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COLEÇÃO ENSAIOS - N.° 3 Kusnet, Eugênio, 1898 - 1975. Ator e método. 2. ed. Rio de Janeiro. Instituto Nacionai de Artes Cénicas. 1935. 177 p. IL (Coleçío Ensaios n° 3.) 1. Teatro - Estudos. I. Título. CDD 792 EUGÊNIO KUSNET ATOR E MÉTODO I N S T I T U T O N A C I O N A L DE ARTES CÉNICAS MINISTÉRIO DA CULTURA RIO DE JANEIRO - 1985

Ator e Metodo Eugenio Kusnet

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Ator e Metodo E. Kusnet

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C O L E Ç Ã O E N S A I O S - N . ° 3

K u s n e t , Eugênio, 1898 - 1 9 7 5 .

Ator e método. 2. e d . R i o de Janeiro . Instituto N a c i o n a i de A r t e s Cénicas. 1935 .

177 p. I L (Coleçío E n s a i o s n° 3.)

1. Teatro - Estudos . I . Título.

C D D — 7 9 2

EUGÊNIO KUSNET

ATOR E MÉTODO

I N S T I T U T O N A C I O N A L D E A R T E S C É N I C A S

M I N I S T É R I O D A C U L T U R A

R I O D E J A N E I R O - 1 9 8 5

Para poder sempre conferir as leis objetivas da criatividade artística, de­vemos manter ininterrupto o desen­volvimento da nossa própria expe­riência subjetiva.

K . S. S T A N I S L A V S K I

Kusne t,

Não sei se o livro é bom. Sei que aprendi muito.

Gratíssimo'

M l R O E l S I L V E I R A

C o l a b o r a ç ã o : C A R M I N H A F A V E R O

N O T A D O A U T O R

Este livro é resultado da reformulação de todo o material contido nos meus livros: "Iniciação à Arte Dramática" e "Introdução ao Método da Ação Inconscien te''.

Ao relê-los ultimamente constatei que os dois, em muitos pontos, torna-ram-se desatualizados e, por isso, pouco claros para o leitor de hoje, interes­sado nos destinos do teatro atual.

Passaram apenas seis anos desde o lançamento do meu primeiro livro. Durante esse tempo surgiram muitas informações novas, tanto de ordem científica, no campo de psicologia e sociologia, como as resultantes das experiências feitas em teatros.

O próprio Método de Stanislavski deve ser apreciado hoje sob a luz dessas informações. Isto me obrigou a rever todo o material informativo, bem como a própria metodologia por mim proposta então.

