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Paredes divisórias: Passado, presente e futuro, P.B. Lourenço et al. (eds.) 1 ASPETOS CONSTRUTIVOS E FUNCIONAIS DAS PAREDES DIVISÓRIAS NA CONSTRUÇÃO TRADICIONAL Fernando F. S. PINHO Professor Auxiliar Universidade Nova de Lisboa SUMÁRIO Na presente comunicação referem-se os principais aspetos construtivos e funcionais das paredes divisórias na construção tradicional, que vão muito além da simples divisão dos espaços. Por esta razão, faz-se previamente uma breve caracterização dos edifícios antigos, como forma de enquadrar estas paredes na estrutura global dos edifícios; em seguida, indicam- se as anomalias mais relevantes que podem ocorrer e, por fim, apresentam-se algumas conclusões globais relativas a esta temática. 1. INTRODUÇÃO De um modo geral, pode dizer-se que o número de edifícios construídos no nosso País segundo as regras da construção tradicional (quase um milhão) era, no final do Século XX, da mesma ordem de grandeza do número de edifícios com estrutura em betão armado, representando cerca de 30% dos edifícios existentes. Entre estas duas tipologias construtivas distintas, situam- se os edifícios com paredes resistentes em alvenaria de pedra, com pavimentos em betão armado, correspondendo aos cerca de 40% restantes. A construção tradicional perdurou até ao final do primeiro quartel do Século XX. Os edifícios com estrutura em betão armado, tiveram o grande impulso após os anos 1935/40, transformando-se na solução construtiva predominante a partir de 1955, sobretudo nos grandes centros urbanos [1]. Em face do grande número de edifícios antigos existentes, torna-se muito importante que as propostas de reabilitação arquitetónica e/ou estrutural dos edifícios antigos – estes últimas cada vez mais necessárias – sejam desenvolvidas sem comprometer, no futuro, a sua segurança global. Com efeito, o princípio de funcionamento estrutural dos edifícios antigos não permite dispensar paredes divisórias, para interligação de espaços, sem que essa ação seja devidamente ponderada ou, nalguns casos, questionada. Isto porque estas paredes desempenham, em geral, uma função estrutural de grande importância, contribuindo, em muitos casos, para evitar o colapso do edifício durante a ocorrência de uma ação sísmica, fruto da sua importante função de contraventamento global.

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Paredes divisórias: Passado, presente e futuro, P.B. Lourenço et al. (eds.) 1

ASPETOS CONSTRUTIVOS E FUNCIONAIS DAS PAREDES DIVISÓRIAS NA CONSTRUÇÃO

TRADICIONAL

Fernando F. S. PINHO

Professor Auxiliar

Universidade Nova de Lisboa

SUMÁRIO

Na presente comunicação referem-se os principais aspetos construtivos e funcionais das

paredes divisórias na construção tradicional, que vão muito além da simples divisão dos

espaços. Por esta razão, faz-se previamente uma breve caracterização dos edifícios antigos,

como forma de enquadrar estas paredes na estrutura global dos edifícios; em seguida, indicam-

se as anomalias mais relevantes que podem ocorrer e, por fim, apresentam-se algumas

conclusões globais relativas a esta temática.

1. INTRODUÇÃO

De um modo geral, pode dizer-se que o número de edifícios construídos no nosso País segundo

as regras da construção tradicional (quase um milhão) era, no final do Século XX, da mesma

ordem de grandeza do número de edifícios com estrutura em betão armado, representando

cerca de 30% dos edifícios existentes. Entre estas duas tipologias construtivas distintas, situam-

se os edifícios com paredes resistentes em alvenaria de pedra, com pavimentos em betão

armado, correspondendo aos cerca de 40% restantes.

A construção tradicional perdurou até ao final do primeiro quartel do Século XX. Os edifícios

com estrutura em betão armado, tiveram o grande impulso após os anos 1935/40,

transformando-se na solução construtiva predominante a partir de 1955, sobretudo nos grandes

centros urbanos [1].

Em face do grande número de edifícios antigos existentes, torna-se muito importante que as

propostas de reabilitação arquitetónica e/ou estrutural dos edifícios antigos – estes últimas cada

vez mais necessárias – sejam desenvolvidas sem comprometer, no futuro, a sua segurança

global. Com efeito, o princípio de funcionamento estrutural dos edifícios antigos não permite

dispensar paredes divisórias, para interligação de espaços, sem que essa ação seja devidamente

ponderada ou, nalguns casos, questionada. Isto porque estas paredes desempenham, em geral,

uma função estrutural de grande importância, contribuindo, em muitos casos, para evitar o

colapso do edifício durante a ocorrência de uma ação sísmica, fruto da sua importante função

de contraventamento global.

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2. BREVE CARACTERIZAÇÃO DA CONSTRUÇÃO TRADICIONAL

Com o objetivo de enquadrar e referenciar as paredes divisórias como elementos de repartição

do espaço interior dos edifícios e, em simultâneo, potenciais elementos resistentes tanto a ações

gravíticas como a ações horizontais, independentemente das suas características geométricas

(esbelteza) e da sua constituição, faz-se em seguida uma caracterização construtiva breve da

construção tradicional no nosso país. De uma forma geral, estes edifícios são classificados

como “edifícios antigos”, porquanto foram construídos até ao primeiro quartel do Século XX,

ou seja, antes das construções com estrutura em betão armado.

2.1. Fundações

As características das fundações (ou alicerces) dos edifícios antigos dependiam, sobretudo, dos

seguintes fatores: valores das cargas transmitidas às fundações e destas ao solo de fundação,

tipo e capacidade resistente do solo e profundidade a que o mesmo se encontrava.

