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A apropriação do espaço e as transformações implementadas pela sociedade no espaço rural brasileiro. Emilson Batista da Silva Mestrando em Geografia pela Universidade Federal da Bahia - UFBA e-mail: [email protected] RESUMO O Brasil é possuidor de um espaço rural de grandes proporções que tem sido considerado apenas pelo aspecto produtivo. Entretanto, as mudanças nas relações do rural com o urbano no Brasil têm demonstrado um espaço homogêneo em uma relação de complementariedade. Dessa forma, o presente trabalho, mediante um estudo bibliográfico, objetivou analisar a forma de apropriação do espaço pela sociedade e como essa apropriação gera transformações no espaço rural brasileiro. Observou-se que a estrutura social do campo sofreu mudanças profundas em decorrência da penetração do modo de produção capitalista. Esse processo teve como mola propulsora a implementação da industrialização do campo concretizada mediante a presença dos complexos agroindustriais, propiciou a ameaça ao campesinato, provocada pela inserção do camponês no mercado capitalista e da modernização do latifúndio, que deu origem ao camponês assalariado a serviço do capital. Percebeu-se também a significativa participação dos movimentos de luta pela terra no processo de dinamização das políticas concernentes ao processo de reforma agrária no país. Palavras – chave: Espaço Rural. Industrialização do Campo. Brasil. 1. INTRODUÇÃO A relação do homem com a natureza é tão antiga que dificilmente conseguiríamos delimitá-la temporalmente com fiel exatidão. O que se sabe é que no início desse processo o homem tinha uma relação de dependência com a natureza. Vivia em determinadas áreas, onde pescava, caçava e coletava frutos até a sua escassez, quando procurava outros ambientes onde pudesse se estabelecer novamente. Viviam em grupos nômades. Tudo isso permaneceu até a chamada

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A apropriação do espaço e as transformações impleme ntadas pela sociedade no

espaço rural brasileiro.

Emilson Batista da Silva Mestrando em Geografia pela Universidade Federal da Bahia - UFBA

e-mail: [email protected]

RESUMO

O Brasil é possuidor de um espaço rural de grandes proporções que tem sido considerado apenas pelo aspecto produtivo. Entretanto, as mudanças nas relações do rural com o urbano no Brasil têm demonstrado um espaço homogêneo em uma relação de complementariedade. Dessa forma, o presente trabalho, mediante um estudo bibliográfico, objetivou analisar a forma de apropriação do espaço pela sociedade e como essa apropriação gera transformações no espaço rural brasileiro. Observou-se que a estrutura social do campo sofreu mudanças profundas em decorrência da penetração do modo de produção capitalista. Esse processo teve como mola propulsora a implementação da industrialização do campo concretizada mediante a presença dos complexos agroindustriais, propiciou a ameaça ao campesinato, provocada pela inserção do camponês no mercado capitalista e da modernização do latifúndio, que deu origem ao camponês assalariado a serviço do capital. Percebeu-se também a significativa participação dos movimentos de luta pela terra no processo de dinamização das políticas concernentes ao processo de reforma agrária no país. Palavras – chave: Espaço Rural. Industrialização do Campo. Brasil.

1. INTRODUÇÃO

A relação do homem com a natureza é tão antiga que dificilmente

conseguiríamos delimitá-la temporalmente com fiel exatidão. O que se sabe é que no

início desse processo o homem tinha uma relação de dependência com a natureza.

Vivia em determinadas áreas, onde pescava, caçava e coletava frutos até a sua

escassez, quando procurava outros ambientes onde pudesse se estabelecer

novamente. Viviam em grupos nômades. Tudo isso permaneceu até a chamada

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Revolução Neolítica, momento em que o homem começa a trabalhar a terra,

sedentarizando-se e, a partir de então, inverter a lógica de outrora, isto é, o homem já

não era determinado pela natureza, mas começava a reunir instrumentos capazes de

propiciarem a interferência na natureza, adaptando-a a suas necessidades.

De acordo com Ribeiro (1968), o início da sujeição da terra pela sociedade marca

o princípio do primeiro processo civilizatório, desencadeado a 10 mil anos, a princípio

na Mesopotâmia e Egito. Esse processo se intensificou a medida que o trabalho

humano foi sendo subsidiado pela modernização da técnica, que potencializou a

capacidade da sociedade de produzir espaço. Ressalta-se que o espaço pode ser

compreendido de diversas formas, a depender do contexto no qual se insere o indivíduo

que empreende o esforço para conceituá-lo. Mas nele não se pode deixar de introduzir

a ação humana mediada pelo trabalho, quando o chamamos de espaço geográfico.

