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ATÉ AO FIM VERGÍLIO FERREIRA BERTRAND EDITORA Digitalização e Arranjo Agostinho Costa Este livro foi digitalizado para ser lido por Deficientes Visuais Regresso a casa devagar, perdido ,no tráfego da cidade. E então lentamente, a tua imagem oculta, um aceno horrível de outrora. Ah, tu não fazes ideia, Tina. Está bem que tinhas

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ATÉ AO FIM

VERGÍLIO FERREIRA

BERTRAND EDITORA

Digitalização e Arranjo

Agostinho Costa

Este livro foi digitalizado para ser lido

por Deficientes Visuais

Regresso a casa devagar, perdido ,no tráfego da cidade. Eentão lentamente, a tua imagem oculta, um aceno horrível deoutrora. Ah, tu não fazes ideia, Tina. Está bem que tinhasdireito a uma definitiva aposentação. Mas eram só mais unsanos, Tina, assim deixas-me bem aflito. Só mais uns anos paraque quando te lembrasses fosses só a

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minha recordação. Coisafácil e avulsa só de recordar. Entro agora no Campo Grande,lembro-me de acender o rádio. Estou só, qualquer coisa que mefaça companhia. Abro o rádio, uma sonata, parece-me, deBeethoven? uma coisa plana e larga como o nome de sonata.Podias ter esperado alguns anos, coisa pouca, o bastante paraeu dizer sim à vida infame que me codilhou. O bastante para euexistir por mim. Espera, é a sonata ao luar, não gosto. Ogosto dos outros comeu-lhe tudo, não gosto. Mas ouço nãoaquilo que vou ouvindo, mas o que ouço para lá. Assim tu nãoés coisa natural de recordar, mas a aflição que está para lá.Estou verdadeiramente embaraçado, tu não podes imaginar noconforto do teu descanso. E então devagar vou até à tuamemória que é a realidade fictícia de eu estar bem onde nãoestou. Memória antiga como o começo do mundo.

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OBRAS DO AUTOR

FicçÃO 90

O CAMINHO FICA LONGE (1943) ONDE TUDO FOI MORRENDO (1994) VAGãO "J" (1946) MUDANÇA ( 1949) A FACE SANGRENTA (1953) MANHã SUBMERSA (1953) ApELO DA NOITE (1963) CâNTICO FINAL (1960) ApARIÇÃO (1959) ESTRELA POLAR (1962) ALEGRIA BREVE (1965) NÍTIDO NuLO (1971) APENAS HOMENS (1972) RÁPIDA, A SOMBRA (1974) CONTOS (1976) SIGNO SINAL (1979) PARA SEMpRE (1983) UMA ESPLANADA SOBRE O MAR (1986) ATÉ AO FIM (1987) EM NOME DA TERRA ( 1990) NA TUA FACE (1993)

ENSAiO

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SOBRE O HUMORISMO DE EÇA DE QUEIRS (1943) DO MunDO ORIGINAL ( 1957) CArTA AO FutuRO (1958) DA FENOMenOLOGIA A SARTRE (1963) INTERROGAÇãO AO DESTINO, MALRAuX (1963) ESPAÇO DO INVISÍVEL I (1965) INVOCAÇãO AO MEU CORpO (1969) ESp'AÇO DO INVISÍVEL II (1976) ESp'AÇO DO INVISÍVEL III (1977) UM ESCRITOr ApreSENTA-SE (1981) Entrevistas, com montagem, Prefácioe notas de Maria da Glória Padrão ESpAÇO DO INVISÍVEL IV (1987) ArTe TEmpO (1988)

DIÁrIO

CONTA-CORRENTE 1 (1980) CONTA-CORrENTE II (1981) CONTA-CORRENTE III (1983) CONTA-CORRENTE IV (1985)

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CONTA-CORRENTE V (1987) PENSAR (1992) CONTA-CORRENTE - nova série I (1993) CONTA-CORRENTE - nova série II (1993) CONTA-CORrENTe - nova série III (1994) CONTA-CORrENTE - nova série IV ( 1994)

Vergílio Ferreira

Até Ao Fim

romance

5ª edição

Bertrand Editora, Lda.,

Lisboa 1992

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António Magalhães

ao poeta e ao amigo

perseguir até ao fim achar o mar

António Ramos Rosa

I

Que horas são? a manhã vem já aí. Ardem-me os olhos devigília, o corpo cansado. À porta da capela, fica num altojunto ao mar. À porta da capela, olho à volta o horizontenocturno, olho o céu cheio de estrelas. Está uma noitetranquila de inocência, como a paz que me invade. Poderiaachar razões que me turbassem a paz. Não

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encontro. Tudoaconteceu fora do meu alcance, não encontro. Um pouco de sonotalvez, de fadiga, que horas são? Há em todo o céu lá no cimoum pouco de claridade que não é das estrelas. E há uma certaagitação invisível, um profundo estremecer do mundo que vaiacordar. E sempre o ressoar das águas, mas tenho de prestaratenção. Longe, no limite do mar, pequenas luzes de barcos napesca. Estremecem devagar como se cintilassem na sua luzmortal. É um cintilar já breve na claridade que vem aí. Estouparado à porta da capela, há um terreno à frente e depois aqueda a pique para as águas. Passei a noite sozinho, fuihomem. Quero dizer fui perfeito. Não é que eu tivesse muito aconversar com o meu filho, que dorme ali no caixão. Mas o quehouvesse a dizer era só entre os dois. - Esqueces-te de que veio muita gente à conversa.

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- Não muita. De todo o modo, entre os dois. Porque, quem mais com direito neste diálogo contigo? Haviaum mundo a decidir apenas entre nós. - Estava já decidido, tudo o mais foi palavreado um mundo adecidir e tudo o mais era circunstância como numfrente-a-frente político. E quanto ao palavreado, decerto, mastínhamos de nos explicar. Aliás, daqui a umas horas vêmbuscar-te e acabou-se a conversa. Estou um pouco desejosodisso, apesar de tudo. Uma noite de vigília cansa e não hárazão nenhuma que se aguente com sono. E estou ansioso pelosol, pelo mar diurno, o mar aberto de claridade. Talvez por umpouco de pesca, talvez por um pouco de banho, vai estar um diaquente. De toda a maneira, a purificação, o restabelecimentoda plenitude, o estar inteiro para mim. Com todo o meu serlavado e renascido. Sem pesadelos, angústias, sem manchas de

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sangue. Avanço um pouco no terreno em frente da capela. Há umpequeno muro branco a toda a volta, até ao limite do perigo.Alveja na obscuridade do amanhecer, o muro. Na ponta daenseada há um farol. De vez em quando o facho varre o ar, umcone de poalha luminosa, como um olho brilhante bate-me súbitona cara, roda para o lado oposto. Tem o tique maníaco darepetição, roda vagaroso pelo lado de lá, de súbito bate-me nacara, passa. Sento-me no murete, fumo. E em baixo o mar,sempre. Do lado de lá da capela estende-se uma estrada para apraia, não passa ninguém. Uma trança de espuma a todo o correrda areia, vejo-a, tem na obscuridade uma alvura de leite. E orumor do oceano. Profundo e vasto na vastidão do amanhecer.Mundo do início, tudo vai começar de novo pela primeira vez -estarei eu preparado?

- Cláudio!

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- Diz. - Vê se acabas a merda do cigarro, tenho coisas a dizer-te. Cláudio sou eu. Não sou pai, possivelmente não sou, chama-mepelo nome, muitas vezes o fez. Como se instaurado de facto noinício primeiro. Como se nenhum elo de ligação. Não meaborreço. Como se num começo verdadeiro. Mas não vou ainda.Tenho ainda o cigarro, na boca um pouco de estrumeira. Sabe-memal, levei a noite a fumar. Olho distraído as lâmpadas daestrada que passa atrás da capela. Têm uma luz mortiça, desono. Para o alto sobe uma pequena colina com casas dispersas.Vejo-as, pálidas, a acordar também para a manhã. Algumas têmuma lâmpada de esquina. Possivelmente da iluminação pública.Ou iluminarão o quintal e ficaram acesas por descuido. E emtodas se abre um halo da neblina que vem do mar. Para baixo,na descida da estrada, há mais casas rentes à praia. Dormemplácidas o sono da manhã. São belas, no seu alheamento,

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irmanadas à minha quietação. - Cláudio! - Sim. Fala alto, entremeado ao rumor do mar. - Nunca mais acabas o cigarro. Quero conversar contigo. - Já dissemos tudo o que havia a dizer. - Não dissemos. E há coisas que não fiquei a saber. - Por exemplo? - Daqui a pouco que horas são? Daqui a pouco vêm osfuncionários do enterro. Nunca mais voltaremos a falar. Vaissentir a falta do que não dissemos. Tu não gostaste nunca deconversar. Mas agora é diferente. Vais sentir a falta de nãoteres dito tudo.

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- Por exemplo e atiro o cigarro para o mar. Venho até àborda, pode haver restolho e pegar fogo. Engancho o dedo,disparo-o para longe. Venho junto de Miguel, pergunto de novo- Por exemplo? e ele hesita um pouco.

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Vê-se que quer apenascompanhia. As quatro velas nos ângulos do caixão, derreadas decansaço, endireito-as, esforço-me por, pingavam para o chão. - Porque é que foste para jornalista? Uma vez contaste-me,achei tanta piada. Mas o que tem mais piada é tu acreditaresna causa e efeito. Porque primeiro é-se e depois demonstra-seporque se é. E à beira do mar devias ter frio. Sinto-o mesmoaqui. Se fechasses a porta? A sós contigo. Toda a história do mundo reduzida a mim e ati. Com muitas circunstâncias adjacentes sem importâncianenhuma.

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II

É quase de noite quando chego. Há uma camioneta que fazcarreira entre a estação e a vila. Quem a conduz é o Leonel,

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passou a vida nela. Traz agora uma peliça nova com uma golalarga de pele. Sento-me ao lado de uma janela, não há quaseninguém. Entra um velho, senta-se atrás do condutor. - Peliça nova, Leonel! A quem a roubaste? - Deu-ma a minha irmã bichante. Vive na capital, a irmã. É prostituta. Ofereceu-lhe umapeliça, ganhou-a honestamente com a distribuição do prazer.Está frio, vem aí o Natal. São quatro ou cinco os passageiros.Leonel sopra as mãos, põe o motor a trabalhar. E a camionetaescangalha-se toda com um chocalhar de ferragens. Campos deoliveiras, terra morta, o céu é baixo, encolhido de frio.Atravessamos uma aldeia deserta, um ou outro homem imóvel eespectral. E quando chegamos à Encruzilhada, já lá está oMartinho à minha espera. Passo-lhe a maleta, ele carrega-a aosombros, partimos - há quantos anos? A camioneta arranca,vejo-a sumir-se ao fundo da estrada, já com os faróis acesos -

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há quanto tempo? Trabalhava numas terras de meus pais,

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o Martinho, desde sempre me veio trazer à camioneta com acarga da mala. Manhã de geada, manhã alta de Verão, desdesempre. Passamos junto das quintas, os cães saltam ao caminhoa ladrar, enraivecidos, Martinho nem lhes liga. Eu faço umdesvio de prudência, ele avança a direito sem alterar o passo,os cães estacam de ladrar, rosnam ainda desconfiados, viramcostas reconhecendo no Martinho alguém da família. É alto,poderoso, o Martinho. Cabelo louro, olho azul, rasto de algumnórdico que passou. E os lábios rebentados dos gelos dasmanhãs, da vinhaça, da aguardente. Tem o passo militar demarcha forçada, vejo-me aflito para o acompanhar. De vez emquando repara que me atrasei, pára, olha atrás, recomeça a

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cavalgada. Fala pouco. Deve ter poucas ideias e nenhuma servepara ali. Passamos junto ao cemitério, estamos perto, ele tirao chapéu, mas não muito, fica com ele junto à cabeça como se otirasse só para se coçar. Depois põe-no outra vez, não sei serezou. Mas já o tê-lo tirado me surpreende, ele é o coveiro,familiar dos mortos, deve-lhes ter perdido o respeito. Aaldeia começa um bocado depois, há já janelas acesas, um ououtro vulto imóvel e encapotado pelas ruas. Moramos no adro,quase em face da igreja. O relógio deu horas no campanário, oar fica a vibrar, o adro mais deserto. Martinho bateu à porta,Tina veio abrir - Já vieram! - diz ela lá para dentro. Toma a mala das mãos do Martinho - Espera aí - vai dentrobuscar-lhe moedas e um copo de vinho tinto, eu vou entrando.Entro devagar, na súbita e lenta recuperação da casa, da minhaintegração nela. É uma casa de pé alto e assim um pouco maisdeserta de desconforto. Há luz na sala

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ao fundo - à direita,em frente da cozinha, imagino que os meus pais estejam aí. Mas quando chego à porta, está só a minha mãe, mas em pé, viradapara a parede, creio que tem mesmo a cabeça encostada. Fico umpouco embaraçado, mas a Tina veio logo atrás - É o menino,minha senhora. Já veio. Minha mãe, sem se voltar, ergueu ao alto a mão de dedosabertos como a pedir que a não perturbássemos. Olho a Tina naminha surpresa, ela está comigo à porta, as mãos dadas sobre oavental. - Veja lá, menino, se isto são propósitos. Aqui há temposnão sei que lhe deu. O senhor professor foi à missa, elaficou-se ali virada para a parede. O senhor professor foi ànovena do Menino Deus, ela pôs-se logo ali virada para aparede. O seu pai pergunta-Lhe porque é isto, ela não dáexplicações. Mas sente-se à braseira que eu vou queimar umcapão de vides para termos brasas novas. Sentei-me à braseira, minha mãe não se

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voltou. Baixou a mão,não se voltou. Puxou foi uma cadeira, já estaria cansada, mascontinuou voltada para a parede. Pela janela alta e por sobreo telhado de uma casa que circunda o pátio, olho o céu frioque escurece. Estamos assim os dois em silêncio, minha mãe decostas, eu vergado para a braseira. Depois levanto-me, venho àjanela para o pátio. Em baixo a Tina acende uma grandefogueira de vides. É bela a fogueira na tarde de Inverno. Opátio está rodeado pelas traseiras de casas, excepto por umlado que se prolonga num quintal. Não é nosso o quintal. Temcouves, apaga-se no escuro. Estou em pé à janela, estendo porele o meu olhar perturbado com a estranheza de minha mãe.Louca? Olho atrás, ela continua debruçada sobre si, entestadaà parede. Subo ao meu quarto a arrumar as minhas coisas. Navolta da escada há por cima uma clarabóia em cúpula, agora aapagar-se na sombra.

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O quarto é à direita, sob a empena, voltado para o adro.Está deserto, o adro. Há casas a toda a volta e em frente dascasas, a toda a volta também, uma fieira de tílias sem folhas.Abro a mala que a Tina trouxe, arrumo a roupa e os livros.Trago sempre livros para férias para sossego da consciência,nunca os abro. Depois encosto-me à janela a fazer horas. Atéque dos dois lados da igreja, não da frente que só abre aporta ao domingo, começam a sair as devotas de escuro. Poucoshomens, vejo enfim o meu pai entre eles. Desço de novo, meupai chega pouco depois. Espero-o na sala, ele fala da portapara a minha mãe: - Ester! Já acabou. Podes-te virar. Minha mãe fez-me então uma festa ruidosa, meu filho isto,meu filho aquilo. Tina veio buscar a braseira para a encher debrasas novas. Voltou com ela armada de

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brasido, brasas vivasquase luminosas como se em chamas ainda. A luz da sala estavaainda apagada, meu pai acendeu-a quando entrou. E eu senti-meentão regressado não ao tempo em que partira de férias, mas aum outro muito mais antigo. Porque tudo era muito antigo, osmóveis escuros, o quadro metálico da Ceia na parede da frente,mesmo o paliteiro sobre o aparador e que era uma carantonhaespalmada de louça com os palitos em leque, espetados porcima. - Tina! Podes trazer o jantar. A sala é alta, a luz do tecto mortiça e as paredes de tomescuro. Assim parece que a noite já vai longa e em breve viráum convite ao sono. Estamos os três à mesa, comemos emsilêncio. E de súbito, minha mãe disse: - Sabes, Claudinho, Deus não existe. Olho-a, ela está a rir-se para mim. Meu pai não parou decomer. E eu digo: - Ah, sim? Mas isso é estupendo. Como diabo é que ele nãoexiste?

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Mãe morta um dia, na quietação da manhã. - Vem para aqui para o pé de mim - diz-me Miguel. - E fechaa porta, que vem frio lá do mar. Meu pai morreu, creio que era uma manhã de Inverno. Viera aLisboa, estivera na Oncologia, fizeram-lhe um furo na gargantapara respirar. E sobre o orifício, porque a miséria, aabjecção pública de nós, havia o orgulho de nós próprios e orespeito, a deferência pela repelência dos outros, era umnastro à volta do pescoço e uma tampinha de pano a esconder.Eu perguntei-lhe: - E então como te sentes? e ele encolheu os ombros, levantoua tampinha ao meu horror. Minha mãe ficou só e um dia entendeuque bastava. Eu recebera um telegrama, Tina contou-me depois,aparecera assim de manhã. Quieta, deitada de lado a dormir.Dorme. Para sempre na minha memória tranquila. - Cláudio! Fizeste bem que vieste. Estava agora ali no canto da sua eternidade. Fluida de névoa

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à sua volta, na distância do horizonte marinho ao amanhecer. - Explica-me lá então porque é que Deus não existe - disse omeu pai, acabando a sopa. Minha mãe era alta, mais alta que meu pai. A face larga, oolhar buliçoso. Resvalava por nós o olhar quando falava,andava por longe, na distância da sua inquietação. E entãoexplicou. Se não tivesse havido homens, Deus era um parvinho abrincar com o seu brinquedo, ninguém sabia. Não havia homens,ninguém sabia. - Mas há homens - disse o meu pai -, já lho repeti cemvezes.

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- Era um tontinho e isso não pode ser. Há homens por acaso,podia não haver, meu filho. - Então explica porque é que te viras para a parede nashoras da missa. - Era um parvinho e isso não podia ser. Um parvinho a

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brincar com o mundo como com um brinquedo de um parvinho,enquanto fluida devagar, as sombras dissipadas devagar, a salavazia, relembro-a, há uma Ceia do Senhor, é de metal, a meioda parede da frente. No aparador havia um paliteiro, uma caraespalmada e redonda, os palitos armados no ar como roda deespadas. Tina punha-o sempre na mesa, meu pai palitava osdentes pelo vício de um palito na boca, olho o aparador. Umacara espalmada, um riso em meia lua, olho o mar no mistério doamanhecer. Estou em pé, perscruto o horizonte, aberto aopossível de todas as navegações. Meu olhar calmo até ao irrealda infinitude. O mar, ouço-o, tumulto grosso, atropelado.Denso. No limite do horizonte há uma barra de claridade comose o sol viesse daí. E então o meu pai disse: - Um dia de manhã saiu-se-me com essa. A ideia dela ésimples. Se não houvesse homens, Deus era um taradinho abrincar com o mundo sem ninguém. E isso

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não podia ser, porqueDeus não pode ser um idiota. Ora o homem nasceu por acaso,podia portanto não nascer. E Deus ficou assim idiota à mesma.Logo, não existe. Mas pergunta-Lhe lá porque é que ela àshoras da missa se vira para a parede: - Porque é? - Ti...i...na! Podes trazer o resto! A braseira aquece-me de um lado, do outro lado arrefeço, acasa enregelada. O dia morre nas altas janelas, céu jáescuro, compacto de frio. Tina trouxe uma travessa fumegante,pô-la no centro da mesa. Depois fechou as janelas e tudo ficoumais perto e triste. A lâmpada sem prato, era uma lâmpadafrouxa. E sem peso, o fio bambo, sem verticalidade. O pratoera de vidro, Tina partiu-o. Devia ser no fim do Verão, oprato sujo das moscas. Lavou-o na cozinha, minha mãe aosgritos, quebrou-se contra a pedra do fogão, agora a luz eratriste. Dissipava-se no ar, pirilampo na grande sala fria.Havia a um canto um móvel com várias

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prateleiras e bonecosminiaturais de louça. E no outro canto uma jardineira com umabegónia raquítica. Minha mãe serviu-me, servia-me sempre desdea infância para prolongar a maternidade, meu pai disse: - Há tempos veio aí o Cameira, foi nosso colega na Escola doMagistério em Coimbra. É irmão do director do Informações efalámos de ti. Tu não o conheces, mas ele sabe de ti, já deoutras vezes falámos, uma vez encontrámo-lo na Guarda. - Tu vais aceitar - disse minha mãe cheia de pressa. Meu pai tinha o gesto no ar, suspendeu-o a ver o que vinha,continuou depois, falámos de ti e das tuas reprovações emDireito. - E ele disse porque não vai ele para o jornalismo? - Deves aceitar, o jornalismo é a profissão mais decente. - A ideia dela, tu não a entendes bem, eu é que sei. - Maisdecente. - A ideia dela é que o jornalista não precisa de ter

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opiniões sobre nada e é um homem livre enquanto Tina, naporta, as mãos cruzadas à frente, mais batatas? ia olhando eouvindo.

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- Ela diz que mais do que um juiz, independente e livre,porque de nada vale a pena ter-se uma opinião. - Tu não explicas bem - diz-me o meu filho, estou à porta dacapela, as costas para o mar, e as velas de novo derreadas,vou endireitá-las outra vez, com jeito para se não partirem, omar ouço-o sempre. - Tu não explicas bem e a tua mãe tinhaoutra inteligência a explicar. Um jornalista não precisa deter opinião e nada vale a opinião que se tenha porque tudo éum erro. Sento-me à porta da capela, gosto de olhar o mar. Há noiteainda, mas o dia vai abrir sobre o abismo das águas, tenho emmim a disponibilidade da alegria

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gratuita, da simples alegriade existir, esquecer esquecer. - Tu não podes levar a vida a reprovar, um dia disseste quenão gostavas do curso e eu pensei Lisboa, quando começo aviver? O adiamento intérmino do futuro. Mas de súbito -Oriana. Espera. Como vieste? Não havia intervalo para ti noque digo. Como foi? Estás lá, no limite da vida, no limite detodos os limites. Imóvel no espaço, é assim. Talvez no círculode claridade ao fim do mar. E a tua luz abrindo em claridade,na claridade do mar, olho. E entre a morte do filho ali atráse a tua no impossível. Aqui estou. E no meio eu, sem sabercomo sou. Ah, não. Logo que amanheça. Logo que se cumpra oritual da morte. Tomarei banho, lustral e novo. Ou no terraçoda moradia nas Azenhas, olhar o sol, respirar fundo o aroma dosem fim. - E que dizes? - Diz que sim (minha mãe) - Este ano vou passar. Para o anoverei.

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- Gostava de ser jornalista - diz minha mãe, e fica de faceno ar, o olhar oblíquo a vozes ocultas, gostava de ser.

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- Mas não és - dizia meu pai, era professora aposentada,irmã de um padre muito mais velho do que ela, formara-a,casara-a, deixara-lhe a casa onde me criei. - Para que queriasser jornalista? - Sabes uma coisa, Claudinho? Deus não existe. Depois eu saía. Ia jogar a douradinha à alfaiataria doMimoso, juntavam-se outros rapazes. E à meia-noite regressava.Céu límpido e negro, havia uma lua fria, eu gostava, sozinho,noite frígida, um ou outro vulto cruzado imprevisto nas ruas,noite primitiva. - Sabes uma coisa? - Mas viras-te para a parede. - Um jornalista é um homem perfeito. Não vou reprovar este ano. Na plácida

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harmonia de um céuescuro de estrelas. Meus passos solitários no silêncio.

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III

- Mas tu nunca entendeste a tua mãe. - Entendi como? - Nunca te sentiste jornalista como ela julgava. Era demaispara ti. Ser independente. Cortar com todas as submissões. Serlivre como Deus. - Ouve, meu filho. - Não me trates por filho. - Mas se tu o és. Como queres que te trate? - Não sou filho de ninguém. Assumiste-te como pai quando mefizeste? Quem se sente como pai? - Eu te criei. Eu, afinal. - Quem se sente como pai? Tudo isto é infantil, não é tempode ser criança. Em dado momento, no instante essencial,sentiste atracção por uma mulher, ou nem isso, entendeste quedevias cumprir uma obrigação,

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montaste-te numa mulher chamadaFlora. E eu nasci. Que é que tenho a ver com as tuas questõesfisiológicas? - Bem. Acho que estás a ser grosseiro. Todo o real tem atrásoutra realidade. No domínio humano é assim. - Não me venhas com metafísicas! - No fim de contas não foste abandonado. E a fisiologiatinha acabado já.

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- Não me venhas com metafísica. O pai e a mãe e o amorfilial. A metafísica da descendência. O pai e a mãe,sacerdotes da realidade da transmissão da vida. Mete-me nojotudo isso. No topo da capela, por cima do altar, há um retábulo daAnunciação. - Mete-me náusea essa mistificação de um acto simples eegoísta. Estou farto de hipocrisias, de convenções sociais.

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A Virgem dobra o joelho, mas vejo mal. Procuro ointerruptor, acendo a luz do tecto. Agora vejo melhor, mas nãomuito. - Tu dirás que até um cão para se pôr na cadela tem o seujogo de convenção. É diferente. Dobra o joelho e põe as mãos, porque é tudo excessivo ediante do excesso só a humildade. - Ele tenta apenas conseguir o que quer. É um truque deretórica. Depois acabou. Tento ver melhor, as cores escuras. Mas a face tem umaclaridade que a destaca e uma irradiação de plenitude - de queséculo a pintura? talvez do xvII. - Imagina um cão a dizer o meu filho. Ou a dizer o meu pai. E diante da Virgem o anjo com uma legenda numa fita queserpenteia em diagonal. Tem uma expressão grave e um poucoaltaneira. Vem dele não apenas a hora nova. Como se viessetambém uma ameaça. Ou o peso de uma responsabilidade. - Apaga a luz. Devias mesmo apagar as velas.

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A última homenagem a um corpo jovem e morto. Nos quatrocantos do caixão as velas estão de novo torcidas. E já no fim.Não apago a luz, olho o retábulo. É em azuis e vermelhos. E dealto a baixo percorre-o um esquema de curvas. Meu filhocalou-se, agora vejo melhor o quadro. Há nele um silênciointenso por baixo de uma insinuada retórica. É belo no anúncioda manhã. - Mas tu não dizes nada. Que é que estás a olhar? - Não tenho nada a dizer. Acho que tens razão. Quando seestá convencido, tem-se sempre razão, mesmo que se não tenha. É a razão da força. E a convicção tem muita força. Estoucansado, eu. A Virgem tem os olhos baixos. O retábulo estáentre duas colunas salomónicas e isso dá-lhe uma realeza quenão tem. Porque tem só o que é discreto e silencioso. Nãogosto muito do anjo. Está por cima e o que diz também vem decima. Devia ele ajoelhar. Mas são assim os emissários, os que

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têm um poder por procuração. - Queria-te dizer uma coisa, mas não fiques ofendido. E seficares, é contigo. Queria-te dizer que apesar de tudo, gosteisempre mais de Flora do que de ti. - Não fico ofendido. - Devias pensar que não é justo. - Não penso. - Ponho-me a pensar porquê e não sei bem. Creio que por tercolaborado pouco na metafísica. Venho à porta olhar o mar, apago a luz. As lâmpadas daestrada parecem-me empalidecer. Vejo-as subiremcompassadamente a estrada para Almoçageme, perderem-se namata. Para a direita descem devagar até à curva, continuamdepois até à praia. Há espaço a toda a roda, sinto-meexpandido ao horizonte. O céu começa a clarear, parece-me, é oinstante de hesitação entre a noite e o dia. Longe, rente àágua, fieiras de luzes marcam o limite de outras praias quenão sei: Um carro inesperado vem pela estrada atrás da capela.

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Mas não abranda à curva para o alto, desce para a praia,decerto para o hotel. O ruído do motor estremece a manhã,depois de novo o silêncio. - Queria dizer-te que gostei sempre mais de Flora do que deti. - Eu sei. - Mas não ficas ofendido. - Não fico.

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IV

- Credo! Que horror! Cláudio! Venha-me levar daqui estacriança! Venho ao quarto, Flora está sentada diante do toucador detrês espelhos. Miguel está ao lado, de pé, com o seu bibe dexadrez, sem entender. Olha Flora, olha-me a mim, à espera que

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entre os dois se decida a questão. Flora senta-seperpendicular no tamborete, faz a sua maquillage. Tem um corposólido, denso. Vejo-lho no entrecruzado dos meus nervos para asua perfeição. Tomo a mão de Miguel - deixa lá a tua mãearranjar-se. Mas ele teima, quer só uma coisa. - Diga lá que coisa quer - diz Flora sem se interromper. Ele diz que lhe queria dar um beijo e retira bruscamente amão da minha. - Dê lá então o beijo. Cláudio! Limpe-lhe primeiro essacara. - Vai-se demorar? - pergunto ainda. - Sei lá. Depende. - Vou consigo depois chamar um táxi. - Não vai chamar nada! Não é preciso.

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Deu-me de lado a face para lhe pousar um beijo, saiu. MasMiguel quis vir dizer-lhe adeus à janela. Olhávamos para baixo

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à espera que ela saísse. E quando enfim saiu, Miguel rompeu achamá-la. Ela trilou dois dedos sintéticos no ar a responder.Mas não olhou para cima. Vimo-la ainda chamar um táxi quepassava. O táxi arrancou. Pus Miguel no chão, fiquei ainda aolhar a praça. A grande torre esverdeada do ministério, todaenvidraçada. A Igreja de São João de Deus com gente à portalateral para algum enterro. As árvores da placa central com opoeta e o seu capote de bronze num extremo. Era de tarde.Flora ia a um chá de amigas para Campo de Ourique. - Cláudio. Queria dizer-te uma coisa. - Eu sei. - Mas não ficas aborrecido. - Dorme. Manhã alta de Verão. Mas a noite pesa ainda no céu. De vezem quando o farol varre a extensão das águas, passa por mimnum relâmpago. Estou só.

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E de súbito - Oriana. A sem par. - Não me diga! Não me diga que também gosta do nome. - Élindo. - É horrível! Meu pai é professor, apaixonou-se pelo nome,andava a dar o Amadis quando nasci. Não me pediram a minhaopinião. Devia dá-la aos gritos. Mas não ma pediram. E fiqueiassim. Oriana - quando foi que te conheci? Em que ponto do meudestino começaste a existir? Nunca mais. Deixa-me afundar naminha melancolia. Deixa-me ser ridículo até ao aniquilamentode mim. Nunca mais. Há o dia que se anuncia, tenho de serexemplar. Tenho tempo de ser perfeito no impossível da minhaimperfeição. Há o filho morto ali, há o turbilhão da memóriaque me submerge. Tu ergues-te imprevista como imagem lúcidaperene para eu agora não saber de mais nada. Ouço o mar, étudo grande e terrível. Never more - quando foi? Sabê-lo-eitalvez daqui a pouco, agora não. Agora

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estás sentada comigo nopátio da Universidade. É de tarde, talvez, porque só uma tardeserena, devia ser em Maio ou Junho , só a tarde éque está certa com o nosso encontro. Era o dia da tua festa dedespedida, havia um espectáculo à noite. Mas eu não podiaassistir até ao fim e nunca mais te falei. For ever. Sento-mede lado, vejo-te de lado e tudo é difícil agora até ao meuvexame. E no teu perfil branco - meu pai estava mal, eurecebera um telegrama da aldeia. E no teu perfil macio suave,face tão viva de juventude, face pura. E os cabelos. Deixa-medizer. Dourados. Como legenda. Vestias de estudante com asfitas , era a tua festa de despedida. Estousucumbido mas já não sei onde começa o estar. Serei modelarquando o dia romper e tudo chegar ao fim. Olho-te de lado, tuolhas no infinito a memória imperceptível de estarmos ali. E éhorrível rever-te na dissolução do passado. Porque é a

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transcendência de ti, o inverosímil de ti que agora permanece.Dizer-te qualquer coisa agora, que é o então de quando estou aver-te. Oriana. Mesmo que fosse um nome horrível como quandovivias nele. Toda tu inteira o trespassas. E é só luminosidadeno ar. Há a pequena colina em frente e a fracção da cidade quesobe até lá. «Santa Clara, Santa Clara, a teus pés corre oMondego",

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alguém na rua em baixo numa casa em baixo. Talvez a ensaiarpara a festa, ouço a balada. Ouvimos na dissipação aérea doentardecer. Para a esquerda, o rio na sua curva plácidamajestosa. «Vem namorar-te em segredo, minha linda SantaClara» - canta. Na vertigem da minha doença sufocação. Fica-teassim imóvel para a eternidade da minha fadiga. E Orianaouviu-me o meu pedido futuro. Apenas um

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vislumbre de sorriso -não rias. Fora sempre tão alegre. Era o seu modo de apenasser. Mas não agora. Há tanto peso a pesar. E uma amarguradifícil. E projectos que não foram, e patifarias que foram. Ecoisas que eram de ser e não foram, mesmo quando foram o quehaviam. Fica-te assim na claridade grande da tarde. Precisamosde esclarecer muita coisa e combinar e explicar. Tudo se fezcomo devia. E tu sorriste como é próprio do amanhecer. Masneste instante em que te lembro. Fica-te assim. Como tudo ébelo e terrível no intocável do lembrar. Ceder um pouco ao meucansaço. Ceder um pouco - há tanta coisa a dizer-me que não. Adecência correcção respeito por nós próprios - tanta coisa.Tanto como se constrói por sobre um sentir anteriorfundamental. Construir um sistema do universo por sobre umamoléstia de intestinos. Ou uma dor de dentes. Ou um vexameamarelo numa prega da vida - deixa-te estar. Na casa em baixo

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- é agora talvez a balada da despedida. Foram-se as fitasdoiradas - que ridículo. Mas não o penses. Porque tudo seconverte na gravidade do fim por só haver esse fim. Meuencanto ajoelhado, minha doença. Minha obsessão,transfiguração no irreal do real, que é o único real. Há umvislumbre de sorriso e eu sorrio agora também lá. Sou dasmargens da força da vida, da sua eternidade plausível notransitório que é seu. E de vez em quando.

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Exerço a minha fiscalização activa sobre a parte da fraquezaque é o meu todo. Mas de vez em quando. A verdade exacta comoum desastre do meu corpo - fica-te assim. A tua face inaugurale nela um apelo à destruição - não sei. Uma perfeiçãoexcessiva que se tem vontade de destruir. De enxovalhararruinar - tão bela. É assim. Preciso de

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encher-me da tuaimagem para a vida inteira que eu hei-de saber que é inteira.Preciso de ter um sítio onde se esteja bem. Onde esteja eu enão o que me dizem que é o mais plausível de ser eu. Um lugaroculto sem ninguém a testemunhar-me a vergonha. Porque tantacoisa a ser vergonha. Saber como comportar-me ser sensato terpropósitos. E a tua imagem aí - é bom. Eu sei. O teu perfilcontra o longe das oliveiras. Contra a tarde clara do ar. E osteus olhos na distância em que estou e tu já não. Never more.É uma tarde de Maio talvez. Alguém canta numa casa da rua debaixo. Nunca mais. - Não me diga que também gosta do nome! Quando foi que te conheci? Nunca mais.

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V

De modo que à noite, no espectáculo.

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No Avenida. Não nosvimos. Quer dizer, não me viu. Nem nos falámos, foi assim.Casa cheia e a efervescência da expectativa. Levei a mala,deixei-a no bengaleiro. À meia-noite tenho de estar naestação, levei a mala. Tenho um lugar no meio da sala, maispara o fundo, no sítio da minha necessidade pecuniária. Mastodo eu estou cheio da presença de Oriana como motivo de haverespectáculo, e eu ali. Há uma alegria excitada entrecruzada,são pessoas de família, são conhecidos, e tudo é festivo comohaver futuro. Tentei entrar no palco para lhe dizer estouaqui, mas o porteiro ou lá o que era. Drástico, cheio depoder. Há uma alegria irradiante, mas eu não. Velho pai. Partoà meia-noite, trouxe já a mala comigo. Há uma alegria juvenil,estimulada em si própria, e tudo é belo como se o fosse. Atoda a roda dos camarotes, capas abertas como em varandas parao cortejo de juventude, olho em circuito à procura de uma

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comunicação. Passam-me por cima ao lado num cruzado deentendimento, dos sinais mútuos de festa de estarem ali, não énenhum para mim. Até que, vieram do palco, ressoaram pela salacom um som cavo de tablado, alguém bateu as pancadas deMolière. E as luzes afrouxaram na cúpula do salão,

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foram-se apagando a toda a roda, só o pano do palco iluminado.Batia-lhe em cheio a luz forte vinda de frente, de baixo, etodos os olhares concentrados aí intensificavam essailuminação. Sento-me, aguardo, um pouco confuso no disperso desentimentos. Meu pai mal, mas não o penso. Sobretudo não openso agora para então. Disperso confuso, mas não o sinto -Em que é que estás a pensar? Fala. O falar é bom. Mata apreocupação - diz-me o meu filho não o sinto. Então,

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lentamente, o pano do palco enrolado até ao alto. Esimúltâneo, ao centro do tablado, um friso de capas negras.São alunos finalistas, vê-se-lhes só a face irreal sobre ofundo unido de escuro. À frente uma meia dúzia de alunos,Oriana ao centro. Há qualquer coisa prévia de espectáculo - Ofalar desoprime e revela a hipocrisia do sentir talvez umcoral ou discurso de apresentação. Tenho o meu olhar centradoe obsessivo. Cantam talvez. Ou é um coral falado. São unsvinte ou trinta, abrem um leque de negrume. Ouço-os. E desúbito, devagar. Cresce entre eles, Oriana, parece tocar otecto no alto. E os cabelos abrem-se para um lado e outro, sãolouros. Como o triunfo. Ou a purificação. E todos os colegas,pequenos diminutos sob a cabeleira aberta como um manto.Senhora da Misericórdia. Havia um quadro na aldeia, levavam-noem certos dias de procissão, no alto de um varapau.Lembrava-me e o cabelo brilhava com uma

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luz interior. Não seise assisti a mais números do espectáculo. Creio que não. Detodo o modo o que me ficou a lembrar foi assim uma comoapoteose de ti, a cabeleira aberta contra o fundo nocturno dosteus colegas. E qualquer coisa de majestoso na imagem finalcom que te fiquei a lembrar.

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Saí do teatro, retomei a mala, desci a avenida até SantaCruz. Depois mergulhei no dédalo de ruas, era um labirinto comlojas de comércio como grutas, a luz acesa todo o dia, a ruadas putéfias, adormecia tudo agora no escuro, vim sair aoCinema Tivoli que ficava perto da Estação Nova. Tomei ocomboio para a Estação velha, depois esperei o comboio deLisboa. Tinha uma noite de viagem, mudei na Pampilhosa, depoissegui a passo, desfiando a noite em cada apeadeiro.

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Lembrava-me de meu pai, não muito, que a morte dele já estavainscrita nas leis da necessidade. Tinha era medo de adormecere passar a minha estação. Não passei. A camioneta do Leonel jálá estava e à Encruzilhada saí, ninguém à minha espera. Tomeia mala, atravesso os campos ainda estremunhados da noite equando cheguei a casa meu pai estava melhor. Uma crise, coisasque ameaçam por estar na idade de tudo ser ameaçador. Entro emcasa, Tina vem ao meu encontro, a minha mãe na sala. Lembro-mesó de que um dia entrei na sala de visitas e os vários santoscom ou sem redoma estavam todos virados de costas. E quinzedias depois regressei a Coimbra. Oriana já não estava.

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VI

- Eu disse que o sentir era hipócrita?

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Não é verdade. É oque está mais próximo do ser. Para norte, vejo núcleos de luzes à beira-mar. Magoito,talvez, mais longe luzes indecisas, Ericeira? aguentam avigília da noite que finda. - Mas só as palavras o esclarecem, só nelas o sentir éverdade assumida. Gosto de me assumir em tudo o que sou. E tu,Cláudio? - Como, meu filho? - Não me chames filho. Já assentámos que não. Estou farto demetafísicas. Quero ter morrido em verdade perfeita. Semacréscimos que vão dar não se sabe aonde. - Sim. Mas dizias tu que a palavra. - Gosto de tomar consciência de tudo. Perguntava-te se tutambém. - Não sei. Já não sei nada. É tudo mais forte do quepensá-lo. - Mas dirás tu: e aquilo que não sabemos? Onde é que secomeça a ser o que se é? Tu sabes onde é que eu comecei? Flora está na sua pequena salinha. Não

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é bem sua,

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a sala grande tem um recanto, é onde Flora trabalha. Maisdentro trabalho eu. - Cláudio! - Sim. - Venha cá que lhe quero dizer uma coisa. Vou lá, ela está sentada no sofá, fumando um cigarro naboquilha comprida. - Sente-se aí para ouvir. Sentei-me num outro sofá para ouvir. - O que tenho a dizer-lhe é muito chato. O que tenho adizer-lhe é um horror. É só isto: estou grávida. Ao impacte da notícia, transtornado de confusão, eu disseapenas: - Querida. - Não me chame querida. Já lhe disse muita vez. Irrita-me alamechice. Você sabia que eu não queria ter filhos. Você diziaque também não queria. Mas não teve

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cuidado nenhum. Pensar queestou grávida, que vou andar para aí feita vaca, nem pensenisso. Se tem vocação paternal, tire isso da ideia. Comigonão. Não, eu não tinha vocação paternal, Flora tinha razão, játinha tirado isso da ideia que significava atirar um filho aomundo? Mas havia o inesperado da notícia, eu não tinha sítioem mim onde pô-la, mas fiquei calado como se à procura dessesítio. Estava uma tarde já quente, fins de Abril, talvez jáMaio, havia o rumor do tráfego na praça, um rasto de sol noar. - Certamente já pensou no que quer fazer - disse eu por fim. - Evidentemente que já pensei. Com certeza não imagina quevou aturar a criancinha aos gritos toda a noite e passar osdias a mudar-lhe as fraldas. Credo. Nem pensar nisso.

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- E posso saber o que vai fazer? - Cláudio! Mas você é espertinho, não é? Não precisa queeu lhe diga. - Não consulta primeiro um médico? - Claro que consulto. Não sou nenhuma vaquinha. E mesmo quefosse. Há os veterinários. Tenho a consulta marcada paraamanhã. - Naturalmente vou consigo. - Que ideia. Mas você não tem nada com o assunto. Só tinha,se tivesse tido cuidado. - Mas que cuidado? - Ora! Não queira que eu agora lhe explique, Cláudio. Vocêjá não é um inocentinho. Fumava na sua boquilha comprida e fina como um estilete.Soprava o fumo por um canto da boca, um breve arrepio noslábios. Mas no dia seguinte Flora não me disse nada. Foi ao médico,veio, não me disse. Decerto esperava que eu lhe perguntasse,eu esperava que dissesse sem lho perguntar, para um poucosalvaguardar a minha dignidade doméstica. Eu ardia de

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ansiedade, não perguntava. E ela decerto por dizer, não dizia.Um tinha de rebentar, rebentei eu. Ela entrava em casa,ouvi-lhe correr a grelha do ascensor, meter a chave na porta.Foi pelo corredor, decerto ao quarto mudar-se, veio de novo,atravessou a sala onde eu estava para o seu gabinete que erana marquise. Saudou-me breve, foi para o gabinete - então?Então perguntei eu algum tempo depois. Que disse o médico?Muita coisa. Que coisa? Conversámos. Mas que decidiram? Orabem: ele disse que nunca me faria o aborto, que havia mulheresque faziam, mas que era sempre perigoso. Que não sei quê,problemas sanguíneos, eu tenho Rh negativo. Coisas. Jásabidas, evidentemente.

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Depois vieram as questões morais, você sabe. E aí é que eleinsistiu. E que resolveu? Cláudio, você

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afinal de espertinhonão tem nada. Não tenho. Mas que decidiram? Decidi deixar vira cria. Flora. Não, não. Palhacices não. Fique lá com o seuorgulho macho de ser pai, mas comédias não. De resto, amanhãtalvez mude de parecer. Olho minha mulher com a sedução de sempre. Um corpo destrodireito firme. Rigoroso. O assento estreito, ajustado àcadeira, sem transbordar, apertado contra si, o bustoperpendicular. Todo o seu boleado se travava no limite justo,toda a sua superfície. Enquadrada nas linhas da perfeição.Olho-a e revolvo-me por dentro numa confusão de impulsos.Beijar-te. Não, não, lamechices não. Traçar-te breve com a mãoo limite do teu contorno. O pescoço direito mas sem altivez,agora silenciosa, o olhar vivo de lume. Deusa da juventude,Flora pagã. Sinto-a nos meus dentes, na sua realidade intactade ser. E quente, da substância infernal. Pintava-se pouco eassim a sua carne era verdade desde a

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fímbria do seulineamento - que irás dizer amanhã? Fértil pura maciça. Densacomo um desejo fortíssimo a estalar - que irás? Tenho as mãoscheias da tua plenitude - não te amo, não. Tenho o corpobatido da tua dureza como de pela de nervo. E foi como serealmente a sua gravidez fosse um erro, o seu corpo distendidorebentado. E no entanto. Como existires sem pagares à vida opreço da tua perfeição? Do teu excesso vital? Da tua forçagerminativa? Como ser um erro que eu te fecundasse? Teobrigasse a rebentar a tua pressão para a cadeia da forçacontinuar? Para a vida rebentar de novo em ti? Fique lá com oseu orgulho macho - e é um pouco assim. Depositar em ti aviolência da semente. Fazer crescer em ti uma vitalidade nova

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- que irás tu dizer? Eu espero. Em

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terror. Em terror. Mas nodia seguinte o que ela disse foi: - Amanhã vou fazer um retiro. - Um retiro? Quantos dias? - Dois ou três. Flora tinha um apartamento. Duas divisões à Pinheiro Chagas.No extremo, perto do parque. Separara-se do pai, viviasozinha. E depois de casarmos - para quê o apartamento? Temosa nossa própria casa. Mas ela não o deixou. E de vez emquando, sem razão visível. - Vou fazer um retiro - ia para o apartamento. Via-se ogrande parque de uma janela - se tens saudade do verde, podesver o da praça. Não tinha. O gosto do campo é um vestígio deprimitivismo, ó Cláudio. Você pensa como um campónio que nãodeixou de ser. Gosto apenas de estar só. Mas está só na nossacasa, ou está quase. Não discuta. Você não percebe. Preciso deo não ver a si, de não sentir o seu cheiro, a sua compressãodo meu espaço. Compreenda. Este caldeamento de sons, de suor,de respiração. Não, não. De vez em

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quando a integração de nós,a desinfecção, a assepsia. Mesmo a si faz-lhe bem. Não faz.Faz. Porque é que se casou? O casamento tem as suas virtudes.Mas não exageremos. Que virtudes? Ora, Cláudio, não precisaque eu Lhe diga. De modo que durante o "retiro" não nosvimos. Eu ia para o jornal, Flora ia para o liceu, que lheficava perto. Também não me telefonava. Nem eu, ela tinha umtelefone e mantinha-o. E um dia à noite, foram quatro dias, euestava para sair, Flora. Bela, marmórea. Como sempre. Entroudirecta na sala, sentou-se, puxou da boquilha da malinha. Eunão tinha perguntas senão aquela que não era preciso fazer,

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Flora disse decidi, vou deixar vir a cria. Eu não tinha nuncareacção senão aquela que não era preciso ter. E disse apenasóptimo, tem de ter agora uma assistência

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médica. Claro.Olhei-lhe o ventre na ideia de que já se visse, Flora havia dedisfarçar sempre. Ou não era preciso. Flora tinha umaexactidão de formas em que não cabia um desmando. Imagine,Cláudio. Hoje no liceu disse que estava grávida. Onde é quetraz o filho? perguntaram-me. E ria. Serena seguramajestática. Eu sorri maravilhado da sua firmeza harmónica. Dasua plenitude. Deusa pagã do meu cristianismo doença, eumaravilhava-me. Em todo o caso, Flora afastava-se ainda para o seuapartamento para fazer retiro. E eu já não perguntava nada,esperando que ela dissesse. Ela dizia decidi e eu ficavacalado. Até que chegou o dia e foi internada. Fui com ela àmaternidade, Flora entrou por ali dentro como rainha. Escolheuo quarto com certa dificuldade de escolha. Porque havia oruído da rua e as traseiras dos prédios com os canos saídoscomo varizes. E os do meio eram mais

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lúgubres. Ficou num quetinha sol e um pouco de tráfego para ouvir. Eu ia lá todos osdias mas ela não aprovava: - Venha só no dia próprio - disse-me. O dia chegou, eu fui. Estive lá até à noite e havia o jornalda minha obrigação. O pai de Flora era o meu director, eraviúvo, apareceu também, mas tudo afinal estava ainda atrasado.O pai de Flora saiu, eu fiquei ainda, até que saí também. Iadespedir-me e dar-lhe um beijo mais íntimo. Flora disse-me: - Seja casto. Flora. Olhei-a no sítio oculto em que elame pedia castidade, sorri: Fui para o jornal, trabalhei atéaltas horas da noite.