Quando as condições existentes permitiam a solução de fundações superficiais (diretas), estas

eram constituídas por sapatas isoladas, para pilares, ou contínuas, para paredes. Neste último

caso, as fundações diferiam das paredes resistentes por apresentarem em relação a elas uma

sobrelargura, devida ao facto da fundação fazer a transição entre a parede e o solo de fundação

e das fundações corresponderem a uma fase da construção suscetível a alguns “erros” de

implantação.

Em muitos casos, o alargamento das fundações excedia cerca de 0,10 a 0,15m a largura da

parede, variando a sua altura entre 0,50 e 0,80m, em “terreno médio”. Em solos muito

resistentes (rochas) aquela sobrelargura praticamente não existe, confundindo-se, as

características das paredes com as das fundações, uma vez que o terreno podia até ser mais

resistente que a alvenaria das paredes.

A ligação entre paredes e fundações devia ser efetuada de forma a garantir uma boa resistência

a forças de deslizamento, resultantes da ação sísmica, o que podia ser conseguido com base

num endentamento, preferencialmente contínuo, nas zonas de transição/ligação.

Quando a solução de fundações superficiais não era viável, podia recorrer-se a outras soluções,

em princípio também “próprias” de edifícios já com algum porte (dois ou mais pisos) [2]:

1 – prevendo-se a existência de cave, se o pavimento inferior se situava a uma cota que

permitia a realização de “fundações diretas”, adotava-se a solução descrita acima, naturalmente

a partir da cota da plataforma aberta para a construção da cave. Uma dificuldade adicional

desta situação residia na contenção dos taludes durante a fase construtiva;

2 – abertura de poços, posteriormente preenchidos com alvenaria de pedra de boa qualidade,

com um afastamento médio da ordem dos 3m, até atingir as camadas resistentes do solo de

fundação. Sobre estes poços descarregavam então arcos de tijolo maciço, pedra ou mistos, que

por sua vez recebiam as paredes estruturais. Esta solução proporcionava maior economia da

obra, uma vez que o volume de escavação era menor em relação à solução anterior, requeria

técnicas mais simples e não oferecia as referidas dificuldades de contenção das terras;

3 – cravação de estacas de madeira, de aplicação muito limitada devido às elevadas exigências

postas à natureza das diversas camadas do solo (brandas e regulares), que possibilitassem a

cravação, porque a existência de estratos rijos ou blocos de pedras destruíam a cabeça da

estaca, devido à acção do martelo do bate-estacas. Esta solução foi empregue em parte da

Baixa Pombalina, em Lisboa, após o terramoto de 1755 com êxito, devido ao facto do nível

freático se ter mantido mais ou menos constante ao longo do tempo.

2.2. Paredes

Na construção tradicional consideram-se dois tipos de paredes diferentes: paredes resistentes

ou paredes mestras e paredes divisórias ou de compartimentação.

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Assim, entende-se por paredes resistentes, aquelas que, pelas “suas características geométricas

e mecânicas, contribuem de forma decisiva para a estabilidade do edifício, quer quando sujeito

à ação das forças verticais (designadamente as de natureza gravítica), quer quando sujeito à

atuação das forças horizontais de natureza aleatória (vento e sismos)” [2], Figura 1.

Figura 1 : Paredes resistentes exteriores (à direita em trabalhos de reabilitação estrutural)

Como características particulares, estas paredes apresentam, de uma forma geral, uma

espessura considerável e são constituídas por materiais heterogéneos, originando elementos

rígidos e pesados, com boa capacidade de resistência à compressão, menor resistência ao corte

e uma muito pequena resistência à flexão e à tração, excetuando, neste último caso, as paredes

exteriores de edifícios com andar de ressalto.

No nosso país, as paredes resistentes de edifícios antigos são em geral construídas em terra –

taipa e adobes, geralmente em edifícios de pequeno porte, com um piso, térreo, raramente dois

pisos – e em alvenaria de pedra irregular (alvenaria ordinária), alvenaria de tijolo, cantaria e

paredes mistas.

Estas paredes resistentes são, no caso da construção tradicional, as paredes exteriores dos

edifícios. Mas, podem também existir paredes resistentes interiores, sendo neste caso

maioritariamente em alvenaria de pedra irregular, simples, ou, nalguns casos, armada com

elementos de madeira, como se verá mais adiante.

As paredes divisórias distinguem-se das paredes resistentes por apresentarem espessuras muito

menores (por exemplo na proporção de 1, para 6 a 8), o que tem uma influência direta nos

aspetos funcionais e de comportamento mecânico. As paredes divisórias tinham como principal

função, originalmente, dividir os espaços delimitados pelas paredes resistentes, podendo ser em

alvenaria de pedra, alvenaria de tijolo ou em tabiques.

Não obstante esta “separação” entre paredes resistentes e paredes divisórias, pode-se afirmar,

contudo, que, nos edifícios antigos, a grande maioria das paredes divisórias desempenha ou

pode vir a desempenhar, com maior ou menor importância, funções estruturais de resistência

tanto a ações gravíticas – transmitidas pelos pavimentos de madeira –, como a ações

horizontais, resultantes das ações sísmicas.

2.3. Pavimentos, coberturas e escadas

De uma forma geral, a solução construtiva dos pavimentos dos edifícios antigos varia

consoante se trate do pavimento térreo ou dos pavimentos elevados. Os pavimentos térreos são

constituídos por enrocamento de pedra arrumada à mão, sobre o qual é colocada a camada de

revestimento e desgaste, em lajedo de pedra, ladrilhos, tijoleira cerâmica ou sobrados de

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madeira; em situações mais modestas, podem ser apenas de “terra batida”. Noutros casos, o

pavimento térreo é estruturalmente semelhante aos pavimentos elevados, sendo constituído por

uma estrutura de vigas de madeira sobre as quais se pregavam as tábuas de solho. Para evitar o

apodrecimento das vigas, estas não deviam ficar em contacto com o solo, deixando-se para o

efeito um espaço livre entre o solo e o vigamento (caixa-de-ar), cuja ventilação era efetuada

através de furos abertos nas paredes exteriores (designados por ventiladores ou respiradouros).