Dessa forma, é de grande relevância que a apropriação conceitual do espaço

considere a sua localização espaço-temporal, pois não podemos compreendê-lo

enquanto totalidade em movimento desconsiderando a dimensão espaço-tempo. Nesse

sentido, o espaço que aqui consideramos é o espaço geográfico, que na visão de Milton

Santos (2008), é um fator da evolução social, sendo, dessa forma, também o espaço

social, pois é produto da história humana.

Nesse entendimento, o espaço vincula-se à dinâmica social, englobando em seu

seio o espaço de todos os tempos, enquanto categoria permanente, e o espaço de

nossos tempos, enquanto categoria histórica. Assim, o espaço de todos os tempos é o

espaço total, e o espaço de nossos tempos é o agora, que está inserido no primeiro.

Enquanto produto, o espaço também é responsável pela sua própria produção

(SPOSITO, 2004). Se produz e reproduz-se no decorrer do processo histórico, se

constituindo em uma realidade objetiva. Nesse sentido, Santos (2008, p. 67) afirma:

Para expressá-lo [o espaço] em termos mais concretos, sempre que a sociedade (a totalidade social) sofre uma mudança, as formas ou objetos geográficos (tanto os novos como os velhos) assumem novas funções; a totalidade da mutação cria uma nova organização espacial.

Essa reflexão nos permite observar que as abordagens que tomam como objeto

o campo, muitas vezes, negligenciam as interações sociais, o cotidiano, etc. em nome

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do aspecto produtivo. Essa questão aconteceu no passado com o fornecimento de

matéria prima para a consolidação da agroindústria e acontece hoje, haja vista que a

produção advinda do campo ainda é responsável pelos saldos positivos na balança

comercial do Brasil.

É nessa ótica que se percebe as transformações ocorridas no campo brasileiro,

onde as demandas sociais determinaram a construção e transformação do espaço rural

em urbano, isto é, a influência da cidade no campo, propiciada, sobretudo, pelo modo

de produção capitalista, se intensifica de forma progressiva. Esse processo justifica o

crescente interesse da geografia em produzir análises referentes à tendência da

assimilação do espaço rural pelo urbano no Brasil. Na verdade, as modificações

ocorridas nos países centrais são percebidas hoje no espaço rural brasileiro, que tem

sido estudado à luz dessas transformações.

Nessa perspectiva, esse trabalho pretendeu, através de um estudo de cunho

bibliográfico, explicitar de que objetivou analisar a apropriação do espaço pela

sociedade e como essa apropriação gera transformações no espaço rural brasileiro, já

que ela – a apropriação – se apresenta em uma perspectiva homogeneizadora e

imposta pela penetração do capitalismo no campo e sua crescente necessidade de

qualificação profissional, pois a introdução de novas tecnologias no ambiente rural

impõe uma especialização de mão de obra.

A relevância do trabalho está na emergencial necessidade de produções

reflexivas, versando sobre a atual caracterização do campo brasileiro, considerando as

interações sócioespaciais que se concretizam no bojo das especificidades das relações

de produção, que hora se apresentam nas imbricações entre o rural e o urbano no

Brasil. Essas reflexões potencializarão estudos mais abrangentes sobre as

repercussões de processos globais na conjuntura produtiva brasileira.

2. A APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO

O espaço é construído a partir das demandas da sociedade no decorrer de sua

própria história, sendo, dessa forma, uma construção social (SANTOS, 2008). A forma

como cada sociedade se apropria do espaço é determinada pelo modo de produção

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que a caracteriza, sendo, assim, um produto histórico. Para Santos (2008), o espaço é

a natureza mais a sociedade, sendo que a natureza é composta pelas coisas, objetos

geográficos, naturais e artificiais.

Nessa ótica, as formas espaciais são caracterizadas como processos sociais e

estes se configuram no espaço. Assim, a produção e reprodução do espaço são

elementos indissociáveis, à medida que, mediante o trabalho, a sociedade produz e

reproduz o espaço. Por isso, ele é dinâmico, se consubstanciando na sobreposição dos

tempos e espaços históricos.

De acordo com Santos (1990, p. 162),

Nenhuma produção, por mais simples que seja, pode ser feita sem que se disponha de meios de trabalho. A partir dessa primeira organização social, o homem se ver obrigado para todo o sempre a prosseguir uma vida em comum, uma existência organizada e “planificada”.