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Mas esperava sempre um telefonema que não veio e andava desecção em secção, do noticiário nacional ou internacional, àpaginação, à impressão, à espera de ter razão para ir aí.

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Regressei a casa muito tarde, deitei-me, adormeci. Acordeitarde, voltei à maternidade. O filho nascera há várias horas,Flora tinha-o ao colo, sentada na cama, quando lhe entrei noquarto. Olhou-me brevemente, voltou a olhar o rolo da criança. - Cláudio. É pena você não ser pintor para pintar estamaternidade. Depois a criança começou aos berros, uma enfermeira veiobuscá-la, Flora deu-lha logo, cheia de impaciência. Como sesente? Ora. Como me sinto. Imagine. Você é que vai aturar ocrianço de noite. - Está bem - disse eu. - O homem é um bicho atrasado biologicamente. Veja você osoutros animais. Tudo rápido e simples. Mas o homem, quehorror. - Esperava um rapaz? Porque nascera um rapaz. Não esperava nada. Ou tanto fazia.Mas já escolhera um nome para o putinho. Era Miguel. - Porquê Miguel? - Ora porquê. Porque é bonito. E é o nome de um anjo ou

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arcanjo. Anjo guerreiro, suponho. Era um nome reaccionário. E os reaccionários, como você devesaber, são mais inteligentes e sobretudo mais limpos do que osprogressistas. - Não sabia. - Credo. É uma coisa que toda a gente sabe. Não me diga quenão sabe que os esquerdistas são uns tipos sujos,enxovalhados, cheios de caspa. - Não sabia, nunca tinha reparado.

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- Mas Miguel é também o nome de um anjo. Um anjo é terrível.Gostava que fosse um anjo da noite. Gostava de lhe pôr era onome de Lúcifer. Mas não deve ser permitido. - Perguntou? - Cláudio, isso não se pergunta. Naturalmente calculo.Você deve saber que há uma lista de nomes permitidos. Ospretos é que põem nomes de latas de graxa e coisas assim.

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Lúcifer não, com certeza, Cláudio. Não vira ainda bem o meu filho. Mas também não tinha aindaolhos para o ver.

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VII

E aí estás agora, arcanjo vencido. E não é fácil saber o quete venceu. A vida, a ilusão de a poderes dominar. Ou talvez euque ta destruí, sem poder justificá-la para ti. - Mas nãopenses que me comoves. - Não penso. - Sou senhor absoluto dos meus actos. Estouinteiro em tudo o que fiz. Para nascente, parece-me, umaclaridade insinuada difusa. Na linha da serra linear o perfildo palácio, um galo cantou no impossível. E o mar, sempre. Tema cor ainda da noite, do escuro do abismo. E o rumor plácidono ar. Espraia-se soturno ao invisível do mistério. Envolve-me

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de todo o lado, eu, pequeno, submerso de pânico. Mas estoucalmo como quem já viu tudo quanto tempo ainda? Estou sentadono degrau da capela, o corpo arrefece-me com o frio da manhã.E da vigília, do sono que não dormi e é frio também. - Nãopenses que me arrependi. Faz-me rir só de o imaginar.Tinham-me dito - porque fica? Fecha-se a capela, vem de manhã.Quis ficar. Esgotar a minha relação com ele.

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Levar ao fim toda a possibilidade de esclarecimento. Deixaratrás tudo o que foi peso e procura e estupidez. Há-de haveruma parte de mim que foi estúpida no ser minha na relação comele. Mas não a sei - purgar-me. Esquecer-me tudo do estrume eda doença. Depois irei tomar um banho, saturar-me de sol. Háuma verdade aí, recuperá-la no sangue. O corpo humedece-me da

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aragem marinha. E há o cheiro intenso a maresia no amanhecer.Levanto-me, dou uns passos na esplanada em frente. - Não te vás embora, deixa-te estar. - Não vou. Ouço-te bem. - Não penses que tenho remorsos ou qualquer merda assim. Tutens? - De quê? Deve ter havido qualquer erro nisto tudo. Mas nãoo sei. - Coitado do Cláudio. Sempre enrascado de moralismo. Sempreentalado do dever. A toda a roda do horizonte marinho, como se o sol viessedaí, mais aberta a barra de claridade, com um tom avermelhado.Não há aves ainda. Fixas as barcas ao largo, tremeluzem com obalanço das ondas. O céu empalidece na hesitação do amanhecer.

***

E de súbito. Porque vens visitar-me? A vida entendo-a sob osigno da dureza, da inflexibilidade

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categórica. Deve haver umerro na minha conformação para tu te me inserires numa dobrasensível. Oriana. Um dia eu remexia papéis velhos, onde estavaFlora então? Sei que o retrato surgiu num vazio de mim eocupou logo todo o espaço disponível. Era uma fotografiaantiga e eu também estava lá. Era um grupo, talvez no JardimBotânico - foi aí que te conheci? Mas eu conheci-te no espaçodo imaginário, sem realidade plausível para poderes ser real.Mas no imaginário é que é tudo e o real é uma procura para seencontrar com ele. E quando o não encontra há só que desistir- Flora. Onde estás estavas? Oriana estava um pouco de lado. Eria. Sempre a conheci a rir, não deve ter chorado ao nascer.Olhei a foto e todo eu estremeci de uma ternura breve. Tinhaum vestido claro, lembro-me, devia talvez já ser Verão. Entãotomou-me o desejo de a isolar, suprimir o excesso à sua volta,mesmo o de mim que também lá estava. Porque tudo era demais

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para ela só existir num recanto de mim, no absurdo de retornarà vida o que os anos submergiram - quantos anos? Mas issomesmo como é fascinante. Quarenta anos talvez? Oriana. Ficçãomítica da minha fadiga. Retornar à vida o que ninguém sabe, oque ninguém recorda. E foi como se regressasse ao fim dotempo. À convulsão de mim no extremo da memória. À eternidadeque lá mora. Tomei o retrato, estalava já nalguns sítios,levei-o a uma fotografia. O homem olhou-a, não era possível,tinha o seu orgulho profissional. Mas mesmo com defeitos,disse eu. O homem tinha o seu prestígio, eu tinha a minhanecessidade. E decerto havia tanta ansiedade no meu pedido. Euns oito dias depois. O homem tirou a fotografia do envelope -Oriana. A sem par. Paguei, guardei-a logo, tudo na vida negavao meu encantamento. Trouxe-a no bolso e quando cheguei a casa.Não queria ver, a sua própria imagem era demais para oabsoluto do imaginar. Porque havia nela

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uma fracção derealidade e tudo me existiu no irreal. Estou em férias na aldeia, meu pai restabelecera-se e tudotinha a face invisível inapreensível do natural quotidiano.

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Escrevia a Oriana, raro me respondia, eu voltava a escrever.E um dia não me respondeu. E de súbito, uma manhã, umtelegrama. Fiquei paralisado. Oriana mal. No hospital de.Queria dar volta à notícia, bloqueava-me o pensar. Quereriapartir logo, não tinha comboio senão no dia seguinte. Tenteitelefonar, ninguém me respondeu. Estava só, na minhainutilidade, com a notícia entre mim e a vida toda. Queriaabandonar-me ao menos ao sofrimento, mas estranhamente, só oembrutecimento, o estar ali paralisado de todo o meu ser. Saípara o campo, para a serra, tinha a cabeça cortada dos pés que

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mal movimentava. Tinha metade de um dia inteiro para existir eeu não sabia existir. Tinha de me separar do bloco de pedraque eu era e ser homem para lá, donde me visse ser. Dissebrevemente aos meus pais o que se passava, eles ficaram emsilêncio, dentro do meu silêncio. Depois meu pai disse issonão deve ser nada, minha mãe não disse nada e ficou a olhar-mecom uma espécie de indiferença que era decerto o seu modo deestar fora de tudo ou um pouco mais adiante. - Parto amanhã cedo concluí e meu pai ficou à espera de queeu dissesse alguma coisa mais, ou não teve uma palavra maiscerta do que o não dizer nada. E de manhã cedo. Creio que nãodormi para não desperdiçar o sofrimento. Ou não o sofrimentomas a suspensão de tudo em que não sabia ainda se deviasofrer. Levantei-me antes da hora, impaciente da hora. Nãoacordei ninguém, Tina queria, não a acordei nem a ela. Era umamanhã como a de agora, a aldeia deserta.

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Só alguns velhos já,a que horas se levantariam? parados na estrada à espera dosol. Ou caminhando pela rua à procura de um destino - levei umleve saco de roupa, o céu já claro, uma claridade no ar. Euexcitava-me por dentro de uma impaciência que era maior do queos meus passos apressados. Atravessei a aldeia, caminhei pelaestrada deserta, passei pelo cemitério e a ideia da mortesaiu-me ao caminho. Vejo-me só, daqui donde me vejo,atravessar os campos na madrugada, um pouco esquecido da razãopor que ia ali, fechado na exigência obstinada e absurda dechegar depressa. A ideia da morte - mas eu não podiasuportá-la, não pelo sofrimento que vinha nela mas por nãocaber nos limites da minha vida e de eu ir ali. O caminhoentre quintais ia dar à estrada, depois eram ainda unsquilómetros até à Encruzilhada. Havia já carros em viagem,misteriosos de clandestinidade àquela hora, o céu era maior

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desde o alto da montanha já à distância. Vejo-me sozinho pelaestrada branca, no vazio do alvorecer, suspendendo o saco daroupa, pressionando-me inutilmente na urgência de chegar.Oriana. Ver-te ainda, ver-te uma vez. Pousar-te a mão natesta, transmitir-te o fluido da vida - que doença teria? Comoestar mal de um dia para o outro? não fazia ideia para umcorpo jovem, sobretudo para quem tinha em si visível, aperfeição. Caminho pela beira da estrada, é longa ainda. E porfim chego à Encruzilhada. Há aí um casinhoto para se esperarsob a chuva. Tem um banco, sento-me, cheirava mal, venho parafora espreitar a camioneta, ver a manhã. Um ou outro carrosolitário ainda, trazem todos ainda os faróis acesos. Estouansioso, revolvo-me todo por dentro. Há uma desproporçãoenorme entre a minha urgência e a lentidão de tudo. Espreito aestrada na distância, sigo os faróis que aí apontam. Um ououtro carro, camioneta, passam. Ver-te

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ainda ou reencontrar-terestabelecida. E cheia de insólito por me ver ali. Porquevieste? Quem te alarmou? Estou bem, estou bem. De novo unsfaróis no horizonte. A camioneta. A camioneta?

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Aguardo intenso, agito-me. Sou o único passageiro ali. O vultoda camioneta cresce por detrás dos faróis. É ela, faço sinal.Entro, saúdo, sento-me no meu lugar. É ao pé da janela, oscampos despontam na manhã. Há a paz neles e a promessa e aharmonia. Estou inquieto eu, enovelado de incertezas. E aocentro, no vago da inquietação, uma pressa urgente de chegar.Quanto tempo ainda? A camioneta arrasta-se como um corpopesado. Acelera agora numa pequena subida e há um desencontroentre a sua marcha e a aceleração - quanto tempo? Tudo em mimme impele para mais depressa, a

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camioneta range toda na sualentidão. Encontrar-te sã e sorridente - quem te chamou? Estoubem - quem te assustou? E um sorriso na tua face que é já porsi sorridente. Vou atento à marcha penosa da camioneta,desespero na minha ansiedade. Mas quando enfim chegamos, umbilhete para o Porto, depressa, depressa, quanto tempo aindapara o comboio? traz um quarto de hora de atraso. Marco otempo em passadas no cais, olho o relógio imóvel na parede.Olho-o de vez em quando na urgência de o mover, foi difícil.Por fim o comboio chegou, entro nele, arranjo um lugar, mas omeu lugar é a uma janela do corredor donde posso melhorparticipar do movimento, o comboio arranca, volto a sentar-me.Volto a erguer-me, venho de novo à janela, não sei onde estarábem a minha inquietação. É lento o comboio, senta-se adescansar em cada apeadeiro e há um momento em que a minhaagitação reflui para dentro de mim, sento-me definitivamente,

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estou. Só uma aflição na garganta, no peito, no estômago,estou. Oriana. Minha angústia, minha sufocação - como estarás?Já liberta, na aérea alegria da tua juvenilidade. Quem techamou? quem te disse para vires? - com um riso quase divertido pela minha agitação. Ou estendida na cama, imóvel,na paz do fim, uma revoada de médicos enfermeiras alvoroçadasde pânico. Ou. Não sei. Morta. Não sei. Uma vida triunfalovante, uma certeza categórica do futuro e ser tudo depois umerro. Há um limite para a traição a crueldade, não se mataassim a frio uma inocência. Não se ilude com uma flor umacriança para depois lhe dar um tiro - quanto tempo ainda? Maso comboio sem pressas sentava-se de novo. E há um silênciosúbito nos ouvidos inchados como se não houvesse mais viagem.A viagem recomeça. Entra mais gente nas estações à aproximaçãodas cidades e a minha inquietação intimida-se com a estranhezadessa gente. E resguarda-se no mais

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oculto de mim. E quando naPampilhosa tomo o comboio para o norte, o meu modo de serexterior já tomou conta de mim. Aceito mesmo as tréguas daincerteza, diluo o que me oprime na indiferença que me rodeia.Que quer dizer o que sinto, na azáfama que me rodeia? nosencontrões ao entrar num outro comboio? nos encontrões nocorredor onde fico de pé sem lugar? Mas pouco a pouco, àmedida que vou chegando ao fim, um susto, um pânico, antes depoder ser pena ou amargura ou desespero. Um sentimento e o seucontexto para poder ser verdade. Tenho medo. E uma invasão deabsurdo que me recuso a aceitar para o absurdo da recusa. Háum limite da lógica, há um limite da aceitação. Para lá tudo épossível admitir-se. É onde as duas começam e o maravilhoso ea crendice. Onde a suma inteligência convive com a sumaestupidez - estarei aí? Onde o homem se renega e tem vez ocurandeiro - estarei lá? enquanto o comboio mais rápido, num

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aparente andar pausado pela sua estabilidade, há estações emque não pára, os funcionários de bandeirinha entrevistos nocais.

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- Cláudio! - Sim. Estou aqui. - Em que estás a pensar? E algum tempo depois, em marcha mais lenta cautelosa, aponte de ferro sobre o rio e toda a cidade aberta do lado delá. E de novo o pânico no ventre, o cérebro bloqueado, sem umaideia. Mesmo aquela que ali me traz, a fixidez, a suspensão, ocomboio suspenso sobre o abismo. Chego à estação, tomo umtáxi, dou o nome do hospital. O motorista arranca pela cidadeestranha, ruas, cruzamentos, gente, estou cheio de urgência,ele não. Tem o ar gordo, bovino, um vago ar de sono que otorna mais pesado. Depressa, depressa. Mas o homem tem o seu

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ritmo lento. - Depressa por favor tem o seu ritmo cansado, lança asmudanças na lentidão. Gente, gente e eu estou só. Oriana, comoestás? Vejo-a sentada na cama, sorri. Vejo-a recostada emalmofadas e eu em alvoroço, incendiado - como estás? Ouestendida, os olhos cerrados, a família em volta abatida, oolhar consternado para mim que sou quase um estranho. O carropára a um sinal vermelho - Muito longe ainda? e ele calmo, quecaminho prefiro? havia dois, prefiro o mais rápido, eleconclui decerto que não conheço nenhum. Arranca de novo, peõespelo meio da rua. Estava um calor húmido, eu transpirava nãosei se também de excitação. O motorista estava em mangas decamisa, mas usava um boné de pala para lhe identificar asfunções. Depressa. Mas não digo nada, bastava olhar-lhe ascostas gordas para se ver que era lento. Contornamos uma praçacom transeuntes em todas as direcções a moderarem-nos a

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urgência. Até que inesperadamente parou - era ali? Era ali.Não tinha nada a distingui-lo, incrustrado na correnteza decasas, pago o táxi. Havia duas portas, a uma delas, um núcleode pessoas, não era ali. Serviço de urgência não era ali.Entro na outra, um porteiro ao lado. Pergunto por Oriana,Oriana da Luz, o homem lia um jornal, e sem erguer os olhoscom um dedo apontou-me do outro lado um balcão com umaempregada atrás. Pergunto por Oriana, ela estuda uma folha deum caderno, muda de folha, diz-me que ao fundo, o segundoelevador para neurologia, terceiro andar, havia mais gente àespera. Mas quando o elevador abriu as portas largas, uma macacom um doente, empurraram-na para fora, entrei com mais gentede roldão. Saí no terceiro andar, secção de neurologia, iaperguntando às enfermeiras, elas diziam-me que não sabiam, umadeteve-se um momento, disse-me que a seguisse, corredores àdireita e à esquerda. Mandou-me esperar,

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foi dentro, veio comoutra empregada - Oriana da Luz? mas morrera na véspera,tinham-na descido à câmara mortuária. Era na cave, um outroelevador à esquerda, à direita, ao fundo. Mas eu não entendo,fico parado, fora de mim, o corpo arrepanhado de pânico noestômago, na garganta. - Uma rapariga loura - digo por fim. - Morreu ontem. Na câmara mortuária. Elevador ao fundo. Paraa cave. Mas agora a pressa abandonou-me. Hesito mesmo em mover-me,as pernas pesadas, o cérebro confuso. Mas lembro-me de que aenfermeira era estrábica e tinha um dente saído. Lembro-meagora não sei porquê. Onde o elevador? - perguntei ainda. Àesquerda, à direita, ao fundo. Fui andando mecanicamente, nãohavia elevador nenhum. Perguntei outra vez, voltei atrás,atravessei imensos corredores. Uma empregada levou-me aoelevador e disse cave. Estranhamente vou sozinho.

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Esforço-me por dominar-me, mas sinto o olhar nublado. Há umerro em tudo isto mas não o sei. Há uma estupidez em tudo istoque é demais. Sossega. Tudo vai esclarecer-se. Um erro. Umequívoco. Sossega. O elevador parou, as portas abrem-seautomaticamente. Dão para um corredor deserto. Caminho à toa àespera de ver alguém. Vejo enfim um empregado, pergunto onde éque, ele aponta uma porta ali ao pé. Há três ou quatro núcleosde gente ao pé dos seus mortos. Tento orientar-me, não énenhum. Saio de novo, alguém que me informe. Venho até àporta, há um homem que me parece funcionário - Oriana? Da Luz.Dou pormenores, ele tenta recordar-se, consulta mesmo umpapel: - Já saiu. - Para onde? O homem encolhe os ombros - para onde? O cemitério mais

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próximo era o de. Para onde? E encolhe os ombros outra vez.Estou calmo. Atingi o limite, estou calmo. O corpoarrefece-me, o cérebro frio também. Há uma praça de táxis aliperto, tomo um. Praças, ruas desconhecidas, não tenho pressaagora. É comigo que tudo acontece? é um outro, um estranho.Oriana. A sem par. Tinha os cabelos louros longos. E sempre naface a alegria da vida. À porta do cemitério havia uma mulhercom um grande cesto de flores. Comprei cravos amarelos. Amulher fez um ramo com eles, suspendo-o de um braço, narealidade não sei como pegar-lhe. Há à entrada um pequenopavilhão, um homem atrás de um balcão, a face congestionada esonolenta. Pergunto, dou informes, ele vagarosamente percorrecom um dedo uma folha, diz-me que procure num terreno aofundo. Vou entre as campas, não olho, um sol espesso tomba doalto, já um pouco oblíquo, ninguém. Descubro enfim um terrenovago, há uma sepultura recente, a terra

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escura. Em volta,ramos de flores, uma coroa. Olho em volta a solidão da tarde,a coroa tem uma inscrição. Vergo-me, leio. E uma comoçãosúbita, profunda. Tomo os cravos um a um espalho-os devagarpor cima. Então foi como se eu próprio me não visse, nãoexistisse, dissipado no vazio de estar ali. Lutodesesperadamente, os olhos ardem-me. O sol violento, a terradeserta. Eu só.

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VIII

- Em que é que estás a pensar? Distingo agora melhor asduas imagens aos lados do altar. Não há uma luz aindaperceptível, penso. Mais habituado talvez à claridade dasvelas. Sinto o corpo frio e húmido, a frialdade da manhã. Deum dos lados, o direito para quem olha, porquê este .menino

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vestido de militar? Tem um chapéu bicórnio, influêncianapoleónica? uma casaca e calção. - Em que é que pensas? Otecido é de veludo vermelho-vivo, guarnecido de bordaduraprateada. - Não me digas. Eu sei. - Que é que sabes? -Coitado do Cláudio. Querer sempre ter razões para lhes alijara responsabilidade. - Que razões? - Mas as razões são as davida que não são razões nenhumas. Menino Jesus capitão. Deusera o rei dos reis, senhor dos exércitos. Ficou só o exército,que os reis estão em crise. - Quantas vezes hás-de terpensado que foste o responsável pelo meu destino.

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Nunca pensaste que o destino sou eu. Sim, tenho-o pensado, sempre foste inteligente. E ainteligência é uma maldição. Às vezes, penso-o, sim, onde foique tudo começou? Flora, Oriana e a sua

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morte. Mas em qualquerencruzilhada da vida podias ter tomado outro rumo. Ou eu. Mascomo ser responsável pelo efeito do que fizemos? Dizemos umapalavra - como provar o resultado? Sou amável com alguém, comoimaginar que ele me mata por humilhação? E um dia, quando entro no Informações pela porta giratória - O senhor director perguntou. se o senhor já tinha entrado,entro de tarde, vou ter serão pela noite. Chove forte,pancadas de chuva batidas a vento. Do metro ao jornal, nãovale a pena abrir o guarda-chuva contra a ventania, é umadistância curta, chego encharcado. O porteiro quase de cócorasatrás da secretária, cumprido até meio do respeito.Pergunto-lhe há quanto tempo - Há quanto tempo chegou o senhordirector? - Uma hora talvez - diz-me o Pinhão. Sacudo a gabardina, tomo o ascensor, que é largo como o deum hospital - que quererá o director? O ascensor balança nascalhas, treme de velhice, o tapete

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empapado de água, os vidrosdo espelho embaciados. Saio no segundo andar, há um outroporteiro aí, repete-me que o director. Mas este diz-me que omeu sogro. Ou ex - como é que ele disse? Vou pelo corredorfora, à direita, é aí. Como há uns quinze anos, lembro-me. Mastanta coisa mudou desde então. E as imagens baralham-se-me naconfusa imaginação. Bato à porta, aliás semiaberta, meto opescoço, dá-me licença? e ele mandou-me entrar. - Sente-se aí, Cláudio. Alguma coisa sobre Flora, mas se tudo está esclarecido. Àfrente, como de costume, uma vasta secretária muralhada depapéis. A chuva bate forte nas janelas. É um tipo baixo,coagulado à secretária, as faces são duas bolsas, óculosgrandes redondos, quantos anos? sessenta vamos supor. Nuncativemos relações de intimidade, havia a distância dasecretária e das funções com ela a separar-nos. Pelo menos.Não me olha, está atento à leitura de um

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papel, o ruído dotráfego chega difuso até ali. E é assim mais aplicada a suaatenção, bloco imóvel - Como está o Miguel? - Bem no rumor da cidade, das rajadas de chuva. Não respira.Olhos baixos, eu quieto também no meu canto. Depois houve ummovimento lento da sua mão gorda para um botão na secretária,uma campainha retiniu ali perto. A empregada espreitou, eleperguntou-me se tomava um café, sem erguer os olhos, eu disseque sim. E só quando ela voltou com duas chávenas -Pergunto-me se está interessado no trabalho e levantou-seenquanto ia falando, veio à frente da secretária,encostou-se-lhe. Entestava as mãos uma à outra, dedo a dedocomo se preleccionasse. Mas não falava para mim, falava paraele numa espécie de ventriloquia. Tinha a voz grossa, comosempre, da sua directoria, um pouco fanhosa, levementeenferrujada - que trabalho? estou ansioso por perguntar. Como

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há uns quinze anos - Que trabalho? e foi assim que conheci.Flora e Miguel nasceu. Estava bom o café.

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Ele tomava a chávena de vez em quando, beberricava de pé -que trabalho? - Pensei mesmo no título do inquérito: Ano dois mil à vista.Mas aceito uma sua sugestão. - Porque não acabas o curso - perguntava meu pai. Foram dias horríveis depois que vim do norte. Fui ainda acasa de Oriana ver os pais, ver a irmã. Caíram todos sobre mimnum choro imenso. Oriana. A sem par. Então eu pedi à irmã quese chamava Inês. Não tinha uma única fotografia de Oriana. Eprecisava tanto dela para um pouco lhe atenuar a morte. - Não tenho hipótese de retomar o curso. Começar outra vida.Preciso absolutamente.

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- Jornalista - disse minha mãe. - És mais livre. Suspenso da manhã que vem aí, sinto-a na frialdade que mehumedece o corpo, um galo cantou inesperado e virgem por sobreo rumor do mar. - Fala comigo - diz-me Miguel. - Ou terás já dito tudo? - És mais livre - dizia minha mãe e ria. Grande, a facelarga, o olhar raiado de louca, coitado do meu pai. - Mudar deassunto, mudar de vida eh, eh. Vai, meu filho. - E a quem o inquérito? - perguntei. - E sobre quê? - Novo milénio à vista - disse o director -, um inquérito,um simples inquérito. Estamos no fim do século e do milénio.Ficou célebre o seu inquérito sobre a juventude. Tomou o resto do café, voltou a sentar-se. O queixo retraídoficava sem pescoço. Mas as mãos sempre entestadas, agorapousadas na secretária. Fora, a chuva escorria pela vidraça. - A quem o inquérito? perguntará. Deixo isso ao seu

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critério. - Não penso em ser mais livre - disse eu a minha mãe. -Penso só em arrumar a minha vida. Um curso leva umaeternidade. Sobretudo agora. - Mais livre - insistia minha mãe. - Tudo o mais,escravatura. Religião, política eh, eh. Jornalista. Ou actor.Tivesse eu podido. - Ficou célebre o seu inquérito sobre a juventude - dizia odirector. E subitamente, Flora. Confusamente no espaço da imaginação.Um galo cantou desgarrado nos quintais. E o mar, sempre. Dooutro lado do altar, parece-me, São João. Vestido com uma pelede cordeiro, um varapau na mão com uma cruz, um livro com umcordeirinho na outra mão. Parece-me.

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IX

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Foi o próprio director que me sugeriu entrevistasse Flora.Era sua filha. Trabalhava no Liceu de Camões. Professora,muito entendida nos problemas da juventude, e eu procurei-a.Numa manhã era já Verão? estava quente. Tenho o calorentremeado à memória, Flora surge-me espectacular no seu corpointenso. Era perto do jornal o liceu, subo a pé a avenida paralá. No átrio um empregado redondo obtuso maciço. Pergunto peladoutora Flora, está em aulas. Só no intervalo às dez e meia,fala-me roufenho o empregado. Passeio no átrio, espreito porumas portas envidraçadas. Pátios desertos com plátanos cheiosde folhas a toda a volta. Passeio ainda no átrio, o relógioanda devagar. Está ao alto, por cima de uma porta, no sítioonde vão dar duas escadarias convergentes que vêm do andar decima. Olho o meu relógio a conferir, saio ainda do liceu. Háem frente um jardim, sento-me num banco com um cigarro. Hávelhos pelos bancos à sombra, crianças

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passam em carrinhosempurrados pelas mães. E crianças em correrias, vão beber águaa um marco fontenário. Olho-as no aéreo da minhadisponibilidade. Até que. Descuidei-me, salto sobre os pés,

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tento atravessar a rua atrapalhada de trânsito. Reentro noliceu, o átrio inunda-se agora de jovens, uma professoraesplêndida junto do empregado da porta - Luís - Luís! Há aíalgum correio para mim? O empregado olha-me - este senhor que queria falar com. - Comigo? E sobre quê? As informações sobre alunos são com aencarregada da turma. Não era isso. Disse sobre que era. Ah, agora não. Às onze emeia acabava as aulas da manhã. Podia então atender-me. Volteipara o jardim a fazer horas com a paciência. Havia lá velhospelos bancos à sombra. Passavam mamãs a

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empurrar carrinhos decriança. Outros corriam pelas alamedas, passavam de triciclo,as mães sentadas a olhar. Mas cansei-me, uma hora? tempo de iraté a um café, a uma livraria, à Quadrante, que ficava perto,fui até a um café. Comprei jornais, mas mesmo assim. Olhava orelógio na divisão da atenção entre aquilo que lia e a horamarcada. O café tinha um correr de mesas à parede, e ao fundovirava à esquerda, para um espaço maior. Fiquei no corredor,via um pouco o trânsito da avenida. Veio um graxa,perguntou-me engraxa? pus o pé no encaixe do suporte, elecomeçou a preencher-me o tempo. Saí logo, era ainda cedo, umpouco para encurtar o intervalo. Também havia uma certa pressade rever Flora que me pusera uma dedada na alma. Aguardei denovo no átrio, olhei os pátios batidos de sol, rodeados dapresença verde dos plátanos. Por cima de uma porta, entre asduas escadas que subiam, o mostrador redondo de um relógio,

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olhava-o de vez em quando. Mas a minha impaciência era maisrápida. Até que finalmente. Uma campainha estrídula peloespaço dos corredores e galerias, pelos pátios de sol. Mascomo uma pancada que leva tempo a doer, uma emoção que levatempo a definir.se. Havia um instante de suspensão e por fim ainundação em torrente de alunos e professores, eu esmiuçavaintensamente toda aquela massa humana. E só tempos depois, jáo átrio clareado de gente, ela apareceu vinda de uma escada.Mas não me falou, passou por mim, tinha ainda qualquer coisa adizer ao porteiro, e só depois - Vamos então a um café.Desculpe, o seu nome. Não sei se disse. - Cláudio. Atravessámos o jardim em frente, havia pássaros nas árvores.Mas não tinham razão contra o tráfego. Flora não era alta, maseu tinha dificuldade, pela intensidade do seu corpo, em sermais alto do que ela. Um vestido cor de - de que cor? deviaser claro para o teu esplendor, mas da

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cor dele ficou-me só namemória a firmeza flexível do seu andar. Direita ondeadatensa. Abruptamente sinto-a na minha posse por levá-la ao meulado e haver gente a ver. Escolheu um café ali perto,sentou-se perpendicular, chamou ela o criado. Da malinha tirouuma boquilha e acendeu um cigarro. E por entre uma baforada -Diga lá então. - Ora bem. A doutora sabe... - Ah, não. Doutora não. Não ríspida, seca. Só como se me admoestasse. Tratei-a porFlora. Era um nome pagão. E era o que sobretudo nela adeclarava, a frescura, a densidade, a exacta pressão de todo oseu corpo firme na linha visível do seu contorno. E era o quedirectamente nela me falava, o seu corpo, não tinha uma vozatrás dele como normalmente tem uma mulher. Mesmo o seu rosto,a face. Não tinha. Não era preciso despir-se para Lhe nãoolhar a face. Assim eu falava, com quê de ti eu falava? aplenitude densa e exacta, a perfeição

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inteira maciça.

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Um corpo. E não era fácil dialogar para aí. Fala-se comideias sentimentos. Uma inteireza física sólida perfeita.Sentada perpendicular sem nada transbordar do seu limite. - Tenho um inquérito a fazer e havia calor. Via-o estalarnas pedras da calçada, desenvolver-se-me por dentro até aoardor da face, Flora fresca, sem a mínima alteração, gesto deafrontamento. Toda a gente sabe que há hoje uma crise dajuventude, disse eu. Crise? disse ela. Tomava café direitaesplêndida, soprava o fumo do cigarro, altaneira. - Seu pai sugeriu-me várias pessoas para o inquérito eindicou-me o seu nome. - Meu pai. Queria de momento saber apenas onde e quando nos poderíamosencontrar. Ou prefere que lhe passe as

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perguntas? Não, não.Questionário, não. Se calhar com anotações como nos pontos doliceu. Como prefere então? É um problema que me interessapouco, essa coisa da paidocracia, da importância que toda agente se pôs a descobrir nos meninos impertinentes. De todo omodo, é um problema que existe, disse eu. De todo o modo,disse ela. Onde podemos encontrar-nos? Havia a hipótese doliceu, um café, o jornal. - Ou a minha casa. Ou a sua - disse Flora. - Em minha casa.É perfeito. - Quando? Foi no dia seguinte, suponho. Era sábado, dia feriado? eraum dia livre. - Nunca pensaste que o destino fui eu? - diz-me ainda o meufilho. - Que glória há em dizê-lo, se é um destino de submissão? dedesastre?

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De toda a maneira é meu. Mas não é de submissão, Podes tudizer o mesmo? ia eu dizer o mesmo? na luz dúbia da manhã, entre a noiteque terminou e o dia que vai começar. O facho do farol varreas águas de vez em quando, embate-me subitamente, esmorecenuma pequena luz. E o rumor do mar como um coro, o estoiro dasvagas contra o fundo da falésia. O frescor húmido doalvorecer, sinto-o, uma película de humidade no meu corpo. E ocansaço em que as ideias perdem nitidez. Tu não podes dizer omesmo, diz-me Miguel. É um pouco duro ouvir-te, digo-lhe eu.De qualquer modo criei-te. Eu só. E no entanto, vê tu, é Floraque eu mais admiro, diz-me Miguel. - Tu nunca pensaste que não tinhas força para te medires comela? - É duro ouvir-te - digo-lhe eu. - Foi pena que ela nãopudesse ter vindo, para ver se ela viria.

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- Não gostava que viesse. Preferia levar a imagem do orgulhodela e do meu. E tu no meio, sem orgulho nenhum. Talvez. Não me lembro de to ter ensinado. Não me lembro dete ter ensinado a criar um sentido onde não havia nenhum. Ehoje sei que foi esse todo o teu esforço. Mais nada, maisnada. Dar um sentido ao que o não tem. Desisti há muito de oencontrar. Não tinha ilusões sobre isso, não tinha. E quis quetu as não tivesses também. Revelar-te o estado de coisas real.Revelar-te a miséria da nossa vida. E ver se aprendias ahumildade. É a lição máxima de um homem. - Não gostava que ela viesse - diz-me ainda. O mar ressoa no vazio da manhã, um frio subtil no meu corpo.Estamos os dois na suspensão do alvorecer, no mundo quecomeça. Que ele comece depressa e tudo acabe e tu saiasdefinitivamente de um meu ponto de referência.

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Queria esquecer-te, vê tu, como um pecado que não cometi.Saudar depressa o Sol e eu como do lado dele, do lado dotriunfo e olhar-te a ti do lado do erro que não conta para avida. E todavia. Pensar que tudo foi entre nós para não ser.Pensar que nada tinha razão no que me ligou a ti, que umafracção enorme de mim foi um dispêndio na economia humana, quenada se cumpriu no que se cumpriu. - No fundo, nenhum de nós tinha em conta o outro, nenhum denós precisava do outro. - Quem? - perguntei. - Eu e Flora. Só tu me querias vivo por egoísmo. Que o Sol se levante para eu o saudar. E sentir-me inteiroaté à crueldade da minha solidão. - Em minha casa - disse Flora. - É perfeito. - Quando? Era um terceiro andar, fui no dia seguinte, era sábado? diaferiado, dia livre. Flora conduziu-me para uma pequena sala,

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uma janela aberta para o tráfego da rua e um pouco adiante ogrande parque e o seu horizonte de verdura. Sente-se,disse-me, eu levava o gravador, olhei em volta o arrumoperfeito, dois sofás, uma mesa, quadros. Que toma? Nada porenquanto, disse eu. Um gin tónico, bem fresco, disse ela. Nãorespondi logo e ela tomou o silêncio como aprovação, trouxelogo copos, a bebida. Montei o gravador, podemos começar?disse eu. A Flora já sabe qual o motivo deste inquérito. Podiacomeçar justamente por perguntar-lhe o que pensa dele, ou sejase acha oportuno que nos interroguemos sobre a situação dajuventude, tanto mais que a Flora é professora de jovens. Elasentara-se, a perna cruzada, o vestido claro apertado contra oboleado do corpo. Tinha um cigarro aceso numa boquilha fina elonga, um colar de bolas brancas ao pescoço. Bem, disse ela,acho aceitável o inquérito, mas não sei se isso não é umahomenagem que digamos se presta nele a

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essa chatinhajuventude. Ora bem, o século xx descobriu de repente ajuventude e foi como que se quisesse compensar o atraso deoutros séculos não é assim? Podemos mesmo chamar-Lhe o séculoda juventude. Já se lhe chamou o século da criança, disse eu.Exacto, disse ela, mas vem a dar no mesmo. A criança, veja, sócomeçou a ser um interesse quando o homem começou a tê-lo, ouseja, digamos, desde o século xv, xvI. O começo do fim, não éverdade? Mas foi sem dúvida com o nosso século que se lheprestou verdadeira atenção. Nós podíamos interrogar-nos porqueé que o nosso tempo prestou assim atenção e eu digo homenagemà juventude. O gravador entre os dois, eu escutava o tomdoutoral de Flora, o acentuado das palavras, um certo modoimperioso de as destacar e impor como se me estivessepreleccionando numa aula. E qual a razão dessa atenção ouhomenagem? perguntei. A razão, meu caro, é muito simples. A

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razão é que o adulto soçobrou diante da juventude. Podemosinvocar outras razões. São, aliás, as primeiras razões quelevaram a uma atenção à criança. São as razões dohumanitarismo ou da justiça ou da valorização do homem logodepois da sua submissão ao divino. Mas hoje o problema é umpouco diferente, meu amigo. Hoje o problema é que nos sentimosculpados perante os jovens. Culpados de quê? perguntei.Culpados de não termos razão alguma para impor seja o que for.Esta é que é a questão fundamental. E então abdicámos eajoelhámos. No entanto, disse eu, entre um pai e um filho, é ofilho que tem razão. Ora aí está, disse ela, é a paidocracia,o domínio da criancinha, a justificação de todo o seu

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discricionarismo, da sua impertinência, do seu absolutismo, da

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sua prepotência. É a pura inversão dos papéis, meu caro. E eupergunto então porque é que se há-de dar a primazia ao infantesobre o adulto. E porque não? perguntei eu para haver diálogoe alguma vivacidade nele. Porque, disse ela, estamos todosembarcados na mesma situação. Ora é mais justo que o adultoconheça melhor o que importa fazer do que o infante que aindanão sabe, não é assim? Flora estava excitada mas só no tom devoz categórica e acendeu novo cigarro. Tinha um tique deenrolar num dedo o cabelo da nuca, endireitar o busto numacesso de energia, ajeitar as bolas do pescoço. Mas de quem aculpa, perguntei, de não termos razões para impor seja o quefor? Mas de ninguém, meu amigo. Da vida. Da História. Sei lá.A intenção do homem foi boa, admitamos que foi boa. A intençãodo homem derivou afinal da fatalidade histórica. Não podia teroutra. Ele portanto não teve culpa, meu caro. Não vamosportanto inferir daí que ele deva

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humilhar-se diante do jovem.Nem ele diante do adulto, disse eu. Nem ele diante do adulto,disse ela. Há que portanto aceitar a situação de um lado e dooutro. Mas se alguém tem uma palavra decisiva a dizer é oadulto e não o jovenzinho. Não há que inverter os papéis. Nãohá que sentir-se o adulto culpado. Há que aceitar a situação eestabelecer um equilíbrio. Mas justamente, disse eu, o jovempensa que não existe um equilíbrio. Por exemplo, as matériasensinadas nos liceus e mesmo nos cursos superiores estãodesajustadas com o nosso tempo, são a expressão da ditadura doadulto, da sua incompreensão do que importa actualmente. Quepensa a Flora disto como professora? O tráfego da rua subiaaté ao terceiro andar, mas o calor forçava à janela aberta. Flora puxou atrás com as duas mãos o colar que decerto aacalorava, endireitou o busto de energia. Que é que elapensava? Ela disse. Mas a cassete acabou e tive de voltá-la,

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Flora aguardou para continuar. Meu caro, nunca nenhum cursoestará bem para o jovem. O jovem entende que só deve estudar oque interessa imediatamente à prática do seu curso futuro.Tudo o mais é perder tempo. O futuro médico devia começar logoa dar injecções e a receitar, o advogado a saber de leis, oengenheiro a saber de pontes ou de fábricas, o farmacêutico asaber de remédios. O jovem, meu caro amigo, ignora o interesseda cultura e tem pressa de se instalar na vida. E sem dúvida acultura não se pode explicar em termos práticos, não é assim?Digamos que ela só se aprecia depois de se ser culto. Há queobrigar o jovem a ser culto como há que obrigá-lo a serhigiénico. Abandonado a si, o infante nunca se lava, meuamigo. Não vamos concluir daí que a sujidade é que tem razão.Eu ouvia Flora e começava a sentir que o que tinha razão era asua presença, a densidade do seu corpo, o lineamento sólido doseu busto, o vigor que lhe estalava o

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vestido. E houve ummomento de silêncio. E houve um entendimento duro no olhar.Depois recomecei. Pergunto-me, disse eu, como é que a Flora,sendo tão rigorosa com os jovens, escolheu a profissão deprofessora. Ora ora, disse ela. Ser rigorosa não é serinjusta. Não sou mais rigorosa com o aluno do que com oprofessor. O que me indigna, meu caro, é a culpabilização doadulto perante o jovem. E quanto à minha profissão,verdadeiramente não a escolhi, como acontece quase sempre. Nosmil acertos com a vida, há um que nos oferecem como o maisaceitável. Mas não estou descontente com a minha profissão.

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De todas as possíveis que me surgiram foi esta a que mais seharmonizou comigo. Ser professor é colaborar mais eficazmentecom o futuro. E é tudo. De todo o modo,

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disse eu, entre ojovem e o professor acha que é o professor quem tem razão?Não, meu caro amigo, não tenho nenhum parti pris. Mas nãovamos inverter os papéis. Quem está sentado na carteira deaprender é o aluno, não o professor. Há decerto professorespouco dignos da sua missão. Mas há também uns meninosmalcriados que são indignos de serem alunos. Inventou-se oabsoluto da História e identificou-se a História com o jovem eo futuro. Mas a História é também o presente e mesmo opassado. Não abdico da minha responsabilidade de educadora.Fazê-lo seria abdicar de mim própria. E isso nunca. A Históriapassa através de nós todos. Portanto, através também de mim. Oque me preocupa é a vergonhosa abdicação do adulto. O que meindigna é que o adulto aceite apressadamente a condição debode expiatório. O jovem, que é cruel de sua natureza,aproveita logo essa situação e explora-a logo em seu proveito.

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Toda a humilhação é repelente porque esquece a dignidade. E éo que está em causa na situação que analisamos. Olhei Flora,ela estava ruborizada, torcia o cabelo na nuca, puxou atráscom as duas mãos o colar das bolas brancas. Depois bebeu. Earrastado pela sua eloquência, que é que perguntaria emseguida? Já me não lembro. Tenho a entrevista entre os meuspapéis, já me não lembro. Que pensava do ensino em Portugal,talvez. Qual o futuro do jovem no nosso país, possivelmente.Mas lembro-me - isso sim. Lembro-me de que Flora cresciadentro de mim. E de que ela era mais personalidade do quemulher e de que eu não sabia como podia um homem entender-secom esta por sobre aquela. A cassete acabou e eu tinha depreencher um espaço fora da entrevista. Bebi, fumei,

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houve um silêncio de arrumação do aparelho. Mas eu sabia quepara uma mulher a homenagem à mulher está fora e acima de todaa importância circunstancial, e então eu disse - Como é que osjovens podem suportar a sua beleza? - Que disparate. Uma professora não tem sexo. - Tenho um amigo que casou com a professora. - São anormalidades da natureza. - Se eu fosse seu aluno, era um anormal. Ela sorriu ligeiramente de lado, com uma tolerânciasuperior. Disse - Agora você copia o que se gravou e depoistraz. Sem eu rever não se publica. Tinha um dedo imperativo no ar. Arrumei os utensílios edispus-me a sair. Mas quando justamente ia a sair. Porque avida é assim. Súbitas resoluções sem cálculo. Como se nóstrabalhássemos para um lado e a vida para outro. Subitamentefoi assim. Havia uma poderosa força vinda de Flora. E eudeixei-me ir, um outro de mim deixei-o. No fundo, seria isso?

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a instintiva certeza de que outra força a trabalhava também.Mas quando a tomei com determinação - a cara rápida voltada delado, aproveitei a nuca o pescoço. E foi aí. Ela respiravaforte sobre o meu ombro. - Sim? - disse eu. - Não - disse ela para trás de mim. Mas eu insistia já com a colaboração do resto do meu corpo.Não, não, disse ela, desprendendo-se. Outra vez disse-meainda. Um fim-de-semana. Preparar isso com sensatez. Nopróximo? perguntei. Depois se fala, está bem? respondeu. Eentão fiquei sem palavras para continuar. Afastei-a um pouco,olhei-lhe os olhos, ela olhou-me frontal e sorriu breve.