Em relação aos pavimentos elevados, predomina a madeira como elemento estrutural: os

pavimentos são suportados por vigamentos principais, com afastamento entre vigas da ordem

de 0,20 a 0,40m. Nalguns casos, as vigas são substituídas por perfis redondos, de troncos

apenas descascados. Em grandes vãos, existem vigas principais de madeira de grande altura,

sobre as quais apoiam as vigas do pavimento. Nalgumas construções do Séc. XIX, estas vigas

principais são perfis metálicos, com secção em I, e com altura menor comparativamente às

vigas de madeira, para iguais vãos. Para que os pavimentos de madeira pudessem desempenhar

funções de travamento geral da estrutura do edifício, a ligação parede/pavimento devia ser

melhorada através de peças metálicas pregadas às vigas e embebidas nas paredes. A utilização

dos tarugos (de madeira), colocados perpendicularmente às vigas, evitava a sua rotação e a

instabilidade lateral. Existem ainda outras situações em que os elementos estruturais são arcos

e abóbodas de alvenaria, mais duráveis que a madeira, sobre as quais se aplicavam os

revestimentos. Na Baixa Pombalina, esta solução foi aplicada também no pavimento térreo [3].

A estrutura da cobertura, não obstante os problemas de durabilidade associados à presença da

água, é geralmente em madeira, através duma estrutura, cujo elemento principal é a asna,

facilmente adaptável a geometrias variáveis. A estrutura secundária de apoio da cobertura é

formada, sucessivamente, por madres, varas e ripas, suportando estas últimas as telhas.

No que se refere às escadas, tal como os pavimentos e coberturas na construção tradicional, são

geralmente em madeira, ou de pedra em casos mais raros. Muitas vezes as escadas são

elementos de forte presença arquitetónica e distintiva do valor patrimonial do edifício.

Nos edifícios correntes mais antigos, as escadas têm geralmente um único lanço entre pisos,

apresentam uma largura reduzida e uma inclinação acentuada, e são designadas por escadas de

tiro. De um modo geral, estas escadas são desconfortáveis e difíceis de subir, podendo ter

espelhos com 0,20m de altura. No Século XVII o espaço ocupado pela escada passa a ser maior

e, a partir do Século XVIII, as escadas passaram a ter dois lanços e patamares intermédios.

A localização das escadas também se foi deslocando das paredes laterais (empenas) para o

centro dos edifícios. Do ponto de vista estrutural, esta evolução no sentido da obtenção de

simetria estrutural fez com que as escadas possam resistir com eficácia à ação dos sismos [3].

3. CARACTERIZAÇÃO DAS PAREDES DIVISÓRIAS NA CONSTRUÇÃO TRADICIONAL

Como referido, as paredes divisórias podem ser distinguidas entre aquelas que, à partida,

apenas tinham função de compartimentação do espaço interior dos edifícios e as que, para além

dessa função, também desempenham funções estruturais, justificadas pelas dimensões em

planta do edifício. Neste último caso, as paredes podem apresentar espessuras da ordem de

grandeza das paredes exteriores, mas, naturalmente, localizam-se no interior dos edifícios.

No que se segue, apresentam-se os principais aspetos construtivos e funcionais das paredes

divisórias na construção tradicional [2 - 4].

3.1. Paredes divisórias, mas com funções resistentes à partida (paredes resistentes interiores)

Na construção corrente, as paredes com capacidade resistente que definem as grandes divisões

ou divisões principais, são maioritariamente em alvenaria de pedra.

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Na construção Pombalina, as paredes resistentes de alvenaria (interiores e exteriores) são

armadas com uma “armação” de madeira constituída por um elevado número de peças

verticais, horizontais e inclinadas – prumos, travessas ou travessanhos e diagonais de madeira –

devidamente ligadas entre si, formando as cruzes de Santo André, constituindo um sistema

sólido e com grande estabilidade. Nas paredes interiores esta armação designa-se por frontal

[5], mas este termo pode também ser aplicado à própria parede. Estas paredes são dispostas

perpendicularmente às paredes principais exteriores de alvenaria (armadas com a gaiola de

madeira).

Os vãos são reforçados por elementos resistentes adicionais (vergas e pendurais), sendo as duas

faces de cada frontal geralmente revestidas com reboco e estuque.

Os frontais fazem, portanto, parte integrante da gaiola (ou esqueleto) de madeira, globalmente

formada por um sistema tridimensional de travamento – constituído na horizontal pelas

estruturas de madeira dos pavimentos e asnas da cobertura e, na vertical, pelas paredes

exteriores e interiores (frontais) em gaiola – que proporciona uma interligação/solidarização

dos diferentes elementos estruturais em presença, conferindo ao conjunto uma ductilidade

“comparável” às atuais soluções obtidas com betão armado [2], Figura 2.