A partir dessa ótica, a produção passa a delinear os ritmos e as formas das

atividades humanas. Essa produção foi potencializada pelo aprofundamento da técnica

e propiciou a aceleração da apropriação do meio natural, introduzindo neste a

mecanização. Entende-se que “ninguna sociedad agrícola es capaz de asegurar uma

total transformación del espacio em um espacio agrícola radicalmente distinto del

espacio natural” (GEORGE, 1964, p. 91). Essa transformação centrada no trabalho em

articulação com a técnica, partiu de tecnologias mais simples como o arado e a enxada

até as sofisticadas colheitadeiras existentes atualmente.

A partir do século XV, com o surgimento dos pilares fundamentais do capitalismo,

se define uma nova forma de apropriação do espaço pautada no aumento da

produtividade, no consumo e em uma nova forma de delineamento do trabalho, que

ficou denominada como divisão internacional do trabalho. A partir de então o homem,

cada vez mais monetarizado, se transformou em apenas instrumento enquanto mão de

obra para viabilizar uma apropriação espacial mais intensa. Assim, a relação sociedade

e natureza centrou-se numa visão mecanicista do mundo, conferindo à natureza o

status de fonte de recursos e meio de favorecimento do lucro.

Essa visão economicista se concretiza no modo de produção capitalista, que

capilariza todos os setores de produção, transformando-os em fornecedores de capitais

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para alimentar o sistema e produzir mais valia. Assim, o desenvolvimento das nações

pauta-se, nessa ótica, na construção de uma sociedade excludente e injusta, onde

impera a ideologia da liberdade e da igualdade.

3. AS MUDANÇAS NO CAMPO

Sabemos que a grande dimensão territorial do Brasil sempre fez da produção

agrária um potencial vetor para alavancar o seu desenvolvimento econômico no cenário

internacional. Inclusive outrora, a agricultura, foi responsável pelas formas de produzir e

organizar o território brasileiro (FERREIRA, 2003), pois foi através dos estudos

informais feitos por viajantes sobre a produção agrária que começou a sistematização

do território brasileiro. Assim, uma possível abordagem da formação econômica do

Brasil pode ser feita a partir dos ciclos econômicos, entendendo que estes não podem

ser compreendidos como recortes estáticos no tempo e no espaço. Ao contrário, os

ciclos econômicos se consubstanciam em processos contínuos característicos das

especificidades da conjuntura histórica.

Nesse sentido, no Brasil aconteceram três grandes ciclos principais: cana-de-

açúcar, mineração e café. Existiram outros ciclos como a borracha e a pecuária, mas

com importância menor. O primeiro grande ciclo – o da cana-de-açúcar – ocorreu na

faixa litorânea, favorecido pelo solo de massapé e o clima tropical, e foi do tipo

plantation, isto é, era cultivado um só produto em grandes propriedades destinado ao

mercado externo. Já a mineração, aconteceu na região de Minas Gerais, sendo

resultado das bandeiras que buscavam metais preciosos no interior do território

brasileiro.

O último grande ciclo foi o café. Este foi responsável pelo reajustamento da

economia do Brasil e pelo reforço da estrutura tradicional da economia brasileira,

centrada inteiramente na produção intensiva de uns poucos gêneros destinados à

exportação (PRADO JÚNIOR, 1994). O cultivo do café também contribuiu

determinantemente para o inicio do processo de industrialização no país, haja vista que

propiciou a construção de vias de transporte, o acúmulo de capital e mão-de-obra

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qualificada para o trabalho na indústria. O declínio desse ciclo propiciou maior

diversificação na base da economia e principalmente na produção agropecuária

(ELESBÃO, 2007). No entanto, o café continuou sendo o principal produto de

exportação brasileira, atraindo, dessa forma, maior atenção do governo em relação a

injeção de recursos. Fator esse potencializado devido ao poder de influência que as

elites cafeeiras detinham junto ao governo da época. Prova disso foi o estabelecimento

do Convênio de Taubaté em 1906. De acordo com Elesbão (2007, p. 50):

A crise mundial de 1929 encontrou a economia brasileira bastante fragilizada devido à grande dependência e vulnerabilidade externa. Com isso, ocorre o rompimento do modelo primário-exportador, que era a base da economia até então e que tinha a agropecuária como setor dinâmico.

Assim, as reduções nas exportações brasileiras, já que o café era o principal

produto e este entrou em crise, e as necessidades internas do país, favoreceram o

desenvolvimento da industrialização. O primeiro momento desse processo de

transformação em uma economia urbano-industrial foi denominado de substituição de

importações.