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X

- Não era por egoísmo que eu te queria vivo - disse para o

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meu filho Miguel. - Era só porque te amava e só a vida éverdade. - Mas toda a tua relação comigo foi apenas a do egoísmodesde o momento em que me fizeste existir. Até hoje nunca umfilho pediu satisfações a um pai por tê-lo feito existir.Julgou-se sempre que era uma coisa natural como haver cães. Empaíses evoluídos os pais doentes não podem ter Filhos porque éum crime. Os filhos não teriam as condições mínimas de serealizarem. Mas não é só o físico que conta. Conta tudo, ascondições económicas, as condições sociais, mentais,psicológicas e sobretudo as condições estruturais, racionais,civilizacionais, organizativas, valorativas, toda essaporcaria para que um ser humano chegue ao mundo e se possarealizar harmoniosamente. Que pensaste tu disso, Cláudio?Quantas vezes te puseste este problema antes de me atirarescom a carga de viver? - Não fui eu só que te fiz.

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- Flora disse-me um dia que foste tu o principalresponsável. Mas ainda que não fosses. A iniciativa partiu deti. E é de resto muito feio não assumires as tuasresponsabilidades.

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É feio acusares quem nem sequer está presente. Cometeste umcrime e é disso que te acuso. Foi só por egoísmo que tudoaconteceu. E a minha vida interessava-te não por ela própriamas por ti. A minha vida era só minha e desde que ma desteperdeste o direito a ela. Um filho nunca acusa um pai da vidaque lhe deu por ignorância, distracção, convicção, estupidez.Os adultos, que sois vós, inventaram a sua moral e instituírammesmo que os filhos deviam ficar gratos a vida inteira aospais por os terem posto cá. Que lata. Durarão as velas até ser dia? Vou em volta do caixão e

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endireito-as, algumas de novo tortas pingam mais cera para ochão. Tenho velas suplementares, terei de utilizá-las? Ao seuclarão e à pálida claridade do ar, olho o Menino Jesusguerreiro. Veste de veludo carmesim, o chapéu bicórnio umpouco à banda, uma espada ao alto na mão infantil. Tem um péligeiramente avançado como no esboço de um assalto, a espadano ar. Mas distingue-se mal porque a espada se encurva com acurva do ombro e confunde-se com o debrum prateado da gola dacasaquinha. - Não cresceste em piores condições do que eu. E nunca mequeixei. - Mas muito piores - disse ele. - E é pouco corajosodesculpares-te contigo. Que tenho eu com isso? Que tenho eucom a cobardia de aceitares? O problema é entre nós dois. Sóisso. Mas é uma questão que acabou com o facto de eu nascer.Daí em diante o problema é do destino a dar à vida. E isso éuma questão só comigo.

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- Querias que eu não viesse? Que te deixasse aqui sozinho? - É um problema teu. É um problema menor. - Pergunto-me o que foi sempre para ti o problema maior. - Ser um tipo normal - disse ele. - O meu problema foisempre o de ser feliz. - Mas não o foste. Tê-lo-ias sido talvez se fosses um poucomais humilde. - Como te atreves a dizê-lo? A humildade é um escarro. Querodizer-te aqui de uma vez para sempre que fui muito feliz. - É horrível ouvir-te. Meu pobre Miguel. Meu pobre arcanjoderrotado. - A felicidade não se mede pela quantidade do que nosaconteceu de agradável, mas pela quantidade de nós queresponde ao que acontece. Nunca ficou nada em mim que nãorespondesse. E nas tintas para a filosofia.

***

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E então saí do cemitério, devagar. Havia um sentido visívelem tudo aquilo, não o distinguia. Havia uma claridadeexcessiva, os meus olhos não aguentavam. O inacessível daperfeição, do máximo que em nós fala, do limite do sagrado. Oua impossibilidade de o tocar na minha degradação. Oriana dosem fim. Oriana infinita. Vertigem da minha comoção mortal.Saí do cemitério devagar, como se à espera de que uma imagemuma ideia se me fixasse e o meu apelo nela me sustivesse - aúltima vez que te vi, quando? Vou deambulando entre os túmulos- quando? No teatro e tu no centro da despedida, ou um poucoantes talvez. É uma tarde serena e o teu sorriso mais alto doque tu. Não bem de alegria ou de triunfo ou assim.

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Um sorriso de tudo estar bem, de ser maior do que a vida -

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saio do cemitério, onde ir? Tinha comboio só à meia-noite, ira tua casa, como me não lembrei? tocar de perto a tuaintimidade ausente, a tua presença imaterial. Rua Barão de,número, já me não lembro. Fui perguntando, não era muitoperto, eu precisava de me materializar no ruído da cidade. Acasa tinha um só piso, um ar sólido, guarnições de pedra nasjanelas e portas, ralos de ferro nos dois batentes. Umaportinha abriu-se num deles - sou eu, o Cláudio. Na salaadormecida onde entrei, era um corredor ao longo de toda acasa, tecto alto, as salas davam todas para o corredor. Soueu. Oriana tinha uma irmã mais nova, a Inês. - É o Cláudio, mãe e havia um grupo de mulheres à roda dasala. Então uma senhora levantou-se, abraçou-se a mim sacudidade soluços, aguentei. Tinha mais dor do que isso, fiqueisólido, abracei-a também. O pai não estava e houve aexplicação de como tudo acontecera. Inês

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explicou. - Inês - disse eu - precisava muito de falar consigo,disse-lhe quando me sentei ao pé. Começou por ter dores fortesde cabeça. Depois a vista turbou-se-Lhe. Depois ficou logo emcoma, levaram-na para o hospital. Derrame cerebral,levaram-na, morreu. - Viu-a? - perguntei. - Sabe? - disse Inês. - Tinha um ar feliz. Os cabelos pelaalmofada, um ar sereno. Era horrível. Um ar feliz e ia morrer.Um ar inocente. Não lhe sei explicar. - Ouça, Inês. Não tenho uma fotografia dela. Não tenho umacarta, não tenho nada. Gostava tanto de ter uma fotografia.

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Ela então levantou-se e tomou-me a mão. Viemos a outra sala- era o quarto dela? mas tudo arrumado como se ela fossereaparecer. E eu tive uma dor horrorosa

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na sua presença íntimae na violência de nunca mais. Inês não hesitou, foi a umagaveta do seu conhecimento - o que você quiser - Umalembrança, o que quiser. Estava pálida, muito segura em todosos seus gestos - o que mais lhe agradar. - Só uma fotografia - disse eu. - É difícil cortar com tudoabruptamente. Inês tirou toda a quinquilharia, colares alfinetes frascos.Ela não gostava de tirar fotografias - disse. Mesmo as cartas,rasgava. - Nunca me escreveu. Não me lembro. Mas havia uma fotografia já antiga. Um grupo. E eu estava látambém - Quando foi? - Nem uma fotografia do curso? - Nunca vi. Quando foi? tenho uma vaga ideia. Um dia, no JardimBotânico, suponho que no jardim. É um grupo numa escadaria.Reconheço-me também, creio que. A capa traçada, mas não tenhoa fotografia. Oriana ao meio, quase de perfil. Devia estarvento, o cabelo longo arrepelado,

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via-se-lhe a orelha. Ouseria o penteado assim. E um ar de riso. Ah, o teu riso.Quantas vezes depois. Porque eras tu tão alegre? Quantas vezesdepois. Eu olhava-te a todo o espaço mágico de outrorasubitamente aberto à minha imaginação. Quantas vezes depois,eu ouvia as baladas desse tempo antigo. "És linda, se forasfeia" mesmo assim eu te queria, quantas vezes. "Porque Deus tefez tão linda" não olhes dessa maneira - como a memória édifícil. Guardo a fotografia, ela desapareceu na confusão dasminhas recordações. Até que um dia.

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Flora já traçara uma cruz sobre a minha vida. E então, entrepapéis velhos, a fotografia. Tomei-a nas mãos e subitamentetodo o passado. Levei-a a um fotógrafo - ele que não. Queriaque me isolasse esta figura e a ampliasse. E ele que não,

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pouco nítida, mesmo estalada em alguns sítios. Mesmo assim,disse eu. Não digas não, dize sim muito embora amor não sintas- ó passado de nunca, figuração da eternidade. O homemresmoneou, havia o seu brio profissional. Mesmo que ficassemal, insisti. E dias depois fui buscar. Paguei, o homem queriamostrar-me que. Não deixei - quanto é? E só quando já cá fora,devagar. Puxei a foto lentamente do envelope efulgurantemente. Oriana. A sem par. E o seu riso ao alto comoa manhã. E tudo isso florescia absurdamente por sobre aamargura e a morte. Há quarenta anos, talvez, Oriana, o purovazio da minha excitação. Desfeita já no seu túmulo, outrosmortos por cima, o nada absoluto da minha ficção. E o meucoração trémulo na súbita revelação de nada existir. Guardei afotografia e a excitação e a ternura diante de uma irrealidadeabsurda, mais forte do que a solidez do real. Cheguei a casa,ninguém, nem sequer a Tina talvez, já

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teria morrido? Não tenhoas contas certas para a cronologia, tenho-as só para a minhacomoção. Estou no centro de tudo o que me comoveu e esse tudofica à mesma distância de me comover. E logo que cheguei acasa, de novo esse meu confronto com o fantástico dafotografia. Tiro-a devagar do envelope e todo o espaço emvolta, Oriana ilumina-se do seu deslumbramento. Sinto-metranstornado, não sei dizê-lo. Há uma realidade intensaestranha, trespassa-me fluidifica-me, instantânea revelação.Não sei explicar. Tempo de outrora, a minha melancolia éabsurda como o mistério. Tudo é fictício na minha memória, omeu coração suspende-me, que é que me comove? Escondo afotografia ou fecho os olhos. E Oriana fica ainda real noirreal da sua imagem. Vejo-a então em alguns pontos da cidade,não muitos. E está imóvel no seu passar. Transparente difusa.De uma matéria de lenda. De nuvem. Não a distingo bem,

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distingo apenas a minha dissolução. Vejo-a na Rua Larga, estáfixa no seu passar. Há nessa hora uma frescura matinal comvultos indistintos de estudantes que também passam, vejo-a naPraça da República. Ou no parque à beira-rio, deve ser numatarde de Verão. Ou à saída do hospital. E sorri sempre emesplendor. Saturada de vida mais do que a vida. Tiro de novo afotografia do envelope e ela fixa-se logo em mais realidade naficção da sua imagem. Está de perfil como sempre a vejo eolho-a tão intensamente. Temo que ela se volte e vá falar - eque é que irias dizer? O nosso encontro é no eterno, meto denovo a fotografia no envelope. Nunca a amei assim. No absolutoda imaginação. No vazio da inexistência. Na pureza do existirque é igual ao seu nada. No amor em si. E a ternura que metoma é tão. Ternura de nada. Absurda estúpida. Na ficçãointerna, virada para dentro, de eu ser terno. E a sua imagemaérea. E a reconstrução súbita de tudo

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quanto nela aconteceu.E a estranheza de que tudo seja real de dentro da morte - queé que me comove na sem-razão de comover? Porque não é saudade.Ou ter pena de que. Não é a melancolia do que passou. É umsentir que vai de mim para objecto nenhum. Luz sem nada queiluminar. E tudo intenso profundo. Como se sim - o que é? Tudoé nada abstracção. E é nesse nada que estou. Um dia; era decerto já Verão, no Jardim Botânico, eu deviajá estudar para os exames. Não sei se foi essa a primeira vez

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que lhe falei. Mas tudo exige que o fosse. Deve ser Verão parahaver espaço. Deve ser ao fim do dia para haver paz. Deve serno fim do ano para haver melancolia no lembrar - quando foi?Na minha vida há poucos factos importantes. A importânciaponho-lha eu com a intensidade de mim.

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Estou no JardimBotânico e há um grupo em que ela está. E há um momento em queme junto ao grupo por relação com alguém de lá. E há odesfazer do grupo à hora de jantar. E há a minha vinda com elapara o mesmo sítio de irmos. E houve o instanteincompreensível de sentirmos que íamos ao lado um do outro. Umsalto qualitativo. E houve o virmos um com o outro pela subidado castelo e o guincho dos eléctricos e a dissipação aérea datarde. Mas seria então que? Vem-me o passado em imagensdispersas qual é? A primeira. A decisiva. Não sei. Vou comOriana pela rampa do castelo. E dizemos coisas que não são asque dizemos e que já não lembro. Ela ri. Ri sempre. A vidaatravessava-a e deixava-a da sua cor. Eu morava numa ruela, ados Penedos? que dava para o Largo da Sé Nova, ela morava naRua do Norte - de que falámos? Mas nunca se fala do que sefala e disso é que eu sei que se fala. Ela ia ao pé de mim e a

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certa altura reparei que isso era enorme. Falávamos talvez dosprofessores que era sempre o motivo mais viável para a nossaalegria. Mas já no grupo - não se tinha falado? Do Saias queera cirurgião e solteirão e se perfumava como uma pega. DoAloísio que era doido e médico de doidos e se metia na camacom histéricas paralíticas para elas saltarem fora e se porema andar. Ou falava eu dos meus, não sei. Depois chegámos à RuaLarga e eu disse vou consigo e ela não quis. Onde é que mora?perguntou. E eu disse. Não precisa de ir comigo, eu sei ocaminho.

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Mas não o sei eu, disse eu, e vou ter de o fazer muitas vezes e ela riu-se - em que ano estávamos? Deve ser openúltimo ano de Oriana, vou ter um ano inteiro para serfeliz. Descia-se à direita, rente à

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Universidade, era uma ruaíngreme, a casa de Oriana dobrava a esquina com a rua. Eudemorei-me ainda cá fora, junto à Sé, Oriana podia talvezainda aparecer a uma janela. Posso vê-la amanhã? Oh, quecoisa, disse ela. Posso? Você sabe se eu estou comprometida?Posso? Tenho de ir estudar com os meus colegas para oBotânico. Demoro-me um pouco ainda, junto à Sé, olho ao alto -se te visse ainda? Mas ela não apareceu. Pombos arrulhavam nos frisos da Sé. Ehavia o eco de uma balada pelo ar.

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XI

E eis que nessa manhã um telegrama de meu pai. Aliás, nãodele, de minha mãe. Mas sobre ele - chega no comboio das três.Já uns dias antes, uma carta. Anda muito doente, dizia. Uma

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tosse. E o peito esquisito, assim como em quilha. E mais alto,como que cresceu. Fomos ao médico, tirou-lhe radiografias.Nessa manhã, eu tinha levado o Miguel à escola como decostume. Flora já se tinha ido? ou estaria no estrangeiro.Levava-o de manhã, ia buscá-lo à tarde, depois do jornal. Erabom, se não tinha jornal de noite, às vezes tinha. Entãoficava sozinho, metia-o na cama, ficava. E às três fui esperaro meu pai. Havia muita gente para eu o decifrar no meio dela.Gente que já estava e gente que vinha e a multiplicava. E oressoar de todas as vozes no espaço da gare que me ampliava aexcitação. Era um comboio comprido e eu corria de um lado parao outro como um cão, olhando atrás quando já ia à frente evice-versa no receio de o perder. Achei-o enfim na últimacarruagem, descendo com dificuldade depois de já tudo tersaído. Tinha realmente o ar empertigado. Mas magro. Com umatosse. E os olhos. Toda a sua substância

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se concentrava neles.Afundados iluminados. Trazia uma pequena mala e um grandeenvelope com as radiografias. Tomo-lhe a mala, ele deixa,

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despegando devagar os dedos da argola. Pergunto-lhe pelaviagem, pela mãe, se traz uma carta de recomendação. Respondealheado, caminha devagar - a carta? Seguro-lhe asradiografias, procura pelos bolsos - a carta. É dirigida aoProf. Mendes de Sousa, vem fechada. E para quando a consulta?Vamos primeiro por minha casa? e ele diz que não. Consulta àsquatro. Tosse de vez em quando, pára para tossir. E eupergunto-me, não me pergunto, como é que? é uma perguntaanterior a eu olhar para ele com surpresa e ,compaixão. Que éque me liga a ti? mas há um mundo de coisas entre operguntá-lo e o sermos ali. Passam-nos à

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beira os bagageiroscom os carrinhos, e uma enxurrada de gente, escorre agitadapelo piso de cimento, nós levados na torrente. Há um mundo decoisas de permeio entre a infância e agora e tu não estás lá.Porque a certa altura, deves sabê-lo, um pai deixa de entrarno jogo das coisas reais e passa para a mitologia. É quandoele é adorável na sua ficção, gostava que entendesses. Tenhouma imensa piedade de ti, enquanto ele abranda a passada,sustento-o sob o braço, sentar-se um pouco? e ele não meresponde, olha em frente a sua abstracção, retoma o andamento.Fora, há uma ronda de táxis a apanhar os passageiros, mas eutrouxe o carro, está um pouco longe da estação. Proponho aomeu pai que espere, eu vou buscar o carro, ele prefere ircomigo. Rolamos agora pela avenida à beira-rio, deve serVerão. Deve ser um tempo quente, tenho um frescor na memória,um sabor da água menos intenso que este agora à beira-mar. Não

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dizemos nada por sobre o que nos estremece no silêncio e eutenho vontade de dizer em voz audível e não sei. Presume-seque não falo pela atenção ao trânsito e eu deixo presumir.Digo mesmo coisas breves sobre esse trânsito, os peões que oatravessam em qualquer sítio, os carros que se desviambruscamente da sua pista, os que param imprevistamente eatrapalham para um desvio. Mas submersamente há em ambos outravoz. A que fala do tempo e da consumpção. Do destino e damorte. É uma voz suspensa, petrificada, não é a altura deouvir-se. Contorno o Terreiro do Paço, viro ao Rossio. De vezem quando os sinais vermelhos, e paro. Refluo então a mim, àrealidade mais sensível de ir ali com o meu pai. Depois retomoa marcha e existo apenas no articulado da marcha. Subo aAvenida, viro à direita na Rotunda, viro à esquerda para aPraça de Espanha e o Instituto. Tenho pressa de chegar etodavia não tenho. Está lá à espera a

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palavra do destino e elafascina e aterra. Naturalmente é a que fala em cada instanteda vida, não a pensamos. Não a sabemos. Ao portão doInstituto, subo uma pequena rampa, viro à direita, há já muitocarro estacionado. Meu pai corporiza esse destino,presentifica-o no distante alheamento de ir ali, obediente aoseu mandato. E logo que transpomos o portão, um corredorcoalhado de gente. Gente sentada, de pé. E de vez em quando,de bata branca, saindo entrando pelas portas escalonadas pelocorredor. Enfermeiras enfermeiros. E médicos, suponho, são osmensageiros da morte - seremos um país enfermo? a pátria dadegradação? do extermínio? Apanho um enfermeiro, vou-lhedizendo que, mas ele não pára. Vou assim a reboque, ele semprena frente, entremeando-se à massa de gente, eu continuo aexplicar. Já estava longe de meu pai, que ficou para trás, oenfermeiro parou. Esteve um momento a entender, depois disse

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quarto piso. Volto atrás, o corredor cheio de doença, meu paiapático, sentou-se numa esquina de um banco, muita genteapertada. Quarto piso. Elevador onde? Apanho uma enfermeira,

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vou a reboque, pergunto-lhe onde é que. Mas alguém seinterpõe, tem também uma questão urgente de salvação, aenfermeira esquece-me. Atende-o. Depois volta-se para mim,faz-me um sinal com o dedo apontado, vou buscar o meu pai. Oascensor é uma cabina espaçosa. É verde, um verde de couve,feio como a repugnância. Vamos todos em silêncio e ummal-estar, como é próprio na invasão estranha do nosso espaçofísico. Mas quando saímos ao corredor. Agrupam-se aqui e além,sentados em bancos, têm em volta do pescoço chumaços dealgodão em rama com grandes manchas de sangue. Têm o olhar

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erradio de pasmo. Debruçam-se para o chão, alguns,encostam-se, um olhar ressentido distante. Intrigado. E têmtodos um colar ao pescoço de algodão em rama com uma nódoasangrenta. Há um, altivo, passeia isolado pelo corredor. Temtambém o seu colar branco e vermelho. Mas traz na cara - nãotenho tempo para reparar bem, eles repelem a nossa curiosidadeofensiva. É o que me parece instantaneamente, olho para elecomo para coisa natural. Rápido parece-me uma grelha, máscarade tubos, algum ligado ao nariz, passeia soberano com a suadesgraça alta. Pergunto aos de um banco, onde é o consultóriode, e um arrasta os olhos em desprezo a apontar com o queixo eo lábio estendido. E algum tempo depois o meu pai estava no grupo, sentado numbanco, um colar de algodão em rama manchado de sangue em tornodo pescoço. Olha-me quase indiferente, eu devo ter na cara umespanto raiado de piedade e terror. Está do lado do destino, o

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meu pai, deve sentir-se muito acima de mim, com pena edesprezo pela minha inferioridade. Venho agora visitá-losempre que posso, cada vez mais irmanado à sua fatalidade, atésenti-la quase normal.

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E um dia no Instituto entenderam que deviam mandá-lo paracasa. Ia para morrer, mas preparado para a vida até onde erapossível. Tinha uma fita de nastro à volta do pescoço e umatampinha de pano a tapar-lhe o buraco. Quis acompanhá-lo àaldeia, recusou vigorosamente como se estivesse a insultá-lo -estaria? Fechado sobre a sua condenação como sobre um bemprivativo. Tinha um buraco no pescoço, era dele. E o orgulhoavultava no seu corpo franzino. Era dele como a suafatalidade, ele fazia-mo sentir. Ser proprietário mesmo dadesgraça, pensei. Telegrafei para o irem

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esperar,esperaram-no. Telegrafaram-me algum tempo depois para o irenterrar, enterrei-o. Era Inverno, devia ser Inverno. Tenhofrio na alma e na memória. Devia ser.

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XII

- Às vezes pergunto-me, quero dizer, perguntava-me: como éque chegou tudo aqui? - disse Miguel. - Perguntava-mepergunto-me, mas não muito. Tenho asco porquê. É a fórmula dosdesocupados, dos tinhosos, dos raquíticos. Que adianta oporquê? A razão escolhe-se para ser razão. Antes de ela serescolhida já se foi que se tinha de ser. Mas às vezesperguntava-me como é que vim dar aqui? Sinto no corpo o frioda madrugada. O dia desprende-se da noite devagar, trazconsigo os restos da humidade. Mas no

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fundo do escuro, o sinalindeciso de um dia novo, como dizê-lo? um início com oesquecimento que lhe pertence do que é ruína e morte. - Como éque foi? Não há como é que, há só o ter chegado, que é queinteressa? Não me sinto confortável em parte nenhuma o meuser, o meu erro é orgânico e não é assim erro nenhum. Mas nãome sinto nele bem, devo ter nascido em mim por engano. E desúbito. O maestro entrou no palco de pés ao alto e as mãos pelochão, caminha rápido pela superfície do mar.

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Mas as calças não lhe escorregam pelas pernas, devem estarpresas como as dos ginastas, suponho. Também as abas da casacaapenas lhe caem quebradas nas pontas. Caminhava de mãos brevesno chão pelo tablado, devia trazer uma missão urgente a

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cumprir. E subiu para o estrado que não ficava muito alto. Nãolhe vejo diante a partitura, sabê-la-á de cor? estou-opensando com a subtileza que posso. E era natural que asoubesse porque era o seu autor. A sala está cheia porque é aestreia absoluta e a música chama-se Requiem por um milénio.O Miguel está comigo para aprender a ser homem e partilhar dabeleza que tem de chegar para todos - se eu te chamasse para asaberes outra vez? - Miguel! - Diz. Mas não digo nada. No programa que distribuíram leio a razãodo título para a hipótese de a não sabermos no fim, que équando realmente se sabe. E na anterioridade ao ouvir o mar,dizia entre outras coisas que a melancolia. Que formareaccionária de se ser gente. É preciso assumir a vida toda emesmo quem é que jamais provou que um ruído não é um som evice-versa, como faz questão de distinguir a música

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reumatismal? E no fim dizia-se que pum pum. Havia assiminstrumentos imprevistos na orquestra que também colaboravam.Alguidares, sim, sim. E apitos relas. E uns vasos esquisitos,meu Deus. Uns vasos indecentes, fixo-os com toda a intensidadedo meu atraso mental, seriam mesmo penicos? Estavam todos osmúsicos com os instrumentos preparados prontos para entraremem acção no limite do mar. As luzes bruxuleiam-me à oscilaçãoda atenção, enquanto o maestro perfilado hirto agitoubrevemente o pé direito a pedir concentração e eu disse-lheque sim. A assistência suspendeu-se, um ou outro retardatário entravadiscreto a passo larápio e o concerto começou. Ouço-o domurete na manhã difícil, fumo um cigarro. Os pés do maestrodistribuíam equitativamente os comandos para a direita e paraa esquerda - quanto tempo ainda a noite nos meus ombros? Masdurante largo tempo só se ouviam dois naipes nos cantos

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opostos do palco, ouço. Eram uns apitos histéricos estrídulosde árbitros de futebol, um som grosso a acompanhar monocórdicode todos os rabecões que eram muitos. Estiveram assim longotempo o grito e o ronco no fundo da manhã, os outrosassistiam. Depois ficaram só os apitos, que gritaria. Era umhisterismo aflitivo, o pé esquerdo do maestro taquicárdicoestremecia no ar com o trilo dos gritos, depoiS o silêncio - óSol, ó Sol. Como demoras. O maestro marcava os compassossilenciosos com a ponta do pé esquerdo, via-se que era maisdestro com esse pé, seria canhoto? ou haveria uma ligaçãosubtil disso com a desgraça. E os músicos todos descansavam.Foi quando a lataria e os violinos. Que chavascal. Chiavam ehavia uma grande algazarra de latas, eu tapei grosseiramenteos ouvidos. Depois, só os penicos em pancadas isócronas ocas,os violinos chiavam outra vez, memória obsoleta de aldeia e decarros de bois. O maestro dobrava e

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desdobrava as duas pernasabertas, balançava-se ao ritmo da pancada da louçaria. Outrasvezes cruzava-as no ar indicando subtilezas para um e outrolado com a ponta dos pés. Havia agora só um solo de rabecões apenas com uma notagrossa. Era um ronco monótono e longo, estendia-se pelaescuridão do mar. O maestro cruzou as pernas no ar em descansoe deixou-se estar para ali. Aguardava-se a continuação mas osrabecões não tinham pressa. Estavam bem instalados assim,

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não tinham. Os arcos iam e vinham sincrónicos, os roncosalongavam-se sem um desânimo, os outros instrumentosesperavam. Espero eu também, ó Sol, quando? quando? Uma vez ououtra, picotando o ronronar dos rabecões, uma pancada seca eenérgica do bombo. Depois os rabecões calaram-se e ficaram só

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as pancadas do bombo a marcarem decerto o ritmo de uma marchafúnebre. Olho o Miguel, ele olha o maestro com olhosdeslumbrados de surpresa e inquietação. Então o maestro comuma perna dobrada e a outra em riste deu um breve sinal com opé desse lado. E toda a orquestra caiu em peso sobre aassistência com uma trovoada de barulho. Era uma gritariadoida, o maestro agitava as duas pernas em movimentos dedelírio, via-se que estava possesso de frenesim, depoisestacou. E súbito, o silêncio. Poderia julgar-se que a peçatinha acabado, eu julguei. Mas prevendo isso, ao alto as duaspernas, a orquestra em massa saltou sobre a sala com umestridor colossal e o maestro sustentava-o com um frémito naponta dos dois pés. E eu sinto em entusiasmo que o Sol vaienfim romper. Depois recolheu as pernas e em três pontos daorquestra três penicos breves ressoaram em ritmo acelerado efiníssimo, o maestro desfez o pino e

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sentou-se de caras para opúblico. Perto de nós um tipo meditativo - Divino dizia. Abeiça reflexiva estendida, divino, dizia outra vez mais alto epara os lados na hipótese de algum contraditor. E o maestro,de costas para a orquestra descansava. Até que girou rápidosobre si e fez um gesto discreto, os penicos calaram-se. Haviaagora um silêncio plano por sobre o rumor do mar. Só de vez emquando longe uma rela das que espantam os pássaros, ouvia-sediscreta.

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O maestro virou-se de novo para o público e deixou-a a tocarpara ali. Tocava agora sozinha monocórdica, outra rela porémdespertou num outro canto da orquestra, depois outra. Depois aorquestra, cada músico devia levar uma rela suplementar,abandonavam o instrumento próprio, tocavam todos uma rela como

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talvez cigarras infernais, enchiam o espaço da sala, o nossovizinho repetiu - Divino. Pensei que o maestro se cansara, a ginástica cansa porque écontra a ordem sentada da vida, pensei com a ironia que pude.Mas lesto como um gato, de novo o pino e os pés frementes navibração das cigarras. Depois, breve, com um gesto seco dospés, suspendeu-as. Foi quando uma trompete. Ressoava até aoslimites do mundo, do mar. Toque de mortos talvez, umatrombeta, terrível, tocava uma só nota, mas em crescendosdiminuendos, às vezes mal se ouvia no silêncio concentrado.Subia de novo, crescia em intensidade furiosa, outrastrompetes engrossavam o seu toque, a sala estremecia com a suaviolência. E depois, súbito, tudo acabou. A massa de ouvintessaltou à uma em aplausos desvairados, Miguel ria, alegre, eunão sabia que fazer, não sabia, no meu atraso mental. Sofrer,talvez. No meu atraso. E o maestro girou sobre si, voltou-se

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para o público, cruzou as pernas ao alto em agradecimento.Depois desceu do estrado e de mãos no chão, movia-as brevescomo um rato, desapareceu atrás dos bastidores. Mas osaplausos não cessavam e após longo tempo voltou. Vinha outravez de mãos pelo chão, as pernas ao alto, cheias de diligênciamiúda. Havia decerto que repetir ou tocar um extra-programa.Fez-se de novo silêncio, o maestro deve ter combinado com aorquestra, o que se repetiu foi apenas o raspar grosso dosrabecões.

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O trecho era longo ou sem medida, o maestro cruzou as pernasao alto e deixou-se estar para ali, eu olhava-o intensamente.Até que fez cessar o naipe, virou-se para o público aagradecer, agora erguendo e baixando as pernas em flexões de

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rã. Depois desceu do pequeno estrado e movimentando as mãoslépidas desapareceu definitivamente atrás dos bastidores. Osaplausos do público não cessavam e eu admiti que houvesseainda alguma repetição ou um número extra. O público estavatodo de pé, batia palmas gritava - Bravo! Bravo! mas o maestrojá tinha a sua dose de ovação, não quis mais, não voltou aopalco. E em face disso, as palmas foram cessando, o pano dopalco fechou-se. Mas a minha melancolia não cessa, violenta,na solidão da manhã. O maestro afinal reconsiderou, mesmo depano fechado veio ainda imprevistamente à boca do palcoagradecer. Vinha agora a pé-coxinho e tudo por fim acalmou. Eudesejava falar com o maestro, como iria dizer-Lhe? tinha onome carinhoso de Lili, era o grande compositor e maestroIlídio, seria possível receber-me? Fiz uma tentativa paraentrar pela porta do palco, Miguel vinha comigo, mas estava láum bombeiro cheio de autoridade de

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bombeiro, não deixou. - Sou jornalista - disse eu para o impressionar. - É o mesmo - disse ele, coriáceo à impressão. E estávamos nisto, o maestro passou atrás de nós. - Maestro Lili - disse eu num tom alto excitado. Ele parou um instante, fez-me sinal com um dedo em gancho amandar-me aproximar. Entrei e ia a dizer, mas ele, a palma nafrente, e então sustive-me. Por detrás do palco, grandesmadeiramentos toscos, cordas cruzadas ao alto, um alto frio deespaço, roldanas, enormes telas pintadas montadas emesquadrias de madeira, encostadas à parede e gente. Gentecorrendo para um lado e outro, gente em grupos, o maestroolhava, tinha ainda a mão no ar para a hipótese de eu avançarcom alguma fala. Depois em fila, eram músicos da orquestra, emfileira disciplinar, vestiam os sobretudos gabardinas, porbaixo o traje de cerimónia, laço branco casaca. À frente

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estavam uns quatro rabecões, os caixões enormes,suspendiam-nos com esforço. Depois mais pequenas as caixas, osviolinistas, a bicha dava uma volta no interior do palco, ondeiriam os penicos? pensei em ironia evoluída, talvez em caixastambém. E as relas. Era uma enorme fieira de caixas e estavamem silêncio. Havia um grande silêncio, só o raspado dos pés,alguns que se movimentavam até tomarem lugar na fila, ouço-osainda no meu cansaço de vigília. E outros tipos, decertofuncionários dos maquinismos interiores. Por fim a bichacomeçou a deslocar-se para uma porta para a rua ou outradependência, o maestro estático, a mão espalmada sempre dianteda minha cara para a hipótese de eu avançar. Até que o palcoesvaziado, o maestro estendeu a mão na direcção de um gabinetee caminhámos para lá até à porta. Lili abriu-a e houve umgesto para entrarmos entrámos. Cartazes vastos espelhos sofás,sentei-me, Miguel sentou-se.

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- Mas não é a melhor altura para uma entrevista - disse ele. - Vinha para combinar - disse eu. - O concerto que ouviu não cabe em duas palavras. - Não era bem sobre o concerto, mas também era. - Um dia - disse ele. - Do seu jornal disseram-me. Odirector. Cláudio Meneses? - Sim. - Digamos daqui a uns tempos. Há que sossegar as ideias. Temo meu endereço decerto.

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Depois apontou-nos a porta da saída. Havia fora o frio dointerior do palco, sinto-o no frio húmido da manhã. Olhei aoalto as cordas nas roldanas. Grandes cenários encostados àsparedes. O lado arrefecido do mundo da glória, o verdadeiro dofalso. Saímos.

***

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- Lembras-te do concerto? - pergunto-Lhe. - Que concerto? - Com o maestro a fazer o pino. - Às vezes perguntava-me como é que tudo veio dar aqui. Éuma ocupação para inválidos e para estúpidos. - Lembrei-me do concerto, perguntei-te então o que pensavas,já não sei o que respondeste. - É natural que haja uma razão. Mas a razão sou eu e isso éindiscutível como tudo o que está aí. Que é que me pareceu oconcerto? Espera, deixa-me pensar. Eu era miúdo, a Flora já setinha ido? Escuto o mar no seu vasto marulhar na madrugada. Olho-ointensamente na sensação fria e desértica de um naufrágio. Noespaço do céu há estrelas ainda acesas. É um céu denso eescuro mas para nascente há uma barra de claridade em que aserra se recorta - sim, Flora já se devia ter ido, ela foi-setão cedo.

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- Creio que gostei, não me lembro de não ter gostado. Porqueé que não havia de gostar? Nem isso era gostar, era batercerto com tudo o mais. Devo ter achado piada, não sei. Porque ela foi-se tão cedo. As coisas aconteceram umas nasoutras, e eu estava de fora, mesmo quando estava dentro. Masrealmente não estava. Quando de facto estava dentro, as coisasnão aconteceram, foi assim. Flora disse-me ao telefone -Porque é que havemos de ir a outro sítio? Espero-te aqui nopróximo sábado. Fomos jantar fora. Fomos ao cinema. Mas tudo para mim foidifícil e provisório, porque eu estava impaciente pelo que nãoera isso. Mas havia um cerimonial a cumprir para afastar omais possível o seu terceiro andar de uma casa de passe. Oh,gostei bem que não fosse, eu amava-te decerto. Era um amorgeometrizado na linearidade do teu corpo, como hei-de dizer?no rigor de seres um ser corpóreo. Porque o teu corpo perfeito

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adiantava-se sobre ti e era com ele que eu primeiro medefrontava. Que é que quer dizer amor? contigo não o sabia,nunca o soube, teria alguma significação? ou a significaçãonão é dele mas de cada um de nós ou de tudo aquilo com quesomos cada um de nós. Flora abriu a porta subira a escada emperfeita naturalidade, decerto porque o termos estado juntosesbatera o que era aí anormal ou era a sua legitimação. Depoishouve ainda bebidas. Tentei ainda que não houvesse para haverlogo o que haveria. Mas Flora não tinha pressa. Abrira asjanelas para a noite quente, sentou-se num sofá. E retomavanão sei já que conversa para haver um espaço neutro entre nós.De vez em quando, talvez nos pontos mais difíceis da conversa,o tique de enrolar as pontas do cabelo. E fumavaconstantemente para compor nela um não sei quê de escultural.Flora, o ruído já suspenso do tráfego, a extensão escura doparque. E este todo harmonioso

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construído disciplinado. Ou aconversa decerto. De qualquer modo, refluía em mim aexcitação. Até que tudo atingiu um ponto morto, Floraergueu-se para fechar as janelas. Miguel calou-se, falámos játanto, o dia e a noite equilibram-se na frialdade da manhã,

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e eu aproveito para a intensidade do lembrar. Porque tudo emmim converge para um ponto intenso. Ah, o teu corpo perfeito,nunca mais o foi. A exactidão do seu traçado, o jogo harmónicode todas as suas peças em movimento no aflorar rápido dasminhas mãos. E o cálido interior de ti. E a sensação indizívelda destruição de uma impossibilidade. E a integração vigorosana totalidade do meu corpo de todo o secreto e independente ealtivo de ti. E a tua desistência e abandono e enrodilhadoenxovalho de ti na vertigem do fim. E a

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súbita aproximação semmistério de nós ambos no cansaço espalhado do repouso. E osilêncio das horas depois, quando nada havia em nós aindarecomposto e plausível para renascer numa palavra. Flora foi aprimeira a reencontrar-se. - Você, Cláudio, não tem outra mulher? - Tu pensas que. - Não me trate por tu! Que horror! Depois já não sei o que lhe disse. Depois adormecemos. Masantes amámo-nos ainda outra vez. Era um amor que se esgotavano amar como se esgota em si a geometria da perfeição.

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XIII

- Miguel! - digo-lhe eu mas ele não responde. Deve teradormecido, é a hora difícil da manhã, hora de sonhospesadelos. Dou a volta ao caixão, dorme nele sossegado, há uma

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claridade fresca vinda do mar. Ao centro por cima do altar, oretábulo da Anunciação, ao lado o menino napoleónico e do ladooposto o São João com a sua vara e a pele de carneiro no corponu. Olho a Virgem, tem um joelho dobrado até ao chão dahumildade. E ao alto, no dedo erguido, o anjo diz-lhe a razãode ser humilde. Traz-lhe o anúncio da dor e da morte mas elanão sabe senão a da grandeza que está do lado da frente.Miguel tem a face serena de quem esgotou o destino, a faceesmaecida que é o sinal do caminho para isso. Faço uma ronda atoda a volta, ; tudo está bem. As velas ainda se aguentam,tudo está bem. E em face disso, lembro-me - se eu fosse daruma volta? Mas ele ouviu-me o pensar e perguntou: - Onde é que vais? - Não sei. Talvez até Coimbra. Achas mal? - Que é que vais fazer a Coimbra? Que vou fazer? Mas eu sou mais forte do que eu. É tãodifícil dizer-te.

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- Ver Oriana? - perguntou ainda. Mas onde encontrá-la? Choupal, Lapa, Olivais, Santa Cruz.Talvez no Penedo. Talvez simplesmente no Parque ao pé do rio.Ou na Faculdade ao pé do Largo da Feira. - Extraordinário como para ti a ficção é que é. Mas todo o real da realidade é a sua ficção, qual foi o teureal? Todo o real é só o que sobra dele - mas ondeencontrar-te? Atravesso todas as camadas sobrepostas do que seacumulou e foi a vida única para quem a viveu. - Extraordinário como te é difícil ser homem. - Que é ser homem? Arcanjo derrotado pelo dragão no montículo do teu corpomorto para apodrecer - que é ser homem? Há um dia novo para ailusão que se segue - que é? Respiro-o no frescor que mereinventa a plenitude, olho-o na

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extensão das águas aindaescuras, pontuadas dos vaga-lumes dos barcos subindo descendo- poderei ver-te? - Ser homem é ser todo. Tão simples. - Sim, sim. Vou encontrar Oriana a descer a Avenida. Vem num grupo deraparigas - Oriana! digo-lhe alto. Ela olha-me atentamente atentár decifrar-me. Fico a olhá-la um momento, saia justa umpouco abaixo do joelho e o modelado da perna à frente noandar, sapatos de equilíbrio na sua fragilidade. Fico aolhá-la um instante encantado - donde vens? - Donde vens? - pergunta-me por fim e as raparigas olham-metambém com estranheza. Depois começam a afastar-se, olhandoatrás várias vezes - donde vens? Estás bela, digo-lhe. Hátanto tempo, diz-me ela. Apeteceu-me vir ter contigo, digo-lheainda, era absolutamente necessário vir. Sim, diz-me ela.Caminhamos devagar, há luz no ar. E há muita coisa mais quenão sei e está nos começos da vida. Um

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perfume talvez?seráPrimavera. E um modo desembaraçado de se ser ainda gente, sócom futuro. Ou um modo de se ser alegre por apenas se ser. Masa intensidade com que vamos ao pé um do outro é muito maior doque nós e afasta para longe toda a gente que passa. Vamos sós.Oriana pergunta-me ainda donde venho e eu digo-lhe que - masnão sei. Venci o tempo, que é da minha condição humana.Atravessei as idades. E a quantidade de coisas que doeram. E omassacre. E a ruína. E todos os limites da minha forma mortal.Oriana. Ela ouvia-me com atenção e cada palavra minhatranscendia-a de sublimação divina. Sou eu também um deus,estamos fora do tempo. Nada nos poderá atingir corroer. Nadapoderá ser maior do que nós. Atravessamos a Baixa, Orianaqueria entrar no labirinto de ruas - porquê? - Porquê? - perguntei. - São ruas impraticáveis, tens algumacoisa lá que fazer? E és capaz de te orientar?

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Tem graça. Claro que era. Tanta vez por lá fora,infelizmente era. E eu? Bom, eu tirava uma recta no pensamentoe ia a direito por ela. Não, não, digo fazer o circuito detoda a rede. - Porquê? Digo decifrar o enigma, disse ela. Desvendar o mistério. Masnão há nada tão decepcionante como desvendar um mistério. Écomo desvendar o truque de um prestidigitador. Ficamosirritados retrospectivamente connosco por ter visto ummistério onde o não havia. O mistério deve preservar-se parasalvaguardarmos o respeito e o medo e haver ordem no mundo.Que é que se ganhou em saber que não era Júpiter que atiravaos raios? Tivemos de ir procurar o mistério noutro lado pararestabelecer a ordem.

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- Imagina que destruías o mistério de

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tudo. Só te restava obocejo e a espera da morte. De resto, tenho de ir ao Tivolicomprar bilhetes para o cinema e por aqui é mais perto. Vamos pelo labirinto, lojas escuras, gente grosseira para anossa sublimação. Há uma rua suspeita, conheço-a, conhecê-la-áela também? vou atento à salvaguarda da nossa condição divina.Oriana percorria o labirinto em ziguezague - não era então alinha recta para o cinema que querias. Mas houve um momento emque - Espera! Voltou atrás a alguma montra de alguma loja,iluminada em pleno dia naquela rua obscura. E esperei. Acendium cigarro, esperei. Mas a certa altura. Pelo meu relógiointerior onde se marca uma espera, reparei que passara muitotempo. E voltei eu atrás. Mas não a vi e comecei a percorreroutras ruas que vinham dar àquela. Comecei então a andar àroda - onde era a rua em que estava? vim dar de novo ao largoem frente de Santa Cruz, meti de novo pela rua em que me

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parecia termos entrado. E cheguei ao ponto em que supunhatermo-nos separado, mas Oriana não estava lá. Então apossou-sede mim uma estranha loucura para lá da sensatez e donde ela senão vê e desatei aos berros. - Oriana! Chamei por ela a altos brados e não havia um eco para elesno sobrenatural que era o meu. As pessoas olhavam-me, iampassando. Um homem de uma loja veio à porta, voltou paradentro, devia ter vindo ver se vinha algum freguês ou sechovia. Gritei longo tempo até enrouquecer e depois de estarrouco continuei a gritar, mas já não me ouvia a não ser navontade de gritar que é onde começa o grito, e por fim caiu anoite. Era uma noite fechada inteiriça, feita de todo onegrume dos séculos, apesar de ser Primavera como supunha.Depois saí de mim e voltei ao largo, toda a cidade estava jáiluminada. Os carros passavam nos dois sentidos, os eléctricostilintavam e ganiam nas calhas. E então

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Miguel pediu-me -Conta-me lá então como é que tudo se passou. Olhei o mar e a serra de Sintra, mas o dia não se tinhaesclarecido mais - havia apenas um frio mais marcado nahumidade mortal do meu corpo.

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XIV

E um dia Flora disse-me: - Segunda-feira parto para a Grécia. - Para a Grécia? Diga outra vez para entender. - Concorri ao leitorado, parto para Atenas. Estou sentado num degrau à porta da capela, olho o mar. Olhoo invisível dele, que é o que é maior e me fascina. Está todono que vejo, mas não está. É imenso, mas a noite torna-o aindamaior, torna-me a mim mais pequeno. Ouço a toda a amplidão o

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rumor abstracto do seu medo. Entre a noite que é dele e amorte que está comigo estou eu só. - Miguel! - Diz. Mas não fales muito, que quero dormir. - É o sono da manhã, tem sempre pesadelos. - Mas estou cansado, diz depressa. - Quando a tua mãe partiu para a Grécia já estavas no liceu? - É possível, mas não me lembro. E porque me havia delembrar, se tu próprio te não lembras? O que ela foi semprenão tinha de estar mais em mim do que em ti. Ou tinha? - A Tina veio pouco depois.

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- A Tina. Era gira a Tina. Era simpática por humildade. Olho o mar ainda, fascinado pelo seu mistério, de que nasceo seu mistério? Tem a grandeza cósmica dos milénios, é absurdono gratuito de ser e se agitar, tem o terror preso de um leãonuma jaula. E sobrepõe ao seu mistério o

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mistério da noite. Etudo o que nele cresce vai do que em mim diminui. Estousozinho em face dele, defronto-me só com ele, e assim a suaimensidão é maior. Estou à espera que o dia nasça e que odestino de Miguel se encerre de uma vez. Talvez então eu digaa Clara - Vem! e ela virá talvez - não falei ainda de Clara?e mergulharemos nas águas e renascerei de dentro delas como umdeus. Flora almoçava na cantina do liceu, raramente aíalmoçava, aliás, mas quase sempre no Tamborim que ficava nocomeço do Campo de Santana. E eu na cantina do jornal ou numcafé-restaurante que ficava um pouco abaixo, no mesmo lado daAvenida. Nesse dia ela telefonou-me para o jornal, eutrabalhava lá de manhã: - Você não quer almoçar comigo, Cláudio? Subo a Duque de Loulé, vou devagar ao sabor de uma oblíquainquietação, raramente Flora me convida para o almoço. É umainquietação, suspeita que vem de súbito

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de trás e me faz parare que depois passa como um carro que passasse. Há o pequenofacto do convite e há o inesperado estampido disso. Não tenhonada a relacionar com isso e eu sou de facto um animalracional. Há só o facto e não há mais nada à volta. Subo aDuque de Loulé, paro aos sinais vermelhos ou mesmo às vezessem sinais. E então posso reconsiderar porque só se pensa bemquando parado, para tudo em mim convergir para o esforçomental.