(a) (b) (c)

Figura 2 : Construção Pombalina; (a) Edifício na Baixa de Lisboa; (b) Modelo (escala 1:10)

existente na Escola dos Sapadores Bombeiros de Lisboa, em Chelas [4]; (c) Parede de frontal

A ideia da “construção antissísmica” baseada numa estrutura de madeira revestida (preenchida)

exteriormente por alvenaria de pedra está intimamente relacionada com a experiência então

existente na construção naval – na época exclusivamente de madeira –, cujo principal estaleiro

de Lisboa se localizava na Ribeira das Naus: tendo por base o excelente desempenho dos

navios expostos às ações dinâmicas transmitidas pelo mar, os engenheiros militares

intervenientes no processo de reconstrução da Baixa estabeleceram uma “analogia” entre o

comportamento mecânico das embarcações no mar e o comportamento dos edifícios, durante a

ocorrência de um sismo. Essa analogia traduzia-se no facto de ambas as estruturas, barcos e

edifícios, estarem sujeitas a ações em “meios agitados”, absorvendo parte das ações e dos

deslocamentos. Em relação ao comportamento dos barcos, não havia dúvida que tal resultava

da sua estrutura tridimensional de madeira, constituída por peças deformáveis e resistentes à

tração e à compressão, e à forma como eram executadas as ligações entre os vários elementos,

permitindo que funcionassem como um todo articulado entre si. Por outro lado, e devido à sua

fragilidade, as alvenarias simples tinham apresentado grande dificuldade em dissipar a energia

transmitida pelo terramoto, apresentando em simultâneo reduzidas capacidades de resistência à

tração e à flexão, para além de as ligações entre as paredes interiores e exteriores ser deficiente

e prejudicada pelas diferentes espessuras envolvidas. Porém, as alvenarias simples tinham tido

um bom desempenho face à ação do fogo.

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Assim, sendo estes dois materiais – a madeira e a pedra – os mais representativos da época, e

de certa forma “complementares”, como se conclui das propriedades referidas, a sua associação

foi inevitável, concebendo-se então as paredes resistentes mistas, formadas por alvenaria

armada com “bielas” de madeira, retirando-se do efeito conjunto os proveitos que os materiais

individualmente não tinham conseguido apresentar [6]: uma boa capacidade de resistência a

esforços de tração e flexão, auxiliada por adequadas ligações entre as peças de madeira); uma

boa capacidade de resistência à compressão; e uma boa resistência ao fogo.

Para além da alvenaria armada, característica da construção Pombalina, outros edifícios foram

construídos ao longo do país com paredes resistentes exteriores e interiores em alvenaria

simples de pedra calcária, xisto ou basalto. Noutras situações, encontram-se paredes resistentes

exteriores de alvenaria mista, por exemplo de xisto entre vãos (nembos) e de elementos

graníticos de maiores dimensões nos cunhais, vergas, etc.

3.2. Paredes divisórias, sem funções resistentes à partida

Como referido, apesar de, no início, estas paredes poderem não desempenhar funções

estruturais, tal situação vai-se alterando ao longo da vida dos edifícios.

De facto, as paredes de compartimentação estão sujeitas a um acréscimo de solicitações ao

longo do tempo, uma vez que, durante a vida do edifício, se vão alterando as condições de

equilíbrio estático em resultado do envelhecimento e fluência dos materiais (nomeadamente a

madeira dos pavimentos), movimentos diferenciais das fundações, ação dos sismos ou

aumentos de sobrecargas. Estas solicitações provocam reajustamentos e reordenamentos que,

na maioria das vezes, podem ser observados diretamente, como sucede, por exemplo, com uma

parede divisória localizada sob o meio vão de um pavimento de madeira que no início se

encontra estruturalmente separado da parede, não havendo por isso transferência de cargas

entre eles: ao fim de um certo tempo, a ação das cargas aplicadas juntamente com o efeito de

fluência do material (madeira), eventualmente agravada pela existência de defeitos (nós,

empenos, etc.), redução das secções devidas a ataques de fungos e insetos, ou deficiente

dimensionamento, dão origem à deformação vertical do pavimento de tal forma que este

começa por entrar em contacto com a parede, transmitindo-lhe em seguida parte das cargas que

suporta. A partir daí, a deformação do pavimento passa a ser condicionada pelas “novas

condições de apoio” que se formaram, e a parede divisória passa a ter funções resistentes. Em

casos mais extremos, em que as paredes mestras se encontram num grau adiantado de

degradação [2], as paredes divisórias passam a “substituí-las” nas suas funções resistentes.

Outra situação, frequente, relaciona-se com as manifestações de humidade, nomeadamente os

fenómenos de eflorescências e criptoflorescências, que ocorrem tanto nos paramentos

interiores das paredes exteriores, como nas paredes interiores com fundações próprias, e

portanto um meio de ligação direta ao solo de fundação, a partir do qual a água ascende por

capilaridade.

Estes exemplos mostram como as paredes divisórias desempenham funções estruturais na

maioria dos casos, mesmo que não recebam diretamente cargas verticais, fruto da sua

interligação com pavimentos e coberturas, contribuindo significativamente para o travamento

das estruturas em ambas as direções e, por essa via, colaborando na dissipação da energia

sísmica. Além disso, estas paredes podem também influenciar as condições de habitabilidade e

durabilidade geral dos edifícios.

Tal como no caso das paredes resistentes, também as paredes divisórias podem apresentar

várias soluções construtivas, geralmente função da localização geográfica dos edifícios e,

assim, associadas à disponibilidade ou não de determinados materiais.

Neste sentido, é possível encontrar soluções com poucas variações, que podem classificar-se de

âmbito nacional, como os tabiques de madeira (rebocados e estucados – “tabiques

ordinários”);e soluções de carácter mais local, de paredes divisórias construídas em tijolo

maciço ou com blocos de argila cozida ao sol (adobes), estes últimos, características de zonas

ricas em barro e de construções de pequeno porte.

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Os tabiques destinavam-se a criar as divisões mais pequenas dos edifícios, como se referiu

anteriormente, razão pela qual apresentavam uma espessura reduzida (para não ocuparem

muito espaço interior). O tabique mais simples e ligeiro era constituído por uma fiada de tábuas

costaneiras “não limpas” (toscas), com um comprimento entre 2,60 e 3,50m (pé-direito) e uma

secção de 18cmx(4,1 ou 5,5cm) pregadas ao alto com um intervalo mínimo de 1cm, a duas

réguas com 10 a 12cm de largura, fixas uma no sobrado e outra no teto.

