorna para o ponto

levantado por Haspelmath (2011) e discutido na seção desta dissertação “O conceito de ‘palavra’ e

suas implicações para o conceito de ‘incorporação nominal’”.

Como as línguas ergativo-absolutivas dispensam o mesmo tratamento morfossintático tanto

para o sujeito de um verbo intransitivo quanto para o objeto de um verbo transitivo e como há uma

pressão tipológica entre as línguas para que haja mais casos de IN de objeto do que casos de IN de

sujeito, seria de se esperar intuitivamente que a ergatividade, ao alinhar morfossintaticamente S com

P, aumentasse a produtividade de casos de IN de sujeito nessas línguas em comparação com as línguas

que não apresentassem nenhuma ergatividade. Ou seja, a intuição nos leva a crer que, caso a língua

apresente IN e caso esta língua seja predominantemente ergativo-absolutiva, provavelmente ela

apresentará uma quantidade razoável de sujeitos de verbos intransitivos incorporados ao verbo, talvez

em uma frequência maior que em línguas predominantemente nominativo-acusativas.

Segue um exemplo de IN de sujeito em Cavineña (Tacanan), língua ergativo-absolutiva. O

exemplo foi retirado de Guillaume (2008). Em (42), temos a incorporação do sujeito akwa ‘peito’

com o verbo tsuru ‘enocontrar-se’, com a morfologia verbal sendo colocada como afixos do complexo

N-V. O nome incorporado parece ser um tópico e ter alguma agentividade.

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(42)42 Ne-ka-akwa-tsuru-ti

HORT.DL-REF-chest-meet-REF

Let's sit facing each other (lit. let's meet each other's chests)

Os dados colhidos dos principais textos da literatura que trazem exemplos de IN apontam para

a direção de que, quando há uma IN de sujeito, este nunca recebe o papel temático de agente com

controle. Apesar de não ser necessariamente um paciente, aparentemente o NI nunca é um agente

volitivo ou com controle.

Como vimos na seção “Metodologia”, dentre as línguas consultadas, as que apresentam

alguma ergatividade (o que inclui as línguas ergativas cindidas) são as seguintes: Cavineña (Tacanan),

Chukoto (Chukotko-Kamchatkana), Hixkaryana (Karib), Katukina-Kanamari (Katukina), Koryak

(Chukotko-Kamchatkana), Maia Yucateco (Maia), Nadëb (Makú), Paumari (Arauana), Samoano

(Austonésia), Tapirapé (Tupi-Guarani), Tonga (Austronésia), Waiwai (Karib), Yanomami dos

Xamatauteri (Yanomami).

Aparentemente, o alinhamento morfossintático não determina se encontraremos casos de IN

de sujeito. Por exemplo, em Hopi (Uto-Azteca), língua essencialmente nominativo-acusativa, temos

dois exemplos formalmente idênticos ao do Cavineña citado acima. Os exemplos abaixo foram

retirados de Haugen (2004:217). Como visto acima, em (43), temos a incorporação do sujeito hon

‘urso’ ao verbo wari ‘correr’. Em (44), temos a incorporação do sujeito poli ‘borboleta’ ao verbo

wayma ‘caminhar’. Os nomes incorporados são tópicos e agentes da ação verbal.

(43)43 Hon-wari bear-run(SG)

'The bear ran.'

(44)44 Poli-wayma butterfly-walk(SG)

'The butterfly walked along.'

Os exemplos do Hopi, língua nominativo-acusativa, e do Cavineña, língua ergativo-absolutiva,

42 Tradução: Ne-ka-akwa-tsuru-ti

HORT.DL-REF-peito-encontrar.se-REF

Vamos sentar em frente um do outro (lit. vamos encontrar o peito um do outro)

43 Tradução: Hon-wari

urso-correr(SG)

'O urso correu.'

44 Tradução: Poli-wayma

borboleta-caminhar (SG)

'A borboleta caminhou.'

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não são exceções entre as línguas que apresentam casos de IN de sujeito. Os dados obtidos mostram

que o alinhamento morfossintático não determina a priori se a língua pode ou não apresentar IN de

sujeito. Temos exemplos de IN de sujeito tanto em línguas ergativo-absolutivas quanto em

nominativo-absolutivas.

Restaria ainda analisar se o alinhamento morfossintático causa alguma assimetria nos casos

de IN de sujeito. Neste sentido, foi feita uma análise dos dados de IN de sujeito para verificar se, dado

que uma língua apresenta IN de sujeito, haveria uma maior probabilidade desta língua apresentar

também alguma ergatividade.

Em relação a esta possível assimetria, os dados não são conclusivos. Tendo em vista que a

maior parte das línguas analisadas apresenta alguma ergatividade, é de se esperar que a maior parte

dos exemplos de IN seja de línguas que apresentam alguma ergatividade, simplesmente porque a

amostra é relativamente maior. Considerando-se o maior peso de línguas ergativo-absolutivas no

conjunto de dados obtidos, a primeira conclusão é a de que a ergatividade não é um fator relevante

para aumentar a produtividade de IN de sujeito.