E U G E N Í O K U S N E T

O ATOR E A VERDADE CÉNICA ou

ESTAR ARDENDO, PARA INFLAMAR

- I -

Atlântida, Uruguai , dezembro de 1 9 6 4 , fest ival l a t i n o - a m e r i c a n o de teatro : n u m palco quase vazio, p r e e n c h i d o apenas p o r algumas cadeiras e u m a mesa, u m sofá e u m p iano , espaço c e r c a d o p o r u m a r o t u n d a p r e t a , u m h o m e m de 66 anos, calvo, usando ó c u l o s e d e n u n c i a n d o u m p e q u e n o de fe i ­to n u m a das pernas, caminha sem parar , f a l a n d o b a i x o e c o m rap idez , esbo­çando gestos e movimentos , o l h a n d o p a r a os lados c o m o se falasse c o m alguém, c omo se estivesse cercado de personagens invisíveis, senta-se n u m a cadeira mais alta que as demais, levanta-se e m seguida, às vezes f u r i o s o e às vezes t r a n q u i l o , concentrado p r o f u n d a m e n t e e m alguma coisa de i n d e f i ­nível. Na plateia vazia Renato B o r g h i e eu estamos silenciosos: sabemos que Kusnet está certo, mas a vontade de r i r é d i f í c i l de c o n t r o l a r — u m de nós diz ao o u t r o : " o velho parece que ficou l o u c o ! " . Poucas horas depois o teatro Of i c ina de S. Paulo apresentava n o f e s t i va l "Pequenos Burgueses" de Máximo G o r k i . U m inevitável atraso na m o n t a g e m do d i spos i t i vo c é n i c o e da iluminação t o m o u impossível rea l i zar u m ensaio c o m p l e t o (e pela p r i ­meira vez o espetáculo. o r i g i n a l m e n t e m o n t a d o e m S. Paulo n o ant igo pa l co do Of i c ina , que t inha duas p late ias , u m a d i a n t e da o u t r a , c o m o espaço cénico no meio , era encenado e m p a l c o i t a l i a n o ) . Naquela n o i t e , que nos valeu o pr ime i ro premio do fest iva l , Eugén io K u s n e t c o n f e r i u , mais do que nunca extraordinária dimensão h u m a n a e soc ia l a seu personagem, o v e l h o Bessemenov, que procura apegar-se desesperadamente a seus valores n o instante histórico em que as contrad i ções s ó c i o - e conômicas j á a n u n c i a m a próxima e inevitável queda da burgues ia russa: seu desempenho, que lhe valeu o prémio de melhor a tor do f e s t i va l , f o i v igoroso . Não t e n d o p o s s i b i l i ­dades de passar por u m ensaio c o m p l e t o d o espetáculo, K u s n e t ensaiou sozinho. Aparentemente a luc inado , mas e x e r c e n d o , naquele i n s t a n t e , c o m grande pressa mas exemplar consc iênc ia p r o f i s s i o n a l , u m ato de e x t r e m a lucidez e dignidade. Tenho certeza de que naque le " r e c o n h e c i m e n t o " d o palco, passando por todas o u quase todas as ações de seu personagem. Kusnet colocou em prática, c o m ê x i t o , t u d o que . em sua v ida de a t o r e professor de interpretação, a p r e n d e u e a s s i m i l o u do célebre " m é t o d o " de

Stanis lavsk i . H o j e K u s n e t está m o r t o . Faleceu c o m 77 anos. U m a ex is tênc ia quase que i n t e i r a m e n t e d e d i c a d a ao t ea t ro , que para ele f o i não apenas u m a profissão, que assumiu i n t e g r a l m e n t e sem nunca perder u m a inqu ie tação permanente que t r a n s f o r m a v a c a d a personagem n u m m o m e n t o de pesquisa e dúvida, mas s o b r e t u d o u m a g r a n d e paixão, que despertou nele o pro fessor e a necessidade de t r a n s m i t i r seus conhec imentos e suas experiências, suas certezas e incertezas .