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E então, talvez em efeito do descanso, não vejo razão para irinquieto. Mas mesmo com vagares, chego ao liceu com uns cinco minutosde avanço. É bom para uma preparação suplementar. Ofuncionário da porta já me conhece, soergue-se em reverência,volta a sentar-se à secretária. É

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Outubro, espreito-o nospátios do recreio pelas portas envidraçadas de um e de outrolado. É Outono, os plátanos em volta estão de acordo e umempregado apanha-lhes do chão as folhas mortas. Mas estácalor, o sol não despegou ainda do Verão. Mais quebrado, já acaminho da invalidez, mas quente. Bato passos no átriodeserto, olho o relógio redondo entre a dupla escadaria e devez em quando passa um aluno ainda queimado da praia - ondefizemos praia esse ano? creio que foi na Rocha. Não tínhamosainda casa nas Azenhas, foi lá. Batemos as praias do país, porfim calhámos para ali. Pensão Sol se chamava, tínhamos o nossolugar de assinatura em Agosto. Mas Flora muita vez não desciaà praia, ia eu com o Miguel. Levantava-se tarde, quase só paraalmoçar. Solene intensa torneada. E a boquilha comprida com umcigarro. Mas à noite. Era uma chatice, o Miguel tinha logosono da estafa do dia, íamos sempre à esplanada do forte, no

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extremo da longa avenida sobre o mar. Mas uma vez ou outraFlora ia connosco à praia, eu levava o Miguel pela mão. Floradeslocava com ela uma bateria complicada de cremes óculosvários toalhas de felpa chapéus e cadeiras especiais eu levavao Miguel e dava ajuda. Da pensão à praia era só atravessar aavenida. Flora às vezes já ia equipada com um vestido curto defelpa, mas a beleza dela isolava-a. Defendia-a como umapaliçada. Eu pensava assim que Flora não era bela mas sim que

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era ela mais a beleza e que a beleza era uma casca que setivesse de partir. A beleza não chamava mas repelia. Istopensava eu mas não os veraneantes que nos passavam ao pé e aolhavam vorazmente. Eu não gostava, eles olhavam sempre comfuror. Mesmo com tanta mulher bela na praia, porque na praia

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quase todas as mulheres são belas, porque não é a cara que selhes vê e há muita igualdade no resto. E todas se dissolvemumas nas outras e não há unicidade. Mas Flora tinha-a, eupensava. Era bela escultural como se diz e portanto fria comoé próprio das esculturas, mas os veraneantes galãs nãoachavam, suponho. Miguel gostava de ir brincar à beira daágua, ia eu sempre com ele. Chamava a mãe às vezes para irmosos três fazer de família, ela não queria. Torrava ao sol,íamos nós. E enquanto vamos, ouço o estridor das campainhasretinindo por pátios e galerias, é o fim da aula, Flora nãodeve demorar. Não sei se vem de algum pátio ou de cima, olhopara os vários sítios rapidamente. Jorram em massa dos trêssítios estudantes e decerto professores, não é fácil extrairFlora da enxurrada. E foi ela que veio ter comigo por detrás.Aproximou a face da minha para um beijo breve como se medissesse um segredo ao ouvido, depois

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foi ainda acima arrumaros livros. Mas esperei ainda muito tempo, teria ainda idoresolver qualquer problema, voltou enfim, o átrio estava jáquase deserto, só um ou outro professor descia ainda, asúltimas gotas da enxurrada. Alguma coisa de novo? perguntei,excitado de curiosidade impaciente. Ó Cláudio, você não querque nos ponhamos aqui a conversar. Conversar onde? e ela disseno Montecarlo, era ao cimo da Fontes Pereira de Melo. Era umcafé-restaurante, restaurante à esquerda, café à direita.Sondámos as hipóteses de mesas, eu preferia uma ao fundo, a umcanto, perto da minha confusão. Mas Flora escolheu uma logo àentrada, mais junto da evidência e do corropio. E logo que nossentámos houve cumprimentos e saudações para ela de gente quepassava, e ela correspondia em voz alta. Quem é? eu perguntavae ela ia remediando a minha curiosidade, até que deixei deperguntar, farto. - E que me queria afinal você dizer?

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- Mas que pressa. Você já escolheu o que quer? Não lherecomendo carne, você devia comer mais peixe. Tem um hábitoinveterado da aldeia. Carne e sobretudo carne de porco. Quehorror. É bela minha mulher. Mas é uma beleza desaproveitável, comodizer? está de fora dela, a beleza para um lado e ela para ooutro. - Você sabe, era o que se podia comer na minha infância.Carne de porco da salgadeira. O único peixe que havia às vezesera sardinha ardida. E bacalhau, claro. Escolhi lombo de porco. Tem má reputação, o porco -disse-lhe ainda - deve ser do nome. Flora puxou da boquilhaenquanto esperávamos e eu pensei: vai enfim dizer. Não disse.Falara primeiro de e de. Estava calor e ela puxou atrás ocolar de bolas brancas. Mostrei-me desinteressado do quequeria dizer-me e falei de e de. Havia mesmo silêncios quenenhum preenchia, eu olhava para o interior do café, ela

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olhava para o lado da porta que lhe iluminava a face. Não, nãolhe perguntava mais o que é que queria dizer-me. Eranecessário deixá-la saturar-se da necessidade de dizer até nãopoder mais. E então seria ela a perguntar-me se não queriasaber. Flora regateava sempre a mínima concessão. E a melhorforma de ela conceder fosse o que fosse era eu não lhemanifestar nem o menor interesse. E não tendo eu interesse emreceber, já lhe não era difícil a ela dar.

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Porque o preço em dar está na valia para quem recebe. Falámosde tudo e íamos almoçando. E eu deixava ir. Quando elacalculou que se esgotara o meu interesse, então ela disse: - Segunda-feira parto para a Grécia. - Para a Grécia? Que ideia. Diga outra vez para entender. Tomávamos o café e eu perguntei porquê

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para a Grécia. Haviatambém a possibilidade de Paris. Era já piroso Paris. Toda agente escolhia Paris. Escolhera Atenas. Mas porquê assim do pépara a mão? Precisava de respirar. Não fora uma decisãoprecipitada. Reflectira uns dias no seu apartamento, não melembrava? Você nunca presta atenção, não se lembra? Sentia-meviolentamente ofendido, mas não o mostrava. Porquesentirmo-nos ofendidos é afirmarmos a eficácia de quem nosofende. Só o podemos mostrar quando a nossa dignidade está emcausa. Mas só o está quando a importância do outro é inegável.Aguentei, desviei o golpe para o Miguel: - E o miúdo não lhe põe problemas? - Já Lhe dei muito. É a altura de ele me dar alguma coisa. Estou sentado nos degraus da capela, voltado para o mar. - Miguel! - digo para trás. - Sentiste-te ofendido quandotua mãe foi para a Grécia? - Não digas minha mãe, que não preciso de colo. Quando Florapartiu, deixa-me ver. Acho que fiquei

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chateado, mas ela foiadmirável. - Porque é que só admiras quem te quer mal? - Porque é que achas que me quer mal quem se dá ao respeito?Os grandes não querem bem. Estão muito ocupados e não têmtempo. Mas não me sentia só ofendido. Na realidade, não era isso,penso. Sentia-me era sucumbido, subitamente desamparado,qualquer coisa assim. Mais só, talvez, mas em que é que ela meera companhia? Extraordinário como a companhia ou protecçãonos pode vir donde não imaginamos. A casa, o lugar ondeestamos, uma ferradura atrás da porta. Porque o que nosprotege não é o que nos protege, mas aquilo para que se passauma parcela de nós e que a ficar em nós sobrecarrega o peso.Escoar de nós o excesso, distrair-nos de nós, eu sofria tantocom a ausência de Flora. Alguém que nos alivie um pouco destaestopada de sermos, deve ser a lógica da prostituta que

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precisa do chulo, mesmo que Lhe bata ou sobretudo. Queria eulá saber, queria saber era de subitamente ver-me privado doque já nem reparava ser meu e era por isso o de que mais medoía a privação. Flora indiferente, a boquilha comprida,soprava o fumo, acabava o café. Eu fumava também e que é quepodia ainda dizer? mas devia dizer para não dar a ideia de queela me tirara a fala. - E vai-se demorar muito lá na Grécia? Devo ter tido o ar de cão escorraçado - você não vai agoraperturbar-se com isso, disse-me ela. - Quanto tempo? - O período legal é de três anos. Mas renovável. - Mas vem nas férias - disse eu, não bem perguntando masafirmando já antecipadamente. Não sei o que ela disse, enquanto o mar a todo o espaço àminha volta, ouço-o na sua massa pesada e escura, retumba nooco do pavor. Venho até ao murete branco, traçado à volta dolargo da capela, no limite para o abismo. Está ali, não para

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se não poder passar mas para dizer que se não deve, como umacorrente ou um pau atravessado no vão de uma porta de quintal.

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Olho em baixo o rolo de espuma das ondas, de um branco deleite mais intenso no escuro do amanhecer. O facho do farolvarre a superfície das águas, ilumina o largo por instantes,apaga-se devagar para o outro lado. O frescor da madrugadaaviva-se-me no corpo, no indefeso do frio do meu corpo emvigília. Passeio um pouco na diagonal do largo, aturdido dorumor marinho, no espaço aberto da minha solidão. Sento-me porfim no murete com um cigarro, olho ao alto o céu pálido.Algumas estrelas, para o lado de nascente, foram apagando aluz.

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XV

E estava nisto quando recebo um telegrama de Tina - sua mãemorreu. Ou antes, não recebi, eu estava no jornal, vim játarde para casa. Foi o Miguel que o recebeu e mo meteuentalado no disco do telefone. Sua mãe morreu - Tina. A minhabiografia agora é assim. Mortes, separações, que são uma suaforma talvez mais activa. Flora não estava, onde é que estava?sei-o do difícil em que estou a lembrar-me. Havia um comboiomanhã cedo, acordei o Miguel e expliquei-lhe. Não me pareceuperturbar-se - que significava a velha avó? poucas vezes íamosa férias à aldeia. Eu fazia-lhe os brinquedos em querecuperava nele a minha infância, mas Miguel não seentusiasmava porque não cabiam na dele ou não a preenchiam.Mas minha mãe também se não entusiasmava muito com o neto,

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como se nela também não coubesse - cabia ela ainda na minhavida? pergunto-me à janela do comboio. De vez em quando o seumito ergue-se-me diante, toca-me devagar no ombro. E então nãosei se a convenção ou ela própria é real. Cresce-nos ohorizonte com a vida, mas não aquilo que a preenchia. Minhamãe está num recanto de mim, onde ficou o resto que fui.

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Mas de vez em quando. Porque a vida expulsa-nos quantas vezesdesde o longe a que chegámos. Então recua-se à origem e elaestá lá - o que é que está? Memória ficção. Recurso como a umcurandeiro quando o desespero é demais - que é que? - Miguel, que é que está? mas não o pergunto, ele diria atua cobardia. Ou infantilidade. Ou qualquer porcaria assim queme rebaixasse, não pergunto, sigo no comboio de olhar errante

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e epifenomenal. Campos casas gente. Estarei triste? Não sei.Ou antes. De vez em quando a súbita iluminação de que estoumais só. Reinventar a vida desde onde já a reinventara. Masprovisoriamente. O comboio é o rápido, quase não pára. E acarruagem quase vazia, parece-me assim que o comboio anda maisdepressa. Estações desertas, passadas em turbilhão e umfuncionário ridículo de bandeirinha na mão, rapidamentedesaparecido para trás. Porque eu queria uma relação clara como facto da morte de minha mãe. Não tenho. Uma relação quepassasse através do mito convenção parece bem. Não o sei. Etodavia estou triste. Sofro. Mas não sei em que sítio de mim osofrimento é verdadeiro como num pôr do Sol o Sol, acima ouabaixo do horizonte, e entretanto cheguei à estação. Saí eusó, estava deserta. Havia a camioneta do Leonel que tivera umairmã bichante em Lisboa, mas tomei um táxi. E quando cheguei àaldeia os sinos dobravam. Ouço-os ainda

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longe, a todo oespaço, atroam-me entre as casas à entrada, ao virar à loja doChurro, a caminho da casa no adro. Tina vem logo à porta,minha mãe dormia na sala de visitas, que era à entrada, dolado direito. E abraçou-se logo a mim, veja o menino quempodia esperar uma coisa destas. De manhã, ia-lhe a levar oalmoço, estava à ponta da cama virada para a parede.

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- Que é que estás para aí a inventar? - disse minha mãe. - Então eu não vi, minha senhora? Então a senhora não estavaencostada à parede? - Cláudio! Como estás, filho? Dorme. Que é que importa o que foste em vigília? Dorme. ÉOutono, talvez, mas o Verão demora-se ainda, está quente. Ossinos dobram sempre, as árvores do adro desfolham-se ao avisoda morte. Lembro ainda minha mãe, há um

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círculo de velhas denegro a toda a volta. Os meus sentimentos. Vou-os recebendotodos mas não me fica nenhum. - Quando voltas? - pergunta-me minha mãe. - Depois de amanhã, talvez, depois de arrumar as coisas. - Tens de cuidar da Tina. Há um odor pastoso a cera e a defunto, inspiro fundo àmaresia do largo mar. Ouço-o na minha confusão, olho na serrade Sintra o sinal inaugural do amanhecer. E é como se umaesperança violenta, erguida por sobre a ruína e adesorientação e o abandono. Sê calmo. De todo o modo, a vidacontinua. De todo o modo. Estás vivo, é inegável. Sê em ti averdade da vida, que é a única verdadeira. Mais nada. Maisnada. - Tens de cuidar da Tina que fica para aqui sozinha. Dorme. Sossega. Olho a sua face, há nela uma paz que dá paratudo o que a inquietou. Olho-a ainda na união profunda dodestino do meu sangue. Mas vou ao meu

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quarto arranjar-me, oenterro é às cinco. Subo os degraus que viram bruscamente soba alta clarabóia, entro no meu quarto. Tem as janelas fechadaspara o luto estabelecido, abro-as de par em par para o espaçodo adro. Reparo agora que os sinos se calaram. Mas ouço-osainda, ouço-os desde a infância que está cheia do seu ressoar.

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A igreja fica em frente, vibram-me nas horas pela noite, emtodas as circunstâncias de Deus existir. Missa casamentosbaptizados mortes. Novenas ave-marias procissões, ó sinaisaudíveis de uma ordem do universo. Preparo-me disciplino-me emluto, fecho de novo as janelas para haver conveniência dosentir. Chamo Tina à cozinha para me informar de toda acircunstância do funeral, padre e todos os funcionários damorte, dinheiros a acertar. Depois volto

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à sala, tenho lá olugar reservado à minha presidência. Há ainda moscas. Sãomoles lentas como o tédio. Apetece-me abrir as janelas epôr-me a olhar os dois minúsculos canteiros que compõem umpequeno jardim entre a porta de entrada e o gradeamento deferro. Mas seria como se me pusesse a dançar. Fico imóvel,todo enquadrado de sisudez. Dobro-me sobre mim e penso.Provavelmente não tenho pena de minha mãe. Mas não sei, quem éque sabe o que realmente sente? Sinto-me triste, com umpequeno toque talvez me pusesse a chorar. Mas não sei se tenhopena. Há o ambiente funéreo e eu devo estar de acordo. Mas nãosei. Devo mesmo estar triste, mas não sei se é por. Já devoter pensado nisso. O passado real esvai-se da realidade e oque fica é a nossa construção. Onde é que sou o que estousendo? Tenho imensa pena de minha mãe quando tudo estáordenado para ter pena. Mas de vez em quando esqueço-me

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distraio-me e já não tenho ou não está em questão o tê-la ounão tê-la e deve ser o mesmo. Daqui a pouco, depois doenterro, talvez. Uma conversa com Tina, vou tê-la. - Tina! - Diga, menino. - Tu agora vens comigo para Lisboa. - Para Lisboa? Então eu ia deixar os senhores sozinhos? - Tina. Tu não estás louca. Os senhores morreram, tu nãovais ficar para aqui sozinha. - As pessoas não morrem assim de um dia para o outro,menino. Os seus paizinhos ainda não morreram de todo. Não osvou deixar para aqui sem ninguém. Chamavam por mim e quem éque os atendia? - Tina. Tu acabas mesmo por ficar taralhouca. - Agora. Nunca estive tanto no meu juízo. - Porque é que lhe chamas Tina? - pergunta-me o Miguel. - Não sei. Creio que o nome dela era Celestina. Mas se eu odissesse inteiro, ela não o enchia todo. E de súbito, de novo os sinos dobrando

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para a tarde triste.Estalam as pancadas no espaço do adro, reboam largamente noeterno. Levanto-me instintivamente à janela, pela portaprincipal da igreja vejo vir o padre o sacristão uma massaescura de velhas. Encurvadas para o chão rezam, não as ouçorezar. Vejo-as concentradas, o rosto baixo. O terço nas mãos,suspenso. Com o dobre dos sinos e o escuro massificado dasvelhas, intensificado o ar funéreo de tudo, uma desistênciaabsoluta desenganada. O padre entra. Vem rezando mais alto, areza propaga-se a todo o mulherio como num passe-palavraclandestino. Tina tem um choro num tom acima a destacar pordireito próprio, eu mantenho-me grave. Sinto uma grandedesolação, mas ela aconteceu-me já noutro tempo, agora é só aformalização disso como o assinar de uma escritura de que játudo se combinou e recebeu mesmo o dinheiro. Depois o padresai e arrasta consigo todo o poviléu que me inunda a casa.

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Tina sai comigo alinhada comigo como co-proprietária da razãode irmos ali. Está sol. Vamos discretos na nossa gravidade.

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Apenas Tina de vez em quando, um soluço mais alto, a provarque não esquece o dever. Às vezes a reza é para dentro, todaem silêncio, e ouve-se o raspar multiplicado dos passos naareia. Estou só. Mas só o sei de vez em quando, um relampejarsúbito que me cega. Depois vejo outra vez. Queria ter umsentido claro e definitivo para isso tudo. Tenho só um sentidoconfuso. Vem-me da vida toda. E quando regressamos do enterro,eu disse: - Tina! Tu agora vens comigo para Lisboa. Não vais ficarpara aqui sozinha. - Isso é que não vou. Os senhores podem precisar de mim equem é que depois os atende? - Não te faças mais doida do que o que

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és. - Não faço, menino. As pessoas não morrem assim do pé para amão como julga. Às vezes levam meses, levam anos a ir-seembora. O dia acaba devagar. Há um ar cansado na luz coalhada. Luzflácida. Luz pegajosa. Como as moscas.

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XVI

Mas tenho de dar ilustração ao meu filho, é meu dever. Meudever. - Porque é que te dei ilustração? - Estou fatigado. Não me maces. - Porque é que? Tenho, aliás, de continuar a ronda para o inquérito doInformações. Pediu-mo o director, meu (ex)-sogro, mas não seise ainda é director. Tenho tempo de o saber quando for tempode o saber. Meu sogro. O título é Século xxI à vista, é mesmo

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este? - Porque é que? - E que é que havias de fazer? Assisti ao concerto do Lili, mas ainda o não entrevistei.Devo ir visitá-lo quando for do tiroteio na embaixada. Lá maispara diante, estou tão cansado. Hei-de ir primeiro visitar aescultora Lalá, vou levar comigo o Miguel. - Mas ainda não me contaste como foi o enterro da avó. - Lembras-te da tua avó? - Pouco. Lembro-me é da chatice quando fugia para a rua.Achava sempre que eu vinha porco. Era a sua maneira de afirmara «luta de classes».

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O dia nasce devagar. Cresce no meio do diálogo com o meufilho. Repousa no meio das quatro tábuas - quatro velas àvolta. Algumas estão no fim, é curioso. É curioso que se nãogastem todas ao mesmo tempo. Tenho velas

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suplementares,substituo as mais precisadas, já alastradas desconformes emderramamento de sono. - Que tal? - Está bem. Mas não faças mais perguntas. A serra de Sintra mais recortada nítida. O construtor dopalácio deve ter estudado daqui o seu equilíbrio na aresta. Ede vez em quando o farol. Cresce súbito, explode em luz edepois apaga-se. Já mal vejo a Anunciação, o menino guerreiroe o São João. De tanto os olhar. Não se vê o que se vê muitomas só de vez em quando. Faço um esforço para ver. E doesforço ou de mais luz - um halo difuso, qualquer coisa aquerer abrir. Já fumei não sei quantos cigarros. A bocaespessa um sabor a estrumeira. Ao longe, no alto mar, há aindao exercício da pesca. Há lá homens. Não os vejo. Vejo apenasas luzinhas em pisca-pisca no balancear da tarefa. E um mantode frialdade cobre tudo, sinto-o. Nem sempre. É preciso

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lembrar. Ou não sei se primeiro sinto e depois é que lembro. Éo ponto mais frio da vida, o recomeço. Algumas estrelas duram.Obstinadas duram. Olho-as do extremo limite da tragédia que éminha e onde só já há um modo de se ser puro. Passaram por mimtodas as dores do mundo pavores desenganos, o instrumentaltodo com que se faz um homem e mais. Depois tudo é plano, nemsubir nem descer. Estou salvo em ser homem e agora um deus nãotem nada a ensinar-me. Puro de início mas depois de ter dado avolta toda. Estou irreconhecível, os deuses tinham de fazer umesforço sério para me entenderem - a calma da manhã.Expande-se ao universo. É belo começar. Saber todas asmitologias e começar. Sem nenhuma. Respiro fundo a distânciaamplidão, o infinito. E eles são o todo de eu respirar. Ouço ofervor interno da caldeira do mundo. E tudo é o eu estar aqui- mas tenho de dar ilustração ao meu filho. Há um inquérito,vou-o realizando ao longo da minha

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lembrança - Miguel! - E o que há? - Vamos visitar uma senhora escultora. Ela tinha o ateliernos Coruchéus. Não era longe, servia de passeio. E que vamoslá fazer? Mas já to disse, vou fazer uma entrevista. Para quê?E aqui reparo que a pergunta é maior do que eu. Tentopreenchê-la como posso. E digo, e disse. Miguel portanto eramiúdo, porque só quando se é pequeno é que se têm perguntasgrandes. Caminhávamos ao longo da Avenida de Roma, mas não melembro de lhe dar a mão. Passado o cruzamento com a dosEstados Unidos, vira-se logo à esquerda. Podia virar à Praçade Alvalade, lá mais abaixo, e que se calhar ainda se nãochama assim e é uma distância igual. Mas viro logo por ser aprimeira e me parecer assim o caminho mais curto. Depoisvolta-se à direita, lá ao fundo e é aí. Há um correr em doispisos de filas de ateliers. Não me lembro do número, onze porexemplo, batemos. Era um rés-do-chão,

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Eulália esperava-nos,abriu, era uma mulher ainda nova. Quebrada pelo pescoço para oombro, esmagriçada óssea, de modo que os dentes mais visíveisem prognatismo, num sorriso piedoso mas que estava um poucofora do sítio de sorrir. E desse sítio ao sorriso havia umespaço para o intrigante e a desfocagem. De chapa se via logoque ela não estava presente a si, mas um pouco ao lado. Miguelmalcriadamente entrou logo pelo aposento, quando repareiestava ele já acocorado lá ao fundo, fitava coisas no chão.

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E só então vi bem, todo o chão era um estendal de ferragensvelhas, um monte de pedras, pedaços de cadeias nas paredes,elos encadeados suspensos de cordéis de lado a lado. - Miguel! - Já te disse que me deixasses descansar.

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- Não é contigo que estou a falar. Miguel! - repeti. - Queestás aí a fazer? Vem aqui para o pé de nós e Lalá sorriasempre com doçura, o atelier parecia uma loja de ferro-velhoou uma lixeira da Câmara. Havia algumas cadeiras escavacadas,convidou-nos a sentar, sorria sempre. - Eulália, disse eu. - Oh, não, disse ela. - Lalá, disse eu. E ela então não disse nada. - Cláudio! - disse-me Miguel. - Vem aí um dia bonito. Vejoaqui as estrelas lá no alto. É bom. Um dia bonito. - O menos que disto se pode dizer - disse eu olhando alixaria do atelier - é que tudo, não sei. Tinham-me dito. Nãosei. É tudo isto a sua obra mais recente? A sua esculturaenfim, digamos, a sua obra é isto? Miguel! Mas ele cirandava por todo o aposento. Acocorava-se, olhavaos elos de corrente suspensos de um cordel. Andava em volta deum monte de pedras no centro do chão. - A minha obra é bonita.

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- Sim. - É a minha escultura. Falava devagar, sorria mais devagar. - Mas diga-me. Qualquer pessoa, enfim, pode, como dizer?enfim simplesmente dizer que isto é uma lixeira.

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- Não é? As pessoas, sabe? os olhos muito abertos e emsegredo, quase ao ouvido - as pessoas ainda não sabem. - Sabem! - disse eu. - Oh - disse ela. - Mas eu posso explicar. Não posso. Tenhomedo. - Medo? - Se as pessoas soubessem. Podia desencadear-se umarevolução. Mas o que estava à vista era já tão revolucionário. Umarevolução civil. Se as pessoas entendessem. Mas entendessem oquê? Não, não, não posso explicar. São toneladas de dinamite.Explicar. A bomba atómica foi uma

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explicação da matéria, eh.Não tenho dúvidas. Quando se explicam as coisas, elasrebentam, sabe? Em todo o caso, Lalá, você vai expor, deve darum título a isto. Não sei se eu deva dar. - E então pensei: aquilo, Dinâmica (as correntes); isto,Estática (as pedras). São os dois princípios da vida, não é? Opositivo e o negativo, a energia e a matéria, o yin e o yang.É uma escultura demasiado radical, que lhe parece? parecia-mebem? Os meus amigos dizem-me. Muito explosiva, muito, não sei.Acham-me demasiado ambiciosa. Mas eu nasci para convulsionar omundo. Outros acham que a «Estática» devia ser chamada apenasHomem,. É uma ironia cruel. Sou implacável, mas tenho um ladofrágil e quando o disse, um rosto ósseo e logo depois doce,ficou assim calada embevecida, a cabeça de lado. - Falta aqui, como se diz? - disse ela por fim.Obra-prima,não é? opus magnum. De Estremoz. Sou nacionalista, veja lá. Um

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grande bloco de mármore. - Mármore? Como vai poder? Tão frágil, você e ela riu.

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Vergou-se mesmo sobre o colo, quanto ela se riu. Não, não ovou trabalhar, como ela riu. Foi o erro de milénios, está aver? Não estou - disse eu. De milénios - disse ela. Já pensouquantas obras podem estar num bloco de mármore? Todas asépocas, todos os estilos, meu Deus. A estupidez humana, pensebem. Um bloco intocável e toda a história da arte ali. Os meusamigos acham-me ambiciosa. Sou assim. Muito perigosa. - Estamos no fim de um milénio, Lalá. Como encara o futuroda arte? E ela voltou a rir, a rir. Miguel! Não mexas nascoisas - estava ele a puxar pelas correntes, e ela continuavaa rir. Está quieto, isso não é para mexer. Havia calor no

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atelier, em que mês? Calor contrastado quente frio, Primaveratalvez. Calor facetado. Não Outono em que ele ainda é redondocomo no Verão. Lalá não acabava de rir e eu deixei-a estar,Miguel voltou-se a olhar. Depois cessou. Havia agora umsilêncio compacto, podia-se-lhe bater com um martelo, pensei.Então Lalá começou a explicar - o futuro da arte, disse.Inclinava a cabeça, olhava-me com ternura. Esteve assim muitotempo, eu à espera. Depois chamou o Miguel. Foi com ele aomonte de pedras, pôs-se a escolher uma. Experimentou várias,escolha difícil. Punha-as outra vez com cuidado no seu lugar,Miguel olhava para mim para as pedras a entender. E de súbito,Lalá ergueu-se triunfante, uma pequena pedra na mão. Sorria emtriunfo orgulho - para ti. - Para ti - disse. Sorria. Tinha alegria generosidade no olhar. Miguel olhou apedra, meteu-a no bolso. - Porque é que te dei ilustração? - Oh, não me maces.

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- Porque é que?

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XVII

E llido tão em paz. Paz cósmica - é de se dizer? imensatrespassada à raiz do universo, não sei. O dia hesita emcomeçar - há uma expectativa incerta, pequenos sinaisindistintos aqui e além, mas não a sei localizar. Uma vastaabertura misteriosa, suspendo-me. De vez em quando na estradafronteira, mais frequente, um carro que passa solitário.Depois, de novo o silêncio e a interrogação. A toda a volta dolargo o murete mais branco de cal. E a capela insólita namanhã. O murete não defende do precipício, mas diz que eleestá lá e então defende. E o rumor imenso do mar. Alargado atodo o espaço, mais intenso exclusivo na solidão do amanhecer.

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Ouço-o da distância, procuro-o entre as últimas estrelas, estálá. Obstinado cavernoso. Ouço-o. Envolve-me de todo o lado,estou no centro da sua agitação. Cruzo o largo, paro às vezespara o ouvir melhor. E então, o seu fragor terrorista. Pequenoeu face à sua imensidão. Sento-me no murete e o seu estrondocadenciado. Depois o seu marulhar fervor ressonância. E umaroma acre a fertilidade. Respiro-o fundo com a vitalidade damanhã, rejuvenesce-me percorre a ramificação do meu ser. Foiquando subtil e fino, inesperado, o diagrama de uma balada.

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Inscreve-se no céu nos meus nervos, na claridade que começa, eentão subo rápido ao meu terceiro andar da Praça de Londres. - Mas não te demores muito - disse Miguel. Não sei. Preciso tanto de te ver. Mas não sei o que vai

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durar quanto preciso. Subo rápido ao terceiro andar, abro aporta, a casa deserta. A sala é à esquerda, mas há ainda umcubículo apêndice dessa sala, também à esquerda, é aí. Aoângulo tenho uma secretária, Flora trabalhava na marquise, aocanto da sala grande. E por cima da secretária, detenho-me umpouco a olhá-lo. São três figuras de mulheres, deu-mas o Limade Freitas, detenho-me um pouco. Um dia pensei quem são? Umdia pensei e descobri. É o instantâneo de uma rapariga noenquadramento de uma porta, bate-Lhe a luz de frente, a sombrarápida das pernas no chão. Súbita presença, está de costas, acabeleira derrama-se-Lhe pelas costas. Tive sorte em apanhá-laainda na quadratura da porta, um instante apenas, vai em brevedesaparecer, ficará apenas o vazio da porta. A do meio, altaestável. Cai-Lhe para os ombros pelo pescoço longo,escorre-lhe pela face pelos seios e ancas, é uma luz pesada decal. É sólida de barro. E a trança o

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cabelo enrolado num comose diz? um totó, não sei. Maçudo denso grosso. O vestidodescai-lhe num ombro escorrega um pouco para o braço. Ésólida, uma mulher. E há a outra, toda desfraldada de vento.Oriana Flora Clara, queria que fossem mas não sei se cabem navontade de que sejam. Fogo terra e ar, por exemplo, não sei.Detenho-me ainda na primeira, mas não tenho muito tempo - Nãote demores não tenho. Quero apenas, é na gaveta do fundo dasecretária, oculta como o ridículo de mim. E o cansaço. E aestupidez. Está lá escondida mas não sei de quem, de mimdecerto - a fotografia. E no entanto é tão difícil - o quê?Mas se o soubesse não era difícil. Oriana. A sem par. Há umacarga tremenda nos meus nervos memória imaginação. A minhaemoção constrói-se no vazio de si. Vejo a tua imagem no pátioda Universidade, o teu riso claro. E mesmo um pouco maisabaixo, vejo-te. Na curva suave desde o joelho ao pé. É assim.

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Uma emoção quente de ternura. E tudo no vazio de umaabstracção. E então eu penso - tornar-te real. Atravessartodas as camadas interpostas do tempo morte degradação.Suprimir quanto a vida acumulou por cima. Oriana. Todo o errochatices e o horror e o desespero. - Não me diga que também gosta do nome. E a fadiga. E o medo. E ir dar à aparição de ti. Entãodevagar. Tenho o envelope na mão, devagar tiro lento devagar,a fotografia vem aparecendo à luz: Esplendorosa ovante, aauréola do riso para fora do riso, está lá. Olho-teintensamente. Olho-te para o lado de lá do que está, porquenão está lá o que procuro - que é que procuro? É estranho, queé que? porque não é isso. Como um muro a imagem, embato contraela e o que estremece em mim hesita desorientado como umanimal encurralado. Há o riso vejo-o muito bem. Devia estarvento, o teu cabelo desfraldado. Vê-se-te uma orelha, e a

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maciez da tua pele, tocar-te. Mas estás fora de lá estar. Háassim uma luta entre a agitação de imaginar-te e a travagem deestar ali no teu limite. Mas a imaginação é mais forte,transborda para além de ti. Depois volto a ver-te para tudoser real. Mas não é possível haver esse real no que está emmim, sofro. Como num mistério, não sei, no sagrado. Em toda abeleza. Não se pode ter, a verdade dela está muito mais longedo que ela, quando se chega já não está lá, é assim. Mas nãodesisto, olho atrás e devagar, retiro-a devagar da sua bolsa

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a tua fotografia. Estou brutalmente cheio da tuatransfiguração. Oriana. Minha agonia. Estou desorientado naprocura do eterno da tua imagem. Meu transtorno mental. Eentão eu digo - procurar-te em Coimbra. Está lá a minha vida

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toda, vem direita a mim sem os desvios que foram. Tudo é erroe confusão fora da estrada real, está lá. Não há que errar,vou lá dar em linha recta, afastando para os lados os enganos,as pulhices, o cacarejo político, o cacarejo do saber, osprojectos que enchem o peito e metem o cotovelo para avançar,os triunfos de crista alta antes de a amocharem, as dorescavas, a angústia retorcida - a morte. Está lá a verdade e osigno, meto a direito, vou lá ter. Meu amor doente, minhabeleza no meu instante imortal. Estou na Rua dos Estudos, dosMilitares, na Rua do Loureiro - onde é que estou? Estou nocastelo, moro por cima da farmácia, à entrada da Rua Larga. Omeu quarto fica ao nível do trólei dos eléctricos, ouço-osguincharem nas calhas com um estrondear de ferragens. É a horade vires do hospital, há uma balada no ar meu amor vem sobreas ondas, ah, como te espero. Tanto. Estou aflito de tantopeso em cima, da vida que acumulei e é

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insuportável, tu é quenão fazes ideia. Estás alta, no esplendor, eu cá abaixo, bemenrascado, não fazes. Saio do quarto, ó cidade calma de umaprovíncia antiquíssima. Ruas da Alta, envelhecidas da legendana correnteza das fachadas, casas tolhidas de decrepitude, sãobrancas de luar, saio do meu quarto no Largo do Castelo. Háuma rampa para o Largo da Feira, Oriana vai romper, estoupreparado? "Meu amor vem sobre as ondas, meu amor vem sobre omar" - estou? Porque não há grandeza se alguém a não reconhecee foi por isso que Deus teve de criar a humanidade - estarei?Passeio ao comprido do largo, há um fontanário num recanto, aminha boca está seca de ardor. Passeio ao longo do largo, olhoa fachada da Sé, marcada dos séculos, a fachada plácida calmade todos os edifícios em redor. Transfigurado, moro no eterno, não passa ninguém no largo.Transcendido incorruptível. E de súbito, no extremo do largo,na esquina da ruazinha que vai dar ao

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hospital. Estou calmo.Deixei atrás todos os erros e pavores, estou limpo, feito daessência durável e pura de mim. Devia correr para ti, no alvoroço de há tanto estar à tuaespera. Fiquei cansado de tanto esperar para nascer, nuncamais me recompus. Fiquei cansado de tudo quanto até hojepassou. Mas estou calmo. Vou ao teu encontro no largo deserto,vejo-te plácida harmoniosa no balancear do teu corpo terno.Vou para ela, ela vê-me. Estamos sós no mundo deserto, mas anossa presença enche-o a transbordar. - Que vieste aqui fazer? Porque saíste donde estavas? Vim ver-te. Visitar a alegria. Foi só. - Vim ver-te - disse. Ela sorri. Ou não bem. Há uma irritação censura altivez. Mashá em torno disso e ao alto e a todo o espaço o sinal do que atrouxe e marcou o seu lugar na vida. O sorriso - mas não é bem. A afirmação devagar mas semréplica possível de que a alegria existe. Está lá no alto, noazul. Está nas casas à volta, na fachada

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da Sé, no sagrado láde dentro. Meu amor claro. No largo deserto, no sol que oinunda, na tua face. Meu secreto prazer, minha doença. Naminha agonia a olhos densos, no teu corpo. Há a revelação de não sei o quê. E está em ti. Há quedecifrar o futuro. Como vou poder decifrar o futuro? E há que estabelecer com cálculo todos os projectos.

132 133A casa. E os filhos para ela. E o mundo subtil da tuaramificação invisível para todos os modos de sermos. E o signosolar da tua presença. E o mundo positivo da tuatransfiguração do real e ele ser real de outra maneira. E oteu modo claro de não haver escuridão. - Ouve. Combinei ir almoçar com uma amiga. Lembrei-me agora,tenho de ir - disse-me. E acumular reservas para quando - Vai-te. Combinei com umaamiga, compreende.

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Mas eu não compreendo, não quero. Estou cheio de urgência,aflito de pressa em todos os lados da minha esperança. Sou umhomem prudente, quero ter em mãos todo o futuro para desarmaro destino. Oriana traz um vestido claro sem mangas, deveportanto ser Verão. Mas ela tem o Verão consigo, mesmo noInverno. Iluminada radiante. Deve ter um espaço físico maisaberto do que um mortal. Oriana, Oriana. Deve ter aimortalidade na sua essência corpórea. Intangível à corrupção.Deve. - Vai-te. Não voltes mais. Descemos agora a rampa do Castelo. Passamos aos Arcos doJardim, viramos à esquerda, junto à penitenciária, pelo túneldo Jardim de Santa Cruz. Mas estranhamente, é curioso. Deviahaver rapazes estendidos na relva a estudar, ou dependuradosdas árvores a estudar. Mas o jardim está deserto, nós sós. Mashá uma frescura de grandes árvores, deve ser no Verão. E umintrínseco prazer repousa na sombra,

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deve ser. Caminhamosdevagar, a areia range sob os pés, caminhamos para o infinito.É longe, na distância de nós. E para lá. - Cláudio. - Sim. - Tu julgas que a alegria não sei quê e o amor essas coisas,

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que tudo isso existe. Tudo isso só existe numa falha da alma. Meu amor claro. Trazer à posse o futuro da tua iluminação.Mas a certa altura. Num pequeno desvio havia uma fonte, Orianadisse - Um momento. Caminhava rapidissimamente. Deslizava rápida e em silêncio.Esperei longo tempo, esperei. - Oriana! Esperei, chamei-a a altos brados. Repercutia-se o clamorpelo espaço do arvoredo. - Vai-te! Não voltes mais! Estabelecer com cálculo todos os projectos. Sou um homem

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prudente. Umas luzinhas estremecem na lonjura. Talvez oMagoito, penso. Talvez mesmo a Ericeira mais ao longe, nofundo da manhã.

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XVIII

Cláudio. Você há-de pensar que me esqueci de lhe escrever. OCarlos já me tem dito - Miguel. - Diz. - Quem é o Carlos? - Tens cada pergunta já me tem dito. Mas tive primeiro deme habituar ao ambiente. A gente traz a ideia de que a Gréciaé uma terra de panascas. A propósito, já vi o Alcibíades.Parece-se com o Kadhafi daqui a uns anos. Mas não é tal. AGrécia é um país maravilhoso com virilidade que baste e cheiade legenda. Há legenda em todos os sítios, o que é leva tempoa encontrar. O Carlos é da mesma opinião. Você, por exemplo,

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olha o mar e pode pensar talvez que está na Costa da Caparica.Que horror. Mas você depois pensa em Homero, que ainda não vi,e nos errores do Ulisses, nas sereias, na Calipso e o azul élogo outro. Tenho feito os percursos turísticos já maisestereotipados. Mas quero ir a Ítaca e sobretudo a Lesbos parater uma conversa com a minha amiga Safo. Ó Cláudio, vocêdepois pode utilizar o nosso encontro para uma entrevista nojornal. O Sócrates encontro-o na casa do meu amigo Agatão.

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Ó Cláudio, que bêbado. Mas já lhe conto. Primeiro querodizer-lhe que fui ao Epidauro. No teatro o cicerone fez umademonstração incrível. Nós estávamos sentados no anfiteatro eele no palco rasgou uma folha de papel e nós ouvíamos! Vocêdirá que era porque havia silêncio. Que engano. Você aí em

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Lisboa - Que horas são? - Está calado. Deixa-me ler a carta de tua mãe. - Não digas minha mãe! aí em Lisboa não consegue estesilêncio nem no Cemitério dos Prazeres. O silêncio aqui éintrínseco ao lugar, um silêncio original. É um silênciogrego, Cláudio. Nós criámos a ideia de que o grego é umpalrador, num falatório pegado pelas ruas ou na Ágora. Não é,Cláudio. Só quando está com os copos ele fala mais. Masrepare, Cláudio, que então por baixo do palavreado há sempreum grande silêncio. Foi o caso de Sócrates que bebe que nemuma dorna. Nós tivemos uma conversa precisamente sobre apaidocracia, lembra-se? Lembra-se da entrevista que lhe dei? OSócrates é um tipo de maus costumes, como sabe, e depoisdaquela jigajoga das perguntas para me entalar, desatou afazer um elogio descarado dos adolescentes. De vez em quandodeitava muitos olhos sobre o Carlos, o Carlos não gostou. Mas

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você há-de querer saber de mim. Olhe, cá estou. Mas não julgueque estou arrependida. Com certeza gostava que estivesse. Nãoestou. Mas houve primeiro que acomodar-me. A gente traz umadata de coisas consigo e é necessário primeiro acasalá-las comas que estão. Saber é reconhecer-se. E eu não me reconhecilogo, nem mesmo agora. Depois há que deitar fora o que nãocabe no jogo. Depois há que impor um pouco o que não cabe e éde caber. Das que não cabiam houve logo a princípio asvigarices dos gregos. São uns vigaristas, Cláudio. Logo quecheguei, um motorista num percurso pequeno para o hotelempalmou-me uma data de dracmas porque me ia levando quase adar a volta ao Peloponeso. Depois houve que afirmar comenergia a existência do nosso país e desensarilhá-lo daEspanha, Cláudio. Eu dizia donde era e os gregos diziam-me jásei, é de Espanha. E eu tive de lhes contar tudo desde D.Afonso Henriques e a padeira e Vasco da

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Gama e todas asdinastias. E eles no fim diziam-me já sei, é de Espanha.Estava cá outro leitor de Português que vai agora para Roma,mas era do Brasil. E agora com os alunos que vêm de trás eutenho estado a traduzir para português o trem o terno e ocamondongo. Mas os brasileiros estão já em quase todos osleitorados porque têm muito café e nós temos só algumacortiça, vinho do Porto e água de Fátima, dá pouco nocomércio, Cláudio. Mas o que mais me importava não é isso etenho andado a ver se cá está. Os turcos e Bizâncio afundaramisto durante séculos e não sei se está. As pessoas riem-se doSócrates e os garotos correm-no à pedrada. Daqui a um mês vãorepresentar a Antígona no teatro ao pé da Acrópole e oSófocles deve assistir. Quem eu queria ver era o Homero masestá muito cego e já não sai de casa. Vieram cá já váriosespecialistas e todos dizem que a coisa não tem cura. Não sei

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se vocês aí souberam que quem esteve aqui com ele foi o JorgeLuis Borges. Os jornais disseram muito. Falaram com umintérprete porque o Homero não sabe espanhol e o Borges nãosabe o grego jónico. O Borges falou-lhe dos caminhos que sebifurcam e do labirinto e da biblioteca. E o Homerointeressou-se muito por essa história da biblioteca que nuncaexistiu porque sempre foi analfabeto - Cláudio.

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- Espera um pouco que está quase a acabar analfabeto. Masagora perguntará você, Cláudio, o que é que de essencial euvim procurar aqui. Ah, se eu soubesse. Porque se eu soubesse,não vinha. A gente só procura o que sabe mas não sabe quesabe, porque todo o saber é mortal. O saber é um vício quequanto mais, tanto mais. A gente quando muito sabe só para que

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lados fica o saber, Cláudio. E a gente vai para lá como osreis magos. Um dia hei-de explicar-lhe o que é um corpo. Ou não explico que tenho mais que ser. Há dias fiz apergunta ao Fídias e ele ficou entalado. Também anda muitoocupado com os projectos do Péricles que toda a gente aquiacha um megalómano, mas eu não. Mas se eu lhe explicasse o queé um corpo, explicava tudo. Você um dia disse-me que eu tinhauma anca volúvel e eu não desgostei. Anca é uma palavra pesadae volúvel é uma palavra aérea. E você definiu um corpo sem osaber. Uma coisa que tende para a terra e se apoia aí paralevantar voo. Não é bem isso mas enfim. Puseram-nos tantacoisa em cima que a gente ganhou bossas e pernas tortas e umespírito cheio de hérnias discais, Cláudio. Isso mesmo i eu odizia ao Eurípides, que já tem, aliás, as suas rodilhascerebrais. Mas não lhe aprovei as Bacantes, Cláudio, que elefoi escrever à Macedónia, que é uma

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terra de bárbaros. Nóstemos o corpo muito sujo e devemos vir lavá-lo aqui. Muitagente tem vindo e o mar Egeu começa a estar poluído. Porque éaqui que se tem de fazer uma barrela, Cláudio, e eu já vimesmo tipos que vieram do Oriente para o efeito. Quem devetambém vir aí no seu Bucéfalo a atravessar Atenas é oAlexandre, muito porco da Índia. Estou já a ouvir oAristóteles todo fulo a jogar-lhe piadas. Nós temos de voltarao princípio, Cláudio, nós temos de voltar a nascer. E aGrécia é o lugar próprio para isso. Não a Grécia doscartazes, não a Grécia da Sofia e de certos poetas turísticos.A Grécia já toda a gente a sabe de cor. Eu mesmo, Cláudio, queé que sei da Grécia? Mas o importante é saber-se sem se saber,como se é português, sem se perceber que se não goste do fado.O que é importante é ter-se por exemplo a evidência de que amitologia não é mitológica. Nós devíamos aprender a ser gregos

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como Montaigne aprendeu o latim, julgando que era a línguamaterna. Mas infelizmente, Cláudio, não há escolas para isso emesmo já estamos duros para aprender. A Grécia que temos empoetas e pensadores e pintores e turismo é o folclore do nossoMinho com minhotas de cordões de oiro e saias folhadas, quenão existem, Cláudio. Eu tinha um problema a resolver comigo emesmo com a minha civilização e com o reitor do liceu e comvocê e com o Miguel - Fala aqui de ti. - E que é que diz? e com o Miguel. Mas tinha-o sobretudocomigo. Às vezes olho o mar muito azul, mas não mais que o daPraia da Rocha, Cláudio, e mesmo certos álbuns de fotografiascom o mar outra vez azul e as casas das ilhas caiadas de leitee o templo da ilha Egina e as cigarras que se ouvem mesmo nasfotografias. E então digo - cá está. - Que é que diz? - Mudou. Está a falar agora das cigarras. Já fez a experiência? Um espírito leve diáfano, uma

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luminosidade quieta, um modo de tudo estar iluminado a brancoe a uma distância curta, um modo de tudo ser doméstico e muitoclaro, uma ideia de a gente se estender ao sol e não fazernada, uma ideia de a gente se despir, de tudo ser evidente e àmão, de tudo ser em ponto pequeno e com muita luz que nos fazsemicerrar os olhos, um modo de nos sentirmos limitados,

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e contentes connosco sem querermos saber o que está para lá,um modo de a gente sorrir para dentro, um modo de não haverdeuses para fora do nosso alcance. Mas depois a gente pensaque tudo isso já é uma maneira de o ver de fora, Cláudio.Depois a gente pensa que tudo isso se aprendeu como quemaprende o dever. A gente só sabe o que é ser criança depois dese não ser infantil. Gostava era de começar outra vez, mesmo

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que fosse em Esparta onde se come o caldo negro mas se anda nupara aprender o corpo sem o conhecer. De qualquer modo, não mevenha com Elêusis e não sei quê, porque a Deméter e aPerséfona ainda as não encontrei e já vi Zeus a comer figos ea Afrodite a bater-se indecentemente com o Carlos, mas oCarlos não ligou. Quanto ao Miguel - É agora - disse eu. - E o que é que ela diz? quanto ao Miguel, pensei nelequando fui a Esparta e vi os jovens sem pais, logo adultos eindependentes, embora não gostasse daquele regime de casernaporque você, Cláudio, sabe bem que eu detesto militares. Detodo o modo acho que as criancinhas e o seu despotismo e ochoco em que a gente as cria e as fraldas que se lhes mudamaté irem para a tropa, que horror! - o nosso mau hábito devivermos em promiscuidade de sentimentos e não aproveitarmos avida para começarmos a viver mais cedo e o mau hábito deenchermos as crianças de beijos e de

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cuspo, tudo isso e o maisque não digo porque são horas do correio, tudo isso é umatraso do homem que os outros animais já perfeitamenteultrapassaram. O cão, o gato e assim, começam logo a ser gatoe cão a tempo inteiro. Uma cadela pode talvez sofrer se lhematam um filhote. Mas se morrer adulto, está-se perfeitamentenas tintas.