Fasquias horizontais de secção trapezoidal, dispostas paralelamente e com intervalos de 3 a

5cm, eram então pregadas sobre as costaneiras de modo a que a face mais larga ficasse para

fora, para poder reter nesses intervalos a argamassa aplicada no revestimento. Estes tabiques

eram construídos depois do solho (pavimento) ser assente.

Por fim, o conjunto era revestido com reboco de argamassa de cal e areia (“saibro”), em ambas

as faces, e posteriormente esboçado e estucado, originando paredes esbeltas, com espessura

média de 0,10m, Figura 3.

(a) (b)

(1) fasquiado de madeira; (2) prancha (costaneira) de madeira; (3) camada de argamassa

Figura 3 : Estrutura do tabique “ordinário”; (a) caso em Lisboa;

(b) representação esquemática (adaptado de [3])

Estas paredes apresentam uma notável elasticidade e uma boa resistência às ações verticais;

além disso, quando colocadas ortogonalmente, de forma a cruzarem-se entre si, melhoram

bastante o comportamento estrutural do edifício às acções horizontais.

Esta mesma designação (tabique) é por vezes atribuída às divisórias interiores de tijolo com

espessura de meia vez ou de tijolo ao alto (ou de cutelo). A estes tabiques também se dá o

nome de pano de tijolo, que de resto é uma designação comum a todas as paredes de tijolo,

com espessura igual ou inferior a um tijolo. A estabilidade destes tabiques era melhorada com a

incorporação de prumos de madeira ou de ferro, afastados entre si cerca de 2,0m: os tijolos

justapostos ficavam encastrados (em vez de simplesmente encostados), abrindo-se para tal

ranhuras ao longo dos prumos de madeira, ou, no caso das vigas de ferro, utilizando perfis em I

ou em duplo T. Os paramentos deste pano de tijolo por vezes não eram rebocados.

A parede de meia vez, utilizada em tabiques, panos de apanhar de chaminés ou nos panos de

peito (nas janelas de peito), era construída por tijolos assentes ao baixo, de forma que a

espessura da parede no tosco correspondesse à largura do tijolo. Um pano de meia vez

apresentava uma estabilidade superior ao de um pano de tijolo ao alto, não necessitando por

isso de ser reforçado com prumos de madeira.

Havia ainda um outro tipo de tabique, de construção semelhante à dos frontais, constituído por

prumos e travessanhos ou escoras, sobre os quais se pregavam as costaneiras e o fasquiado,

sendo o espaço entre o fasquiado de ambas as faces preenchido por aparas de madeira.

(1) (1)

(2)

(3)

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Pela sua grande divulgação, os tabiques constituem um caso muito importante de paredes

divisórias, que integram e referenciam a construção Pombalina, mas generalizaram-se um

pouco por todo o País. Contudo, devido à escassez e consequente encarecimento de mão-de-

obra especializada, esta solução foi dando lugar sucessivamente a paredes mais simples, como

é o caso das divisórias de alvenaria de tijolo maciço a princípio, que mais tarde deram lugar ao

tijolo furado, mais leve.

Os tabiques com estrutura de madeira requeriam uma fundação adequada (no caso dos pisos

térreos) ou um solho resistente (pavimentos elevados), para suportar o seu peso próprio e as

cargas que pudessem receber. Quando este requisito não podia ser satisfeito, construíam-se os

tabiques suspensos ou aliviados, Figura 4, em simultâneo com a gaiola, e muitas vezes antes do

pavimento. O tabique suspenso designava-se por “enforcado” quando era construído sobre um

grande compartimento que não podia ser dividido.

Figura 4 : Representação esquemática de um tabique suspenso ou aliviado (adaptado de [5])

3.3. Variação da espessura das paredes divisórias com a altura do edifício

De um modo geral, a espessura das paredes era definida em função do número de pisos e dos

vãos dos pavimentos, relacionados com as dimensões das divisões interiores.

Em muitos casos, a espessura das paredes é variável ao longo da altura, diminuindo de baixo

para cima, à medida que as cargas gravíticas se reduzem. No caso das paredes exteriores, esta

redução de espessura é obtida através de ressaltos no paramento interior ao nível dos pisos

(pavimentos), com dimensões médias de 0,10 a 0,12m. Nas paredes divisórias a diminuição de

espessura em altura dá-se normalmente, também, através do sistema de ressaltos ao nível dos

andares, em paramentos alternados.

Quando as paredes limitam a caixa da escada, os ressaltos localizam-se no lado oposto às

escadas, ficando a parede plana nessa zona. As paredes divisórias com chaminés incorporadas

deviam ter pelo menos 0,40 a 0,45m de espessura, podendo, em certos casos, atingir 0,55 a

0,60m. No caso das paredes divisórias de alvenaria de tijolo maciço, quando as divisões eram

pequenas, mantinha-se a mesma espessura em dois ou três pisos consecutivos, tendo nos pisos

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superiores uma espessura de meia vez [9]. A parede menos espessa era obtida com o tijolo de

cutelo ou ao alto como referido.

No que se segue transcrevem-se algumas referências regulamentares relativas à espessura das

paredes dos edifícios, nomeadamente paredes divisórias, que enquadram alguns dos valores

referidos anteriormente. O cimento começou a ser utilizado pelo meio técnico nacional a partir

do primeiro quartel do Século XX; por este motivo, na descrição apresentada, os “blocos de

cimento” surgem como material de construção a considerar.

Assim, a Secção II do Capítulo V, do Regulamento Geral da Construção Urbana para a Cidade

de Lisboa, de 1945 [7], refere:

“Art. 32.º - Nos prédios vulgares destinados a habitação, as espessuras mínimas das paredes e

divisórias, excluindo rebocos e guarnecimentos, serão as seguintes:

4º - Frontais suportando cargas de vigamentos e divisórias das escadas:

a) - Alvenaria de tijolo - Meia vez nos dois últimos andares, uma vez nos quatro andares

seguintes, aumentando nos andares inferiores a estes, meia vez em cada piso.

b) - Blocos de cimento - 0m,10 nos dois últimos andares, 0m,15 nos quatro andares inferiores,

aumentando nos andares inferiores a estes 0m,05 em cada piso.