No contexto da “Revolução Verde”, se desenvolveu no Brasil a indústria

metalúrgica com vistas à produção de máquinas e equipamentos e a indústria química

para a produção de agrotóxicos (GERMANI e LAGE, 2004). Outro fator foi que, através

da implementação do crédito rural, foi estabelecida uma política com o objetivo de

modernizar o campo brasileiro. Dessa forma, segundo Oliveira (2011), foi a partir da

década de 70 do século XX que o campo brasileiro, efetivamente, passou por um

processo de modernização.

Assim, a inserção da tecnociência no campo serviu para ampliar a produção do

país e colocá-lo determinantemente no mercado agroexportador, tornando o campo

mais dinâmico e transformando suas relações de produção. Toda essa mudança de

cenário corroborou para a formação dos complexos agroindustriais (CAI) e do início da

luta pela terra no Brasil, quando surge o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem

Terra (MST). O CAI era um “conjunto dos processos tecno-econômicos sócio-políticos

que envolvem a produção agrícola, o beneficiamento e sua transformação, a produção

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de bens industriais para a agricultura e os serviços financeiros e comerciais

correspondentes” (MULLER, 1982, p. 48).

Percebe-se também que a relação campo cidade, no âmbito dessas questões,

sempre foi de complementaridade, haja vista que no caso da formação do modelo

agroexportador, era a cidade quem formava os técnicos para esse novo contexto e foi

na cidade que se deram as reivindicações populares do MST. É importante frisar que os

egressos do campo na década de 70 deram origem aos trabalhadores denominados de

bóias-frias.

Nessa ótica, o processo de urbanização ultrapassou a dimensão espacial das

cidades. Potencializada pela globalização, a urbanização penetrou no campo, mudando

o cotidiano e possibilitando uma vivência similar à da cidade em relação ao consumo

que se evidencia, tanto de forma simbólica, como também não-simbólica. Podemos,

pois, vislumbrar o rural como “um continnum do urbano do ponto de vista espacial”

(GRAZIANO DA SILVA, 1997, p. 01). Foi o urbano que transbordou e o rural que se

industrializou. O rural e o urbano podem ser vistos, dessa forma, como um espaço

homogêneo, sem distinção entre essas duas categorias, mas com modificações

advindas das necessidades de abastecimento de um mercado consumidor amplo e

exigente. Esse processo se intensificou derivando “da necessidade de expansão de

mercado e da qualificação exigida pelo mercado externo, o maior consumidor dos

produtos agrícolas brasileiros” (OLIVEIRA, 2011, p. 42).

Todas essas transformações ocorridas no campo não podem ser reduzidas

apenas aos aspectos técnicos e econômicos, pois abarcam também profundas

modificações na estrutura social do campo. Estas últimas podem ser justificadas pelo

que Harvey (2005) chama de renda monopolista, pois não é a terra que é

comercializada, mas a mercadoria ou serviço advindo de sua produção que ganha

fundamental importância, pois o processo de industrialização em sua acepção moderna

pressupõe, além da disseminação da técnica, também o aumento da produção e

concentração de capital. A terra-matéria perde lugar para a terra-capital, pois não basta

mais apenas a propriedade da terra, mas também torna-se necessário considerar um

montante de bens de capital.

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No bojo dessas transformações, o Estado assumiu um papel de agente que

possibilita a sustentação e a expansão da capitalização da agricultura que se

industrializa (MULLER, 1982).

Na capacidade de mudança de forma de capital total em capital em geral garantida pelo Estado e posta em prática pelas grandes organizações que operam na agricultura, e, nestas condições, na capacidade de acumulação de capitais e de riquezas patrimoniais na agricultura, penso que reside o mecanismo básico que permite compreender a atual forma da agricultura e sua estrutura de classes e frações sociais. Por conseguinte, a agricultura é entendida como um espaço da dinâmica do capital industrial e financeiro, visível no processo de industrialização do campo (MULLER, 1982, p. 55).