Nos anos e m que t r a b a l h o u j u n t o ao O f i c i n a , K u s n e t f o i mais q u e u m in te l i gente e ta l entoso a t o r c o n t r a t a d o , mais que u m ded i cado e generoso c o m p a n h e i r o de t r a b a l h o . Sua presença está e m todos os espetáculos nos quais p a r t i c i p o u : inteligência v i v a nas análises de t e x t o s , v i g iando c o m rigor a lógica das ações e dos c o m p o r t a m e n t o s , a u x i l i a n d o seus colegas de t r a b a ­l h o a e l u c i d a r as contrad ições e os problemas, K u s n e t m a r c o u sens ive lmente aspectos da própria c o n c e p ç ã o de alguns dos pr inc ipa is espetáculos d i r i g i d o s p o r José Celso M a r t i n e z C o r r e a , c o m o "Pequenos Burgueses" e " O s I n i m i ­gos" de G o r k i , " A n d o r r a " de M a x Fr isch ou " A V i d a Impressa e m D ó l a r " de C l i f f o r d O d e t t s . E no m o m e n t o e m que o fascinante e c o m p l e x o t r a b a l h o de pesquisa e v io lentação que precedeu a m o n t a g e m de " N a Seiva das C i d a ­des" de B r e c h t pelo O f i c i n a c o n d u z i u encenador e intérpretes a u m c e r t o descontro le i r r a c i o n a l . K u s n e t f o i chamado para i n d i c a r os c a m i n h o s d a d i s c ip l ina e reco locar o carro nos t r i l h o s . Paradoxa lmente , não íoi n u n c a u m encenador c r i a t i v o . Mas c o m o pro fessor sua at iv idade f o i f e b r i l . I n i c i o u a m u i t o s nas noções básicas d o t r a b a l h o do ator c o m o at iv idade c o n s c i e n t e , responsável, c r iadora , l i b e r t a d a magia e da inspiração, c o n t r o l a d a p o r u m t r e i n a m e n t o diário, s i s temát ico . F i e l discípulo de Stanis lavsk i . d e f e n d e u c o m o suas as teses de seu m e s t r e . A c e i t o u e assumiu seus p o n t o s de v i s t a . E x p l i c a as n o ç õ e s mais e l ementares de seu ens inamento . M u i t a s vezes n ã o f o i fácil convencer K u s n e t a i n t e r p r e t a r u m papel : para ele o mais i m p o r t a n ­te e ram as aulas e seus a lunos . Q u a n d o aceitou fazer o m é d i c o de " A n d o r r a " c o l o c o u c o n d i ç õ e s : t i n h a a lguns de seus alunos nos bast idores — faz ia u m a cena, a p r o v e i t a v a os i n t e r v a l o s para trabalhar c o m os a lunos no c a m a r i m , depois v o l t a v a para o pa lco . Es tava d i v i d i d o : a tor o u professor — o u m e l h o r , a tor e professor , pois ambas as atividades nele j á e r a m inseparáveis: sua prática na cena se t r a n s f o r m a v a e m tema de aula e o que desccbr ia c o m seus alunos, po is aprendia e n s i n a n d o , engravidava seu t r a b a l h o c o m o ator .

- I I -

Ator e Método reco loca , a m p l i a n d o alguns aspectos, o que K u s n e t j a havia escr i t o e m seus dois l i v r o s anter iores : " In i c iação à A r t e Dramát i ca e " I n t r o d u ç ã o ao M é t o d o da A ç ã o I n c o n s c i e n t e " . O t í tu lo já de f ine seus