Outro problema importante que pode enviesar as conclusões obtidas é que não há como saber

se as línguas que foram pesquisadas com base nas fontes bibliográficas de fato não apresentam IN de

sujeito. Pode ocorrer de simplesmente os autores não terem citados exemplos desse tipo. Ao excluir

esses hipotéticos dados, podemos chegar a conclusões estatísticas inválidas. Portanto, uma análise

tipológica neste sentido só poderia ser feita com base em exaustivos dados de IN de sujeito em línguas

de diferentes regiões e famílias. Como os dados obtidos não foram colhidos para este propósito, não

há como chegar a uma conclusão final, embora os primeiros dados apontam para nenhum tipo de

assimetria que estávamos esperando.

Os dados colhidos da literatura apontam para a tese de que o alinhamento morfossintático da

língua não é determinante na escolha do elemento incorporado. Apesar das limitações naturais desta

pesquisa, à primeira vista, a probabilidade de encontrarmos exemplos de IN de sujeito em línguas que

apresentam alguma ergatividade aparenta ser a mesma que a de encontrarmos esse tipo de IN em

línguas de outros alinhamentos morfossintáticos.

Mais importante que o alinhamento morfossintático são as restrições já descritas na literatura

para os casos de IN de sujeito: a produtividade da IN de sujeito parece ser limitada apenas pelas

restrições semânticas gerais já citadas neste trabalho, entre as quais a de nunca o sujeito ser

semanticamente um agente, embora este não precise ser necessariamente um paciente, podendo ser

um experienciador, por exemplo. As questões semânticas em torno da questão de por que

determinadas partes do corpo humano nunca possam ser incorporadas precisam ser melhor analisadas.

Após um estudo inicial de IN em línguas ergativo-absolutivas, foi atestada a importância de

incluir mais exemplos de IN de línguas de outros alinhamentos para que o trabalho tivesse subsídios

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para chegar a conclusões mais contundentes sobre a possibilidade ou não de o alinhamento

morfossintático de uma língua ter influência na produtividade da IN de sujeito. Os dados indicam

para a mesma direção que os dados das línguas que apresentam alguma ergatividade: o alinhamento

morfossintático não influi em nada nem quanto à possibilidade de encontrarmos casos de IN de sujeito

na língua nem quanto à produtividade desses casos. Contudo, como afirmado, é necessário admitir as

limitações deste trabalho, que só se utiliza dos dados apresentados pelos autores nos artigos, e não de

todos os dados contidos nos corpora completos utilizados por esses autores. Só este último fato

inviabiliza uma conclusão estatística mais contundente. Só um trabalho com exaustivos dados de

diversas línguas poderia apontar para a existência ou não de alguma assimetria no número de casos

de IN de sujeito e para alguma possível correlação entre um aumento nestes casos e o fato de a língua

apresentar ergatividade.

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73

6. Conclusões

O processo de IN envolve muitas questões semânticas, sintáticas e morfológicas. Este tema é

interessante por diversos motivos e ainda precisa ser estudado com mais profundidade e com mais

dados novos. Talvez este seja um dos processos descritos na literatura linguística que mais

contundentemente aponta em direção da tese de que não é possível separar a sintaxe da morfologia.

Só o fato de que tanto a hipótese puramente lexicalista como a hipótese puramente sintática não

conseguem explicar todas as nuances deste processo linguístico, além do fato de que alguns autores

como Haugen (2004) tentam separar em dois tipos de IN com o objetivo de estancar as contradições

de cada uma das hipóteses, já mostra por si só como é frágil a separação entre sintaxe e morfologia.

A IN vai na contramão de uma tendência especializadora que encontramos em todas as ciências. Suas

características parecem resistir à tentação de transformar a morfossintaxe em gênero de duas espécies.

Com os estudos mais acurados sobre a IN, também a semântica ganha mais subsídios. As

questões que envolvem o conceito de indefinitude e das categorias partonômicas do corpo humano (e

por analogia das partes das plantas e dos animais) podem ser melhor entendidas se conseguirmos

enquadrar a IN como um subtipo de um processo semântico mais geral.

Como a IN não acontece em todas as línguas naturais, pelo menos não da mesma maneira,

qualquer explicação linguística terá que necessariamente colocar a IN como um subtipo de um

processo maior, mais geral. Nesta direção, o trabalho de Mithun (1984) defende a tese de que a IN

nada mais é do que mais um subtipo de formação de palavras, ao passo que o trabalho de Baker (1988)

defende a tese de que a IN nada mais é do que mais um subtipo de movimento. Na mesma direção, o

trabalho de Van Geenhoven (1998) tenta apontar a IN como um subtipo do processo semântico de

indefinitude. O trabalho de Farkas & Swart (2003) amplia a discussão semântica de indifinitude e

também traz as questões discursivas.

Como afirmado na introdução, o objetivo principal deste trabalho foi trazer para a literatura

em português todos esses aspectos em um texto introdutório e bibliográfico que possa incentivar

outros trabalhos mais específicos. Além desta contribuição bibliográfica, esta pesquisa também se

pautou na tentativa de verificar uma possível correlação estatística entre ergatividade e uma maior

frequência nos casos de IN de sujeito. Embora não seja possível afirmar categoricamente, os dados

preliminares (e insuficientes) apontam para a tese de que o alinhamento morfossintático da língua

não determina se a língua pode apresentar estes casos especiais de IN nem se estes casos são

especialmente frequentes. De toda forma, só um trabalho com um banco de dados maior e talvez com

uma pesquisa focada apenas neste tema poderá chegar a um resultado satisfatório do ponto de vista

estatístico.

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