Observa-se, nesse sentido, que o modo de produção capitalista (MPC) tendencia

a atingir todos os setores da produção em seu processo de desenvolvimento, seja no

campo ou na cidade. No campo o capitalismo enfrenta o obstáculo da propriedade

fundiária como principal elemento que se coloca como limitador de sua propagação,

pois a terra, na ótica de Martins (1980) não é capital, haja vista que apenas o trabalho

produz capital. Assim, a terra constitui mais um instrumento para a produção do capital,

ao mesmo tempo em que presencia a formação de dois elementos antagônicos: o

capitalista e o proprietário de terra. Assim, a produção de capital sob o ponto de vista do

modo de produção capitalista se expressa através do aprofundamento do trabalho

assalariado e pelo processo de generalização progressiva por todos os ramos e setores

da produção (OLIVEIRA, 2007).

No processo de expansão do capitalismo, o trabalhador se torna um indivíduo

livre, inclusive de qualquer propriedade, a não ser a sua própria força de trabalho.

Então, a relação se dará entre dois indivíduos livres: o trabalhador e o capitalista que

lhe compra a força de trabalho e lhe paga um salário por isso. “É uma relação de

expropriação baseada numa ilusão – a ilusão de não há exploração alguma”

(MARTINS, 1980, p. 34).

Dentro do exposto, se percebe que o campo brasileiro apresenta uma das

maiores concentrações de terras do mundo (GERMANI e LAGE, 2004), ao mesmo

tempo em que, contraditoriamente, existe uma grande quantidade de terras devolutas

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que poderiam amenizar as tensões existentes no país no que tange á distribuição de

terras, se estas fossem incorporadas ao processo de reforma agrária.

Essa constatação também foi feita por Germani (2006), quando fez uma

retrospectiva histórica, onde relatou as condições históricas sociais responsáveis pela

ocupação e regulamentação do espaço agrário brasileiro, desde o “descobrimento” até

o período republicano. As terras, onde habitavam os índios eram destituídas de posse,

eram, assim, terras livres nas quais era respeitado o regime comunal de propriedade. A

ocupação efetiva ocorreu a partir de 1530, com o Regime das Sesmarias – semente do

direito agrário brasileiro – e a implementação das capitanias hereditárias. Aí já se

observou o caráter discriminatório para a doação de terras, haja vista que os menos

abastados não tinham direito às doações, estes deveriam ocupar terras livres ou se

dirigirem a outras frentes. Desde esse período, o latifúndio se apresentou como tônica

do campo no país. Germani (2006, p. 127) afirma que “o latifúndio no Brasil nasceu e se

desenvolveu ‘sob o signo da violência contra as populações nativas [...]”. A escravidão

do índio e depois, dos negros vindos da África, foram a base da estrutura de produção,

sendo que os africanos foram “a força de trabalho responsável pela implantação de

todo o sistema: primeiro os engenhos, depois nas minas de ouro e mais tarde nas

fazendas de algodão e café” (GERMANI, 2006, p. 128).

A partir de 1822 se disseminou no Brasil a ocupação das terras desocupadas,

que acabava se desdobrando na posse, respaldada, inclusive, pela constituição do

Império brasileiro. Essa situação se extinguiu com a Lei de Terras em 1850, que proibia

a aquisição de terras de outra forma que não fosse pela compra. A terra se transformou,

dessa forma, em uma mercadoria que não estava ao acesso de todos igualitariamente.

Na república, onde cada estado brasileiro ficou responsável de regularizar a posse de

suas terras, permaneceu o favorecimento dos mais abastados, aumentando a

concentração de terras e dando origem a uma gama de movimentos sociais de lutas

pela terra em todo o país. Como afirma Germani e Lage (2004), a colonização do Brasil

juntamente com os períodos do Império e da República foram consolidando a

organização da produção e da sociedade, ao mesmo tempo em que em que consolidou

a ocupação do território.

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O fato é que o campo brasileiro, no entendimento de Oliveira (2007), tem sofrido

profundamente uma generalização das relações de produção típicas do capitalismo,

mediante a diferenciação interna1 e pela modernização dos latifúndios, que, através da

implantação de novas tecnologias, tornam-se empresas rurais que absorvem os

camponeses pobres como trabalhadores assalariados a serviço do capital.

Outra questão é a inocuidade das políticas no que tange ao tratamento do

agricultor familiar, haja vista que o sistema agropecuário brasileiro é composto por

cerca de 85% de estabelecimento familiares (BRASIL, 2006), ou seja, as proposições

políticas nessa direção acabam favorecendo âmbitos mais complexos mediante a

propositura de chamadas de editais destoantes da realidade camponesa.