5º - Tabiques

a) - Alvenaria de tijolo - Meia vez nos quatro últimos andares, aumentando nos andares

inferiores meia vez de dois em dois pisos.

b) - Blocos de cimento - 0m,10 nos quatro últimos andares, aumentando nos andares inferiores

0m,05 de dois em dois pisos.

§1º - O tijolo a que se referem as disposições deste artigo é o tijolo furado tipo normal, com as

dimensões de 0m,23x0m,11x0m,075 (...).

§2º - As divisórias que sejam cortadas transversalmente com roços de grande extensão para a

instalação de encanamentos, não poderão ter espessura inferior a uma vez de tijolo. Esses roços

ou caixas não deverão afetar a divisória em mais do que um terço da sua espessura.

Art. 33.º - Quando o pé direito dos andares for superior a 4m as espessuras exigidas no artigo

anterior poderão ser reforçadas, segundo parecer da 4.ª Repartição, por forma que as paredes e

divisórias satisfaçam às condições de resistência e segurança necessárias.

Art. 34.º - Nos edifícios com habitações distintas, as paredes divisórias entre essas habitações

terão a espessura de uma vez de tijolo, no mínimo, e serão elevadas até à altura da cobertura.

Art. 35.º - Os frontais e os tabiques, tecidos ou construídos com madeira, apenas são

permitidos em divisórias de sótãos, andares recolhidos ou mansardas, ou quando as

circunstâncias não permitam o emprego de material mais resistente e de maior duração.

Art. 36.º - As subdivisões de compartimentos, construídas em madeira só serão permitidas em

estabelecimentos comerciais ou industriais e desde que não seja exigida a impermeabilização

dos seus paramentos. Estas subdivisões não deverão, rem regra, atingir o teto, ficando afastadas

deste 1m, pelo menos.

§ único - Na construção destas divisórias não será permitida a colocação de forro, constituindo

um falso teto, sobre os compartimentos por elas divididos.

O Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU) – Decreto-Lei nº 38382, de 7 de

Agosto de 1951 [8], que revogou o referido anteriormente, contém, entre outras, as seguintes

disposições:

“Art. 25.º Para as paredes das edificações correntes destinadas a habitação, quando construídas

de alvenaria de pedra ou tijolo cerâmico maciço de 1ª qualidade, com dimensões de

0,23mx0,11mx0,07m, poderá considerar-se assegurada, sem outra justificação, a sua

resistência, sempre que se adotem as espessuras mínimas fixadas” na Tabela 1.

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Aspetos construtivos e funcionais das paredes divisórias na construção tradicional 10

Tabela 1 – Espessura das paredes de alvenaria (sem rebocos e guarnecimentos)

(Tabela a que se refere o artigo 25.º do REGEU [8], relativamente aos grupos C, D e E)

Ordem

do andar

(a partir

de cima)

Grupo C 1)

Grupo D 2)

Grupo E 3)

Pedra Tijolo Pedra Tijolo Pedra Tijolo

Talhada

[cm]

Irregular

[cm] [vezes]

Talhada

[cm]

Irregular

[cm] [vezes]

Talhada

[cm]

Irregular

[cm] [vezes]

1 22 -- 1 -- -- 1/2 -- -- 1/2

2 22 -- 1 -- -- 1/2 -- -- 1/2

3 22 -- 1 -- -- 1 -- -- 1/2

4 22 -- 1 -- -- 1 -- -- 1/2

5 28 40 11/2

-- -- 1 -- -- 1

6 28 40 11/2

-- -- 1 -- -- 1

7 32 50 2 28 40 11/2

28 40 11/2

1) Paredes de separação entre habitações, paredes de caixa da escada e paredes interiores carregadas, em

geral 2) Paredes interiores de pequena extensão livre, servindo de apoio a pavimentos de reduzido vão (máximo

de 3m2 de pavimento por metro linear)

3) Paredes interiores não recebendo cargas

4. PRINCIPAIS ANOMALIAS EM PAREDES NA CONSTRUÇÃO TRADICIONAL

Tendo em conta a tecnologia construtiva, os materiais de construção utilizados e a organização

arquitetónica dos espaços, muitas das ações que atuam sobre os edifícios antigos são

suportadas tanto pelas paredes resistentes (exteriores e interiores), como pelas paredes

divisórias sem funções estruturais “à partida”, como referido. Esta situação acarreta um vasto

conjunto de anomalias a que as paredes podem estar sujeitas, como se verá em seguida.

4.1. Anomalias em paredes resistentes (exteriores e interiores)

As paredes resistentes dos edifícios antigos são, naturalmente, fundamentais para a garantia da

sua segurança estrutural. Muitas causas podem concorrer para danificar estes elementos, de

uma forma mais ou menos severa, tendo como limite o colapso das construções, como sucede

na maioria das vezes face às ações sísmicas mais intensas. Não sendo estas paredes, no entanto,

o objeto principal da comunicação, as anomalias e respetivas causas que potencialmente podem

ocorrer são apresentadas de forma sucinta [2, 4, 9].

Assim, em termos estruturais, as principais anomalias nestas paredes são a desagregação,

geralmente resultante, entre outros, da progressão e/ou agravamento de fendilhação anterior,

ação da água (chuva; capilaridade; condensação); o esmagamento, correspondendo a um

fenómeno localizado e pouco frequente, principalmente devido a cargas concentradas

excessivas (apoios de vigas), etc. e a fendilhação, frequente junto a aberturas ou na ligação de

paredes ortogonais, resultante da ação dos sismos (fendas a 45º) e assentamentos diferenciais,

alguns erros de construção, abatimento de arcos de descarga, etc. Outras anomalias prendem-se

com a ação da água e de agentes biológicos (mais grave em paredes resistentes, exteriores, com

elementos de madeira); oxidação de elementos metálicos e degradação geral por ausência de

ações de conservação e manutenção.