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Mas a mulher chora o filho, mesmo que a certa altura seja maisvelho do que ela. Você se calhar, Cláudio, não sabe que osgregos nunca representaram uma «maternidade». A maternidade écoisa de animais, Cláudio, e o grego é filho do espírito. E pronto, fico-me por aqui. Está-se a pôr mau tempo, commuitas nuvens, e a Grécia está a desaparecer. Mas também meinteressa conhecê-la do avesso e a gente nunca pensa nisso.

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Você, Cláudio, nunca pensou num Sócrates encharcado ou numPlatão no jardim de Academos e vir uma carga de água eacabar-lhe com a conversa. Nós pensamos na Grécia com bomtempo e eu nunca vi um álbum que não fosse de Verão. Mas agoratenho mesmo de acabar porque está ali o Argos, o cão doUlisses, a ganir-me à porta para lhe arranjar um osso. Estámuito velho, tem quase vinte anos e um corpo cheio de ralas nopêlo. Anda à espera de que o dono venha para morrer eentretanto chateia-me todos os dias porque a Penélope tem nojodele e mandou-mo enquanto o Ulisses não volta para ele morrerde vez. Mas ela devia saber bem que eu não gosto de cães,Cláudio. Quanto a você, Cláudio, eu queria dizer-lheclaramente que.

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XIX

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Tina. Oh, Tina. Que bom tu teres vindo. Estou bematrapalhado com a vida, tu nem fazes ideia. Estou só, Tina. Ehá o Miguel. Vejo-te ao fundo da Estação de Santa Apolónia,atropelada de malas e cabazes. Vejo-te - espera. Mas nunca tevi assim. Saia e casaco, a saia comprida e sapatos rasos.Espera, e chapéu. Mas tu nunca puseste chapéu, Tina. Um chapéude abas rígidas, muito direito no alto da cabeça, onde é queeu já vi a tua imagem? No cinema talvez, num desses filmesamericanos em que há uma velha criada, dama de companhia, umamulher aia de crianças, não sei. Fui para ela cheio deternura, uma ternura muito antiga, mais antiga do que eu. -Tina. Que linda vens, Tina. - Ora, menino, deixe-se de brincadeiras. - Mas espera. Chama-se um carregador. - Não preciso cá nada de um carregador. Posso ainda bem comas malas todas.

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Tirei-lhe à força alguma bagagem. Mas não me cansava de aolhar. E chapéu, onde é que arranjaste um chapéu? Ora! Foi asua mãe, menino. Um dia estava a limpar uma mala velha eencontrei o chapéu. Está aqui este chapéu, disse eu. Olha,fica tu com ele, disse-me ela. Podes querer ir a uma festa,

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a um casamento ou assim. Ri-me muito e olhe, fiquei com ele. Eentão agora que vinha para Lisboa. Não podia vir vestida àmoda da aldeia. Mas também não tinhas esse vestido, Tina.Mandei-o fazer de propósito, não podia vir de xaile ou assim.Fez-mo a Celeste Munda, a coxa. E agora ali ia muito composta, com as malas, um vestido desaia e casaco, o chapéu escuro ao alto da cabeça. Carreguei ocarro e em vez de vir por Sapadores e pela Morais Soares, queé o caminho mais curto, vim pela Baixa e

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Rotunda para ela vermais cidade. Ia muito direita a meu lado e não dizia nada.Tinha decerto o pudor da sua inferioridade, olhava apenas emsilêncio. Tu vais-te habituar depressa, dizia-lhe eu. É umpouco tarde para mudares de hábitos mas vais-te ajeitardepressa. Ela não dizia nada e olhava apenas, às vezes paratrás, a fixar melhor qualquer estranheza, ia arrumando o quevia no seu entendimento novo das coisas. E quando chegámosenfim à Praça de Londres, ela saiu do carro, mas ficou umpouco a olhar em volta, como se a reconhecer o lugar. Ali é aigreja, disse-lhe, e ela fitou-a de modo intenso, a entendê-laali no meio do grande ruído do tráfego. Depois subimos aonosso andar e indiquei-Lhe sumariamente todos os sítios dacasa. Ela estudou-os logo com aplicação, detendo-separticularmente em todos os sítios da cozinha para organizar oseu império. E enquanto ela os estuda, vou eu olhando a

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capela. Não a tinha ainda olhado atentamente, fito-a agora no meioda manhã. Está num pequeno largo deserto, voltada para o mar.Não houve lua em toda a noite e foi pena. Fazia-me bem aosentimento um pouco de melancolia. Não tenho melancolia, eu.Também não tenho nada para em vez dela. Raiva, desespero,qualquer porcaria assim. Qualquer coisa que estivesse acimade mim e me tomasse à sua conta. Estou metido no meu tamanho eassim é mais difícil aguentar, porque tenho de domesticar oque é maior do que eu. De vez em quando naturalmente há apressão. E então há a tentação de me deixar ir. Não vou. Olhoà volta e tudo é grande e cabe lá tudo o que em mim é demais.Não há lua, mas há luar na capela. Estremece no indistinto doamanhecer com a cal dos seus muros. É toda branca mas os seusfrisos e enquadramentos da porta e da janela da sua torresineira são de um azul intenso que se aviva na manhã. Há um

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óculo por cima da porta com uma vidraça e há ao lado um corposaliente, decerto a sacristia. E ao alto, no triângulo dafrontaria, uma cruz. A todo o correr da parede, por cima daporta, há o que me parece uma fiada de camarões que nãoimagino para que sirvam. Talvez para se dependuraremluminárias em dias de festa. Venho à volta olhar a sacristiaque sobressai um pouco do conjunto. Tem ao alto um rebordoazul, duas janelas na parede, a mais baixa com grades. E agoraque a reconstituí toda na minha atenção, a capela começa aexistir inteira no largo deserto. Há um diálogo dela com o mare eu ouço. É uma voz oculta sob o rumor audível, fala do tempoe do incognoscível das coisas. Mas há sobretudo a presençatotal da capela, isolada no largo, frente à vastidão do mar. Éfechada de mistério no seu estar ali. É um mistério como o doolhar de um cego. Ou de uma casa deserta. Tento decifrá-la enão sei, porque todo o seu mistério é

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visível. Tem o oculto deuma divindade que não existe. Traz uma mensagem dos séculosantes de ela existir. Olho-a e conheço o espaço intacto datransfiguração, no branco dos muros lateja uma luminosidadeinterior. Olho-a sempre, penso. Envolve-a um halo trémulo:

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O mar ressoa a todo o espaço e ela ergue-se mais alta assimpor sobre o rumor. Está ali, imóvel. Direita. E é como seconvergindo para ali todas as minhas interrogações, mesmo asque nunca interrogaram, mesmo as mais imprecisas. Mas nãoresponde, está ali, no centro da minha fascinação - que é quequeres dizer? Não diz, está apenas. Brilha tremulamente noindeciso da manhã. De repente, lembro-me - tocar o sino nosilêncio. Mas tudo ficaria logo um monte de pedras. Não é umsinal de nada o seu sinal, é um sinal de

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si. Veio do absurdopara ser o absurdo de estar ali. Interrogo-a na manhã,suspendo-me sobre o ininteligível. Há uma capela frente ao mare há o incompreensível de isso ser. Todos os deuses de todasas religiões estiveram ali e passaram. E ficou deles a suaorigem. A iluminação do seu rasto. O incomodativo da suaestupidez. Sinto-me bem estúpido eu. Sim, sim. Mas qualquercoisa em que não tenho mão como um desastre da fisiologia -porque é que estás aí? que tem a ver contigo o que em mim temque ver? É branca, imóvel, na solidão da manhã. Tem o mistérioà superfície como uma coisa. Tina inesperadamente pareceu-me mais velha. Sem o chapéu eum outro vestuário que a reconduzia à sua verdade natural,imediatamente retornou à imagem que era sua e eu não recordavabem. Os cabelos cinzentos apanhados atrás, o vestido escuro ecomprido de casa compunham-lhe um ar doméstico e antigo em quelogo me senti repousar. Miguel não

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estava quando ela chegou,devia estar no liceu. Quis mandá-lo do Camões para o PadreAntónio Vieira por haver várias razões a dar razão à mudança.Mas ele - Porque é que não quiseste mudar do Camões? - E porque é que havia de querer?

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E o ter de dizer porquê obrigou-me a identificá-las e aassumi-las, queria que ele as entendesse sem eu as dizer eestabelecer visíveis e vulneráveis. E não respondi. Miguel nãoestava quando Tina chegou. E quando estiver há-de dizer apenasolá e irá logo para o quarto. Mas há-de ser amigo dela - Tãosimpática, a Tina e há-de mesmo mostrar-lhe a cidade, e há-deir mesmo com ela ao Cinema Londres ou Roma ou o da GuerraJunqueiro de que me não lembra o nome. E eu hei-de vê-los dajanela os dois a par e o Miguel em gestos a explicar-Lhe a

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vida e a cidade - eu hei-de sentir-me incomodado de ternura. Ehá-de depois implicar com ela e ela calar. E há-de depoisamá-la e ter vergonha disso para ser um homem. E eu hei-desaber e não dizer nada e achar talvez bem. No terceiro esquerdo mora a Dona Mercedes e o cão. É a donado prédio e é viúva. Dona Mercedes conhece a minha vida ecomove-se de vez em quando. Eu concedo-lhe a comoção porcivilidade e ela aproveita para ser amável. De manhã quandovem o leiteiro guarda-me o leite se não estamos em casa.Ferve-mo sempre, se o guardou. Não tem netos e o Miguel àsvezes faz-lhe as vezes de. É nutrida e tem óculos. E o cão. Eupago-lhe os favores com um sorriso difícil e um pouco deconversa à porta. Não estamos em idade de se pagarem de outramaneira. O cão é tão velho como ela - tem dezassete anosdisse-me quando foi da última contagem. Sofre do coração, ocão, já fez um electrocardiograma.

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Quando anda, oscila muito.No Inverno usa um capote, o cão, chama-se Policarpo. Há oelevador mas há os degraus da rua e ele às vezes não pode. Eela pega-lhe ao colo e então não pode ela. Se a encontro,pego-lhe eu.

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Mas às vezes ele diz que não com a fiada dos dentes. Mas éraro porque temos já um pacto de boa vizinhança. Há-de morrerlá mais para diante e Dona Mercedes há-de ficar mais só. Maspor enquanto é vivo até onde pode ser. E ela aproveita para mecontar as suas mazelas. Conta-mas sobre ele e ele em baixo,enfadado, a ouvir. É um cão muito gordo, pesado de invalidez.Tem já no pêlo algumas ralas de decrepitude. Ela põe-lhepomadas e ele cheira mal. Soube da vinda da Tina e eu quisestabelecer-lhes a relação social. Bati-lhe à porta, eu tinha

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noitada no jornal e queria que Tina se sentisse em companhia,Miguel viria mais tarde do liceu. Dona Mercedes veio à porta,esta é a Tina, Tina disse, muito prazer, como está minhasenhora? e Dona Mercedes deu-lhe um beijo. O cão veio também eDona Mercedes disse é o Policarpo. Tina disse tem graça, é onome do homem que leva o correio para Folgosinho e euexpliquei o caso do homem que leva o correio para Folgosinho eDona Mercedes disse que era o nome do cão que lho tinha postoo falecido marido e eu expliquei que o falecido marido de DonaMercedes era coronel e Tina disse os meus sentimentos. É aprimeira vez que vem a Lisboa? Sim, minha senhora. E vai-sedemorar por cá? Agora vai cá ficar sempre, disse eu. Pois tudoo que for preciso, disse Dona Mercedes. E tudo o que tambémprecisar de mim, disse Tina. E o cão disse ão ão. E a senhoradisse cala-te Policarpo, mas não era preciso porque ele com oesforço caiu no chão e ficou deitado a

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ouvir. Depoisdespedimo-nos e reentrámos em casa e Tina mostrou-se muitoescandalizada porque Dona Mercedes lhe tinha dado um beijo.Havia uma ordem estabelecida no eterno e mesmo Deus tinha osseus degraus em Padre Filho e Espírito Santo. Foi para temostrar a sua simpatia, disse eu. Mesmo assim, disse ela, cadaqual no seu lugar como manda a lei de Deus. Então eu chegueià porta da capela e disse para dentro - Miguel. A Tina jáchegou. - Disseste-lhe porque é que a não fui esperar? - Disse-Lhe que estavas no liceu e que vinhas um pouco maistarde. - Tinha aula de moral. Espera. Eu não sei se tinha moral -disse ele. - Já decidiste se vou ter? - Ainda não decidi. Vou saber lá mais para a frente. - Pergunto-me se deveria ter. E não sei. E agora, qualquer coisa se abre no espaço ou dentro de mim.Todo o começo é ingénuo e necessário.

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Toda a esperança estácheia de um deus mortal. Um filho que nasce, uma obra que seinicia. Uma verdade que se ilumina. É a história do homem - eporque o penso agora? Da porta da capela diviso melhor oretábulo da Anunciação. E há o menino guerreiro do ladodireito e o São João do outro lado com o cordeirinho no livro.Deve haver uma razão que passe pelos três, não a sei. E Miguele a sua realidade. Olho-o, dorme. Volto-me para fora equalquer coisa se quer esclarecer. Há o dia, eu sei, mas háoutra coisa no centro dele e que é mais forte como uma fundainspiração. De vez em quando não ouço o mar que estou a ouvir.Depois ouço-o de novo e a grandeza existe. Não bem no espaçoque se vê mas naquilo que o faz ser grande e não se vê. Estouconfundido do que é contradição em mim, impulsos vários que senão coordenam, direcções opostas e que dão volta ao mundotodo. Na estrada fronteira há mais sinais de o dia ir começar.

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Carros, motorizadas. Às vezes gentes a pé, com mais modéstiana locomoção. Mas há em todos uma segurança activa de quemsonha e acredita. Por vezes apetece-me acelerar-lhes omovimento para a ilusão ser mais depressa.

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E então irrompem numa correria, atropelados uns nos outros,como se lhes atirasse à frente um punhado de moedas. Outrasvezes amolento-os ao retardador e eles são vagos de indolênciacomo o cepticismo. Mas abandono-os e eles retomam oincognoscível para os orientar. Ardem-me os olhos da vigíliamas tenho de estar presente a mim para atender o dia que aívem. O ar salgado aviva-me a atenção e eu quero que ela secumpra. E o farol, constantemente. Varre a planura do mar,estampa-se-me súbito o seu estampido. Mas começa a ter o seu

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toque de loucura na claridade que se anuncia. O negrume danoite desce pelas águas e elas começam a vir ao de cima maisvisíveis. E o infinito também, agora mais limitado. Martenebroso, vozes de epopeia. Era um mar nocturno, como oterrível dos deuses, mar religioso. Mais clarificado agora, naabertura do espaço, na visibilidade do arrepio. Marmetafísico. Penso-o em pé, voltado para ele, à porta dacapela. - Miguel! - Diz. Em pé. Voltado para o lado de lá de mim. - Diz. - Não. Não é nada.

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XX

Flora nunca mais escreveu. Escrevi-lhe eu, naturalmente,

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respondi-lhe, que é que lhe disse? Não sei. Havia de permeiomuita coisa e eu tinha de a transpor para não ser muita. Haviasobretudo que a neutralizar para não existir. Porque toda avida foi assim. Flora constantemente punha palavras atitudesno curso quotidiano para eu troar. E eu erguia o pé e nãotropeçava e o quotidiano continuava logo à frente. Nãoescreveu mais, escrevi-lhe eu. Depois pus-me à espera epassaram-se tempos. Depois voltei a escrever não muitas vezes- porquê? Porque é que lhe escrevi? Alguma coisa de mim aprocurava, alguma coisa. Porque uma vida, como é? Umaestrutura de ligações aguenta-nos de pé. Por isso na velhice,uma solidão até ao absurdo de si e depois é só cair. E mesmo oque se é em homem leva tanto tempo a ser. Relações ideiasprojectos. E mais e mais. De vez em quando um buraco notecido e o frio que daí vem. De vez em quando, o que somosnos outros, porque os outros são o que

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construímos neles. Devez em quando a perda da nossa substância. De vez em quandouma subtracção no que somos. Até que fica a ausência de nós,o oco em nós. Até que nós próprios não temos a identidade denós. Na velhice emagrece-se porque no esvaziar da substânciavai tudo.

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Escrevi a Flora várias vezes, depois parei. Estava só aouvir-me a mim e isso só na loucura porque não se ouve. Nãoescrevi mais, mas escrevia o Miguel. Pedia-me papel envelope emetia-se num canto a escrever, escrever. Via-o às vezesenroscado em si a uma mesa. E escrevia escrevia. Dava-lhedinheiro, ia ele próprio aos correios. - Não deixas ler? mas nem respondia. Pedia-me papel, voltavaa escrever. Mas a tua mãe acaba por se maçar, nem te lê. Masele não queria saber, escrevia sempre. E

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nunca soube o quedizia - que é que dizias? - Que dizias? - Não me lembro. Devia dizer-lhe infância, menoridademental. Coisas que só existem para quem não cresceu. Floradevia deitar tudo ao lixo sem ler. Era a sua obrigação. Porquevens agora com isso? Tão tarde. Resolve os teus problemascontigo. Mas tu nunca os resolveste nunca resolvi. Nunca? Eque é que isso quer dizer? Estás tu aí, cumprido até ao fim. Etudo quanto fosse de mim a ti, refluía a mim, que é o seulugar. Entretanto venho ao extremo do largo, enquanto Miguelescreve. Deve escrever infância menoridade. E o excessivo detudo quando a vida começa. E a aflição que não sabe. Dás-meoutra folha de papel? E o entendimento do incompreensível. E amelancolia de se estar só, quando ela ainda não é companhiabastante. E. Mas deixo-o escrever e as suas razões para isso,enquanto olho o mar. Escreve sempre, alucinado, sôfrego.

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Revejo-o na aceleração da memória, folhas e folhas, quantacoisa acumulada e a pressão insuportável para se aliviar. Devejá transpirar do esforço, enrodilhado em si,

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a face quase colada ao papel, folhas enegrecidas umas sobreoutras, escreve velozmente, os olhos injectados do esforço,escreve escreve e enquanto escreve olho o mar. Estou sentadono muro branco, olho as águas em baixo. É simples e profundo.Olhar o mar. Toda a complicação da vida dispersa em só olhar.Que é que quer dizer a complicação complexidade? E as diversasmaneiras de se ser profundo. E a psicologia farófia destino dohomem e não sei quê. Tão cansado, olhar o mar. Ser simples atéà origem ao elementar. Tudo esquece tão cedo e se consome e éinútil no sótão de nós. Há uma leve neblina a toda a

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superfície, a respiração da noite. Mas distinguem-se bem asondas, mesmo longe, no seu balanço. Em escala como numa pauta,a música do seu ressoar. Tomam balanço lá do alto, como linhasde combate ao assalto do fortim das rochas. Então embatemcontra os rochedos, uma explosão de espuma no ar. É umaexplosão estúpida como a de um peru. Depois escorrem, vejo umpenedo a babar-se como criança farta e eu quase sorrio paradentro. E enquanto não volta, um grande espaço cavado, umlargo plaino com uma rede larga de veios de espuma como umapedra mármore. Sinto-me fora de mim, plácido aberto. Depoisrecomeça. Sigo uma onda desde o seu nascimento lá longe, venhocom ela e a certa altura quebra na crista, uma cabeleirabranca e mais junto à praia um rolo branco de leite a todo ocomprido da areia. Convulso, uma cólera absurda, sem razão. Eum aroma acre a salsugem. É nas origens do mundo na terrafinal desabitada. Tomo nas mãos toda a

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história do homem desdeum dia até um dia, atiro-a para o mar, ela dissolve-se naespuma enrodilhada, dispersa-se no seu rumor. Não me venhamcom problemas profundezas e mais e mais, do alto da falésiapara o mar. Tão simples, deixem-me olhar.

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E o dia que vai romper. E o homem natural em mim que se vaicumprir. E a alegria que não se chama alegria porque é umpouco estúpido e folclórico. Estar. Olhar. E entender o sinaldo início. Do que é gratuito. Do que é e não é mais nada.Tenho a minha memória à minha espera, não me apetece ir tercom ela. Tenho a amargura à minha espera e a gravidade e ascoisas sérias em que se é por cima disso. Há um vazio em mim,o espaço em frente em que é vazio. Oco em mim, uma múmia. Vouenchê-la de luz, uma barra de claridade

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na serra. Há umpalácio recortado nela, não quero palácios. Bebê-la fundo como aroma elementar. Iluminar-me por dentro e ela sair de mimcomo auréola, santificar-me. Mais nada, mais nada. Ser emhomem a luz e o mar. Ser a essência, sem ramificaçõesexteriorizadas com que se é gente e circunstância. Ser. - Cláudio! um clamor forte ainda, como tens ainda força?como não estás ainda farto? - Diz! - Que estás para aí a fazer? Venho à porta da capela - Que é que queres? E neste instante, Clara chama-me do alto da janela da nossacasa das Azenhas. Está voltada para o mar, eu estendo-me embaixo na areia, é uma faixa estreita, o mar engole-a noInverno - não. Não é a altura ainda de me chamar. Tenho aindade cumprir muita coisa amarga, tenho ainda de ser homem comoestá estabelecido desde a sua condenação. É talvez antes aaltura de a Flora regressar da claridade

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grega e entrar pelacasa dentro - olá. E de imediatamente começar a desfazer asmalas sem dizer mais nada e tomar um banho e depois de fresca,

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natural, sentar-se num sofá pequeno que está no seuescritório, Miguel está para as aulas, virá mais tarde ecorrerá para ela - Espere um pouco e acender um cigarro na suaboquilha comprida e dizer-me - Cláudio. Ouça. Como decertovocê já imaginou mas não. Não é ainda tempo de ela vir, tenhoainda de engolir um - um quê? Não sei. Não é ainda tempo,talvez daqui a poucos capítulos, mas estou já tão preparado.Ou talvez seja tempo de a Tina me dizer - Menino Cláudio.Tenho as minhas economias e se eu morrer - Tina. Quedisparate. - Já pensei, a gente tem de estar preparada. E então pensei,

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o menino Miguel. Espera ainda um pouco, Tina. A morte, que ideia. Precisomuito de ti, e o Miguel, e há a absoluta necessidade de haverharmonia na vida. E Tina então retira-se-me da memória com oseu saquinho do pecúlio na mão - venho à porta da capela - Queé que queres? A infância, lembro-me às vezes. Lembro-me pouco, é curioso.Possivelmente tem-se a infância do que se é na idade adulta. Enão ao contrário. Mas também não tenho idade adulta. A únicacoisa de que me lembro na idade adulta - será isso ser-se? Aúnica coisa que me coube na idade adulta é aguentar. Aguentaré ser contra o que nos é contra, tudo tem sido tão contra. Masàs vezes, a infância, a adolescência - que é que vem tercomigo desde então? Não sei bem, é preciso fazer um esforço,não sei bem. O jogo da douradinha na alfaiataria do Mimoso,

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as aulas da primária com o meu pai, as horas quentes de Luacheia pelo Verão, quando ela se ergue por detrás da serra comoum anjo, as fugas para a ribeira e os gritos de minha mãequando eu voltava acalorado e vermelho, as horas da igreja queficava em frente da casa, o adro deserto com as suas filas detílias copadas redondas, e as investidas do Inverno, lôbregonocturno, com ventos siderais e chuvadas bruscas de salteador,e a magia da neve poisando leve nas coisas como legenda, e ofrio viperino insinuado a tudo como uma traição, e asbraseiras enormes coaguladas de um montão de vides ardentes -venho à porta da capela - Que é que queres?

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XXI

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Flora estaria já para a Grécia? ou ter-se-ia desinteressadodo caso e eu que aguente. Ou estaria de acordo comigo pordetestar a prepotência juvenil, a paidocracia. Ou já teriaseguido o seu destino e o problema era meu. De todo o modo, euera o encarregado de educação do Miguel e era a mim quecompetia decidir, quero dizer actuar. Dou volta à memória,percorro todos os seus recantos e Flora não está lá. E como éque eu havia de resolver? um capricho do Miguel, a educação, ainstauração dos princípios que haviam de orientá-lo e quehaviam de ser os meus porque não podia inventar outros. Equanto tempo para sedimentarem em princípios, coalharemendurecerem pelo método da solidez racional - não digo bem.Pelo método do crescimento equilíbrio. Pelo método da ascensãosobre a imaginação infantil. Minha mãe dera uma ajuda nãotanto pelo que dizia e que não era pouco. Pelo exemplo. Pelo

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modo oblíquo de dizer que meu pai não tinha razão. Meu pai iaà igreja, ela ficava em casa, virada para a parede. Nuncaexplicou porquê - e se explicasse? uma explicação nuncaexplica nada do que há para explicar. Mas isso foi mais tarde,

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- mais tarde? Tenho na memória elementos dispersoscontraditórios, teria de os alinhar, mas aí é que estão. Nãosei o antes e depois porque na memória tudo é ao mesmo tempo.Mas eu quero é falar lembrar o caso do Lulu e do Miguel etenho de aproveitar este capítulo. Era o padre Lúcio, o Lulu,professor de Religião & Moral, os rapazes chamavam-lhe assim.Ressoa o mar a todo o espaço, relembrar, que é que me lembrada infância adolescência? porque é como se as não tivessetido. Mas há um pequeno pormenor, não sei a que propósito -

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Mãe. Compre-me uma espingarda não sei. Viveu-se sempre emmatriarcado - mãe. Meu pai era um elemento secundáriosuplementar como em todo o lar bem constituído. Ela fuzilou-mecom a espingarda que eu ainda não tinha - Não. E eu recuei. Depois voltei ao assalto porque só depois demuito massacre é que se vê a firmeza de uma opinião. E comefeito. Porque a certa altura, ela não disse nada. Pelas madrugadas altas de Inverno. Era distintocaçar. Ternas mãos um simulacro de poder. Matar. Ter em nós a imagemtemerosa do guerreiro. Porque tudo se pode infligir a umadversário, mas a morte é que é. A imagem mais alta do poderdivino. Que estupidez as religiões da fraternidade. Opaganismo o cristianismo. Foi o começo da irreligiosidade, ocristianismo. Herdeiro da convivência corriqueira democráticado paganismo. Está bem que o homem. Mas então há que separar,homem para um lado, religião para o

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outro. Mas tenho deapressar-me, o capítulo já quase em meio. De modo que pelasmanhãs altas de Inverno. Havia em Nabainhos, que era uma anexada minha aldeia, um caçador profissional. Ou seja, queprocurava furiosamente ganhar com a caça o que gastava com acaça, esse requinte de ricos. Era muito grande. Caçava com umaespingarda velha de carregar pela boca. Chamavam-lhe o PadreCaporra e nunca soube porquê. Na aldeia a lei estende sobretoda a gente uma camada de nomes legais. Mas o povo põe-lheoutra camada de alcunhas e essa é que é. Porque a lei ficamuito alto para quem é desgraçado. Veste-se o nome paracerimónias como o fato novo para ir à missa. Era o Caporra. Ouo Padre, para mais depressa e menos rr no caminho. Eimediatamente me adoptou. Íamos de noite para a serra, o diaacontecia-nos lá no alto. Caporra tinha a perna alta e dura,gostava era de perdizes que metiam muita musculatura. E

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menosprezava essa coisa ridícula da caça coelheira pelashortas do povoado. Mas tinha um processo excessivo para caçar.Levantava uma perdiz, ela abalava para um monte fronteiro.Caporra então descia e ia levantá-la do outro lado. A perdizentão regressava ao primeiro poiso e Caporra voltava a descerpara a levantar do lado de cá. E a perdiz levantava-serealmente e ia poisar do lado de lá, às vezes mais longe. Edizia-lhe não querias mais nada, enquanto voava para o outrolado. Eu a ver. Às vezes eu atirava também para fazer decaçador, a perdiz nem me ligava. Então estabelecia-se umacontenda entre o Caporra que queria estafar a perdiz e aperdiz que a ele. E ao mudar de poiso a perdiz dizia-lhe ófilho cresce e aparece. Caporra dava urros - ai a grande filhada puta. Mas não atirava à toa porque a espingarda levavatempo a carregar. Às vezes eu dizia-lhe: - Padre! Está a tiro. Ele ia carregando a espingarda com

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vagar, dizia-me - ela queespere. E então calmamente pum. Mas a subir e descer o monteatrás da perdiz acabava por estafá-la.

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E ela dizia por fim Caporra de merda. E então desistia. - Se eu tivesse uma espingarda a sério, Claudinho. - Joga na lotaria. - Não brinque, menino - dizia o Padre. E por fim desistia. A perdiz. Caporra quase podia apanhá-laà mão. Mas erguia-a e só então atirava. Um tiro para arespeitar. Mas eu nada. Caporra, ao regressarmos, dava-me umapeça para me engrandecer. E um dia eu disse nunca mais. Fizentão uma caçada coelheira a solo. E outra. E outra. E outra.Andava pelos quintais das redondezas. Mas nada. Até que umdia. Já pela tarde, massacrado de saltar barrancos, havia umtúnel de folhagem e subitamente. Um coelho saltou-me uns

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metros à frente e meteu pelo túnel. De canos apontadossigo-lhe o movimento, calculo-lhe o andamento dentro do túnele disparo às cegas. Com o balanço que levava, o coelho rompeudo túnel de patas enrodilhadas e imobilizou-se logo adiante.Apanhei-o sustentei-o pelas patas, tinha a cabeça cheia desangue. Dependurei-o ao cinto, regressei. O sangue tingia-meas calças de cotim. E então uma confusão de sentimentos meenrodilhava como às patas do coelho. Era a glória do triunfo,e uma vontade em riso de ir mostrar ao Caporra o meu troféu.Mas tudo isso tinha sangue e eu não sabia como era a cor daglória. Tina iria cozinhar o coelho que eu matara. Está bemque se fosse ela. Para isso é que existem os magarefes semlhes passarmos procuração. Está bem que se fosse ela a dar-lheum golpe atrás das orelhas com a mão em cutelo. Seria ela aassassina incruenta. E eu comeria o coelho em tranquilidademoral, solidificada no refogado. Mas

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fora eu e houvera sangue.Tingiu-me o cotim e a alma, tinha as mãos tintas de sangue.Tinha-o nos olhos escorria-me da testa para a boca, tinha-ona vida toda como um signo penitenciário. E então disse nãovolto a caçar, mas não sei a que propósito me lembra isto. Nãovolto a caçar e agora mesmo não sei se hei-de voltar ou não. Mas subitamente lembro-me de Oriana, tenho de lembrar-me dopadre Lúcio vai depois. Eu subia ao meu terceiro andar daPraça de Londres e quando ia a abrir a porta como um estampido- Oriana! Dei um berro de louco: - Oriana! Como é que estás aqui? Ela olhou-me incerta na minha surpresa loucura - Ondequerias que estivesse, querido? Acabei as consultas, vim paracasa. É o normal. Mas os filhos ainda não vieram. - Os filhos? - disse eu esparvoado. - Cláudio. Mas tu não te sentes bem, querido. - Como os filhos? - Ó querido, então? Mas a Maria o João

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e o José. A Maria disse que ia estudar com uma colega. Óh, uma colega.Mas está na idade disso, fiz que acreditei. O João foi aocinema e o Zé à explicação. Olho Oriana, o meu lar. O nosso quarto é ao fundo docorredor em frente da cozinha. Depois, para cá, o quarto dosrapazes, Maria tem o quarto do outro lado. Damos a volta à casa toda, Oriana fala-me indecisa entre arealidade insofismável e o insofismável de mim. Mas eu nãodigo nada, olho ouço. - Querido, vem descansar. Impele-me suave, a mão na minha cintura. Deita-me sobre acama, descalça-me os sapatos. Depois escreve um papel, gritapara a cozinha - Joana! Vá à farmácia buscar isto! Senta-se-meaos pés - sentes-te melhor?

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E imediatamente começa a falar do nosso

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passado longínquo,veio vindo desde aí, devia ser uma técnica médica. E entãoestivemos em Coimbra - ela concluiu o curso e eu o meu ecasámos no último ano já ela estava grávida da Maria e eu abrio meu cartório na Rua do Crucifixo e ela tinha o consultóriode ginecologia na Cinco de Outubro e houve os outros doisfilhos e toda a vida foi toda como uma conjunção de astros. Edepois debruçou-se sobre mim e beijou-me devagar. E eupercorri-lhe o corpo inteiro no curveado da perfeição. Epassei-lhe a mão nos cabelos e um anjo espreitou à porta. Ehouve o paraíso no quarto com todo o possível real. E umacomoção muito subtil, era mais forte do que eu na suasubtileza, tentei à bruta segurá-la antes de chegar toda aomeu olhar. E Oriana disse-me - querido. - Vou já marcar-te consulta. Talvez o Barahona Fernandes.Vou já telefonar-lhe a ver se te recebe ainda hoje. E a comoção cresceu súbita e eu fui

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humilhação e prazer eloucura até às fezes e ao prodígio. Então bruscamente tomeiOriana nos braços, tentei deitá-la ao meu lado. Mas Orianasoltou-se com uma energia incrível, pôs-se em pé ao fundo dacama. E logo começou a rir. Primeiro baixinho como sebrincássemos ao amor. Mas o riso cresceu. Era agora umagargalhada infernal atroava toda a casa. Ria e a sua máscarade horror. Era um riso grande, a boca enorme. O rosto disformeos olhos dilatados. Depois voltou-se saiu do quarto. Mas oscabelos longos, ela saíra e os cabelos ainda se arrastavampelo chão e um brilho neles de incêndio. Mas pelo corredor euouvia-lhe ainda as gargalhadas. Embatiam nas paredesmultiplicadas ensurdeciam-me. Até que pouco a pouco,gargalhadas já longínquas e por fim o silêncio. Venho à porta da capela - Que é que queres?

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- É curioso. Tenho a minha vida cumprida e não sei o que éque quer dizer. Está tudo certo e não sei. Estava a pensar. - Dorme. - Estava a pensar. E tu sabes da tua? Olho a capela no indeciso do alvorecer. Olho o mar. Vejo-oaté ao indeciso do seu limite, fechado concêntrico ao eu estaraqui. Há mais mar para lá, mas olhar para lá é estar fora demim. Não estou. Agora não.

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XXII

Ó padre Lúcio - chamavam-lhe Lulu os rapazes. O padre Lúcioconvocou-me ao liceu. Era professor de Religião & Moral,convocou-me. Foi por causa do Miguel e eu tive um problema deconsciência - que é um problema de

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consciência? É uma daquelassituações em que nos sentimos entalados entre o ser e o dever.Ou não bem isso talvez - entre o dever e o dever. Também lhechamavam o Girafa porque tinha o pescoço fora da medidahumana. Sabiam já desde Adão, os rapazes, que dar um nome éter na mão aquilo a que se dê. Mas davam-lhe uma alcunha, queé um nome sobre outro nome. E esse é que é. Porque o outro eradele ou quando muito dos pais. Garantiam assim uma propriedadeprivada, era o Lulu ou o Girafa. Tinha realmente um pescoçoalto. Saía-lhe da volta de padre, do cabeção, subia por aliacima e só parava muito tempo depois na cabeça. Era uma cabeçapequena rapada. E tinha coroa. E chamavam-lhe Lulu para odominarem também em feitio de cão de luxo. Precisavaabsolutamente de que Flora. Precisava agora de que ela tambémestivesse presente. E não a encontro. Dou voltas à memória para a encontrar e não a vejo em partealguma. Sem dúvida eu era o encarregado

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de educação.

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Mas ela estava no liceu, devia estar presente. Não a encontro,não está. Na Grécia ainda? ou já de volta mas nada delaexistiu para participar. - Flora! Flora! Onde estás? Porque não vens à minha memória? - Não me trate por tu! - Flora. Precisava de que estivesses presente. - Não me trate por tu! Que horror! - Precisava de que você assistisse à minha conversa com opadre. - Não tenho nada aí que fazer. O problema é seu. O problemaé de si consigo. Ou de si com o Miguel. - Miguel - digo suave da porta da capela. - Flora não querassistir à minha conversa com o Lulu. - Como te custa investir a tua pessoa em qualquer coisa quefaças como me custa. Mas vou ser forte como nem tu imaginas. Ecom efeito. O empregado disse-me que o

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senhor padre Lúcioespera-o. Veio comigo a um corredor secreto, disse-me é asegunda porta à direita. Bati e de lá de dentro - Um momento opadre disse-me numa voz canora e categórica. E eu fiquei ali àespera. Do lado oposto havia uma janela larga que dava para opátio de recreio. Lembro-o deserto, devia ser tempo de aulas.Pátio de cimento com árvores a toda a roda, já aesfolharem-se. de Outono. A um lado, bancos baixosarredondados de assento com rapazes estendidos em ócio aí,faltosos ou em furo de horário. Há um sol pálido de invalidez.E um ar suspenso de uma certa coisa a acontecer. Da porta aofundo, de vez em quando, tipos inesperados, descoordenados como resto, um deles uma vez a abotoar a braguilha. Até quebrusca, a porta aberta e o padre - Faça favor de entrar. Entrei já diminuído na minha estatura por aquele aparatoformalidade. É o que deve ser difícil por exemplo numa

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condenação à morte. O aparato. O formalismo. O modo ritual deacrescentar o medo. O modo de distanciar e encher a distânciade respeito. A maneira de tornar maior, mesmo o que já forgrande por si - entrei. O padre sentou-se atrás da sua bancade juiz. Entrelaçou os dedos grandes de vampiro, vagarosostúrbidos como a ameaça. E súbito disparou na linha recta quenos unia o olhar: - O senhor requereu que o seu filho não tivesse aulas deReligião e Moral. E depois calou-se para dar tempo a que a bala entrassefundo. Mas eu ripostei logo - há alguma ilegalidade nisso? Oh,claro que não havia. Claro que não havia. Mas eis que subitamente. Tenho de me interromper, o padreLúcio que espere, já conto, já conto, Tina rompe pela escadaacima, bate-me à porta do quarto na aldeia: - O Padre morreu! - Que padre? Tina, tu estás louca. Estou agora a falar com

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ele. - Morreu o Padre Capoula! e a minha mãe ouvia-lhe o destempero, que estás para aí adizer? Morreu, sim, minha senhora, mataram-no. - De que estás tu para aí a falar? - Do Padre de Nabainhos. O Padre Capoula! Então meti os rr no nome como era do seu plebeísmo, minhamãe disse credo! e eu saí imediatamente para me formar. Tomo abicicleta e desando rua fora. Desço pela da Misericórdia, viropara a Quina, passo a ponte e pedalo agora pela estrada plana

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a caminho do cemitério, logo no começo da aldeia. Pedalodepressa como se fosse chegar ainda antes da morte, voupensando. Não penso, o homem estendido ocupa-me todo o pensar.Está frio, o ar gélido no nariz garganta, no arrepio damemória, quando é que tudo começou? A

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casa dá para a estrada,a estrada entala-se entre duas filas unidas de casas negras degranito, escurecido dos séculos. Há um poviléu à porta, negrotambém, da idade das pedras. E imediatamente uma gritariaquando foi que tudo começou? Nada começa quando começa mas temde começar para haver ordem na vida como nos factoshistóricos. Fui abrindo caminho à cotovelada e entrei enfim.Estava muita gente na pequena sala com uma janela minúscula deguilhotina que dava para um quelho. E logo a mulher e umafilha altearam o choro como proprietárias dele. A mulheratirou-se-me nos braços aos guinchos e eu dava-lhe palmadinhaspara a sossegar e quis saber. E ela contou. Às vezes a filhaemendava-a e fazia ela um percurso da narrativa para mostraros seus direitos, depois retirava-se da história e a mãecontinuava. Por vezes zangavam-se porque ambas queriam terrazão - não foi como vossemecê diz, - então eu não saberei o

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que estou a dizer? A filha calava-se ela recomeçava. Davagritos especiais no percurso como marcos quilométricos. Edesviava-se do caminho em explicações comentários adicionais,depois regressava ao caminho principal. As pessoas diziam vaia acompanhar. Ou diziam - veja só que doidice ou para o que odemónio o havia de tentar. Por fim entendi. Caporra tinha uma espingarda de carregar pela boca, eu tinhauma Liègeoise de dois canos, fabrico belga. Um dia disse-memenino - Menino. Empreste-me a espingarda. Só uma vez.

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E eu emprestei. E dei cartuchos. Não perdeu um e foi umarazia na perdigalada. Deu-me duas perdizes e disse-me mas nemdá gosto com uma arma assim, é só apontar. Porque havia oritual do preparo como o de um cigarro de mortalha, eu fumava

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já cigarro feito, ele dizia de cu aberto. Mas a Liègeoiseentrara-lhe nos nervos com o encaixe dos cartuchos, o estalono ajusto dos canos - Era uma doidice, menino o tiro rápido emortífero. Quanto custou? eu não sabia, fora uma prenda deanos, disse-lhe muitos contos para o desencorajar. Mas elearranjou um catálogo e soube tudo - Tudo - dizia a mulher. -Os preços o feitio as coisas assim de cada uma. Tudo. E então não tive outra solução - Joga na lotaria. - Não brinque, menino. - Mas foi o que ele fez - disse a mulher. E com efeito, devia ser pelo Natal. Devia ser porque era aépoca da esperança e estava frio. Quando é que se teveesperança com calor? É Verão agora, o meu filho dorme ali noslimites do impossível das quatro tábuas, quando é que? E umdia o Caporra - Está aqui a minha sorte apareceu com umacautela dobrada sobre o seu incognoscível.

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- Guarda-a. E não a vejas! - Aquilo é que era uma mania. Não a vejas. Devia ser para não violentar o destino. Porque ver o número da cautela era antecipar-se à vontade dasorte, forçá-la a comprometer-se e ela não gostar. - De modo que a meti num envelope e meti-a debaixo da imagemde Nossa Senhora que lá estava numa redoma,

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uma campânula de vidro que a mãe lhe dera pelo casamento. MasCaporra temia que a curiosidade da mulher fosse inconveniente,as mulheres já se sabe. E então meteu-a num envelope fechadolacrado secretíssimo. Todos os dias Caporra ia ver. Lá estavano seu segredo inviolável à guarda e protecção da VirgemSantíssima. Mas daí em diante, que estranho. Caporradisparatou numa alegria imensa como se para que o seu

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contentamento fosse já a gratidão pelo favor a acontecer. Erauma loucura e a mulher tremeu - Homem, que dás em doido. Se asorte te não sai quero ver depois. Porque era um homem excessivo, vivia nos limites de todo osentimento. O ódio a alegria a esperança. - Nunca foi homem para meios termos para viver fosse o quefosse por metade. - E no dia de andar a roda foi para casa do Zé Carpinteiroque tem um aparelho e ficou lá a ouvir a rádio. Saiu o número 33331. Era um número esquisito, voltoumacambúzio. E a tremer todo em suor abriu o envelope. - Menino. Era precisamente o número que ele tinha. Trazia-o na cabeça e escrito num papel. E então quando viuficou parvo. Conferiu várias vezes, foi perguntar ao ZéCarpinteiro que também jogara mas não tinha aquele número. Equando já não tinha dúvida, sentou-se numa cadeira a pensar, adeixar que a certeza coalhasse dentro

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dele, entrasse nodomínio do real e irrefutável. Até que saltou sobre si -Parecia doido, menino parecia tresloucado com uma força dentroque era maior do que ele. E tomou a espingarda, carregou-a,começou aos tiros para a rua, pum pum. Carregava-a de novo iapara as janelas pum pum aos tiros para o ar. - E eu só lhe dizia sossega, homem, que hão-de dizer queestás doido. Descarregou quanta pressão tinha dentro de si, os vizinhosacudiram àquele arraial. Mas tinha sempre mais pressão. - Não aguento! Não aguento! Tinha uma alegria maior do que ele, não aguentava. Entãoqualquer aviso deu um toque subtil dentro dele. Chegara a umlimite e ele não sabia como suportar esse excesso que era foradeste mundo. Carregou uma vez mais a escopeta, mas ao pé dajanela hesitou. Então meteu a espingarda na boca e com um pauou com um pé - Foi com um pé, menino, descalçou a bota, que

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Deus me acuda nesta aflição e com o pé disparou o gatilho. Nummar de sangue tombou no soalho. Deitaram-no na cama. Eragrande, tinha uma bota descalça. Taparam-lhe a cara com umpano branco da cozinha. Uma mancha de vermelho-vivo.

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XXIII

E agora, está bem, voltamos então ao padre Lúcio. - Há alguma ilegalidade nisso? - perguntei. Oh, claro que não havia. O Estado, que é liberal ecompreensivo, aceitava perfeitamente a opção. O Estadocompreendia muito bem os escrúpulos em matéria religiosa. Se oEstado impusesse a educação religiosa, era um opressor. OEstado respeitava as opções individuais numa matéria tãodelicada como a educação religiosa. A

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lei era muito clara aesse respeito. E nesta altura Lulu levantou-se, iniciou umapequena circunvolução em torno de mim para um lado e outro, iapregando, para um lado e para o outro como se fizesse umaprelecção. E eu estava quieto, sentado em ângulo recto nacadeira, ia seguindo o padre para a esquerda e direita e já medoía o pescoço da ginástica. - Agora o problema é seu e do seu filho. Mas o problema era simples. Eu não lhe dera educaçãoreligiosa, eu era um tipo de ideias evoluídas, como é queagora é que? - Pois é - disse-me Miguel. - Mas o Lulu disse-me: então tués o tal que não tens moral nenhuma? E estavam uns colegas ao pé, ele disse para todos elesouvirem e começaram-se todos a rir.