objet ivos : o ator c omo centro d o espetáculo t e a t r a l ( K u s n e t a f i r m a que sem o ator , c omo sem o espectador, o t e a t r o não é t e a t r o ; a definição ideológica de seu pro jeto parte da célebre de f in i ção de Stanis lavsky , " a arte dramática é a capacidade de representar a v i d a d o esp ír i to h u m a n o , e m público e em f o rma artística", mas Kusnet , n o p r e f á c i o , c i ta Brecht e, trabalhador preocupado com a v ida social e c o m a responsab i l idade pol í ­t i ca do h o m e m de teatro, diz que " o único critério p a r a avaliar u m espe­táculo é a sua influência sobre os espectadores n o d i a de h o j e " ) e o método c o m o sistema de estudo e pesquisa, e x e r c í c i o de recursos físicos e emocionais que o ator pode desenvolver e d o m i n a r p a r a t r a n s f o r m a r seu t raba lho n u m processo racional e l óg i co , passível de ser d o m i n a d o e con ­duz ido , elementos conscientes que cons igam inc lus ive p r o v o c a r o que está aprisionado no inconsciente (para que , segundo seu p e n s a m e n t o , imponha-se a qualidade fundamental do a tor : " c o n v e n c e r o e spec tador da realidade d o que se i m a g i n o u " , ou seja, c u m p r i r a missão p r o p o s t a p o r Stanis lavski ) . Ator e Método efetivamente supera os l ivros anter iores . K u s n e t a f i rma que sentiu a necessidade de incorporar novas in formações q u e a u x i l i e m o t r a ­ba lho do ator na construção de seus personagens: neste s e n t i d o , f requente ­mente apela a colocações científicas, s o b r e t u d o v incu ladas à psicologia e à ref lexologia. Este l i v ro não é mais u m a expos i ção de e x e r c í c i o s e regras (e ele insiste em que, na arte, não e x i s t e m leis invioláveis) : rea l i zando o que chama de revisão da "própria m e t o d o l o g i a " , K u s n e t m o s t r a os ensinamentos de Stanislavski c o m o u m c o n j u n t o de n o ç õ e s básicas q u e poderão ser adaptadas ou modificadas em função d o t r a b a l h o prát i co , d o t i p o de peça a ser encenada, do t i p o de proposta d o espetáculo a ser rea l i zada , etc. Neste sentido o l i v ro se t o r n a mais aberto que os anter iores . E m e s m o aqueles que não aceitem integralmente as propos i ções de S t a n i s l a v s k i , considerando-as antes e m seu significado histórico preciso ( ou seja. u m a gigantesca c o n t r i ­buição ao estudo du trabalho do a t o r , p r i m e i r a t e n t a t i v a extraordinária de sistematizar este estudo em bases racionais e quase c ient í f i cas , mas n a t u ­ra lmente enunciando valores e ob j e t i vos que estão d e m a s i a d a m e n t e presos a u m a concepção de teatro e de t r a b a l h o artíst ico q u e e m inúmeros aspectos não mais corresponde às tarefas da p r o d u ç ã o artística e m nossos dias) encontrarão e m Ator e Método u m a t e n t a t i v a de apanhar o que o método tem de imperecível e indispensável para q u a l q u e r t i p o de traba­l h o . A t e n t o para não cair n u m a espécie de l e i t u r a " m í s t i c a " de certas af ir ­mações de Stanislavski, Kusnet a l e r ta o l e i t o r para a necessidade de compreender alguns conceitos p r i m o r d i a i s . S o b r e t u d o i n s i s t i n d o em que as afirmações de Stanislavsky no sent ido de que o a t o r necessita t e r / é refe-rem-se a u m a fé específica: o u seja, a fé cénica, não a fé real (ou seja, esp i r i tua l ) . E necessário buscar, p o r t a n t o , a wrdade cénica, não a verdade real.

A p r o f u n d a n d o este aspecto d o p r o b l e m a da interpretação, u m dos t r e ­c h o s mais est imulantes d o l i v r o de K u s n e t é a discussão sobre a n a t u r e z a e o s i g n i f i c a d o da chamada dualidade do ator. O a t o r nunca poderá, e m cena, d e i x a r de ser ele próprio para ser i n t e g r a l m e n t e u m o u t r o ("viver u m perso­n a g e m " ) . Consciente da b a t a l h a t ravada p o r B r e c h t c o n t r a u m t e a t r o que t e m p o r o b j e t i v o m á x i m o a ident i f i cação d o a tor c o m o personagem que, c o m o consequência , p r o v o q u e a ident i f i cação d o públ ico c o m o personagem (o q u e , segundo Brecht , reduz o espec tador a u m ser passivo, o b j e t o aneste­s iado , d o p a d o , c o n d i c i o n a d o a abd i car t o t a l m e n t e da possibi l idade de re­flexão, condenado a emoc ionar -se de f o r m a m i s r i f i c a d o r a ) , Kusnet a f i r m a q u e a escolha do teatro a tua l é a " c o e x i s t ê n c i a e m cena do ator-cidadão c o m o p e r s o n a g e m " . E diz que q u a n d o o a t o r " e n c a r n a " u m personagem, i s to " n ã o s igni f i ca substituição míst ica d o a t o r p e l o personagem, pois . neste caso o m u n d o o b j e t i v o d e i x a r i a de e x i s t i r para o a t o r " . O ator aceita e assume os p r o b l e m a s d o personagem, " a d q u i r i n d o a fé cénica na realidade da sua exis­tência , vive c o m o se fosse o personagem c o m a máxima sinceridade, mas, ao m e s m o t e m p o , não perde a capacidade de observar e c r i t i car a sua o b r a artíst ica — o personagem" .