4.2. Anomalias em paredes divisórias

As paredes divisórias dos edifícios antigos, embora, em diversos casos, desempenhem funções

estruturais “semelhantes” às paredes exteriores (paredes mestras), tinham à partida como

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F.F.S Pinho 11

principal função a compartimentação dos espaços, razão pela qual a sua constituição difere das

paredes resistentes. Deste modo, existe um conjunto de anomalias relacionadas com a sua

“função estrutural”, relativas à importante função de travamento geral da estrutura por um lado

e, por outro, às modificações do equilíbrio estrutural verificadas ao longo da vida do edifício.

As anomalias registadas estão também relacionadas com as características construtivas e

funcionais.

Como também se referiu anteriormente, os assentamentos diferenciais das fundações e a ação

dos sismos, causadoras de fendilhação nas paredes resistentes, juntamente com a grande

deformação dos pavimentos de madeira, são fatores que podem obrigar à mobilização da

capacidade resistentes destas paredes “secundárias”, muito para além do previsto inicialmente.

De facto, o acréscimo das cargas em paredes que apresentam grandes limitações de resistência

a esforços de compressão, conduz a um conjunto de anomalias próprias de paredes estruturais

esbeltas e deformáveis, como por exemplo os abaulamentos, associados à instabilidade por

encurvadura, comuns em tabiques de madeira, e esmagamentos fáceis de detetar pela

ocorrência de fendas características da compressão excessiva [2]. Estas anomalias podem ainda

acontecer após algumas intervenções menos cuidadas nos edifícios, como aquelas em que se

carregam paredes divisórias com lajes de betão armado.

Pior ainda, é quando estas paredes apresentam descontinuidades ao longo da altura do edifício,

resultantes de demolições de paredes em diversos pisos, por vezes de forma alternada, para

ampliação/interligação de divisões ou compartimentos – uma parede é demolida no piso

inferior mas a parede no piso superior, na mesma prumada, mantém-se – “substituindo-as” por

vigas metálicas, muitas vezes com apoios “fictícios”. Nestes casos, o carregamento contínuo,

desde os pisos superiores até ao mais baixo, impõe grandes sobrecargas ao pavimento

subjacente (abaixo do qual foi removida a parede) que, ao deformar-se, provoca uma situação

patológica em cadeia [2], comprometendo de forma irreversível, e perigosa, a capacidade de

atenuação dos efeitos da ação sísmica, nomeadamente em edifícios de vários pisos.

Um tipo particular de anomalias estruturais que podem ocorrer nestas paredes “não-resistentes

à partida” é a fendilhação devida a movimentos diferenciais de origem térmica da envolvente

face às paredes interiores ou resultantes do assentamento de fundações, ações dinâmicas a que

o conjunto do edifício ou os seus vários elementos constituintes possam ser submetidos ou pela

atuação de cargas concentradas ou de valor muito desequilibrado.

Anomalias também comuns têm a ver com o seu desajustamento em relação a determinadas

exigências funcionais, que pode resultar da deterioração das características da própria parede,

ou dever-se à evolução dos níveis de algumas daquelas exigências, como por exemplo: o

isolamento térmico, pouco eficiente na maioria das situações; o isolamento acústico,

principalmente a ruídos de condução aérea, fortemente prejudicado pela sua leveza; e a

resistência ao fogo, muito reduzida no caso da utilização de peças de madeira de pequena

espessura, dado tratar-se de um material combustível.

Outras anomalias têm a ver com o envelhecimento dos materiais constituintes e com os efeitos

da presença da água, apesar de pouco habituais, dada a localização privilegiada destas paredes

(no interior do edifício), excetuando-se as zonas de ligação com as paredes exteriores e zonas

que delimitam áreas húmidas dos compartimentos ou atravessadas por tubagens de águas e

esgotos. As paredes de compartimentação tornam-se muito sensíveis à presença da água,

porque as reduzidas secções dos elementos que as constituem contribui para acelerar o

processo de degradação.

Na Tabela 2 resumem-se as principais anomalias que podem ocorrer em paredes divisórias de

edifícios antigos, bem como as respetivas causas e características.

Diretamente relacionadas com as anomalias das paredes estão as anomalias que ocorrem nos

revestimentos e acabamentos. Nas Tabelas 3 e 4 resumem-se as principais anomalias ocorridas

em revestimentos e acabamentos de paredes de edifícios antigos, respetivamente, bem como as

suas respetivas causas e características.

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Aspetos construtivos e funcionais das paredes divisórias na construção tradicional 12

Tabela 2 – Principais anomalias em paredes divisórias de edifícios antigos [2, 4, 9]

Anomalia Causas/características

Relacionadas com

funções estruturais

- modificações das condições de equilíbrio estrutural

- ação de sismos

Abaulamentos e

esmagamentos

- acréscimo de cargas

- assentamentos diferenciais;

- redistribuição de cargas e/ou ocorrência de fendilhações nas

paredes resistentes

- apoio de lajes de betão armado

Fendilhação

- movimentos diferenciais (relativos) da estrutura

- assentamentos diferenciais das fundações; ação sísmica

- retração dos panos de parede

- flexão excessiva dos pavimentos

Acção da água - encontro com paredes resistentes exteriores

- anomalias em redes de águas e esgotos

Desajustamento face a

determinadas

exigências funcionais

- deterioração das características das paredes

- evolução dos níveis de exigências [isolamento térmico e

acústico, resistência ao fogo (madeira)]