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O problema era simples. De um lado

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estava eu que dizia terperdido os deuses todos pelo caminho e do outro lado estava euque devia dizer ao Miguel que os procurasse outra vez. De umlado estava eu que dizia sim e do outro estava eu que dizianão, que era um sim ao contrário. Por um lado entendia que,por outro também entendia que, mas de outro sítio. A religiãoé uma forma de se ser mas o contrário também é - onde asrazões para o que simplesmente é? É-se crente ou não como tudoo que existe - quais as razões para o que existe? O melhor éperguntar ao Miguel. Hoje penso para o tempo em que o nãopensava, que ser crente tem as suas vantagens como ser de umclube ou de um partido político. Metade de nós passa paraoutro lado e a vida inteira é tão pesada. Fica-se apenas commetade à nossa custa - é tão pesada. Dá-se uma crença a umfilho e ele depois que mude de clube ou de partido. Dá-se-lheuma crença como se lhe dá um ofício e ele depois que vá para o

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desemprego. - Como é que podes pensar isso? - diz-me o Miguel de dentroda capela. - Isso é uma cobardia, uma desonestidade. Nãodiscuto os teus princípios porque não há princípio nenhum emnome do qual os princípios sejam princípios. Mas se tens umaconvicção, tens de proceder de acordo porque tens de terespeitar. E de súbito reparei que havia mais claridade na serra deSintra. O Sol, o Sol - como te amo. A luz. A plenitude. Atransmutação de nós para o incorruptível. A evidência atéficar cego. A ardência até me queimar. Mas a noite rastejaainda por todos os recantos da sua traição. - Mas o senhor padre Lúcio reparou que o rapaz nem sequerfoi baptizado, não é verdade? - Como?

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E eu repito. Estava ele já sentado de novo na mesajudiciária os dedos devagar como para uma sentença final. Acrença. Que é que quer dizer? - Penso que uma conversa com o seu filho. A crença. Não quer dizer nada. Curioso, já quase nada querdizer nada. Crença/descrença, monárquico/republicano,direita/esquerda, homossexual/heterossexual,honestidade/desonestidade, judeu/não-judeu, louco/com juízo eassim. Daqui a pouco não temos razões para nos diferençarmos ematarmos uns aos outros decentemente. Curioso. Devias deixarque o Miguel. Religião & Moral, que é que tem? Devias. Mas éestúpido. Absurdo. Que mal fazia? Fazia que o miúdo ficavamarcado para toda a vida. Abandonava depois, se quisesse.Nunca mais se via livre disso. E que tem? Tem que. Mas a vidaé tão difícil. Mais uma razão - ó Sol. Tanto como demoras.Beber-te rebentar de luz por dentro arder. O mar estrondeia

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nas cavernas do enigma. Venho até ao murete, olho-o, floresaltas de espuma, de coral, na festa absurda do amanhecer. - Devias falar com o teu filho - disse eu de mim a mim, nadistância que ia da minha convicção, que era forte, à minhadúvida que também era. Não tenho certezas de nada, às vezespenso. Ter certezas é ter também força para as ter - quantosnão têm só a força sem aquilo a que aplicá-la? Porque terforça é que é. É um modo de ser temperamental e o resto épretexto para o temperamento. São os tipos enérgicos decididose o músculo necessário a acompanhar. São os tipos que têmmuita força e andam à procura de um motivo para a exercerem.São os tipos exemplares não da doutrina que professam mas daenergia com que a defendem. Não se é histórico e respeitávelcom a indiferença.

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São também suficientemente estúpidos porque a inteligência éum crime. E a dúvida, sua companheira que segue logo atrás. AHistória real concreta utilitária tira da inteligência só onecessário para não ser malcriada. A História muitointeligente desenrola-se por cima da outra como um céu denuvens para os parasitas nefelibatas - mas filosofice não.Futilidade, não - céus. Como a vida é difícil na suaimpossível totalização unidade. O homem teve sempre aunificação do tronco e só nos ramos era diversificado efolclórico. Agora é só diverso e como justificar a diferençasem nada em que permaneça? O homem é um jogo de espelhos, comreflexos mútuos e divertidos sem nada de que seja a reflexão.O homem é a luz de um astro morto sem astro para haver luz eainda há. O homem é a ficção de si sem nada do que ainda sejaficção - mas malabarismos mentais acabou. Devias falar com o

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teu filho e então eu disse: - Miguel. - Sim. Não é contigo que estou a falar. - Miguel - repeti. Ele estava na cozinha a lanchar, a Tina tinha saído ou nãoviera ainda da aldeia. Preferi falar-lhe ali a chamá-lo aoescritório para encolher a solenidade e estarmos mais próximose fraternos. Mas quando entrei, dá para uns quintais, acozinha, e para as traseiras de outros prédios, olho pelajanela algumas árvores já friorentas. Já lanchaste? não sabiacomo começar. Então reparei uma vez mais que o relógio tinha apancada assimétrica. É um relógio de louça com um mostradorrodeado de motivos holandeses, um casal de socos, um moinho,casas à borda de água, trouxe-o da aldeia quando minha mãemorreu, Miguel dava-Lhe corda aos domingos.

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Então tomei o mostrador, rodei-o um pouco até acertar apancada. - O padre Lúcio falou-me da história das aulas de Religião eMoral. Tu queres frequentá-las? - Já vou falar contigo. Regressei, ele veio - tu que dizes? E ele disse que o padre,os próprios colegas, com piadas e assim. - Mas tu sabes que não sendo religioso, que é que issosignifica? Depois desenvolvi a minha tese. A coerência, disse eu ,mesmo o respeito pela crença dos outros, há os princípios decada um. - Porque é que eles crêem e tu não? Há as convicções de cada qual - Mas porquê? uns têm olhosazuis outros castanhos - Mas isso tem explicação a gente nãosabe porque é que acredita ou não ou deixa de acreditar - Tugostavas de brincar com soldadinhos de chumbo , porque é quejá não gostas? E gostavas de histórias aos quadradinhos. Egostavas de chupar caramelos.

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- Mas isso era em criança e as pessoas vão à missa e já nãosão crianças. - Eu não te estou a impor nada, Miguel. Tu vais às aulas sequiseres. - Mas porque é que queres que eu vá, se tu não concordas? - Eu não concordo nem deixo de concordar. Eu só quero quesejas consciente. - Que é que é ser consciente? - Tomarmos uma atitude e sermos responsáveis. - Porquê?

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- Chiça porquê. Porque sim. Porque só se é homem emresponsabilidade. - Não explicaste nada, mas não vale a pena zangares-te. Silêncio para escoar a pressão. Olho os três desenhos doLima de Freitas - olho o mar frio, já aguado de claridade. - Portanto queres frequentar as aulas do padre. Vou retirar

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o requerimento, vais frequentar. - Eu não disse que queria. Eu só queria entender. - Não há que entender! Há só que dizer se sim ou não. - Está bem. Mas não te zangues. De modo que no dia seguinte. Tive de esperar quase uma hora,padre Lulu tinha aulas, só tinha um furo no horário depois,mesmo não era dia de atender, mas compreendia perfeitamenteque. E então eu disse: - Venho retirar o requerimento. Faleicom o rapaz e ele quer frequentar as aulas de Religião eMoral. - Ah! - disse Lulu. E imediatamente, que o próprio instinto do homem, há muitasdefinições do homem, o senhor é uma pessoa ilustrada e sabebem, mas a mais profunda basilar anterior, a que está nasraízes de se ser humano, mas já os antigos, Cícero disse gensnulla tam fera ergueu-se dava passinhos estalados comocastanholas tam fera quae non sciat Deum esse enrolava-me noseu discurso, o homem é um animal

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racional, é um animal queri, é um bípede sem penas mas antes disso porque só aí começaa ser humano, um animal religioso e daí que, passava de umlado para o outro por detrás de mim eu cocava-o à direita e àesquerda ou de novo à secretária alto esgrouviado e o pescoçoaté ao tecto - quantas vértebras teria? creio que é sempre omesmo número na girafa, de modo que contrariar estancar essavocação necessidade primordial do homem - Truz! Truz! - Um momento. essa necessidade de o homem ser humano, mas jáantes de Cícero, e depois e mesmo os homens de ciência PasteurEinstein Max Planck e que é que nós no nosso orgulho emediocridade? homens do saber homens da inteligência, como éque nós ignorantes - Truz! Truz! - Um momento já disse! ah, a petulância dos medíocres anossa estupidez, como explicar todo o mistério da vida? e é nainfância que, a verdade essencial que indestrutível para avida inteira porque depois - Truz! Truz!

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e Lulu foi abrir jácom raiva nos gestos bruscos e súbito no limiar da porta oMiguel. Ficámos estupefactos paralisados e ele disse nãoquero. Não queres como? Não quero que o meu pai retire orequerimento. Lulu vigoroso, uma sarabanda, esgalhou-o de altoa baixo. E Miguel disse: - Não quero. À noite na cozinha tentei saber mais. O relógio de louçaoutra vez. Tinha a pancada assimétrica. Encolhi os ombros.Deixei ficar.

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XXIV

Clara. Mas não é ainda tempo de haver sol. Não é ainda tempode tu vires. Flora há-de primeiro voltar da Grécia - eu hei-defalar com o meu sogro, director do Informações e tu hás-dedizer-me - Cláudio. Que tem você? e eu hei-de convidar-te para

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almoçares comigo e havemos de ir ao cinema e hei-de ir ao teuquarto e hei-de ouvir-te falar com a serenidade que ignoro eestá depois da fadiga. E passarás o Verão na minha casa dasAzenhas e eu hei-de ver-te cá debaixo, da praia minúscula ehei-de saudar-te para a janela em cima, frente ao mar, ou nopequeno terraço e tu erguerás a mão e na saudação devagar nãocaberei eu só mas o mar e o esplendor da manhã. Mas há tantoainda que sofrer e ser homem no sofrimento que é o que em serhomem há mais de humano. E tudo se me confunde do que sepassou e há-de ser, corporizado no absoluto de mim no semtempo de mim. Cresce-me tudo em confusão e só é inteiro edistinto o eu ser. De todo o modo, é preciso que o mundo serecrie à tua imagem e a noite assista ainda nos recantos daminha sufocação. O Sol, o Sol. Um impulso brusco e um gritosobe-me na garganta ó Sol. Não grito, e precisava tanto.

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Desoprimo-me para dentro e tanto como precisava de que parafora. Mesmo que ficasse depois como um odre apodrecido, umamúmia. Um lixo que se não guardasse. Mas há a minha dignidade- há o Miguel que não sabe o que é a dignidade mas sabe. -Não sei. Mas sabe. A noite passa ainda no mar, balanceia-o na suadormência fria. Mas a claridade alastra já pelo céu,infiltra-se já no recomeço das coisas e no modo de se serhumano com sol. Na estrada fronteira e na que desce deAlmoçageme e mesmo na que sobe da Praia Grande. Uma animaçãomotorizada carros motoretas. De vez em quando acelero-os naimaginação e então é um fervor de corropio. Pela porta dacapela a claridade entra mais aberta. Vejo melhor no altar-morSão João Baptista a tábua da Anunciação o menino guerreiro,

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que arranjo secreto os reuniu? deve haver uma razão. Pensomuitas, não as sei. O menino napoleónico, porquê? É um menino,brinca - não podias brincar de outra maneira? com um carrinho,um barco aqui ao pé do mar. És filho de Deus não de um general- ou uma bola de futebol. Vejo agora melhor a Virgem ajoelhadadiante do mistério que a assombrou. Tem um manto azul, podiater estrelas e o céu no manto, não tem. E há um anjo por cimacomo um raio. E tudo isto é misterioso e longínquo como orumor do mar. E tudo isto é belo como o que não pode existir enos existe. Aos quatro cantos do esquife do Miguel as velas jáquase gastas ou inutilizadas torcidas. Mas é preciso haverrazão, mesmo contra a morte, tenho ainda velas novas. - Não ponhas velas novas - diz-me o Miguel. - É ainda cedo - digo eu.

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- Tiraram-me o sono, deixa-as apagar. Vai ver o mar que jádeve estar bonito. Mas vou é ver Flora, deve estar a chegar da perfeição dolimite. Da verdade que não nasceu para mim. E com efeito. Eradomingo e à tarde, eu só tinha jornal à noite, o Miguel saírapara o cinema com a Tina - espera. A Tina não tinha já morrido? Mas é impossível, a Tina nãopode morrer, não irei jamais matá-la. Tina, ó Tina. Estou tão cansado, Tina. Desde a mais remota infância , atua presença. A tua mão sobre a minha testa em suor. Mas deixa-me ser homem e não me ponhas a mão na testa. Nãomorrerás nunca porque é preciso haver paz e eu estou tãocansado, Tina. áo humilde tu que não enchias o nome todo quete deram. Não te vou deixar morrer porque a vida éinsuportável. Tu é que não fazes ideia, Tina. Mas vou serhomem, tens de dar uma ajuda e como é que havia de ser depois

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se tu morresses? Miguel fora ao cinema ou a casa de um amigo,de qualquer forma é necessário que eu esteja só porque ninguémpode ajudar-me quando Flora entrar. Era domingo ou sábado, euestava à janela a olhar a praça. Olho a igreja e os seus anjosaéreos ou lá o que é suspensos da fachada. E as duas torrescom frestas de alto a baixo - nunca lá entrei, talvez um dia.E os campanários com os seus vazios ao alto sem sinos jáinúteis, religião de plástico ou cronometrada como oscaminhos-de-ferro - nunca entrei. Porque o que está ao pénunca se vai ver pela razão de se poder ir. E então adia-seporque é sempre possível, lembro-me em Coimbra. Nunca fui àQuinta das Lágrimas que anda tanto nos livros mesmo ilustres ,fui lá depois de sair da cidade porque quando lá voltei entãotinha de ir. À porta da igreja, é do lado das câmarasmortuárias.

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Todos os dias há enterros porque a morte é quotidiana. Do ladode fora, um grupo de homens de preto a fumar no intervalo deserem necrológicos. Põem-se mesmo a certa altura, curvados arebentar de riso, inconsoláveis e contando anedotas. Curvadosem hilaridade que o riso é terreno. As árvores da praça têmfolhas, . será Verão? mas mesmo no Inverno, suponho, folhaperpétua, as folhas devem estar sempre presentes para umahipótese de enterro. À direita, um prédio alto e envidraçado,ministério qualquer coisa a ser um dia do Trabalho.Translúcido de vidraçaria, tem a fragilidade transparência daverdade política. Em certas horas o sol ajuda à evidência. Dolado esquerdo há também um prédio alto mas espesso, de verdademais humana. Ao alto dele bebe-se cerveja num reclamo luminosomais visível à noite, quando é a hora de esquecer. Ao lado da

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praça há um poeta de bronze e de sobretudo, mas aberto porcausa do calor. E em baixo e ao largo da igreja, tudo coalhadode carros e um tráfego maníaco de carrocel, é capaz de sersábado - ó cidade histérica. Cidade ofegante tresloucadapindérica. Fúfia fífia. Deve ser sábado e um pouco meentretenho a olhar a minha circunstância, a humanidade nela dearame. E foi quando Flora entrou. Tinha a chave - entrou -pois tinhas levado a chave? Ouvi estalar o trinco e não penseique era, devias-me ter avisado para eu não estar assimsurpreendido. Deu-me um beijo epidérmico, eu viera rápido àporta. E ao rever Flora assim inesperadamente, tudo em mim secongelou, fiquei estático - você, Flora? e não avisou. Paraquê? Não me dirá? Mas porque falei ou porque a via de novo, retroactivamente emmim uma agitação breve sensível. E sorri devo ter sorrido eminesperado encantamento. Flora.

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A súbita remvenção afloramento de uma afeição perdida, de novoestarmos reunidos na harmonia familiar. - Porque não escreveu nunca? - Ah, escrevi uma vez pelo menos. - Foram dois anos. Ela arrumou as coisas, sentou-se um momento num sofá do seuescritório. Porque havia de escrever? - Mas é uma pergunta absurda. - Não tinha nada a contar - disse. Só tinha que ser e o que se é não se conta para se nãodeixar de ser. - E que é que você foi? Que pressa, e que é que isso importava? Sim, reformara a suavida, tanta coisa a reformar, Cláudio. Tinha a almaclarificada, Sócrates Platão mesmo Homero. E os trágicostodos, o Sófocles sobretudo. Estive com eles todos, Cláudio.Mesmo a Safo, tive que ir procurá-la, estava com uma auréolade raparigas. E o sol e o mar e a paz do limite, você não pode

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imaginar. O limite a nitidez, Cláudio. A reconversão aomicrocosmos em que tudo está ao alcance da mão. Você olha oPártenon e pensa que tem o alcance discreto de uma cabana ouermida e depois é grande, Cláudio, é imenso como amegalomania. Eu só queria poder explicar-lhe, Cláudio. Nóslevámos séculos milénios a criar a mania das grandezas.Retornar à medida humana e está lá a grandeza toda. Falei coma Atena é uma deusa muito gira e a Afrodite, Cláudio, todacurveada como um acto de amor. E a Artemisa, a deusa casta,como Atena, as minhas preferidas. Mesmo o Zeus , encontrei-ona Ágora a comprar sandálias novas. As pessoas saudavam-no masde caras, sem curvatura da espinha. Às vezes eu ia por uma ruae via um tipo, as pessoas diziam olha ali vai o Hermes ou oAres e iam à sua vida.

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- Não é absurdo? Você podia ir escrevendo a contar. Mas sobretudo o Sócrates, que tipo. Um dia encontrei-o jánão sei se foi na casa do Agatão ou na rua, ele às vezeschegava a uma praça e ficava ali a amadurecer dias e noitespor distracção. E então uma vez eu disse-lhe lá em Portugal hámuito que se não sabe o que é a justiça. E tu sabes? disse-meele. E pergunta para cá resposta para lá, às tantas eu estavaenrodilhada e tudo era outra coisa do que ele dizia, mas era amesma à mesma. Era um tipo perigoso. Inventava as palavras e agente acabava por ter de meter lá as coisas mesmo que lá nãocoubessem. Um dia eu disse-lhe - Você está a inventar oAtlântico e o infinito e a psicanálise e o significante e adroga e a menopausa e ele riu-se. Quando ele falava as colunastremiam. A palavra nele tinha mais força do que o mármore deParos. Era um tipo giro e às vezes falava mais depressa, o que

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era raro, e eu não entendia e uma vez perguntei o que é queele está a dizer? e um tipo que eu não conhecia disse queestava a pedir um pouco de cicuta e eu achei isso de umaironia ordinaríssima. Mas eu não lhe vou contar agora o quelhe não escrevi e vou descansar. - Não quer saber do Miguel? - Quem é o Miguel? - Flora. Ela puxou da boquilha e procurou ainda um cigarro antes dedescansar. Tanta pergunta eu tinha ainda a fazer - vinha detodo? voltava para o liceu? ainda havia o tal Carlos no seucontexto? Vinha de todo, ia para o ministério não voltava parao liceu e quanto ao Carlos já dizia. E então eu senti umimpulso abrupto para a amar. E sofri. Um súbito impulso para areconhecer no seu corpo estável harmonioso, no seu jeitosubtil gracioso de enrolar no dedo uma madeixa atrás na nuca,

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mesmo no seu modo estentóreo de falar. Amava-a no seupreenchimento do vazio em mim, no implícito áspero despertarda minha realidade física a ser depois o espraiado da minhaplenitude. Amava-a com o absoluto da integridade de mim, o meucansaço necessidade aflição. Flora calara-se , fumava alheadae um pouco ofegante. Estava longe dali eu sabia, na distânciadifícil de eu já não ser. Estávamos calados os dois e entrenós havia a estranheza incerta de um caminho cego. Deixei-aestar e eu acendi também um cigarro. Ela disse - Está istoabafado mas a janela estava aberta. Então fechei-a porque oque abafava era o rumor intenso da praça. Mas ela disse nãofeche que é pior e eu abri-a outra vez. Havia o ruído dotráfego e isso era afinal um modo de preencher o vazio. Equando acabou de fumar, ela disse - Precisava de tomar umbanho e dormir um pouco. Tomo o banho

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depois. Você deixa queeu me deite na sua cama? - Ó Flora. Na nossa cama. - Na sua cama. Estirou-se sobre a coberta e logo adormeceu. E eu deitei-lhepor cima um cobertor leve e corri o estore da janela. Mashavia uma claridade difusa, vinda de todos os intervalos poronde entrava a luz. Dorme. Eu olho-te no encantamento que nãoé teu nem de mim e é só da beleza de tu dormires nodesprendimento de toda a força que te faz existir. Demoro-meum pouco, ela repousa no aéreo da vida. Estou tão só. Masexiste a glória e o prodígio de tu estares aí. Recomponho-tena minha angústia as linhas certas do teu corpo divino. O teubusto firme geometria da perfeição, o teu rosto nítido,

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os teus olhos agora cerrados sobre o que é neles uma acidez

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que me queima. E ao centro a fúria da tua vitalidade. Deusavinda de entre os deuses, da terra da tua origem, agoratransfigurada no diáfano do sono. Respira lenta branda noetéreo da minha imaginação. Dorme. Na pacificação fictícia daminha amargura. Na ascensão da tua realidade densa pesada parao irreal do meu impossível. Saio a passos breves para a sala,o meu escritório, e longo tempo divago até ao limite domiraculoso e loucura. E longo tempo depois ouço Floraagitar-se lá para dentro. Vou ter com ela, pergunto precisa dealguma coisa? Não se incomode, eu ainda sei onde está tudo.Tomou banho vestiu-se perfumou-se. Quando regressou estava járeintegrada na ferocidade da sua exactidão. E disse-me: - Cláudio. Você pode chamar-me um táxi? - Flora. Assim sem uma explicação? - Vim buscar algumas coisas de que preciso. - Assim? Sem mais uma palavra? - Pois. Vou para a Pinheiro Chagas.

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- E quando volta? Ó Cláudio. Você é tão ingénuo. Tão querido. É o que há demais saboroso em si. Não insista com o Miguel. Por favor.Claro que o Carlos vai ficar comigo. Você é tão doce. Masevidentemente que não vai ficar de casa e pucarinho, queestupidez. Temos uma vida ainda a desfiar em comum, coisas arasgar. Depois não sei. Depois chega-se ao fim e cada qual temsó a parte que lhe pertence. Você já tem a sua. - Espere, espere. Deixe-me ouvir bem o que disse. Tinha tanto que sofrer. No orgulho. No vexame que estava porbaixo. Sucumbido humilhado na distância imensa donde a olhavapara sempre perdida. Não, não, qual Tina, Cláudio. Isso écoisa da sua infância, privativa, não tenho nada a ver comisso. Que mania essa de me querer impingir a sua infância,alguma vez Lhe contei a minha infância? Eu nem a sabia, se lhaquisesse contar. Mas chame-me então um táxi por favor.

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Humilhado até ao asco por mim ou uma piedade mais nojentaque o nojo. Bela minha mulher apesar de tudo. Ou por issotudo. Bela. Como uma blasfémia.

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XXV

E imediatamente começou o corropio do Miguel. Da Praça deLondres para a Pinheiro Chagas. A princípio eu julgava que eletecia a vida dos três. Tecia a dele só como um maníaco. Decomeço ainda parecia que não, porque levava e trazia recadosou a incumbência de trans portar coisas com o prazeraparente de que as trazia. De uma vez ficou lá, mesmo adormir. Telefonou-me e disse, ficou. De outra vez não disse eficou também. Telefonei eu perguntei e soube. Disse-lhe:Miguel, devias avisar. Ele respondeu não me lembrei ou não

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tive tempo. Foi Flora que veio ao telefone mas passou-o logo.Mas uma vez Flora não estava. Era já noite, não estava. Miguelsubiu ao terceiro andar, bateu, veio de novo à rua. Começouentão a rondar a porta e a noite instalou-se de vez. Foi daruma grande volta, foi até à penitenciária, desceu ao Parque, àRotunda. - Para que é que estás a mentir? - disse Miguel. E porque é que estás agora com isso? desceu à Rotunda, voltou outra vez pela Fontes Pereira deMelo - Para que é que estás a exagerar? Daqui a pouco começascom o teu questionário de polícia. A mania que tens deexplicar. Não estou cá para responder e quando chegou à portajá a rondava o guarda-nocturno.

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Miguel disse no terceiro, a mãe não estava. O homem desconfioucomo era das suas funções de guarda, não

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abriu. Migueldiscutiu alto, veio um polícia. Levá-lo para a esquadra? Masalguém abriu a porta a entrar ou a sair, Miguel entrou logo,subiu ao terceiro andar, sentou-se na última escada à espera.Mas pouco depois chegou Flora, vinha com o amigo. O espanto aira - Não pode cá dormir! e o amigo disse - Então não pode? - Mesmo no sofá. Mesmo sentado - disse Miguel. - É absurdo, não pode - disse Flora. - Este rapazinho nãopercebe que a sua casa não é esta. Eu vou levá-lo drásticacortante sem réplica possível. Era já tarde, eu já dormia, vimentender as pancadas na porta. Diante de mim Flora e Miguel, oCarlos ficara na rua no carro. - Cláudio. Explique ao seu filho que a casa dele é esta.Explique-lhe você, que eu não consigo. Que idade terias tu? Quinze dezasseis anos? tenho a tuaadolescência na minha memória aflita, Miguel entrou em casasem dizer palavra, foi para o quarto deitou-se. E durante umas

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semanas a sua casa foi aquela. E havia a Tina, tem de haverpara a harmonia de um lar. Mas logo depois começou a rondar acasa de Flora no fito de a ver. Não lhe batia à porta, só verse a via. Um dia foi mesmo ao ministério, Flora foi terrível,não sei se lhe arreou. - Não tentes enxovalhar a Flora - disse Miguel.Tu no fundo oque tens é admiração.

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Não tento, olho o mar. Porque não hei-de ir vê-lo à praiadas Azenhas? Clara está suspensa lá no alto na varanda emroupão. Saúdo-a longamente numa oscilação larga do braço, elanão repara. Deve estar a olhar o horizonte, a planura daságuas, um indício ao longe do seu infinito. Olho eu também a aldeia estranha com as casas acavaladasumas nas outras sobre a rocha. São brancas, frescas de cal.

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Têm a face alegre de todas as aldeias marinhas, face jovem.Têm a leveza aérea do precipício de uma falésia. Da praia atélá acima há um escalonamento de planos. A meio da subida háuma piscina para miúdos. A dos adultos é só em baixo, ao résdo mar. Quando a maré sobe, as águas transbordam para dentro eenchem-na. Clara deve querer hoje ir a Fontanelas visitar oV.F que tem lá uma casa entre pinheiros. Não me agrada avisita, irrita-me um pouco esse V.F. que só conheço de algunslivros. Mas é possível que esse sentir me venha da Flora quefoi sua colega no Camões e que o detesta. Porquê? quis eusaber. Ora, por tudo, Cláudio, disse ela. É um conversadordidáctico, que horror. E uma certa convicção no seu aracanhado de antigo seminarista. Clara no Informações émaquetista. E foi daí que veio a aproximação, eu tinha umartigo a montar e fui ver. Depois fomos almoçar, Depois houvetodos os outros depois. Mas sobretudo

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Clara tinha um nomeesplendoroso, terão os nomes a ver com as pessoas? há nomesque as caracterizam logo. Como pode ser-se sociável com o nomede Tibúrcio ou Pancrácio? Clara fazia as maquetas no jornalmas a sua ambição era fazer entrevistas. E queria combinarisso com o V.F. Mas não me apetece hoje ir a Fontanelas. Nãome apetece hoje mais nada do que ser em sol matinal. Mas o soltarda ainda e há que atravessar ainda os restos da noite.

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Há que atravessar ainda os restos da vida e a morte que aescurece. Uma gaivota passa-me por cima no seu voo planado.Deve ser a primeira a erguer-se, deve ir olhar o Sol lá doalto. Sigo-a encantado na placidez da manhã. Sigo-a uminstante, passa breve com a urgência de um anúncio. E algumacoisa em mim abriu súbito em revelação e

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fulgor. Alguma coisafoi em mim uma inesperada ascensão, aparição de harmonia,esperança. Esperança de nada que é o mais profundo dela. Ficoa olhar o longe obscuro em que se perdeu, o vazio da minhabreve inquietação. O farol ainda varre a extensão das águas,devem apagá-lo apenas quando o dia for indubitável. Crescesobre mim num rápido relâmpago, escurece depois numa luzinhamortiça. A barra de claridade cresce devagar em intensidadecomo se o Sol nascesse do mar, avermelha-se no incêndio damanhã. Mas as luzes da estrada já se apagaram para que oamanhecer se instale na sua verdade. Ao longe, na linha dacosta, há luzes ainda num trémulo de sono, agrupadas emnúcleos de povoações. Mas Clara insiste em irmos a Fontanelas visitar o V.F. E eutenho tanto que estar aqui. No foco intenso de ser em vida. Naconcentração total do que sou. Não vai fazer a entrevista, vaisó preludiá-la no arranjo prévio das

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coisas. Flora indispôs-mecontra o sujeito, repassando-me de vinagre os livros que lidele. Curiosa coisa, é assim. Um livro é uma convenção ou umfaz-de-conta. E só entrando no jogo se pode pôr o problema deavaliarmos dele. O mundo que ele escolhe e as figuras e assituações e o tom de tudo isso e a pessoa que está atrásdisso. O grande problema de um autor é o da sintonização doleitor. É assim. Entrar no jogo é difícil. Abdicarmos de nós édificílimo porque nós somos mais do que o universo, que é sóuma fracção de nós porque nós somos nós e ele. Que é queFlora me instilou de irritação nos livros de V. F.? Acima datragédia da vida há o riso e a alegria que o submetem. E elenão sabe. Ou o esquece. Mesmo que o riso seja o de uma caveira que é já tragédiapara antes do riso. Mesmo que a alegria seja uma flor numaestrumeira. O homem é que criou tudo o que o criou, aoprincípio era ele. O homem só não é o

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princípio quando é ofim, estendido para a arrumação. Mas então já não é dele quefalamos mas do lixo municipal. Mesmo que se sofra não se pode sofrer em aparência higiénicae de bom relacionamento social. O V. F. parece ignorá-lo. Ah,e onde é que o sabes tu? Depois detesto-o também pela mania doproblema, pela mania de entender, pela obsessão de serhistórico, sentado na História como se ela fosse um carroeléctrico. E detesto-o ainda por trabalhar a um número alto depulsações por minuto. Mas sobretudo detesto-o por se parecercomigo, pelo que detesto também em mim, a emoção fácil, ovício reflexivo, e Clara pergunta-me quando é que enfim medespacho - porque não vais tu sozinha? É indecente. Não vejo,indecente é eu ir gramar um indivíduo que não gramo. Éindecente e mesmo já está à nossa espera. A casa fica à direita, no extremo da rua, metida num pinhal.Tem um só piso e um alpendre como as

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capelas do Norte. Aaldraba do grande portão do quintal abre ao contrário,batemo-la com força, ninguém ouve, vamos entrando. A mulherveio correr uma porta envidraçada, é uma sala comprida, abertade janelas para todo o lado. Chamou para dentro - Tens aquivisitas e ele veio logo com um sorriso a meia dose, aparelhadopara a circunstância, vestido de Verão com uma juventude quejá não havia. Estava sol.

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XXVI

Quantas mortes ainda a atravessar? Estás tu aí, resumo delastodas. Mas tenho ainda de morrer alguns outros antes de ti emorrer de mim o que for possível para continuar. De modo queuma tarde. Uma tarde chego mais cedo a casa. Vou ter noitada no jornal

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- Tina! chamo para a cozinha, quero o jantar mais cedo, Miguelnão está. Deve ter aulas - e onde? No Técnico, talvez, creioque já anda aí. Tina não responde, vou à cozinha, chamo porela para todos os sítios em que pode estar. É uma chatice -Tina! chamo outra vez, onde diabo teria ido? E foi quando melembrei de Dona Mercedes. É a dona do prédio, mora no andar emfrente, terceiro esquerdo. E então bati à porta. Tina visitamuito a senhora para largo paleio de aldeia, a senhora gosta,tem tanto que falar sufocada de solidão. Porque ela vive emfunção do que diz, é insuportável a vida interior. Tina àsvezes diz-me: olhe que chega a falar para as paredes. Econta-me as conversas, também precisa de falar mas eu nemouço. Conta-me em forma directa e então ela disse e então eudisse, mas ela aí disse que. E então bati à porta mas quemveio abrir quem era? uma moça nova que não era do meucontexto, toda a escorrer de choro.

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Morreu, explicou ela, quem? a Dona Mercedes? Credo! e nem merespondeu. Foi-me conduzindo para uma sala, lá estava uma rodade senhoras a toda a volta e a Tina no meio delas. E aocentro, um pequeno vulto do que me pareceu uma caixa cobertacom um pano branco. Tentei entender, perguntei, Tina estava àporta e adiantou-se logo a explicar - Veja o menino que aindahoje me ladrou. - Morreu eram umas dez horas - diz-me alguém lá do canto,acabrunhada de negro. - Quem? - perguntei ainda, cheio de estupidez. - O Policarpo, menino, quem havia de ser? Era uma tarde de sol, mas as janelas estavam semicerradascontra a alegria da vida. Dona Mercedes fez-me um lugar aolado, disse-me para me sentar. Estávamos agora todos

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estabelecidos no velório e em silêncio. E ao meio, recolhido àsua realidade de estrume, razão de todos ali, estava o cão.Perguntei por delicadeza a Dona Mercedes pormenores doinfortúnio. Ela contou logo, com suspiros de repouso, toda atragédia desde os seus fundamentos. Porque já o pai, senhorCláudio, que era um cão das nossas relações. Ou a mãe, quemsabe? disse eu. Ah, não, a mãe fora sempre saudável. E eudisse-lhe: eu conheci um sujeito da aviação, fez o seu chek-upde rotina, não tinha nada e pouco depois caiu redondo com umasíncope. E Dona Mercedes disse ai. Depois recaímos nosilêncio. Havia um ar compungido nas senhoras à volta. Euqueria dizer à Tina que precisava de jantar mais cedo, mascomo atravessar todo o infortúnio da sala? Mas Dona Mercedesretomara a história do Policarpo. E contava como o criara commimo, as suas graças de criança, como fora em todo o casodifícil a sua aprendizagem de cão, a sua

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assistência constantedo seu veterinário pessoal, as vacinas que chegara a mandarvir de Espanha, os seus passeios regulares até ao jardim, assuas simpatias e antipatias e olhe que tinha sempre razão, oseu desgosto quando morreu o marido, os seus namoros mas nuncafoi doidivanas, havia ali uma cadelita no primeiro esquerdo ea senhora está aqui e pode confirmar, aquilo é que foi umapaixão, agora coitado já não podia. Pesa na sala um ar intenso, sufoca. A senhora da cadelitacontou uma história terna com Policarpo à porta em ganidos desúplica, mas eu quero enfim sair. Soergo-me debruço-me paraDona Mercedes renovo os pêsames, digo que tenho de ir indo. Eperguntei por polidez - E quando é o enterro? e Dona Mercedesfez-me sentar ainda um momento. A filha não estava, saíra atratar da campa no Jardim Zoológico, ficara só a moça delapara ajudar. - Se tudo for como esperamos, o enterro é amanhã. Mas eu nem

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po...o...sso pensar nisso. Meu querido Policarpo. Tive duas palavras de reconforto, a vida é assim mesmo desdeque o mundo é mundo, que é que se lhe há-de fazer? Masimprevistamente Dona Mercedes pediu-me uma coisa. Era simples.Mas se calhar o senhor Cláudio não pode, era uma noticiazinhano jornal. - Há os amigos, as pessoas que não tiveram conhecimento. - Iria a tempo? - perguntei com educação e Dona Mercedesdisse ai, e eu entendi que não ia. Então levantei-me fiz sinala Tina. Estavam várias senhoras à volta sucumbidas. Ao meio dasala estava o cão. Mas no dia seguinte Dona Mercedes, os olhos arrasados desúplica; que a sua filha, o carro avariado, senhor Cláudio,aquilo é mas é o meu genro, oh, se o conheço,

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eu que alugasse um táxi, veja lá, mas os táxis não querem,senhor Cláudio, e então lembrei-me se. Tinha a manhãdisponível de modo que eu e a Tina, e a filha, uma louraçaboleada, toda em pressão a estalar. Mas não é a altura dereparar nisso, não reparo. Descemos em grupo no ascensor, ocaixãozinho de topo para cabermos todos. Dona Mercedes fezquestão de se não pôr o Policarpo na mala, ia no assento detrás, ela e a filha dos lados. Tina veio connosco, eudisse-Lhe que não era preciso, foi. À Estados Unidos virámospara Sete Rios, o Zoológico era logo ali. A loura mostrou ospapéis à entrada, certidão de óbito e o mais, o guarda abriuos portões de ferro de par em par. Tinha um festão de louronas grades de um lado ao outro, o portão, talvez de cobre, eeu achei-o a condizer. Mas transposto o portão, Dona Mercedes,ai. Se podíamos levar o caixãozinho em cortejo cá de baixo. Ó

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Dona Mercedes. Depois de um jardim geometrizado em baixo,havia uma escadaria e depois outras até à morada final. Deiuma volta de largo com o carro, mas a uns metros do cemitérioparámos. Organizámos então um cortejo, levámos o Policarpo.Havia à esquerda e ao alto três grandes arcos no ar com o seuespectro de ruínas e em volta corças vagueando enfadadas eindiferentes. Nós em silêncio sucumbidos. À aproximação dofim, Dona Mercedes explodiu. Ó mãe - disse a filha. Um macacopulava suspenso de uma rede. E de súbito disse - Já vais aí, óPolicarpo? Donde é que o conhecia? Não tivemos comentários, achei apergunta ordinária. Adiante os ursos olhavam enfastiados àbeira do seu fosso, bocejando de tédio. Mas quando enfimchegámos à porta, toda a cainçada do cemitério largou numaberraria infernal. Era uma larga rampa, cheia de campas elápides funerárias, todo o espaço ressoava agora de algazarra

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canina. Havia ladridos jovens, numa efervescência de gritos,outros ladravam rouco, compassado. Era um arraial de gritaria,esmordaçavam-se decerto uns aos outros no além ou era umprotesto colectivo? desfaziam-se em balbúrdia esganiçada.Então o tratador irritou-se, atirou-lhes um berro tremendodisciplinar - Quietos e calados! mas eles não se calavam.Suspensos um instante na surpresa, voltaram a ensarilhar-se naalgazarra. Foi quando tentei eu a minha sorte e lhes disseconciliador em voz alta até à infinitude de um cão - É oPolicarpo! E a ladradela geral quebrou ondeou para a distânciadissipou-se enfim num eco longínquo apagado. Só um ou outrocão mais criança e pouco consciente, um ladrido episódico debirra. Pudemos então levar o Policarpo até à sua caminha jáfeita. Dona Mercedes quis ficar até ao fim. Na pedra tumularlevaria as datas do nascimento e morte. E à cabeceira o esmalte do retrato. Fui descendo a rampa

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como grande bancada, os cães escalonados e alinhados naeternidade. Vim lendo a saudade eterna à Peggy ao Piruças àJoana à Boneca à Tuxa. Estavam de novo tranquilos, dormiam.Dona Mercedes desceu enfim. A filha amparava-a de um lado,Tina do outro. O macaco teve ainda um comentário indecentequando passámos. Nem liguei.

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XXVII

Um dia o Miguel apareceu com uma rapariga. Era uma moçagentil. Cara branca macia. Disse-me é a Manuela. E eu dissemuito gosto. Miguel andava já no Instituto Superior Técnico,tem já de andar para haver ordem na minha imaginação. Arapariga tinha um ar frágil e manso. Doce, retraída. Nãodesgostei.

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- Pode jantar cá? Depois estudamos um pouco. Depois vamos auma discoteca. Não desgostei. Mas espera: a uma discoteca? E com quem é quevocês vão? - Encontramo-nos lá com uns amigos. Pois. E neste instante a rapariga teve um movimento altivode sacudir a cabeça. E depois acendeu um cigarro. Repareinoutros pormenores porque sou muito psicólogo. Tina espreitouda cozinha ao ouvir-nos no corredor, mas quantas vezes eu jálhe disse para não espreitar. Foi com a rapariga para oquarto, o Miguel, e eu avisei a Tina de que tínhamos mais umapessoa para o jantar - não, não foi assim, devo estar a fazerconfusão. Isto passou-se foi com outra moça. Esta, a lourita,quando vim a casa já estava a jantar com o Miguel. E eledisse-me: a Manuela. E eu disse: muito gosto.

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Então explicou-me e abancámos os três, mas eles já estavam nafruta e foram logo para o quarto. E eu pensei: não éconveniente depois de comer, mas arrependi-me logo porque opensar é já começar a ser. Já tarde foram para a discoteca - écurioso, nunca fui a uma discoteca. Sim, fui uma vez já me nãolembro porquê. Talvez com Flora. Talvez já com Clara. Tereiido com Oriana num momento da minha comoção? Da minha fadiga.Do meu absurdo - oh, não. Com Oriana, não, ela é tão avessa,tão. Mas lembro-me perfeitamente, era ali, salvo erro, para asAvenidas Novas. Uma sala de sufocação. Uma massa compacta dejovens sentados quase no chão a pequenas mesas e ao centro umapista de dança e mais jovens amassados lentos ou frenéticosaos pulos. E uma música estridente aos pulos. E a toda a voltaluzes horríveis a apagar e a acender aos pulos também.Intrínseco ao estar ali, um berro horríssono em música e

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estridor de luzes. A acender e a apagar as pupilas crivadashorripilantes de nervo fulminadas intensíssimas. E na pistaenrodilhados em frenesim. Eram berros disparados aoinatingível. Um desespero crítico metálico agressivo. Voltadosobre si. Rígido desvairado. Enrolado sobre si numa obsessão arebentar. Mas nas mesas à volta os moços mal falavam.Repousavam em si dos gritos exteriores histéricos. Jogavam àviolência, o estridor da inutilidade. Pensei. Não pensei.Penso-o agora enquanto respiro fundo o ar salgado do mar.Penso-o agora porque é a hora de ter ideias e ser um animalracional. E então digo o vosso destino é estoirar. É o destinodo homem se o não distraem dessa mania. E então pensei: umfreio que vos travasse a correria. Não há freios à venda,esgotou-se todo o stock. É uma ideia estúpida e o melhor é nãoser ideia. Mas noutro dia o Miguel apareceu com outra rapariga.

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Era uma moça áspera. Morena, áspera - mas espera. Ele já tinha trazido outra. Não sei. Era uma rapariga deolhos pretos e lúcidos. E ele disse-me é a Carla. E eu dissemuito prazer. Apertou-me a mão e fitou-me nos olhos. Tinha umolhar ardente, congestionado de muita vida a acontecer eacontecida. Mas dessa vez não vinha jantar. Era já tarde eMiguel disse: - Vamos estudar ainda um bocado são portanto colegas - Não.Ela estuda para ela e eu para mim. Depois podia cá dormir. Como? Mas tu sabes que não tens quarto para ela. - No sofá da sala dorme mal e Miguel riu e a Carla riu e euestava no meio do riso dos dois cheio de escândalo e atrasomental. Porque tinha percebido, acabrunhado desubdesenvolvimento. - Mas cabemos perfeitamente - disse Carla a dar-me umaajuda. - Tenho o saco, posso dormir no chão - disse Miguel. - Mas

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não é preciso, cabemos perfeitamente. Tina saiu do quarto ao fundo do corredor, frente à cozinha,era já tarde, já estava recolhida, ouvira a altercação. Masnem tirou a camisa, vestiu por cima o casaco , uma banda dacamisa por baixo. Tinha uma contraproposta, a senhora dorme naminha cama põem-se uns lençóis novos e eu durmo no chão.Miguel irritou-se, a complicação por uma coisa tão simples. ECarla então, já farta, vou-me embora é o mais simples. Miguelfoi categórico - de maneira nenhuma. - Tudo isto é ridículo, de maneira nenhuma. E eu alvitrei uma outra solução, ia eu dormir no sofá, arapariga dormia na minha cama.

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- É uma bela sugestão - disse Miguel. - Tu dormes na minhacama e nós na tua que é mais larga. Tina olhava-nos consternada assombrada. Tudo isto é ridículo

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- Tina. Vai-te deitar - disse Miguel e ela entrou de novo noquarto como num refúgio contra a estupidez. Venho à porta dacapela - Ridículo porquê? - Não recomeces por favor - disse Miguel. Há já um ar do dia no céu pardacento, um clarão avermelhadoabre em leque desde a serra de Sintra. Porque tem de haver umaordem na vida, disse eu - Tem de haver. - Que ordem? Estamos fartos de manipanços. A ordem sou eu. Oh, mais discussões, não. Quantas vezes. Mais palhaçadas,não. Um dia descobri um princípio, porque tenho as minhasobrigações de rei da criação. E então disse - que é que disse? - Disseste que tínhamos de nos equilibrar uns com os outros,se não era uma bandalheira. - Pois. - Mas onde é que está a bandalheira, se dormir com umamulher? Só se ela não quiser. Mas se ela quiser, a bandalheiraé não lhe fazer a vontade. Mas não tentes discutir, que estoufarto.

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Agora com as luzes apagadas a manhã é mais fria. Arrefecidaa terra, entorpecida de insónia. Uma aguada de humidade no meucorpo tolhido, no ar vasto coalhado de ténue neblina. - Tina - disse eu. - Põe lençóis lavados na minha cama e saípara o jornal, como se tivesse de ir ao jornal, acabrunhadode náusea. Chamei Miguel de parte, aproveitei-lhe uma saída doquarto e disse-lhe nunca mais. Torcido de cólera nunca mais. Ele teve para mim um sorrisotriste. De piedade. E de uma intenção oculta ou resolução. Eeu fui dormir a uma pensão. Estou sentado à porta da capelapara o mar, Miguel diz-me qualquer coisa que não percebo bem.Ele repete - Sabes uma coisa? Nunca calhou dizer-te, mas nósnessa noite não fiZemos nada. Dá-me um gozo dizer-te isto.Dá-me vontade de rir. - Miguel! - disse eu com horror. - Portanto, se era o pecado que te afligia, agora devesficar contente. Mas parece que não. Tu que dizes? Mas tu

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mesmo não sabes porque a lógica afinal não é o teu forte. De todo o modo, quando nos encontrámos ao jantar, eudisse-lhe - Nunca mais! Disse-Lhe em tom alto e enérgico para suster mais razões.Tina circulava em silêncio à roda da mesa, submissa à suacondição servil onde não eram audíveis as altercaçõespatronais. Travado de frente, Miguel arremeteu para os lados.Era noite, já tarde, não voltou. Podia vir ainda, quantasvezes não foi assim? mas dessa vez eu senti que havia umarazão para não voltar. Flora, pensei. A sua obsessão, gostavabem de saber porquê. Mas o porquê era só o improvável ouimpossível. E então telefonei. - Que ideia - disse Flora. - Sim, ele veio aí, esse meninorabugento. Mas ele já devia saber que o seu lugar não é aqui.Você já Lhe devia ter explicado que não tenho condição paraacolher crianças caprichosas e insensatas. Porque é que vocêainda lhe não explicou? Tenho a minha

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vida, você devia saber.O lugar dele é ao pé de si.