Diante dessa conjuntura, se observa que o campo evidencia o aprofundamento

da utilização da técnica maximizada pelo processo da globalização e a utilização de

indivíduos cada vez mais qualificados. Sabemos que a etapa final do processo

produtivo no campo (aquela que é responsável pelo emprego de maior contingente da

força de trabalho) permanece em domínios alheios ao agricultor. O processo produtivo

foi fracionado em função da necessidade tecnológica da indústria (OLIVEIRA, 2007).

Esse cenário contribui inegavelmente para o aumento da produção, mas, por outro lado,

intensifica a exploração da mão de obra, veta direitos e alimenta a emergência de

movimentos sociais de reivindicação pela posse da terra.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O espaço pode ser percebido como o palco onde as manifestações históricas se

apresentam, sendo que esta historicidade possui especificidades a depender de que

forma os elementos simbólicos materiais e imateriais são considerados. O homem se

“libertou da natureza” e passou a adaptá-la às suas necessidades produtivas. Mediante

seu trabalho, o meio natural é modificado e assume outro significado perante a

sociedade: o de meio e não de fim, como outrora.

1 O camponês, ao produzir cada vez mais para o mercado, tornar-se-ia vítima ou fruto desse processo, pois ficaria sujeito às crises decorrentes das elevadas taxas de juros e aos baixos preços que os produtos agrícolas alcançam no momento das colheitas fartas (OLIVEIRA, 2007, p. 9).

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As transformações oriundas da globalização engendradas a partir da expansão

das fronteiras do comércio no início do século XVI, mas consolidadas com a revolução

técnico-científica, possibilita uma nova concepção de vida, onde a informação torna o

planeta uma “aldeia global”, onde a idéia de concepção do espaço-tempo assume

outros paradigmas. O espaço torna-se indispensável para o prosseguimento da história,

pois neste emerge os elementos produtivos e não produtivos necessários para explicar

e justificar a lógica de expansão do modo de produção capitalista.

Assim, a divisão internacional do trabalho determinou a divisão do mundo em

produtores de matéria prima e produtores de produtos industrializados, sob a lógica do

pacto colonial. É nessa conjuntura que se localiza o Brasil. Com grande extensão

territorial e um considerável teor de riquezas naturais, o país se insere no cenário

internacional como grande fornecedor de matéria prima e consumidor de produtos

industrializados. Até a década de 30, tudo de moderno existente no país tinha origem

nas importações.

Já no século XX, o Brasil se constituía em um país emergente com uma indústria

competitiva no contexto global. Claro que estas características também causaram

mudanças sociais, econômicas e políticas no campo brasileiro, evidenciando a forma

como o modo de produção capitalista (MPC) em sua fase monopolista, que apresenta

traços típicos como os grandes complexos industriais integrados à produção

agropecuária, penetra no campo e sujeita a renda da terra ao capital. É importante

perceber que no capitalismo brasileiro, o Estado se modificou conforme se modificaram

os interesses das classes dominantes, pois, independente do governo ou regime, no

MPC o Estado se adéqua à acumulação do capital.

As mudanças no campo, possibilitadas pela industrialização, que funcionou como

mola propulsora, abarcam também a estrutura social, com a diminuição de

trabalhadores autônomos e o aumento de assalariados. Este último, composto por

camponeses pobres que vendem seu trabalho nos complexos agroindustriais.

O que se percebe é que o espaço rural brasileiro vincula-se ás necessidades de

uma minoria de latifundiários, que detém a posse da terra e ditam as regras do jogo.

Quando se observa, por exemplo, a incorporação da região Centro-Oeste ao espaço

agrário brasileiro se vê que, na verdade, o Brasil precisava produzir capitais para

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equilibrar as contas do governo através das exportações, e não pela necessidade de

implementação de alguma política de desenvolvimento. Outra questão interessante é

como setores mais tradicionais como a mecânica, a química e rações, por dependerem

diretamente de políticas creditícias, operam como grupos de pressão favoráveis à

modernização do campo brasileiro. Enquanto isso, os agricultores familiares carecem

de atenção política para atender às suas reais necessidades, relegando-os apenas a

uma produção de subsistência ou, no máximo, a uma produção marginal no cenário

nacional.

Em meio a tudo isso, os movimentos de luta pela terra avançam sua atuação, no

sentido de pressionar o Estado e tem conseguido dinamizar as políticas concernentes

ao tema, bem como ampliar as discussões sobre a reforma agrária no país. Resolver o

problema da concentração fundiária no Brasil demanda ainda muitos embates, pois os

obstáculos que ora se impõem se fundamentam no poder das classes mais favorecidas

e nos ditames do MPC.

5. REFERÊNCIA

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