Envelhecimento dos

materiais

- ausência de conservação e manutenção

- agravamento generalizado das restantes anomalias

Tabela 3 – Principais anomalias em revestimentos de paredes de edifícios antigos [2, 4, 9]

Anomalia Causas/ características

Desagregação

- a presença de humidade facilita a deposição e cristalização de sais

- a cristalização dos sais provoca o entumecimento dos rebocos

originando a sua fendilhação e a desagregação da parede

- comum nas situações de rebocos fracos (à base de cal e areia), com

baixa resistência mecânica e/ou nos casos de pinturas pouco

permeáveis ao vapor de água

Esmagamento

- esmagamento dos rebocos (devido ao esmagamento das paredes)

- fraca resistência mecânica do reboco (argamassas de cal)

- desprendimento de azulejos, também devidos a:

a) retração da argamassa, provocando tensões tangenciais, capazes

de partir os azulejos (se forem mais fortes que a ligação)

b) os desprendimentos podem ainda resultar de movimentos

diferenciais em paredes com argamassas de módulos de

elasticidade superior ao dos azulejos

- diminuição da aderência entre a argamassa e as paredes com

elementos de madeira

- empolamento devido a corrosão em elementos metálicos

Fendilhação

- retração das argamassas (rebocos fortes, de cimento)

- fendilhação do suporte (em paredes rebocadas)

- as paredes antigas, quando rebocadas com argamassas fortes

(elevados

teores de cimento) levam à formação de eflorescências, com a

consequente desagregação da parede (elemento mais fraco)

Agentes

climáticos

- ação abrasiva do vento (poeiras e areias)

- variações de temperatura

- ação da humidade

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F.F.S Pinho 13

Tabela 4 – Principais anomalias em acabamentos de paredes de edifícios antigos [2, 4, 9]

Anomalia Causas e características

Deterioração da caiação pelo efeito

da água da chuva, em paredes

exteriores

- ausência de produtos fixantes

- falta de repetição da caiação 1 ou 2 vezes por ano

- existência de sais solúveis na cal

- fraca resistência ao desgaste

Alteração do aspeto das pinturas

- sujidade acumulada nas superfícies (poeiras

transportadas pelo vento, poluição industrial e

atmosférica, ...)

- ação dos raios solares (ultra-violetas)

5. CONCLUSÕES

Na presente comunicação referiram-se diversos aspetos construtivos e funcionais das paredes

divisórias, no contexto da construção tradicional, ou seja nos edifícios antigos em geral –

considerando como tal os edifícios construídos até ao primeiro quartel do Século XX.

Como conclusões finais, salienta-se as solicitações/contributos, crescentes com a idade dos

edifícios, que estas paredes têm, na resistência às ações gravíticas resultantes entre outros

aspetos, dos fenómenos de fluência das vigas de madeira que suportam os pavimentos e de

sobrecargas superiores às inicialmente previstas (normalmente associadas a alterações

funcionais de compartimentos ou dos próprios edifícios). Isto, mesmo nos casos em que em

que, à partida, as paredes tinham apenas como função compartimentar os espaços entre paredes

resistentes exteriores e interiores – refletindo-se tal situação nas reduzidas espessuras destes

elementos, como sucede com os tabiques, muitas vezes insuficientes para tais solicitações,

resultando daí diversas anomalias estruturais. Por outro lado, as paredes divisórias, mesmo a

mais esbeltas, têm uma influência decisiva na dissipação da energia sísmica, desde exista uma

boa interligação entre paredes, pavimentos, escadas e coberturas, como acontece em muitos

casos.

Do ponto de vista construtivo, o princípio geral corresponde ao predomínio dos tabiques como

paredes divisórias, registando-se depois outras soluções como os adobes e o tijolo, algumas

vezes com incorporação de elementos de reforço (prumos de madeira ou metálicos), em função

da distribuição geográfica dos edifícios e da disponibilidade de materiais no local.

6. REFERÊNCIAS

[1] Instituto Nacional de Estatística (INE) – “Recenseamento Geral da População e da

Habitação: Censos 2001”. Lisboa, 2003.

[2] Appleton, João – “Edifícios Antigos - Contribuição para o estudo do seu

comportamento e das ações de reabilitação a empreender”. Programa de investigação

apresentado a concurso para provimento na categoria de investigador-coordenador.

Lisboa, LNEC, 1991.

[3] Appleton, João – “Reabilitação de Edifícios Antigos – Patologias e Tecnologias de

Intervenção”. Edições Orion. Lisboa, Setembro de 2003.

[4] Pinho, F. – “Paredes de Edifícios Antigos em Portugal”. Coleção Edifícios. Nº 8. LNEC,

Lisboa. 2ª Edição, 2008.

[5] Leitão, L. A. – “Curso Elementar de Construções”. Lisboa, Escola Central da Arma de

Engenharia. Estado Maior do Exército, 1896.

[6] Farinha, J. – “Cadernos do Metropolitano - Caderno Nº 6”. Metropolitano de Lisboa,

Lisboa, Novembro de 1997.

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Aspetos construtivos e funcionais das paredes divisórias na construção tradicional 14

[7] Câmara Municipal de Lisboa (CML) – “Regulamento Geral da Construção Urbana para

a Cidade de Lisboa”. 6ª Edição, Lisboa, CML, Direcção dos Serviços de Urbanização e

Obras, 1945.

[8] /P/ - Leis, decretos, etc. - Decreto-Lei nº 38382, de 7 de Agosto de 1951 - Regulamento

Geral das Edificações Urbanas (RGEU).

[9] Pontes, J.; Manso, A. – “Anomalias mais Frequentes em Edifícios Antigos em Lisboa”.

2º Encontro Sobre Conservação e Reabilitação de Edifícios, LNEC, Lisboa, 1994.