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E estupidamente ocorreu-me - o avô, o pai da mãe, o meudirector do Informações. Um dia conversámos sobre ainterrupção da nossa vida. Mas ele estava atrás da secretária,acachapado em si, os olhos espessos avolumados pelos óculos. Edele para mim houve só palavras estatutárias de director. Eraviúvo, vivia nos Olivais com a governanta. E foi ela que meatendeu. Não, não estava, há quanto tempo ele não ia lá acasa. De modo que fui à polícia. De modo que fui ao hospital.De modo que voltei para casa. Fumei, fumei. A manhã veioenfim, eu adormecera num sofá do escritório. E eu sofria nãobem por subitamente me saber destruído, mas pelo que aí eramaior para a minha coragem de aguentar. Porque a dor dói

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sempre o mesmo, a diferença está em nós. Estava em mim. Tina.Não, não vou chamá-la. Mas prepará-la talvez? dizer-lhe épossível que o Miguel. Quando ela se levantar. O Miguel ficouem casa de uns amigos, dizer-lhe talvez. Não, não. Aguardarapenas. Cidade deserta, espreito-a à janela. Uma claridadebaça e fria. O estrondo do mar.

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XXVIII

Estava sol. Há-de estar sol quando for. A sala é comprida,toda aberta de vidraças para o pinhal. - Mas os pinheiros tiram-nos o sol da casa - diz a mulher deV. F. - Já cortei alguns, mas tenho de cortar mais. Nem possoter um canteiro de flores. - Mas um pinhal é bonito - disse eu. - Não são precisos tantos pinheiros - disse ela.E estes aqui

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em cima da casa estragam-na e tiram a luz. - É inútil - disse V.F. - Minha mulher é pinheiricida e nóssorrimos por educação. Clara expôs o seu problema. Paginava ojornal, mas o seu gosto era outro. Não, não o queria imitar.Mas é possível que tenha havido contágio. Uma entrevistadepende do entrevistado, obviamente. Mas também doentrevistador. Sobretudo dele, disse V.F. E imediatamenteexpôs o seu ponto de vista. Toda a pergunta inclui já umaresposta. - Se me perguntar qual a cor que prefiro não posso responderque a Terra gira à volta do Sol. Mas eu não gostei do que parecia um sofisma e disse não ébem assim, não é verdade? Há um limite de respostas, mas hávárias possibilidades aí. V.F. também não gostou.

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Percebi logo que uma objecção lhe escangalhava o funcionamentoda máquina argumentativa. Percebi logo que uma areia odesmanchava como a todo o sistema. De acordo, disse ele, masde todo o modo há uma limitação. Mas se não a houvesse era ocaos, disse eu, e ele calou-se. Tinha a engrenagem do seuracionalismo, calou-se. Depois recuperou-se para ter a últimapalavra: - De todo o modo tem de haver criatividade na pergunta. E asperguntas são quase sempre as mesmasporque escreve, qual o seulivro ou dos outros de que gosta mais, que livro está aescrever, qual a utilidade da crítica, que pensa da literaturaactual e assim. Não lhe vou perguntar nada, disse Clara, vamos conversandotodos e eu faço depois uma montagem, uma paginação do que sedisse, com perguntas e respostas. Podemos abordar as questõesque quisermos sem propriamente formular perguntas. Por exemplopoderíamos conversar sobre o porque é

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que se escreve, sem queLhe fizesse a pergunta. Mas V. F. deve ter-se imaginado logodiante dos alunos e disparou. E disse que sempre disse queescrevia para estar vivo. Mas já outros vieram a dizer o mesmoe portanto já não é verdade. - Porque já não? - disse eu. - Ora bem, tenho de pensar. Sei que é assim, mas tenho depensar. Como é que pode ser exacto o que vou dizer, se tenhode pensar? É boa. Se sabe que é assim, só tem de pensar o que é que olevou a saber que é assim e portanto o que pensar está certo.Mas tenho de acomodar a razão ao que sinto, disse ele. Masquantas acomodações não são possíveis? - Escreve porque gosta, V.F. - disse eu a arrasar. - Mas também talvez para cumprir um dever, porque gosto eisso afinal pode ser extremamente penoso. - Mas se mesmo assim o cumpriu, gostou. Pareceu-me entalado. Dava-me gozo encravar-lhe o maquinismo,

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ficou calado. Mas logo pôs a máquina a trabalhar. Porque háprazeres que não têm margem de sacrifício, disse ele, e isso éque é gostar. Estar à mesa com apetite. Fazer amor com umamulher que se ama. Ganhar no totobola. E assim. Mas a arte édiferente. Porque escrevo? Porque gosto de fazer, de merealizar numa obra , de haver futuro para mim, de visitar oencantamento, de descobrir o mistério do real. - Toda a gente tem no bolso uma definição da arte, do amor,política, coisas assim - disse ainda. - Dar uma definição éser deus, por ser definitivo. E então eu digo: a arte é atranscendência sensível do real. Serve-me. Palavreado. Mas não o disse. O homem é sempre umespectáculo, diverte vê-lo desarticular-se para ser único. Emtodo o caso: - Mas transcendência do real é tudo. - Se o fosse, tudo seria arte. Arre. Mas Clara vai escrevendo - sairá diálogo platónico? A

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mulher de V.F. vai fazer chá. Julgará que foi gentileza termosvindo, vai fazer. Clara, ó Clara. Olho-te um instanteesquecido na tua humana perfeição. Harmoniosa serena. Perfeitae sem excesso. Emanação da terra ligada à terra em belezaverdadeira. Como nunca - não sei. Olho-a na minha pacificaçãoquietude, mal ouço o que dizem. Porque no que dizem, mesmoClara já não está. E como é que pode estar uma mulher, fora deser mulher? - Não, não - diz V. F. mas não apanhei a que propósito. -Que um imbecil diga que escreve para estar vivo não é a mesmacoisa que dizê-lo eu. Primeiro porque perdeu a originalidadeque é uma condição para o que é verdadeiro. Em segundo lugar,

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porque é imbecil. Um criminoso, por exemplo, a falar de amornão tem sentido. A mulher de V. F. trouxe o chá, pô-lo

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numa pequena mesa emfrente, no canto da sala. E imediatamente tudo setransfigurou. Que verdade há na arte, no mistério. mesmo noteorema de Pitágoras, a comer bolachas? Por isso a conversasuspendeu-se. Falou-se de outra coisa. A mulher de V.F. diziaprovem deste doce ou deste, mais uma chávena de chá? e nadamais podia ter razão. Clara quis saber no fim de V. F. se eletambém tinha outra definição. Do amor. Da política. De não seiquê. Definir é ser deus, ele repetiu, por ser pouco inventivotalvez, ou gostar do chavão. Por isso os simulacros de géniosé que gostam de definir, disse ainda. Mas lá tentou também asua definição. Já não me lembro, decerto porque não valia apena. Do amor é que, qualquer coisa mais ou menos: define-se oamor consoante a idade que se tem. Assim, na velhice, ele ésobretudo uma longa paciência, como às vezes se diz do génio.Recordo-me, porque a mulher não gostou. E disse qualquer coisa

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mordente peguilhenta. V.F. disse quod erat demonstrandum. Eratarde, havia menos sol, Clara teve ainda uma pergunta: - O V.F. não gosta, acha uma pergunta banal, mas eu tenho deperguntar-lhe o que é que está a escrever. Ele resmoneou qualquer coisa, devassado na sua intimidade.Sim, escrevia um romance, naturalmente. Um romance ainda? Eque é que hei-de fazer? De que trata? Não sei. E se soubessenão dizia. Não, não. Não é um problema de segredo. Maissimples. Dizer seria gastá-lo. Mas quem é que consegue dizerde que trata um romance, mesmo depois de o conhecer?Experimente. Oh, sempre se consegue, disse Clara. Experimente.Imagine que eu nunca li os Karamazov. Conte, a ver se écapaz. Ou mesmo A Cidade e as Serras. O mais que consegue édizer - E já tem título? - interrompi. - Sempre o mesmo. Que é que quer dizer um título? Dentro depouco é só um rótulo. Ou o nome de uma terra. Mas eu digo.

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Chama-se Até ao Fim. - E já vai adiantado? disse Clara. Bastante, disse ele. Suponho. Depende de - não sei. Pulmões,ginástica verbal, multiplicação das células. Não sei. Agoraestou num ponto em que duas personagens vêm ter comigo e meperguntam o que estou a escrever. E eu disse: um romance,naturalmente. Depois perguntam-me o título. E eu disse que umtítulo é como um rótulo da aspirina ou um nome de terra comoFreixo de Espada à Cinta. Elas insistem qual o título e eudisse Até ao Fim. E que vai numa altura em que duaspersonagens lhe perguntam o título e se vai adiantado. E emque o autor lhes responde que se chama Até ao Fim e que vai naaltura em que duas personagens lhe perguntam o título e se vaiadiantado. E em que o autor responde que. Mas não sou eu quedigo nem é a mim que perguntam. Elas é que julgam. Não sou.Não é? Eu acabei de tomar chá, o outro não tomou nem comeubolachas. Mas eu tomei e comi. Que tipo,

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disse eu a Claraquando regressávamos às Azenhas. Tipo falsificado, disseainda. Disse, hei-de dizer. Que a paz me adormente, que tuvenhas enfim. Clara. Teu nome que amanhece. Olho as últimasestrelas, mas tudo é falsificação. Que outra definição para ohomem? também gosto de definir. Génio no desemprego, também.Construção aérea de si, imaginário de si. Também. Serfalsificado. É a definição do homem.

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XXIX

Oriana. Bem sei, é indecente. É irritante e agora? Precisode te ver. Disponho à minha volta todas as razões de umaverdade com que se é humano e equilibrado e transaccionávelentre os machos meus irmãos. Disponho à minha volta todo oescárnio do mundo. E não preciso de ver

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a tua fotografia quecustou caro aos meus deveres económicos. Mas o nosso encontroé no eterno e aí não há economia. Não vou ver o teu retratopara a loucura me não submeter. Imaginas tu o que é retirá-lada bolsa devagar e ficar gago e paralítico? Então Deus existeporque nada em si tem verdade bastante. Mas desta vezespera.Desta vez, olhar-te apenas, ver-te passar na transcendência deti. Branca luminosa. Não, não é isso. Translúcida diáfana etodavia carnal. Não sei. Porque há a presença inteira do teucorpo, sei-o da memória das minhas mãos, memória leve. E há oincorruptível na eternidade. Mas onde ver-te? em que pontoinacessível da minha inquietação? do absurdo da estupidez. Afadiga, a fadiga e nela todo o possível. Porque só no cansaçoo milagre, só no desespero a esperança - onde ver-te? E enquanto o penso chego ao alto de uma rampa e toda acidade de Coimbra se me desdobra no horizonte.

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Paro um instante para a reconhecer na distância do imaginar.Não está lá, está lá outra na estupidez do meu confronto.Demoro-me um pouco na minha inquietação, fixo o casario brancoescalonado na colina, a torre ao alto contra o céu, direitaimóvel no seu enigma. Tento decifrar aquele amontoado de casasao sol, descobrir aí os sinais da minha memória. Só a massaconfusa de uma revoada de brancura e um olhar coalhado e fitodesde um tempo irreal. Há a verdade categórica do que ali estáe o inimaginável do que em mim o não pode reconhecer. Há oirrefutável desse ser e o outro ser desse ser que é aeternidade dele. Demoro-me ainda um pouco no reconhecimentoimpossível com a vertigem de permeio. Depois retomo a marcha,desço para a estrada da ponte. Mas quando rodo por ela, não

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ouço o estrondear das pranchas de madeira. Ouço apenas o ruídodo motor que em pânico furioso atroa todo o espaço e não deixatalvez por isso ouvir o troar da ponte. Terei o motoravariado, o polícia vai multar-me com certeza. Cano de escaperoto? vai tramar-me. Está em cima do seu plinto desinalização, há um trânsito frenético ali na Portagem, vaitravar-me com o seu apito grilado estridente. Mas não. Nãoouço o ruído do tráfego, só o estrépito do meu carro como emestrada pela noite. Aguardo o sinal do polícia, viro àdireita, vou subir pelo Calhabé. Tracei o meu plano, Orianadeve estar a almoçar na sua casa da Rua do Norte. Vouconvidá-la para almoçar comigo no Pereira, ali ao pé, Rua dasCovas, no Joaquim dos Arcos do Jardim, vou convidar-te. Rodoao longo do Parque e enquanto a vou convidando, um carro velozcampeão frustrado - sua besta! encosta-se ao meu vejo-oencostar-se. Mas não chocou. Paro, vou

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ver, não encostou. Masencostou, eu vi, nem uma mossa. Mas nessa altura o motorfoi-se abaixo, que estranho. Foi-se-me abaixo e toda a cidadecom o seu trânsito infernal - um silêncio parado vazio. Enorme. Estou pois surdo. Normal em longas viagens. Retomo a manobra, o motor atroa, não estou surdo. Volto àesquerda no Calhabé, tomo a ladeira do Seminário. Passo aos Arcos do Jardim, subo a ladeira do Castelo,percorro a Rua Larga até ao Camões, estaciono aí - que horassão? Saem os estudantes da Universidade, talvez o fim dasaulas da manhã. Falam alto devem falar, reparo num quegesticula arrebatado de veemência. Mas não ouço nada. Cidadesilenciosa, não ouço. Vem do fundo da Rua Larga o eléctrico,fico a vê-lo até à curva na descida para a Rua de São João,para a Baixa, não o ouço no seu rangido dos trilhos. Passanítido no seu amarelo de ovo, balançando-se levemente, mas não

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range ao dobrar a curva para a descida, passa aéreo de sombra.Passo eu entre os vultos que passam, ninguém me olha. Entro noCafé do Jesuíta, pouca gente às mesas de mármore , conversamem silêncio, desço os degraus para a sala do bilhar. Doisestudantes jogam, não se ouvem as carambolas. A certa alturadiscutem, é uma discussão vigorosa sem som. O Pirata em frenteestá à porta com a sua jaleca branca e eu digo-lhe - Bom dia!e a minha voz repercute brutalmente no ar, mas ele nem meolha. Entro no Café Roxo, quatro tipos jogam bilhar,carambolam em silêncio. À porta da Associação Académica, jáagora entro também? cruzo-me com três rapazes, conheço um.Saúdo-o também bom dia ó Cristiano , não me responde. Foi umtipo, um dia passara pela cidade uma equipa de radioscopia,foi uma colheita tremenda de tuberculosos, era um tipo quetambém foi aproveitado. Coxeava, mas sempre distinto, vestesimpecáveis.

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À hora da morte o reitor foi visitá-lo - e que é que vocêqueria agora? e ele disse um bife. Morreu quando o comia.Cristiano! berro-lhe ainda, ele ia já distante a mancar. Estálá o porteiro à entrada com o seu boné de pala oficial. Muitosujo envelhecido a barba por fazer, muitos quistos na cabeçaquando tira o boné. Mas não lhe digo nada. Atravesso o salão àdireita, a um canto dois sujeitos jogam xadrez na eternidade.E adiante nos bilhares, um rapaz debruçado para a mesa, aperna erguida na tacada, está assim imenso tempo há imensotempo decerto, desde quando? Então penso - Oriana. Deve terchegado a casa, vou convidá-la para almoçar. Toda a cidade seme revela agora mergulhada em silêncio e todavia activa noentrecruzado do seu agir. Vejo-a reconheço-a, mas nem um

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rumor. Apetece-me gritar, vou dar um berro que te acorde, masassusto-me de mim. Os meus passos na calçada ressoamtitânicos, mesmo a minha respiração, o coração no peito. Souuma fonte de ruídos, fervor do mundo, no silêncio em redor.Mas é impossível que Oriana me não reconheça, ela vai-meperguntar que vieste cá fazer? mas eu dir-lhe-ei na evidênciade sermos vim ver-te. - Não venhas mais. Não venhas. - Ver-tesó. Pela última vez. - Nunca mais. Tudo isto é estúpido. Vê se entendes de umavez para sempre. Não venhas mais. Desço ao Largo da Feira, e parado ao sol, com o seu fatocinzento de asilado, o boné de pala, vou para ele - Dou-teuma coroa se me deixares chamar-te três vezes Caganeta. Ele vai dizer que sim, o olho ávido da moeda na palma daminha mão. - Caganeta! - digo-lhe e ele devia logo responder Vai fazerginástica nos cornos do teu pai mas não responde não me ouve.

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Parado ao sol. Sorri para si. A mão trémula no peito. Vou àRua do Norte, Oriana mora num primeiro andar. A casa desce coma rampa, dá a volta para a Sé. Subo umas escadas até à porta,bato a medo. Mas a pancada ressoa forte para o interior dacasa. Aguardo um instante, ninguém. Bato de novo com maisforça, aguardo agora mais tempo. Mas neste momento alguémsubia as escadas, metia a chave na porta. Queria falar comOriana, digo. Era uma rapariga nova, com o ar de empregada,reparei que tinha uma cicatriz na cara, de carbúnculo talvez.E sorria consigo com o seu pensar, sorria para dentro de si.Mas nem me olhou. Dei-lhe um berro - Quero ver Oriana! Ela sorriu mais, quase riso para si, na intimidade fechadada sua alegria. E abriu a porta fechou a porta. Espectrais aspessoas agora, passam em silêncio na distância da minhaalucinação. Vou pela Rua das Covas, se eu entrasse norestaurante do Pereira? É no primeiro

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andar, abro a porta dasalinha. Tem janelas de sacada, hora viva do almoço, e em todoo ar uma claridade de toalhas brancas. Pereira serve oshóspedes, conheço-o. Baixo, com a travessinha na mão, deveandar já na segunda volta, quando perguntava mais umabatatinha? mas num movimento rápido, de quem vai dar e retira.Olho os hóspedes, conheço alguns. O Júdice das matemáticas porexemplo, muito grave, o guardanapo leve na boca devagar. E desúbito. É uma mesa a um canto, está sozinho, estás poissozinho? que é dos teus amigos? O Farinha, e um tipo daMadeira que tinha um dente de ouro no riso, e aquele outrotipo, rebaixado em pote, tratador de futebolistas - espera.

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Não foi isso no Joaquim dos Arcos? estás pois só.Conheço-te, não muito. Imagem da minha

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invenção de mim.Olho-me um instante, não estou mal. O Pereira vai servir-me denovo no seu jeito rápido e enrolado de dar e tirar, mas euinsisto. Vejo-me insistir, o olhar vivo na travessa, o dedo aindicar o prato. Estás pois com apetite, sempre tiveste.Pereira rodopia numa aragem, em toda a sala o silêncio.Silêncio lá de fora, espectral irreal - se eu me sentasse àmesa? ao pé de mim. - Cláudio! - digo-me da porta para o canto da sala. Estou aplicado ao sustento, não me ouço. Ninguém me ouve.Posso ao menos largar um berro que abale toda a casa. Que adestrua no seu erro tão verdade - Pereira! - Pereira amigo, preciso de almoçar. Houve um riso comunitário na sala, alguma anedota, ou seriade mim? Se fosse. Ah, percorrer rapidamente a distância doimpossível. Saio para a rua, há um sol de evidência nadistância do meu excesso. Agora só me resta um encontro de

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acaso. Mas onde o possível dele nas linhas do teu rumo?Percorro-as na lembrançapercorro-as à toa na minhainquietação. Vou a pé para mais detalhe. Ferreira Borges,Sofia, Avenida. E as pastelarias aí. Jardim Botânico, SantaCruz. Praça da República. Olivais. Havia uma aventura daí aoCalhabé por uma mata fechada. E um dia disse-te sim? E tudisseste que disparate. Vagueio à toa por praças e ruas.Cidade mecânica agita-se no silêncio, irrealizada emabstracção. Vejo-a distante, cidade louca, estremece ao meuolhar desorientado. Depois rompo em alucinação, Rua deSub-Ripas, Rua do Correio, Palácios Confusos. Mas eis que logoao alto do Quebra-Costas - serás tu enfim? és tu enfim. Sobeligeira aérea. Fácil. Chamo-a a altos brados, a cidade treme.Chamo-a e ela existe na minha voz até ao esgotamento. Mas nãome ouve. Chamo-a de novo, vou até ela - és tu real em todo oabsurdo de me existires? Então vou para

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ela, tomo-lhe um braçoviolentamente. Mas a mão aperta-se em espuma, no seu vazio.Direita, leve, ela sobe a rampa em direcção a casa. A Séescura, contorna-a. Fico a olhá-la, meus olhos doentes. Afragilidade do seu andar. Luminosa sagrada. A massa negra da Sé.

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XXX

Agora Miguel dorme com frequência fora de casa. Telefonopara Flora, não, não está, há que tempos não ponho a vistanessa criança. Foi a primeira vez. Eu estivera até tarde nojornal, julguei que ele dormia, deitei-me. Mas Tina acordou-mecedo, o menino não dormiu em casa. E eu disse-lhe Tina não Lhe digas nada. E ela disse está bem- Mas não acha que lhe devia dizer uma palavrinha?

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- É melhor assim, Tina - disse eu. Mas não sabia bemporquê. Dizer fosse o que fosse era acirrá-lo talvez. Não sei.Era valorizar o seu acto e eu queria desvalorizá-lo para oneutralizar. Mas não o pensei, penso-o agora enquanto olho omar. A luz sobe da serra, abre plácida pelo céu - quanto tempoainda? Ardem-me os olhos. Um pouco. Arde-me o pensamento. Mas curiosamente mantenho-me à superfície de mim, sinto-meenergia do que confuso desceu já para uma zona de olvido. Nãodisse nada a Miguel mas disse ele. Era um desafio, não reagi.Apetecia-me perguntar-lhe agora porque me desafiara. Estousentado no murete branco, é um branco leitoso na claridade damanhã. Como a espuma do mar. Um branco ainda com sono,

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uma coisa assim. Uma brancura original,

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qualquer coisa que vaisubindo de um mistério escuro. Branco doce ténue. Macio. Mas odesafio não era bem um desafio, era uma provocação para que eudiscutisse com ele digamos os princípios, um modo de eu nãoter razão. Havia agora um vocabulário estranho no seuarrazoar. Mas o que me chamou mais a atenção foi - o que foi?Ele dizia sobretudo "prazer. A vida é prazer. Eu nasci parater prazer. Que é que tu tens para me dar em troca? Eu digo-teprazer - Eu digo-te prazer e tu vês-te à rasca para me daresqualquer coisa em vez dele." Chateava-me discutir. Em todo o caso fui dizendo não éverdade. Tive mesmo o meu toque erudito - essa história doprazer é velha como o mundo. Houve um tipo que disse - oprazer. Mas viu logo a barafunda e corrigiu logo, Miguel. - Dá-lhe as voltas que quiseres, não tem correcção. - Ele dizia que o prazer, está claro, mas um prazer quedurasse. A fornicação e a bebedeira e

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assim é logo parapassar. E então ele corrigiu. A virtude, paz de consciência,coisas morais. Coisa que durasse mais tempo. - E o que é que tu entendes por virtude? Oh, não. Sabatina, não. Pões-me o pano vermelho à frente aver se eu marro. Sou boi manso, eu. Em todo o caso, fiz de paia sério. A virtude é vivermos todos em harmonia. - Porra! Em nome de quê? Ó Miguel. Tão feio a grosseria. - Em nome de quê, é só o que pergunto. Tu falas em virtude enão sei que minhoquices da consciência e não sei quê e eupergunto-te só porquê. É simples. Tu só tens que dizer poristo.

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- Mas já disse. - Disseste que a harmonia e assim coisas chaladas. Não souestúpido assim. A harmonia é levantar a

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horas e tirar um cursoe chatear-me de toda a maneira e morrer depois como um honradopai de família. Mas descansa, não vou perturbar a tua ordempública. Agora quero é que me deixes em paz e viver a minhavida. Ou não tenho direito à minha vida? Ouço o mar. Ouço-o no recôncavo do meu ser. Confronto-o noseu absurdo com o absurdo do meu pensar. Miguel, tu não estása pensar bem. Por exemplo, direito à vida não é direito àmorte. - É, é. Mas não é disso que eu falo. Vê tu a sucatada do queestiveste para aí a dizer. E a minha questão era muitosimples. Bem. Tenho a minha dignidade de ser pensante. Tenho a minhapequena glória de ser responsável no pensamento. E todavia,por debaixo do que lhe ia dizer, uma dor fina funda subtil.Uma brevísima e fulgurante iluminação. Por debaixo do que iadizer-lhe - que é que ia dizer? Não ia dizer nada para seralguma coisa no outro que ele era. Só se

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pensa o que se é -onde é que se é? mas filosofices, não, podíamos estar aquieternamente. Podíamos estar ali indefinidamente num jogo depingue-pongue sem bola para jogar. Tão difícil falar-te.Porque há o que digo na distância de mim a ti e esta coisaincómoda de não haver distância nenhuma na genealogia. Estástu aí para eu te dizer, e estou eu aqui que sou teu pai e issoé confuso como o sangue comum. Senta-te. Senta-te aí num sofá,ouve. Tenho aqui argumentos para te meter numa jaula. Oh, tu éque não sabes. A vida é tão difícil. Tu é que não sabes que asrazões crescem em nós como o cabelo e as unhas.

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De vez em quando reparamos que já estão muito crescidas evamos ao barbeiro e à manicura. Então começam outras razõesaté terem de se cortar outra vez. Mas

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vou ser pai como sedeve. Vou ser augusto e solene de sabedoria. Vou-te entalarpara me respeitares porque sou teu pai e tenho já em cimamuitos anos de ser pensante. E então eu digo - Tu dizesprazer. Mas tem de haver quem to sustente. Que é que dás emtroca? Prazer à borla não há. Se queres prazer tens derespeitar o dos outros. Todos a exigirem só prazer dá barulho.Tem de haver equilíbrio. A harmonia é isso, equilíbrio elimitação. Mas ele riu-se. Pareces um padre, o Lulu. A questão é muitosimples - A questão é simples. Não te pedi para me fabricares,não devo nada a ninguém Estou farto de viver em regimeprisional. Toda a sociedade é uma prisão e eu quero ser livre. - E o mundo que se coza. O mundo que rebente. - Pois, pois. A vida é tão difícil. Depois ficámos em silêncio aconsiderar. Miguel disse ainda coisas, mas eu não ouvi - ouço

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apenas o rumor do mar. Mas daí em diante, ele falava pouco. Esobretudo saía de manhã à noite, a Tina dizia-me se eu o nãosoubesse e eu perguntava-lhe - Não tens aulas? e ele olhava-meestranho e dizia que não, abanando a cabeça. Lembrei-me entãode ir ao Técnico, alguém devia informar-me. Subi a escadaria,vagueei pelos corredores e pavilhões, onde é que? E encolhiamos ombros. Perguntei a um moço, ele disse-me que isso defaltas, um aluno podia faltar, eu estava desacertado com oregime de uma escola superior. Um dia ia eu a entrar em casa,Miguel ia a sair. Senti em mim um instinto de caça,

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de polícia. Segui-o pelas ruas e travessas, fui andando longotempo. Levava os olhos bem fitos, mas tudo em mim farejava aorés do chão em aplicação perdigueira. Até que a certa altura

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ele ergueu a mão muito alto, era uma mão imensa, os dedosestalados em leque e havia neles escritos em letras vivas"vai-te embora" e eu estaquei fulminado e ele virou rápido umaesquina e eu fiquei ali sem orientação. Voltou noite alta,ouvi-o entrar mas não dissemos nada. Foi quando o seuvocabulário começou a desnaturar-se de termos estranhos ao meuouvido regulamentar. Ouvia-o ao telefone, às vezes mesmo comamigos que trazia para casa. Dizia «ganza», ou «speed», ou«drunfo», ou «snifar». Mas havia um vocábulo mais frequente eesse eu conhecia-o. «Comunitário», «comunidade» - que é quequeres dizer? Ouvia-o na sua comunicação com os outros, mascomigo calava-se, porque é que te calavas? Eram palavrasmíticas, nebulosas de som. Como num ritual de que se tivesseperdido a significação. Eu perguntava-lhe, ele calava-se paranão profanar o mistério. Eram palavras de segredo sagrado, eurecolhia-me à minha humildade.

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- Flora. Você sabe o que é isso de drunfoH e snifarH? - Não me mace. Dialecto da infantocracia não me interessaaprender. Não me mace. De uma vez abri-lhe a porta do quarto, estava ele e trêsamigos à roda, em silêncio. Rezavam talvez a um deusdesconhecido, pensei. Meditavam na caducidade da vida, admiti.Ou apenas dormiam. Fechei a porta, não ergueram para mim osolhos. Dormitavam. Ou estariam num desses pontos mortos daconversa em que o a dizer foi já dito. Não me viram, fechei aporta. Mas à noite tivemos um encontro sério para uma trocaviril de palavras. Chamei-o ao escritório, sentei-o em frente,

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no lugar de um entendimento frontal. Ele veio sentou-seamolentado de indiferença. E então perguntei quem é que,porque é que, para que é que. Ele

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ouviu-me de olhar aguado decansaço. Miguel. Eu calculava, tinha o meu entendimentoalertado de suspeita. Tinha sobretudo um amargo de culpa denão sabia o quê. Tinha sobretudo uma aflição imensa de me vernele o réu de um crime ou desastre que era o meu.Desdobrava-me nele, na união do sangue que me aumentava apiedade, que era um sofrimento em mim sendo ele a sofrer. Umfilho é isso, suponho. A responsabilidade de uma amargura deque se não é responsável. A recuperação de tudo o que fossedele porque era meu esse tudo. Mas o que fosse meu ele não osabia sentia, porque ele tinha o legado que eu lhe dera e avida é o que continua. O sangue. Era assim. Falei, disse. Masele não teve uma palavra em que se dissesse e fosse o seumundo para mim. Ouviu-me apenas alheado em estranheza, umpouco vago de pasmo. Não tens nada a dizer? Não pensas serfranco comigo? Não queres que te ajude? Era uma tarde quente,

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o sol embatia-me na janela. Não dizes nada? Ele olhava-meapenas afundado confuso na distância do seu alheamento. Mas nesse dia desapareceu de casa. Deixou-me apenas umbilhete entalado no disco do telefone, que era onde deixávamosos recados um ao outro. Ou na memória de Tina que já tinha assuas quebras ou distracções. Não te maces a procurar-me, era oque dizia. - Tina. O menino não lhe disse nada? - Arrumou umas coisas na mala e saiu. Eu perguntei-lhe paraonde ia. Ele disse-me que ia para o paraíso. Não disse maisnada. Ir à polícia. Pôr um aviso no jornal. Aguardar. Telefonei aFlora, podia ser que. Ela exasperou-se.

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Tenho mais que fazer que aturar os caprichos dessa criança.Ele tem a vida nas mãos, pode fazer dela o que quiser.

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- A única coisa que você tinha a fazer era dar-Lhe educação. A única coisa. Se eu ma desse a mim? fechar um muro à minhavolta. Centrar-me em absoluta suficiência. Aguentar. Venho à porta da capela na solidão da manhã. O solbrilha sobre a serra, um azul original sobe à superfície domar. Mas é preciso atenção para o ouvir, no seu rumorimplícito como o da harmonia das esferas. O dia abre no espaçodo universo como a perfeição do início. Venho à porta dacapela - saber bem o teu enigma para o dominar no sabê-lo. Eentão eu digo - Miguel. - Deixa-me dormir. Insisto ainda, ele já não responde. Está bem, dorme. Falarásdaqui a pouco, porque é preciso é preciso. Agora as imagens eo retábulo iluminam-se bem, à claridade que vem do mar. Omenino guerreiro, o Baptista precursor, a Virgem daAnunciação. Ajoelha um pouco, a Virgem, porque o mistério pesamuito. Sorri um pouco, agora vejo, na

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humildade do seu ser.Miguel. Mas não te chamo mais. Tanta ideia em combate dentrode mim. Se tu soubesses como é difícil. Querer entender o erroe o desastre que não é para o entendimento. Dorme. Deve ser amelhor forma de responderes. Flora devia estar aqui comigopara a parte que Lhe pertence. Mas não estáonde está? estálonge, que é a sua forma óbvia de estar. Não te chamo, dorme.O espírito das trevas entrou dentro de ti, agora dissipou-se àinvestida solar. É o meu signo, nunca to pude explicar. Todo opensamento é das sombras do mundo, todas as razões para se terrazão. Não tenho razão eu, tenho apenas uma certa necessidadede higiene. Vou tomar banho logo que tudo acabe.

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Vou ser em claridade e frescura. Vou ser inteiro e nu. A vidaé só ela a ser, sem argumentação. Há

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mais verdade numa couvedo que em toda a filosofia. Há mais grandeza nela do que emtodas as razões da grandeza. Não te pude explicar, mas tuestavas condenado e não podias aprendê-lo. O anjo da noitedesceu sobre ti, agora é tarde para te explicar o sol. Mas certo dia tive uma visita estranha. Era um tipo cheio debarbas, mas sem força para as ter. Porque era anémico, curvadoda espinha e coado de palidez nos sítios em que não haviapêlo. Mas o mais pálido nele eram os olhos, esvaídos dedoença. Trazia uma carta de Miguel que dizia apenas manda-medinheiro. - Onde está o meu filho? Levo-lhe eu o dinheiro. Que ele nemdiz quanto precisa. Ele teve um sorriso de esguelha e havia dentes podres nele.Expressamente estabelecido não lhe dizer. E eu mandei-o sentarpara repousar da sua obstinação. Levou tempo a repousar,consegui. O mensageiro levava a massa, dava-me em troca o

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endereço. Mas ir, só daqui a uns dias, disse.

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XXXI

E foi o tempo bastante para Tina morrer. Mas não julgues queme vou comover, despacha-te depressa que tenho mais queaguentar. Um dia ela foi ter comigo disse-me - Menino. - Diz depressa, que já estou atrasado. E ela disse - menino. tenho umas economias - Tenho umaseconomias, queria deixá-las a si e ao menino Miguel. - Está bem. Mas logo conversas. Conversou à meia-noite, estava à minha espera, a morte jálhe tinha feito há tempos uma visita de cortesia. Fora unsmeses antes, eu soubera. Fui eu mesmo que lhe abri a porta, aTina? perguntou. Foi ter com ela à cozinha , mas demorou-sepouco. Mas eu pensei sabotar-lhe a manobra e levei-a ao

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Nogueira da Costa porque tive indícios de que o coração é que.Cheguei tarde do jornal como de costume, Tina ouviu-me e veiologo. Trazia agora suspenso um saco de plástico, entrámos noescritório. E ela explicou - menino. Ah, tu nunca mais medeixarás crescer? Devia agora lembrar-te quando comecei a servivente, não lembro. Quando comecei a existir para a tuafrustração maternal. Não lembro, agora não.

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Trazia um saco de plástico e começou a explicar. Sessenta anosde avareza doméstica e servidão. Hás-de morrer daqui a pouco eeu não sei ainda quando. Pode ser no Verão das noitesestuantes, as janelas abertas para a igreja em frente e opoeta de bronze ao lado. Pode ser no Inverno, num dia lúgubrede chuva e a solidão mais pesada para eu aguentar. Ou no

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Outono plácido dos tísicos, mas tu vais morrer do coração. NaPrimavera, mas tu envelheceste tanto. Dirás tu que é quando euquiser, mas tu não sabes que eu não tenho a liberdade deescolher, Tina, tu que preferes? Mas não digas agora, agora éa altura de vermos o teu pecúlio avaro. Estamos no escritórioe tu abres o saco das tuas economias. E eu fiquei parvo deteres economizado tanto. De teres extraído do salário o teucapitalismo. - Mas então tu não puseste o dinheiro na Caixa? - Para quê? Para mo roubarem? Havia notas que já não tinham circulação. Havia mesmo algumaem moeda estrangeira. Uma parenta ou amigo que lhe escreverada América. E estas são de quando os seus paizinhos queriam ira Espanha e eu também ia. - Mas trocava-las, Tina. - Não me davam o mesmo, menino. Como tu és doce, Tina. Nascida da virgindade do mundo. Nagraça intemporal e tão queridamente estúpida. Havia um banco

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ali à esquina, eu ia ver se. Agora eu ficava com o capital,fazia depois a satisfação das despesas do enterro. E o restoque ficasse - A quem é que o ia deixar? Tina. Minha ternura tão cansada. Meu sorriso mal-educado nagravidade da morte. Chamei o Nogueira da Costa, ele morava aliperto na Avenida Madrid, chamei o 115 para os serviços deurgência, não, chamei primeiro o médico que já a conhecia. Eele veio logo sereno e fatal. Internamento de urgência, fuivê-la ainda com uma complicação de tubos de salvação. Mas nadaa fazer. A idade e o mais. Era uma noite de Verão, vais pois morrerno Verão e gostava bem de saber porquê. Contratei uma agênciapara todo o ritual. Ficou no Cemitério do Lumiar, quase forade portas, que tu não eras da cidade tão difícil. Ainda a vino último momento. Tinha humildade bastante para a insensatezdo mundo. O rosto sereno no fundo da sua nulidade. E rezava oterço com medo do Altíssimo. Só eu

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assisti e os oficiantes damorte. Regresso a casa devagar, perdido no tráfego da cidade. Eentão lentamente, a tua imagem oculta, um aceno horrível deoutrora. Ah, tu não fazes ideia, Tina. Está bem que tinhasdireito a uma definitiva aposentação. Mas eram só mais unsanos, Tina, assim deixas-me bem aflito. Só mais uns anos paraque quando te lembrasse fosses só a minha recordação. Coisafácil e avulsa só de recordar. Entro agora no Campo Grande,lembro-me de acender o rádio. Estou só, qualquer coisa que mefaça companhia. Abro o rádio, uma sonata, parece-me, deBeethoven? uma coisa plana e larga como o nome de sonata.Podias ter esperado alguns anos, coisa pouca, o bastante paraeu dizer que sim à vida infame que me codilhou. O bastantepara eu existir por mim. Espera, é a sonata ao luar; nãogosto. O gosto dos outros comeu-Lhe tudo, não gosto. Mas ouçonão aquilo que vou ouvindo , mas o que

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ouço para lá. Assim tunão és coisa natural de recordar, mas a aflição que está paralá. Estou verdadeiramente embaraçado, tu não podes imaginar noconforto do teu descanso. E então devagar vou até à tuamemória que é a realidade fictícia de eu estar bem onde nãoestou. Memória antiga como o começo do mundo.

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A noite era uma chatice porque eu não queria separar-me de ti.- Já és um homem, agora dormes sozinho. Não queria, meu pai irritava-se, punha-me de caras com osmeus deveres machos. Não queria, tinha medo de ser homem. Namesinha-de-cabeceira, um copo de água e uma fatia de pão porcima, "água cheia, o copo a transbordar". Noite fora acordava,comia e bebia o sagrado da vida. Tu estavas comigo na cama eera bom. Eu ouvia as chuvas e os ventos de Inverno e era bom

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saber ao pé de ti que não tinham razão. - Oh, este menino medricas. Amanhã dorme sozinho tu dizias.Mas também não querias, para se cumprir um pacto de sangue quenão havia. Ou quando no Verão eu vinha da rua acalorado e tume subtraías à cólera materna e me enxugavas a testa e melavavas da imundície. Lembro-me, Tina, é tão difícil. Ouço asonata, é tão duro. Ou quando me contavas histórias estúpidascomo essa do pintainho que nascera com um pinheiro na cabeça eo pinheiro cresceu e um homem subiu por ele até ao paraíso equando queria descer o pinto já mudara de sítio e o homem caiue ficou cego de um olho. Ou essa outra em que - já não sei. Etudo isso era belo como não pensar. Não, não, Tina, não medigas para o que me havia de dar, tudo isto é verdade como aminha fadiga. Terei de ir à aldeia, talvez. Repetirei contigoa terra e os animais. E a montanha que ainda não aprendi. E osilêncio interior do mundo. E a água verdadeira que ficou lá.

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E o sol. E o sinal de uma lua grande nascer. Tu ensinavas tudomuito bem. Ensinava-lo no modo de as coisas serem por si.Também tinhas as tuas relações com o Altíssimo, mas não demuita intimidade. E falavas-me dele de passagem, embora fossenosso vizinho. Em todo o caso dava-te volta à cabeça aquelamania de minha mãe se voltar para a parede. E rias. Eprotestavas. Mas o que tu sabias ensinar era a verdade dascoisas. E a tua aliança animal. E o sangue que veio até mim ena tua insensatez julgavas que passara por ti. Não, não, Tina.Não te pertenço senão onde em ti continua a verdade da minhaficção. É a ficção que me invento também quando tudo é demais.Ah, como o menino vem magro, minha senhora - eu vinha agora sónas férias, Tina estava atrasada na sua vocação servil. Não meponhas o pão com água, oh, não, Tina. Cresci muito. Durmo jánoites de homem. Nem botija no Inverno? Cresci já até aosombros viris, tenho já a voz grossa, o

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que digo agora nela temo peso do mundo, Tina. Estou já cheio de responsabilidades, tunão podes imaginar. Lutas ódios maldições. E os sonhos, quetambém pesam. E a estafa para atingir o futuro. E os desastresfalhanços humilhações. E essa coisa esquisita dos problemas deconsciência. Não me perguntes o que isso seja, que também nãosei bem, Tina. E os ideais com que se embandeira a loucura. Eo quotidiano que é chato por sua intrínseca natureza e que temtambém o seu direito. E mesmo o amor, só é bom enquanto não éou quando já não, como todas as coisas. E esta chatice absurdade só se gostar a valer do que nunca pode existir. E não meponhas essa cara pasmada de quem viu o demónio em feitio decabra à meia-noite, porque tudo o que te digo tem uma verdadesolar como um dia de canícula. Ah, cresci demais para poderesexistir. Em todo o caso, não posso ainda existir todo paralargar tudo de mão. Uns anos ainda, Tina. Estou bem confuso da

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vida - enquanto a sonata me envolve ainda de melancolia. Tenhoa alma enregelada, se tu fosses ainda a botija.

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Estou cheio de horrores adultos e seria bom vir ainda de ti apacificação. Viro para o Campo Pequeno, vou apanhar a Avenida de Romapara a Praça de Londres. Foste bem indecente em teres morrido.Esperavas mais uns anos, que é que te custava? Dois ou trêsanos para este estupor da vida não ter razão. Foi uma pequenasacanice da tua parte, tu que sempre foste tão delicada. Tentoum lugar para o carro no pequeno parque à beira da casa. Queestupidez teres morrido agora, podias esperar mais um pouco.Mas no parque, os carros acavalados uns nos outros. Dou avolta, tento o parque ao lado da igreja. Há várias filas, oguarda diz-me um sítio secreto lá ao

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fundo. Dou-lhe aespórtula e agora? Compro o jornal num vendedor da rua, entrono Café Roma lá para o fundo. Um vozear disperso como esterumor do mar, mas sem infinito que o justifique. Leio asnotícias a olho sumário, mas o que leio é sempre a pequenainfâmia de Tina. Não morras, não morras já, é absolutamenteestúpido essa tua traição. É absolutamente necessário que meesperes em casa, me reconstruas a harmonia possível nouniverso. Ah, como vem alagado em água, e me limpes o suor deuma vida inteira. A tarde está quente, venho realmentealagado. A tarde está quente ofegante e tudo nela me pesa atéà minha destruição. Quando saio, o tráfego intenso do fim dodia, da fuga disparada até ao esquecimento. Tomo o ascensorpara o meu terceiro andar, meto a chave ao ferrolho naexpectativa da casa abandonada. Flora, Miguel. E agora tu.Hás-de confessar que é demais. Mas eis que ao abrir a porta.

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Num giro vivíssimo de porta em porta, um ar sério no rostocansado, Tina nem me vê - Tina - digo-lhe - estás aí? Como ébom estares. Mas ela não me responde, activíssima num rodopio pela casatoda. Depois mete-se na cozinha - vou ter contigo? Fico paradono corredor, ouço-a lá para dentro remexendo os trastes da suacondição. Fico parado no corredor e nesse instante a sua vozergue-se pela casa toda - O jantar está na mesa! Vou rápido àsala, a mesa com o naperon e a fruteira em cima, vou rápido àcozinha, Tina não está. A casa deserta. O rumor furioso dotráfego na rua.

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XXXII

A casa era para os lados do Parque de Palhavã. Era velha, aporta de madeira com grelhas nos

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batentes. Toquei para orés-do-chão, era aí, mas ninguém abriu a porta. Toquei para umandar qualquer, veio uma mulher à janela. Debruçava-se doparapeito como as crianças, muito inclinada para a rua.Expliquei e ela abriu. Havia uns degraus de madeira e umpequeno corredor. Ao fundo era a escada para os andares decima sem elevador. Um gato preto atravessou o corredor, acauda quase de rojo, parou um instante a fitar-me, continuou,desinteressado. Quando bati, espreitaram-me ao ralo e houve umlargo tempo de espera. Por fim uma jovem. Era lânguida. Fumavacom sonolência, o fumo em fio dos lábios, o ar displicente. Eeu disse. Ela foi lenta como o cansaço - Não há aqui nenhumMiguel. - É meu filho! Preciso de falar com ele! A minha voz forte repercutiu no silêncio que súbito seestabeleceu. De dentro perguntaram quem é? Diz que procura umMiguel. Houve uma nova hesitação. Miguel

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apareceu à porta. Eimediatamente irrompi pela casa dentro. Mas na sala onde logoentrei, eram uns seis jovens, ninguém se alterou. Estendiam-sepelo chão, em sofás velhos e arruinados.

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Tinham o ar esvaído, uma fadiga do começo do mundo. Algunsfumavam e havia fumo de uma noite por acabar. Uma janela davapara um pátio visível, mas estava fechada. Eu olhava, eles nãome viam. Estavam concentrados num mistério onde eu não tinhavisibilidade. Era longe, fora da vida plausível. Translúcidospálidos viscosos. Coados de doença transparentes quase para láda consistência material. Eu olhava-os sempre, Miguel foisentar-se no seu lugar comunitário. Sentou-se de lado num sofácomo a vadiagem num banco de jardim. Estavam todos quietospassivos cheios de transcendência mística. Estavam todos

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entregues a uma estranha meditação. Afundados em si.Massificados, massa gelatinosa. Plasma oleoso, que voz vosfala no limite da sonolência? No indistinto de um fio fino demorte? Uma náusea de vómito, eu a sentia, não sabia bemporquê. Então eu disse - Miguel. Meu filho e ele não seexaltou - seria agora meu filho? ou invenção da piedade? - Vem comigo, Miguel mas ele nem se mexeu. Acordara à minhavoz humana, recaía flácido em abandono. A rapariga estava àporta comigo lenta de fumo - como vê - Como vê, não estáinteressado em ir. Mas eu estava. Fui junto dele, ergui-o por um braço, eleveio atrás, escorrendo por si abaixo. Um táxi. Levei-o acusto. Grande pifo, disse o taxista, e eu fazia um esforçoanimal para não chorar. Consegui deitá-lo sobre a cama, fiqueipara ali a olhá-lo. Miguel. Tão absurdo tudo isto. Invento emmim quanta força para aguentar. Devias pensar um pouco em mim,

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se não é pedir-te muito. Gostava bem de entender - que é quequeres entender? Porque há-de haver uma razão para a estupideznão ser estúpida e a vida meter o meu desastre na suaeconomia. Há silêncio no quarto, só em baixo na praça o ruídosurdo do tráfego. Tudo arrumado no seu lugar, Tina deixou ascoisas como devia, antes de se ir. Liguei-me à terra atravésde ti, dei a continuação ao que me transmitiram e de que fuiincumbido, tu não o queres saber. Porque é uma cadeia imensaque entra por dentro dos milénios, devia ter-te explicado.Milhares milhões de humanos me incumbiram da obrigação, nuncao pensaste. Passei-te o testemunho, onde diabo o meteste? foium acto grave o meu, onde é que? Dormes espalhado na cama embeliche com a roupa entalada na barra de madeira à volta, aTina deixou-ta preparada. Mas o que mais me irrita é a tuaacusação não sei de quê. - Miguel! Ah, não respondes. O dia ilumina-se na sua verdade por céu e

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mar, é uma verdade azul. Confronto-me com ela, não cabemos lá.Inocência primitiva, como caberem os pecados do mundo? é umaacusação terrível a tua, não a sei. Estendido na cama,olho-te. É uma acusação que começa no teu desprezo que estámais para cá. No sítio do teu silêncio, na face fechada de irasurda, talvez no teu pudor. Discutir é dar razão, por concederuma réplica, não discutes. Assim me dobro de humildade diantede ti. É duro, confessa. É duro preparar-te a mesa e a casa ea vida e tu varreres tudo para o lado, displicente. É feio opecado da soberba. Grosseiro. A recusa de uma oferenda dehumildade. Mas fecho a porta, venho para a sala. Dorme. Então lembrei-me de telefonar ao Miguel Oliveira da Silva,

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conhecia-o, bom amigo. Era médico, conhecia o director de uma

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casa de recuperação. Interná-lo, não, disse-me, só em casosexcepcionais É um caso excepcional. - Eu vou aí. Ele veio e eu disse-lhe compreenda, estou só em casa, era umgrande favor. Receitou coisas, telefonou, sim, podia ser nessemesmo dia. A casa para o Restelo tinha um ar de vivenda. Árvores, aéreade arcos. E via-se o rio em baixo. Miguel ficou. Tive umaconversa prévia com o director mas eu disse - a Flora não,gostava de que tudo se passasse entre nós. E ele traçou-metodo o processo habitual do desastre. Desagregação familiar, óFlora louca altiva distante. E com leis próprias no teu modode te inventares superior. Depois disse - o alheamento, odesinteresse pelas nossas regras de ser social. E o gosto dogrupo para a metafísica de uma religião e a solidão a muitosnão ser tão só. E o desencadear da escalada que tem o limitena morte porque não há outro limite no desejo do que não há. E

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as várias técnicas para o desejo ter razão sem ser no desejarporque isso é que é. E a obsessão de que a história dasreligiões continua. E os rituais, os métodos e mesmo as formasde os iludir como nas manhas do beatério. E a articulação deum mundo diferente sobreposto ao dos profanos daquotidianeidade como o dos cristãos das catacumbas. E a suasagração de eleitos sobre o reino da estupidez. E até ainvenção de uma arte aí, com a estridência do seu berro. E umdesprezo infinito pela incompreensão alheia. Era culto odirector, um modo largo de entender. Uma filosofia que passavaalém da farmácia. Um entendimento da alma e da confusãohumana, intercalado à patologia. Gostei de o ouvir. Gostei deo pensar no meu pensar anterior. Gostei. E fui triste eexaltado como um absurdo implacável. Até que um dia, podia eu aparecer? Combinou-se a hora o diae toda a circunstancialidade. Era uma sala silenciosa, tinha

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ao meio uma divisória sofisticada. Do lado de cá ficava eu, dolado de lá o Miguel e os técnicos da perfeição. Eu via-os,ouvia-os. Eles não me ouviam nem viam para a independência docoloquiar e a exclusão de um agente perturbador. Assim assistodo lado do meu pecado à restauração da virtude que eu nãotinha autoridade para restaurar. Miguel sentou-se, pareceu-memais magro, mas com um modo mais estável de ser. À frentedele, do outro lado da justiça da razão quotidiana, era umpsicólogo? tratador das almas. Foi amável razoável sociável.Perguntas breves como no prelúdio de um combate, Miguel malrespondia. Depois houve uma volta larga por todo ocognoscível. Miguel acompanhava-o, ia reconhecendo os sítiosdo seu desatino. Já os conheço, eu, desinteresso-me daconversa, venho entretanto até ao murete sobre o mar. Vejo-oplácido na alegria do amanhecer. E na vitalidade respiradafundo - que mais para a vida não mentir?

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Ah, minto eu nela, sefor preciso, para ela não, porque eu quero é que ela sejaverdade. No sol varrido ao largo do horizonte, um barco ououtro já visível no lance da aventura. Confronto-me com aimensidão das águas e a minha pequenez é confortável. Dormirdisparado ao horizonte até aos confins da noite. Olho as ondasna eternidade da sua monotonia tão diferente. Vejo-as estoirarcontra os rochedos, estalar ao alto em espuma, florinstantânea ao meu olhar súbito infantil. Indecisas de brumaao longe, esfumam-se, povoações marinhas no incerto da minhainfinitude. Estou bem, deixem-me estar.

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Tenho de ir ouvir o psicólogo, deixem-me estar. O universo vaicomeçar, ouço-o no estrondear intenso das águas, como não sereu aí no começo de mim? E o aroma intenso à vida fertilidade,

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o mar sabe a voz primordial. O sémen. Gaivotas passam no seudevaneio lúdico. E a capela agora aberta de brancura. Tem oolhar meditativo do horizonte. E aguenta-se obtusa nestareinvenção da vida. Se eu largasse um berro mais forte do queo mar e tu te desmoronasses nas ruínas do que és? Meu coraçãoaflito. Sê evidente como antes de haver razão. Flutua ao largouma agitação calma, plácido de força o mar. Uma verdadeplácida que me atravessasse o cansaço. Meu excesso. Minhadoença - mas tenho de ir ouvir o psicólogo. Está ele agora naperoração final. E diz que a sociedade. E o prazer daconsciência tranquilidade moral na realização dos interessessociais. E o trabalho dignidade humana em convergênciacomunitária. E o respeito por nós próprios na inteireza denós. E a miséria da degradação no farrapo de nós. Eu estou agostar de o ouvir e nem olho agora o mar. E a sublimidade dacriação de uma família. E a valorização

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da espécie. E arealização da vida na forma nobre do homo sapiens. Entre amorte e a vida, onde o lado positivo? - Não se sabe - disse Miguel. Entre uma árvore viva e uma morta, a viva é igual à morta,mais a vida que tem. A viva é melhor que a morta. - Menos se for para lenha. Não brinquemos. O riso é uma forma menor de se parecermaior. A árvore morta dá lenha, mas a viva dá sombra e frutos- e Miguel perguntou qual a diferença, mas o tratador nãorespondeu. Tinha uns restos de discurso a despachar,despachou. Todo o problema tinha que ver afinal com.Chamemos-Lhe dignidade humana. O homem, o centro de tudo. Que era o universo se o homem nãoexistisse? Filosofia fácil filosofice. Pois. Mas radicalevidente inamovível. A história do homem é a da suaimportância. Chamemos-Lhe orgulho. Nada é mais importante parao homem do que ele próprio. Egoísmo. Mas admitamos que todo o

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altruísmo é egoísta. E os ideais. E o desvario político. Se umsujeito vai arriscar a pele é porque isso joga na importânciaque dá a si. - Como eu. Não. É diferente. O meu amigo escolhe a servidão submissãohumilhação. O joelho dobrado. Até à loucura. Gostei de o ouvirpor detrás do vidro. Entusiasmava-me, apetecia-me entrar nobarulho. Oh, para quê. As mesmas palavras na minha boca tinhamo vício do que lhe sou. Mas reparei que Miguel, talvez jácansado quebrado de desprezo, reparei que não respondeu. Eentão o psicólogo aproveitou. Parecia-lhe que cambaleava, umsoco ainda que o prostrasse. O joelho dobrado até às matériasexcrementícias. À incapacidade de dispor de si, o tratadordizia. O vexame, o escarro na face vindo de um escarrador. Amerda constituída. A lepra o pus, Miguel não dizia nada. Opsicólogo teve um olhar especulativo - estaria ko.? abriuligeiramente os braços, estava encerrada

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a sessão.

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XXXIII

Oriana. Só uma vez ainda, a última. E enquanto olho o mar,sentado no murete de costas para a capela. Não penses que voufazer cenas, olha eu agora a fazer cenas. Sovado de toda aforma pela vida. Pisado moído de pancada e ter ainda um restode emoção disponível. Não, não, ver-te apenas e dizer-te umadeus do tamanho do mundo. Never more. Tenho ainda um bocadode vida a cumprir, foi-me guardado pelo destino. Sobrou do queme roubaram, o destino guardou-mo como um bocado de pão.Recebo-o à porta da sua grandeza, vou comê-lo que estou comfome. Não te vou fazer cenas, ver-te só sem uma palavra.Talvez tu sorrias como é próprio de existires. E eu serei

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contente na minha candidez. Acenarás talvez com a tua mãosuave para o tolinho que sou eu. E tudo será perfeito eindiscutível e irremediável como haver coisas. Vou de novo aCoimbra, ver-te apenas, pela última vez. E quando chego aoalto da rampa antes de descer para a ponte, de novo a cidadealargada a todo o horizonte. E a todo o espaço do céu, ouço-ohumilha-me um timbre de guitarra. Desço devagar, ouço-osempre, é o timbre da morte. Voz oblíqua. Desce-me grave amelancolia do fim. Há um lenço ao longe faz-me sinais.

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Não sei de quê. Há uma amargura que não tem direcção,invisto-me dela como num funeral em que a dor é para osoutros. Uma amargura de si. Mas não me vou comover, gostavabem que soubesses. Ver-te apenas e dizer-te nunca mais.

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Despedir-me de todo o lixo do sentimento num balde à porta decasa. E ser um homem inteiro transaccionável respeitável.Desço para a ponte, é uma ponte nova, parece-me, sem o troardas pranchas de madeira. Mas nenhum carro passa nela. Chego àPortagem, ninguém. Cidade deserta, cidade abandonada. No lugardo sinaleiro o plinto sem sinaleiro. Só a toada da música,sempre. Há um pequeno parque automóvel ao fim da ponte àdireita, um carro apenas, velho, decerto já fora de uso. Paroo meu aí, um ressoar de vento do deserto. Então reparo que noParque da cidade, imobilizado nas calhas, era um comboiozinhoinfantil, fazia a ligação com a Lousã. Atravessava a cidade àbeira do rio com o seu assobio de aviso, marchava cautelosocheio de apitos. Está parado na linha férrea, Ferreira Borges,Visconde da Luz, mas as portas estão abertas. Livrariasfarmácias lojas de comércio. Entro na Pastelaria Central, setu estivesses? Mesmo no fumo da tua

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irrealidade. Não te tocar,falar-te apenas, é pedir muito? ver-te na névoa da minhainvenção. Mas o salão está deserto. Então súbito bato aspalmas para me ouvir ser. E logo aterrado com a enormidade demim como em todo o lugar deserto. Sem ninguém que me equilibree estanque a hemorragia de mim. E então lembrei-me se teprocurasse em casa? o lugar da tua finitude, da modéstia deseres humana. Passo o Arco de Almedina, subo as escadas doQuebra-Costas. Devia ir no carro pela Avenida, dar a voltapela Praça da República, parar à porta da Universidade. Edescer depois a tua rua. Mas foi aqui que a última vez teencontrei, pode ser o lugar marcado pelo destino. Só que ameio, estás bem em baixo, no esgotamento de todos os destinospossíveis, sento-me um pouco num degrau. Vem uma balada, viráda Sé? e estranhamente Oriana reconstitui-se-me invisível noondeado da música. Música da memória, toada escura. "De tantos

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beijos que demos/ que tu me deste e eu te dei/ tanto trocámosas bocas/ que eu nem da minha já sei - mas não é a letra queeu ouço, o que ouço é o que passa por ela. Luz de um vitral. Ésó a luz com a memória de por onde passou. Subo o resto daescadaria, o largo abandonado na eternidade. Se tuaparecesses. Flexível no teu jeito frágil de andar. Articuladade graça espuma leve. A perna nobre do teu porte, quando telembro assim. A anca ágil. Um ritmo de enleio em todo o teucorpo. E ovante o teu cabelo - se tu passasses atravessasses omeu silêncio de te ver. Depois dou a volta pela Rua do Norte,a casa dobra a esquina na subida. Há uns degraus para o andardela, depois há mais degraus para o alto. A porta estáencostada, desloco-a subtilmente. Entro devagar, há um ângulo,depois o corredor estende-se por entre portas abertas até auma sala lá ao fundo. Chamar-te, tenho medo de me ouvir. Vouolhando os quartos dos dois lados, o teu

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era este, a janelapar das traseiras da Sé. Devia talvez chamar-te, podes estaroculta sob a minha indignidade de te ver. Chamar-te com acoragem acima da minha inferioridade terrestre. Não chamo, nãotenho coragem que chegue. E todavia estou aqui à beira-mar, ofilho morto ao lado, e aguentei firme a vigília de ser homem."Meu amor vem sobre as ondas", não, não. Aqui não. O que há anascer não tem memória como é próprio de quem nasceu. A casadeserta, paro a meio do corredor, e o vento, o vento. Cresceno silêncio, nos frisos da Sé.

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Depois subo a rua, entro no pátio da Universidade. Há umamemória de eras mortas no espaço abandonado. O vento ainda.Percorro os Gerais, a minha sala a última, as portas abertasno anúncio da ruína. No banco ao fundo do jardim, nós os dois

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sentados para o futuro, se eu lembrasse o teu sorriso. Finoaéreo. E a alegria de existires. E o meu joelho dobrado dehumildade ao insuportável excesso de ti. Sento-me no banco,não estás. Plácido o rio e um pedaço da cidade erguida dooutro lado como um espelho. E a aflição da cidade deserta.Debruço-me das grades para a rua em baixo. Ouvia-se lá umabalada que era então a melancolia de a ouvir agora. Não ouço.Tenho mais que ser gente para depois do adeus definitivo. RuaLarga dissipada no vento. Os cafés ainda lá estão mas agoranão há ninguém - procurar-te ainda onde? Largo da Feiradeserto por onde vinhas da aprendizagem do teu futuro,procurar-te ainda onde? chamar por ti no centro do universo.Sangrar de loucura na minha insensatez. No Penedo? fomos lá sóuma vez. O teu horror desprezo pelo cansaço doença.Antecipação da morte. No Jardim Botânico? foi lá que teinventei. Vou ao largo da alameda, o

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vento nas árvoresenvelhecidas, na vegetação selvática dos canteiros, os meuspassos de silêncio na areia. Depois rompi à toa pela cidadeinteira. Podias ser gentil uma última vez. No virar de umaesquina, num cruzar breve de rua, mesmo no aéreo de umafiguração. Never more. Cidade morta, acabou-se. Não insisto.Mas no fundo do desastre, como é estranho. Caminho devagarpela cidade deserta, estou bem cansado, é bom que saibas. Nãote quero inventar um remorso. Saberes apenas que esgotei emmim toda a possibilidade de ti. Mas no fundo do esgotamento, éestranho. Uma balada ecoa na minha fadiga. "Numa cova àbeira-mar/ minhas ilusões guardei." E na confusão do que seatropela em mim, na verdade do sentir que não tem verdadenenhuma, no alvoroço do que me fosses em presença, naestupidez de ser assim - uma balada inventa-te real como arealidade do que foste. Nunca mais, é bom que saibas. Regresso

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da cidade ao entardecer. E no céu pálido uma estrela seanuncia no acorde último como um dobre de sinos que já se nãoouvissem. Fresco de brisas o mar, estendo-o ao meu olhar difusocansado. A verdade primeira. A verdade do início. Respiro-ofundo à humildade de mim. O sol. vibra à superfície das águas.Um aroma a maresia. Um aroma a existir. E inesperadamente Miguel transfigura-se-me na neblina dolimite do mar. Levanta-se-me daí irreconhecível, entrou-me emcasa grave, donde é que vinhas tão diferente? não da casa dereabilitação donde voltara comigo em silêncio e abastecidoainda de indiferença. Foi noutro dia, não sei. Ou levantara-seinesperado de decisão. Retomou as aulas, metia-se no quartonuma aplicação raivosa ao estudo, exacto disciplinar. Vivíamosos dois, havia intervalado à nossa necessidade umamulher-a-dias que entrava pela manhã. Reparei mesmo que Flora,veio procurar-te alguma vez? Mas nunca

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tiveras sobre ela umapalavra menor a marcar a sua distanciação. Tinha aulas cedo,erguia-se cedo, ou às vezes à noite a estudar, eu vinhaencontrá-lo já, se tinha jornal. Não lhe perguntava nada, cadaum aplicado à sua obrigação. Tinha amigos telefonavam-lhe ouapareciam por vantagens de estudo.

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Eu olhava-o e era feliz. Ou suspendia-me de uma vaga suspeitado que haveria para lá disso para isso não ser assim. Houveraem Miguel uma súbita mutação e eu não sabia se o que eraefeito da vontade o era também de um novo modo de ser. Ou queé que no seu querer era apenas do deliberar? Mas eu não dizianada para não desafiar o destino. Em todo o caso, nas poucasvezes que convivíamos e que já no serem poucas não eram afinalde convívio, Miguel mal me falava, enrolado em si e numa

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obscura determinação. Tinha um dialogante consigo que era elepróprio e eu ficava excluído como de um mundo diferente.Tentava às vezes entrar na conversa, triangular umentendimento mútuo, ele afastava-me logo como intruso. Ouadmitia apenas um confronto ocasional de opiniões frias sobreum fllme que víramos ou um livro que ele lesse. Tinha, aliás,um desprezo calmo pelo que ele chamava a palhacice artística,tolerando apenas em folgas sabáticas algum verso ou algumaprosa. Dizia-me - A vida é mais séria do que isso e não erafácil assim explicar-lhe que o mais sério dela estava lá. Queé que se alterou com versos em toda a História? ele perguntavae eu dizia que a alteração estava por dentro no lado invisívele que aí é que era tudo. - Tomo uma metralhadora e tenho razão contra todos os poetasque me aparecem pela frente. - Tinhas de matar também os que já tinham sido contaminadospor eles.

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- Reforçava-se a dose. - O limite da tua perfeição era a terra queimada. - Pois. Mas falava devagar com a calma de quem já soube tudo. Quantotempo o das tréguas? porque eu sabia que eram tréguas peloazedo do meu sentir. Havia uma ameaça no seu excesso denormalidade. Havia uma ameaça na sua calma porque não gastavanela o que se consome numa excitação. E então eu andava atentoa todos os sinais. Até que a certa altura. Eram indivíduosfora do seu contexto de convívio, estranhos ao meuentendimento desse contexto. Vejo-os na ameaça das águas, nocerrado das ondas que estoiram contra as rochas, súbitasaparições de esquinas na capela. Erguem-se no difuso do meumedo, incerto de horizontes, no desamparo para todo o lado. Àporta da capela - Miguel! uma palavra ainda, não é decenteque te cales, mas ele não responde. Então começou a haversaídas de casa a horas incompreensíveis

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e um dia não dormiu emcasa porquê? Ele disse o estudo com um amigo e o entusiasmo pela noite dentro. Podias ter avisado. Para onde? Mas naturalmente para casa ou para o jornal. Telefonei, não estavas em lado nenhum. Falava a frio, sem exaltação, nadistância indiferente compadecida do meu impossível entender.Mas eu entendia, numa prega de suspeita, que o que havia depermeio entre nós tinha agora um sinal de decisivo e enorme.Agravou-se-me a suspeita quando um dia. Eu mantinha a casa dasAzenhas mesmo em aperto de economia. Mas antes disso,recordo-me agora intensamente voltado para o sol. Porquenaturalmente pensei - voltaste a cair. Eu sabia, havia umaluta terrível entre o querer e o ser, eu sabia. Houvera oorgulho, a ponta avançada da vontade. Mas tudo cansa tãodepressa, a espinha direita. Os bicos dos pés. E então volteià casa da Palhavã. Espreitei ao ralo da porta, toquei, uma

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mulher debruçou-se de uma janela lá no alto. Entrei, esperei ogato preto do mistério, não houve. Mas quando bati à porta dofundo do corredor, bati de novo, já avisados de prudência

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talvez, ninguém. Havia pois que reconstituir todo um novopercurso, tão cansado que estava. Foi quando numfim-de-semana, gostava tanto do mar. Da força repousada domar. Da música gigante do mar. Mas quando entrei - Miguelespaçava as suas ausências, nesse fim-de-semana tinha meiasemana de incognoscível. Abri a porta e por toda a casa umvendaval de desarrumo. Restos de comida na mesa, pratos noaparador, na cozinha, imundície. E mantas pelo chão, as camasenrodilhadas. E um cheiro arrefecido a presença humana,tabaco, cheiro mole a mofo estagnado. Abro as janelas todas, o

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vento do mar entrou por ali dentro, esperei que ele varressetodos os recantos do vício relaxamento imundície. Depois laveia louça, arrumei. Depois sentei-me ao sol no terraço,desesperado de fadiga. Depois Miguel telefonou-me e disse-meestou bem não me procures mais. Depois passaram-se meses.

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XXXIV

Subo a auto-estrada na direcção de Sintra. Mas não vou paraSintra - como é que Miguel nunca mais apareceu? Ou enviavaalguém. Podia pensar que Flora, mas não me atrevo a telefonar.Podia pensar que ela o sustentasse. Subo a auto-estrada, sãotrês pistas na minha faixa ascendente, de um lado e do outroos carros zumbem em aceleração, vou entrevistar o Lili e comoirei começar? Mas estranhamente Miguel

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começa a desprender-sede mim, começamos a desprender-nos um do outro. Apoderou-se desi, quase um estranho, mas não é bem isso. Cresce em mim otemor de o amar. Nunca mais. Sinto-me de longe, o olharcomovido sobre o que nele era ainda eu. Uma vontade de sofrer,mas ele nega-me esse direito, sê forte, a vida é tão difícil.Estar só. Criar um filho, um amigo, um parceiro de comboio. Umcorreligionário, um parceiro de clube. Mas a vida não entende,Deus fez-nos à imagem da sua solidão. Mas ele próprio nãoaguentou e fez isto para companhia. Os carros empastam-se nastrês pistas da faixa, alguns buzinam cheios de pressarodoviária. Aguento na minha fila, encosto à direita, o carroestremece no encaroçado do piso. Mas a minha pergunta ésimples - Como vê o futuro da sua arte? ou talvez do homem.

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A entrevista estava combinada há anos, llídio ou Lili como elepróprio consente, andou pelo estrangeiro a acumular nome paradepois o gastar cá. Mas um dia Miguel apareceu. Usava agorabarbas com um sinal oblíquo de clandestinidade. Não tepreocupes, disse-me. Está tudo muito bem. Se tu tivesses aíalgum bago. Miguel, Miguel. Mas eu sentia que o meu sofrimentoera ilícito como um vício secreto. - Senta-te - disse-lhe. - Senta-te um pouco. Não tens maisnada a dizer-me? Sentou-se. Disse. Coisas cordiais, estás bom, estásporreiro, coisas sociáveis. Propus ao Lili adiantar-Lhe asperguntas e ele responder por escrito. Não quis, creio que porter o verbo fácil e acreditar na inspiração. Mas é melhorassim, há mais verdade na mentira que responder e eu de novoperguntar. Tento ultrapassar à esquerda o carro que se arrastaà minha frente, um outro buzina irritado logo atrás. Há uma

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luta neurológica no bandear cruzado dos carros que guinam àdireita e à esquerda, forçam a passagem, ziguezagueando porentre as filas em aceleração histérica, sigo agora na minhafila, um camião mazorro segue à minha frente. Arrasta-se pelaestrada, tento uma aberta a um lado ou outro, os carros vãocolados - porquê este trânsito a esta hora? gente talvez quevive fora da cidade, saída dos empregos, é talvez já a hora deponta. Mas a certa altura Miguel disse: estamos fartos depalavreado, a acção directa - Em nome de quê? - Criar o remorso. - Porque tu crias o motivo a partir do que fazes. - Queimar a terra para semear. Extraordinária a pressa que se tem dentro de um carro. Passeia-se devagar ao sabor do passear. Mas postos aocomando de um carro. O próprio andar do trabalhar motorizadometido em nós no nosso sistema nervoso. Não são por culpanossa os desastres, como se, mas do que

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se nos acrescenta domotor. Trabalha em nós, a gente obedece. A gente estabelece-senuma velocidade de andar mas o carro anda mais depressa.Leva-nos o pé ao acelerador num desafio, não somos nós quecarregamos. E é mais fácil o pé para baixo do que para cimacomo é da lei da gravidade que é para se obedecer. E a certaaltura perguntei a Miguel - que é que tu afinal pretendes? Elecalou-se, tinha o olhar espesso de todo o cansaço do mundo -perder a vontade de vomitar, disse. Toma água-das-pedras -disse-lhe eu, cheio de ironia do lado de lá do que estávamosdizendo. - Uma náusea de tudo isto - disse ele. - Só o preço é quedá o valor, não ao contrário. - Um tipo uma vez matou-se porque o clube dele perdeu. - Que é que tens a dar-lhe em vez do clube? O encaroçado do piso estremece-me todas as vísceras, o carroàs vezes bate de carroçaria contra os eixos, suponho, as molas

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não aguentam o balanço. Ultrapasso o camião, encosto de novo àdireita, há um intervalo grande a aproveitar. Imediatamente umsujeito - Sua besta! não o tinha visto. Queria ele meter-selá, como é que num carro se é tão malcriado? Há a impunidadeda fuga, o estar-se defendido, mas não só. É o ardor da lutaem que se está empenhado como no futebol, a excitação damáquina que se nos comunica, digo também - Sua besta! eseguimos ambos mais aliviados.

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Agora ao alto da lomba devo encostar de novo à esquerda, háadiante o desvio para Sintra, devo cortar aí. De um lado e deoutro, o verde de Monsanto e ao centro a barreira metálica adividir as duas faixas, instante breve da memória aldeã, jáfora da cidade, dos canais de cimento das ruas da cidade. Masé uma memória rápida que me acorda no

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lembrar, sigo atento àcondução, o desvio é a seguir. Depois, não me lembro porquê,Miguel disse - Há povos com mais responsabilidades do queoutros, naturalmente. Não vamos pedir contas à Patagónia doque acontece na História. Dá-me então o bago que puderes, nãodevo voltar a maçar-te. Abrando a marcha, sigo o desvio para Sintra. Mas logo depoistorcer à esquerda para a faixa ascendente até ao cruzamentopara a Ajuda e o Restelo, aplico-me atento para me nãoenganar. Porque nenhum engano é corrigível, uma máquina éestúpida, temos nós de saber tudo. E algum tempo depois aavenida. É larga, plácida na sua largura, só prédios novos,vivendas de luxo metidas em verdura. Tenho o número na cabeça,sei que é para o fundo, perto do desvio para o Restelo.Abrando a marcha, a avenida tem uma suave inclinação e vê-selá em baixo o rio. Rolo devagar à procura do número na fileirade palacetes metidos em jardins.

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Localizo-o finalmente, alguémveio abrir-me a porteira de ferro, subo uma pequena alameda emrampa que se encurva ligeiramente até a um pátio onde arrumo ocarro. Ilídio esperava-me, é estranho, decerto interessado nagrande entrevista que se lhe prepara no Informações. É umhomem baixo, atarracado atlético, não usa agora o cabelo emcopa redonda no alto talvez por falta dele e eu pensei que jánão poderia reger a fazer o pino. Na sala para onde fomoshavia um piano de cauda, para quê? estantes de livros,

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pequenas esculturas e um quadro de linhas cruzadas que ele medisse ser a mãe. Dava para a avenida, a sala, ouvia-se o rumordos carros pelas grandes janelas que ele mantinha abertas. Eeu disse - Não o incomoda, maestro, o ruído para trabalhar? Eele disse - Até gosto. Gosto de todo o

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ruído natural. O grandeerro da cultura foi separar-se, eu digo separar-se danatureza. Foi a minha grande descoberta. E então reparei que a entrevista começara, preparei ogravador. A última vez que o vira, lembrei-me, comecei porperguntar-lhe se ainda regia como dessa vez. E porquê assim?Ele sorriu vagamente, devia ser pergunta consuetudinária,estaria farto de responder. - Conhece a história do Kandinsky? Um dia entrou no ateliere viu um quadro fantástico, de quem seria? Era dele, mas não oreconheceu. Estava virado de pernas para o ar. Nesse dia eledescobriu a pintura abstracta. A orquestra é outra se a virmosao contrário. - Outra como? - Outra. Só assim a música pode ser outra também. Mas já nãorejo. Problemas de coluna. Havia um bar incrustado a uma estante, trouxe uísque para aminha sede. Era Verão, trouxe. Eu trazia comigo uma série deperguntas, disparei a primeira, depois

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se veria. - Maestro. Como vê o futuro da arte, digamos da música? Mas neste instante houve lá fora uma correria de carros,espreitei, eram da polícia, instalaram-se logo em cerco a umamoradia em frente. Ele notou o meu sobressalto - Outra vez orapto. Já tentaram há tempos, é o embaixador francês.

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Mas o futuro da música, extraordinário, meu amigo. Podemosmesmo dizer que só agora ela começa. Um outro carro surge ainda de baixo a toda a velocidade,pára ao lado dos outros, o trânsito interrompido, váriospolícias saem do carro por todas as portas abertas, tomamposição com metralhadoras. Havia um silêncio tenso, e súbitoum tiro de não sei donde, brusca uma estalaria de tiros tactac ou rápidos em rajadas. - Agora, porquê o recomeço? Decerto os

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senhores muitorespeitáveis o Bach etc. mesmo os dodecafonistas. É o que euchamo música astral. Música de museu. Mas nós queremos umamúsica viva para homens! Olho de lado, um polícia corre dobrado sobre si, atravessa aavenida dobrado, estende-se no chão em posição de tiro. Agorada vivenda crivam-no de tiroteio, seria atingido? Tenho ogravador ligado, Lili vai dizendo. O regresso à Terra, oregresso ao homem. - Ora o que é que há de mais humano e terrestre do que oruído? Estes tiros, por exemplo, que beleza. Embora, digamos,já um pouco banal. Não queremos uma música artificial! Todosos ruídos, sobretudo humanos, são uma matéria plásticadesconhecida, quero dizer menosprezada. E como distinguir umsom de um ruído? - e sorria cheio de triunfo condescendente. -Ponhamos corajosamente um exemplo concreto: o meu amigo largaum traque. Pergunto: é um som ou um ruído? Aí está.

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O polícia que atravessou a avenida corre apressado quase decócoras, lembra-me um pintainho em ponto grande, não sei,encosta-se ao muro da vivenda. Foi quando alguém numa varanda,tinha um tipo atrás, devia encostar-lhe uma pistola.

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- Agora perguntaria o meu amigo que ruídos humanos? E eurespondo: todos. Absolutamente todos. Se o tipo se mexe, o outro vai disparar. Mas assim de longe,é estranho, o drama e o sangue existem menos, rápido o políciadobrou o portão. Uma saraivada do alto de uma janela, caiu?outro polícia atravessou veloz a avenida, de longe não meparece veloz. Ouço a estalaria, ouço por sobre ela a exposiçãodo maestro. Fala devagar, uma múmia cruzada de esgaressorrisos decerto de piedade pela incompreensão geral. Sabia eu

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que o corpo humano, evidentemente há os sons audíveis, mas eos outros? de uma vértebra uma costela? - Um dia fez-se uma experiência interessante. Meteu-se umhomem num estanque absolutamente impermeável a qualquer ruídoexterior. E que é que o homem ouviu? Pois ouviu o coração, éclaro, mas mesmo o ranger das vértebras. Colossal. A riquezaimprevista de um mundo novo. A música das esferas. Nós não aouvimos como o moleiro não ouve o moinho. Ouvi-la um dia. É olimite ideal inatingível é claro. Por enquanto evidentemente. Um novo polícia corre a tomar posição, estala no ar umarajada do alto e de súbito o polícia estendido enrola-se sobresi, fica quieto. Tento entender a manobra, há um cerco àvivenda, o primeiro polícia está fora, colado à parede deentrada, adivinho-lhe os ombros puxados para cima no arrepiodo susto, da imobilidade. Não precisa de perguntas, o maestro,interpus uma, ele arredou-a com mão leve. É melhor assim.

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Invento eu as perguntas intercalando-as ao seu dizer, é melhorassim. Mal o ouço, o gravador, mudo-lhe a cassete, elecontinua. Fala agora do seu trabalho criador. Fala agora deuma sua última composição, uma composição curta,

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Pavana para uma mosca morta,. Que espantosa a riqueza do seuzumbido, composição trágica talvez, uma mosca morta, enquantotento entender a manobra do polícia. Mas não se ouve agora umtiro. Os polícias deslocam-se para certos pontos estratégicos,vejo-os deslizarem, desaparecerem da visão. A vivenda temsebes de arbustos, vegetação tratada a toda a volta. Agora háuma suspensão das operações e o maestro acende um cigarro. Oespectáculo suspenso, estão todos parados à espera. De vez emquando um ou outro tiro gratuito para se saber que ainda não

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acabou. Os polícias devem ter tomado todas as posiçõesdevidas, agora aguardam como eu. Houve uma janela que seabriu, alguém a espreitar? um tiro. Foi uma explosão seca,talvez dentro de casa, depois vários tiros fora e dentro, Lilidisse - Mas estamos só no começo. Nós reinventámos tudo.Inventámos sobretudo um mundo concreto, material. Descobrimoso nojo do sentimento Entre os polícias uma certa agitação,correrias nervosas para todo o lado. Traçam vários percursos,ziguezagueiam em linhas quebradas, rápidas as pernasminúsculas à distância, vibração nervosa de ratos. Corre umpara mais perto da casa, aponta a espingarda ao alto, outropara o lado de baixo da rua, a espingarda em pontaria, outrocorre velocíssimo, desaparece dentro de casa. Tiros surdos,ouvem-se. - É o mais difícil de extirpar. Essa coisa abjectabaixíssima. Essa semente de toda a tragédia humana. Mas já

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alguém viu isso? Imagine o meu amigo que se erradicava toda aemotividade. Paixões, ciumeira, a ambição dos políticos, de umsimples funcionário de finanças. E depois todos se imobilizaram nas suas posições e houve umlongo intervalo de suspensão. Estavam todos de armasaperradas, cada qual no seu posto de observação, espingardasao alto. Apontavam-nas para vários pontos da casa decerto, asjanelas, a porta, estalava eu todo de atenção mas estava tudoem silêncio. Só ao longe o ruído do tráfego da cidade, algunscarros que vinham vindo dos dois lados e se imobilizavam nasfileiras que já lá estavam. Houve uns minutos assim,paralisados todos, formavam um quadro espectacular. Até quepor fim. Vinha do lado do rio, era uma maca, à frente vinha oseu grito de alarme, desarvorado em pânico, veio até ao meioda avenida, o grito esmoreceu. - Creio que dissemos tudo - disse o maestro. E logo que a carrinha estacou, dois

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maqueiros com uma macaentraram pela casa a correr. Depois eu saí, eles saíram. Vinhaum morto estendido, tapado com um oleado, um braço suspenso.Por fim, enquadrado de polícias, sustinham-no pelos sovacos,da distância onde eu estava, mesmo assim, a face altiva, vinhaum outro, a face toda banhada de sangue. Disse qualquer coisaem voz alta, não entendi, a cara toda sangrenta. E de súbito. O corpo descaiu-lhe todo, os polícias tentavam segurá-lo,ele tentou erguer os braços, as mãos quebradas dedesfalecimento, as pernas trôpegas arrastadas. E eu pensei:morreu. A cabeça tombada para o peito. Arrastaram-no, aspernas de rastos. Estenderam-no numa maca, meteram-no por trásda carrinha. Depois a automaca partiu de novo com o seu gritode pânico, os polícias meteram os outros presos noutracarrinha, partiram. Ficaram já só alguns postados aos ângulosda casa, os polícias de trânsito apitaram e o tráfego

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recomeçou. Meti-me no carro mas não sabia que fazer, o políciacom o apito e gestos vigorosos para todos andarem. Arranqueipor fim, dei a volta em baixo, havia muitos carros em sentidocontrário a atrapalhar.

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Foi no dia seguinte que recebi um aviso. Ficava ao Campo deSantana, o Instituto de Medicina Legal. Todo o largo estavaapinhado de carros, deixei o meu perto do Sousa Martins com assuas velas devotas para ele continuar a ser médico do lado delá. À porta do Instituto, um tipo coxo fumava alheado. Eusabia tudo, mas estava calmo como uma pedra. Falei com ohomem, ele disse-me - Deve ser esse aí. Estava num catre, montículo de lixo, tapado com uma manta.,Destapou-lhe a cara e eu reconheci-o. Tinha uma face tranquilade quem cumprira o destino.

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XXXV

Olho-o agora na quietude da manhã. E bruscamente apetece-meinsultá-lo. Estúpido, estúpido. Mas ele tinha quase um arfeliz. Estúpido, disse ainda, desarmado na minha cólera,arrasado de fadiga. O que foste fazer. Uma vida inteira parate explicar, não consegui. Explicar-te que para lá de tudoestava a vida e isso é que era tudo. Que é que tinhas quequerer outra coisa acima dela? Justificá-la é pôr outra coisaacima e tudo é mais abaixo. Flora está longe para um congressoou coisa assim, mas foi bom porque a questão é só entre nós.Com ela tinhas um acordo mesmo quando te sacudia. Era o quefaria agora se aqui estivesse e tu ainda acharias bem. Écomigo a questão porque queria ensinar-te a vida e tu só

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aprendias a morte. Está um dia bonito de Verão, é pena nãoquereres saber. O mar já tem o azul à superfície e passa agoraúm barco ao longe. Não te quis deixar na cidade para dequalquer modo estares mais perto da verdade. E poderes durarmais algum tempo na vida inteira que te dei, na cidade é tudotão confuso. áo rápido e voraz. áo estúpido que tu foste. Tudoé tão demais para a perfeição de ser. Depois de todas asambições e sonhos e códigos e salvações do mundo e guerraspara elas serem e doutrinas e sistemas - a verdade do mar.

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Depois de tudo para seres, a verdade do mar. Gostava bem de teter explicado, mas só se aprende o que já se sabe. Está umgrande dia de sol, era bom que visses. As gaivotas distraem-seno desprendimento de si. E há um ar fértil à minha respiração.

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Nunca soubeste a verdade da luz e da chuva e do vento, aestranha vertigem de um corpo e não consegui ensinar-te.Inutilizaste o trabalho de biliões e biliões de humanos paratu existires. É feio o pecado da ingratidão. Estou sucumbidocomo te não sei dizer. Sofro como um cão. Escorraçadohumilhado a pontapés. Mas o que me toma é a cólera ou umaprofunda piedade ou lástima pelo teu erro tão grosseiro.Queria talvez admirar-te um pouco, compreender-te, não soucapaz. Se bem te lembras, nunca te pus a mão em cima, tu erastão precioso. Mas o teu erro estúpido, só talvezesbofeteando-te. Quero separar-me de ti em harmoniacordialidade. O tiro directo ao teu coração, ao centro do teuenigma, foi como o destino te respondeu. Gostaria bem de. Umpouco de choro talvez, o equilíbrio da minha desorientação.Que menino tão inquieto, Tina dizia. Haverá grandeza em quererapanhar a mão com a própria mão. Não

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sei. Porque a vida pesamuito, bem sei. Mas é o peso de uma balança, não se destrói abalança com que se pesa. A lâmpada com que se ilumina. Aalavanca com que se constrói. Tudo isto é simples, devescompreender, e aquilo que é simples não tem mais nada atráspara o explicar. Deus nunca esteve para se explicar eredimir-se a si próprio, era bom que soubesses. Era bom quesoubesses que não há mais verdade do que o sol e o mar e euestar aqui para eles se não safarem para o não ser. Era bomque soubesses. - Miguel! mas ele não responde, regressado definitivamenteao seu limite. Ouço dentro da capela o estrondo rouco do mar. Dorme. Na paz definitiva do sofrimento inquietação. Olho-lhe a face, está serena, um esboço leve de sorriso,parece-me. Ressoa na capela, ouço-o sempre, um rumor a espaçoinfinitude. E é como se Miguel, integrado aí, dissipado aí, umsorriso de plenitude, de pacificação. No

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altar o meninoguerreiro, São João, a Virgem da humildade. Velam-no emsilêncio, no centro do universo. Estou eu só, fora doincognoscível. Humilde eu, talvez, na sufocação da amargura etodavia sereno. Estou vivo. O mundo existe. E toda a minhamiséria se ilumina ao meu simples olhar aberto. Saio da capela, regresso ao meu mirante no murete de cal.Olho o relógio, devem estar a vir os funcionários da morte.Uma neblina estende-se por toda a linha da costa até a umlimite de praias invisíveis. Penso o futuro, entremeado àminha fadiga, que é que quer dizer o futuro no absoluto deestar aqui? Ir à aldeia talvez, cortar com o que resta de eulá ter sido. Há umas terras paternas, há a casa ao pé dashoras da igreja e do seu peso. Há a solidão sem fundo damemória. Que é que quer dizer a memória? tenho dela o que emmim pesa e é o bastante. Estar. Reabsorver tudo no instante em

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que duro. Reinventar-me um deus da glória e da paciência - haverá umdeus da paciência? da aceitação. Reinventar a perfeição davida que é a do seu milagre e estupidez. Calar em mim a voz domeu excesso e ser todo no meu nada. E esquecer, esquecer o antes e o depois, sobretudo o queestá antes e depois de todos os depois e antes. Está um diaclaro de energia. Largar atrás todas as camadas sobrepostas deinutilidade que o excede. Ser simples e total como o ser.Atirar talvez um berro para a manhã e destruir nele a capelanum entulho de ruínas.

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Olho o retábulo da Anunciação - ser eu o deus que vai nascer.Eu, Cláudio. Eu, homem corruptível de miséria e loucura. Deinsensatez. Eu à beira do mar. Não há morte, não há morte. Nãohá deuses. Não há humilhação. Nem sonhos

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de megalomania. Nemcorrentes a rasto de tudo o que já foi. Sou novo, vou nascerda espuma das ondas. Sou eu. Mas ouço o rumor de um carro que se aproxima, olho, é acarrinha dos mortos. Saiu da estrada, meteu pelo caminho quevem para cá. Depois parou. Destrancam as portas, saem unshomens de escuro, vem com eles um padre já de sobrepeliz. Abreum livro, começa a rezar em direcção à capela. A rezadispersa-se no rumor do mar.

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XXXVI

Que horas são? a noite vem aí. No terraço para a praia dasAzenhas, debruçamo-nos eu e Clara para as sombras doentardecer. Há paz nas coisas, o mar adormece. Clara fala-meda entrevista a fazer ao V. F. , não me apetece ouvir. Qual o

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sentido afinal dos seus livros? não quero saber. Vai dizer-lheque o absoluto e a inquietação e a redenção da vida e aliquidação difícil dos deuses e o fim de uma cultura demilénios e o salto mortal do cristianismo para não se sabe oquê - não quero ouvir, agora não. Quero apenas estar aquidepois de um dia ardente. Depois da iniciação das águas, da abundância da suafertilidade. Mergulhámos nas ondas, na piscina. O mar batiacontra um dos lados, estoirava ao alto numa grande flor deespuma, caía em torrente sobre nós. Apetecia-me rirbrutalmente. Gigantesco colossal de potência imensa. É o meu mistério de me enfrentar com o mar. O excessivopoderoso investido na minha pequenez. Absorver em nós aimensidão. A grandeza e o incognoscível. O sem limite. Depoisdeitamo-nos na esplanada à beira da piscina. Clara tem umaenergia que se não esgota. Não a recebe do mar, penso, é ela

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que lha transmite. E é bela para ter razão. Deita-se por fim ameu lado, o sol requeima-nos de alegria e fadiga.

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As pálpebras cerradas, o vermelho neles das chamas. O abandonoa um barco que desliza e nos leva. A pele estala à ardênciaimóvel do meio-dia, um cansaço doce como um sorriso interior.Estendemo-nos no terraço, vê-se ao longe o mar. O Sol jádesceu mas deixou ainda o rasto do seu turbilhão. Fica oincêndio sobre as águas, abre-se ao imenso de o olharmos. Omar escurece, uma cor fria desce-lhe para a profundidade.Plácidas as águas adormecem ao meu olhar fatigado. Olhoerradiamente esvaído de horizonte, olho o morro em frente,contornado por uma estrada onde passam carros minúsculos e queeu imagino sempre precipitados na ribanceira, olho as piscinasescalonadas até ao mar. Na de cima

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alguns jovens banham-seainda, a segurarem o dia até onde puder ser. Clara desaparecepara o interior da casa sem dizer nada. É uma casa empoleiradana falésia, desce-se para ela por uma rampa encurvada que párade topo à porta. Gosto da casa, do rumor do mar que meadormece pela noite. Sinto o corpo acalorado pelo sol do dia,uma vontade oculta de me pôr nu, restabelecer com isso umaunião à terra que me esqueceu. De vez em quando a memórialevanta-se, pesada aflitiva. Tanta coisa ainda ao pé aameaçar-me. E então um arrepio sobe em mim, aperta-me agarganta. Clara é bela e perfeita. Tem a vida todacircunscrita ao seu limite como a própria perfeição. Miguel,Tina, mesmo Flora, o olhar mais longínquo dos pais de outrora,vêm lentos, uma ronda à minha volta. Clara sabe a palavraexacta para todo o presente ser meu. Reentrou em casa,imagino-a percorrendo o corredor até à cozinha, fechar talvez

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as janelas do quarto à humidade da noite que vem aí. Estoubem. Cansado até às raízes de mim, mas estou bem. A vidainventa-se em cada hora em que ela se nos inventa, o meuolhar ilumina-se com a lâmpada de cada dia. Tenho uma bebidana pequena mesa ao lado da cadeira de lona, quase a esqueci.Beber devagar com a noite que desce. Uma serenidadeinvulnerável alastra pelo universo. Os rapazes da piscina cádo alto recolheram a casa. A piscina deserta. O mar desertoaté ao limite do poente. A vida inteira dentro de mim.

Lisboa, 24 de Fevereiro de 1987.

Data da Digitalização

Amadora, Dezembro de 1999

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