O es tudo da " d u a l i d a d e d o a t o r " é a m p l i a d o pela citação de trechos de pesquisas científicas mais recentes ( S t a n i s l a v s k i e m 1938, ano de sua m o r t e , a i n d a a f i rmava não possuir c o n d i ç õ e s de e x p o r u m a comprovação c ientí f ica d o processo psíquico que p e r m i t e a " d u a l i d a d e " ) , sobretudo descrições do sov ié t i co R. G. Natadze , datadas de 1 9 7 2 , sobre o chamado processo de instalação, que Kusnet m o s t r a ser útil t a n t o para o camponês v at iv idades utilitárias) c o m o para o a tor (a t iv idades art íst icas ' . Isto p o r q u e ele par te de u m a premissa certa : quem se comunica com a plateia é o 'ator — " O perso­n a g e m , c o m o u m ser h u m a n o c r i a d o pe l o d r a m a t u r g o , vive a sua v ida d e n t r o das circunstâncias propostas , i n d e p e n d e n t e d o espectador, pois este ú l t imo n o r m a l m e n t e não faz parte das situações e m q u e vive o personagem, salvo se o a u t o r da obra de l iberadamente i n c l u i os espectadores c o m o par t i c ipantes da ação dramática. A não ser nesses casos espec í f i cos , o personagem t e m c o n t a t o e comunicação apenas c o m o a m b i e n t e e os outros personagens da p e ç a " . E c o n c l u i que o a t o r deve estar p e r m a n e n t e m e n t e e m c o n t a t o e c o m u n i c a ç ã o c o m o espectador " c o m o , aliás, c o m todos os e lementos do m u n d o o b j e t i v o que o cer ca " .

- I I I -

Ator e Método reúne assim regras e exer c í c i o s , re lato de experiências pessoais de Kusnet e de pessoas que c o m ele t r a b a l h a r a m , alunos o u atores pro f i s s iona is . Ele faz inc lus ive u m a espéc ie de revisão de m o m e n t o s d o

personagem mais comple to que r e a l i z o u e m seus 55 anos de t e a t r o , o Bessemenov de "Os Pequenos Burgueses" . O u t r o s e x e m p l o s , q u e ele não can­sava de repet ir em suas aulas, p a r t e m de t rabalhos de F e r n a n d a M o n t e n e g r o o u Greta Garbo, Laurence Ol iv ier ou Renato B o r g h i . K u s n e t estava sempre de o lhos atentos, buscando n u m f i l m e o u n u m disco , n u m ensaio o u n u m espetácvlo, matéria para elaborar seu pensamento . De fende suas ideias c o m f i rmeza . Neste sentido é curioso examinar , no ú l t imo c a p í t u l o , c o m e x t r e m a atenção, pois é quase u m resumo de sua visão d o t r a b a l h o d o ator , seu diálogo c o m I . M . S m o k t u n o v s k i , do e lenco do G r a n d e T e a t r o D r a m á t i c o de Len ingrado , u m dos mais vigorosos atores d o t e a t r o c o n t e m p o r â n e o (seu fascinante e meticuloso t raba lho e m " O I d i o t a " de D o s t o i e w s k i é u m a espécie de síntese e x t r e m a d o processo stanis lavskiano de t r a b a l h o , real izado nos dias de ho je ; : Kusnet defende, c o m o " p o n t o c u l m i n a n t e de todos os anseios de qualquer ator que se preze e que seja d i g n o de exercer a sua a r t e " , o que define como comunicação essencialmente emocional. S m o k t u n o v s k i concorda e c i ta o poeta soviético Iessenin: "Se você não est iver a r d e n d o , não poderá inf lamar ninguém", mas insiste: " a c o m u n i c a ç ã o e m t e a t r o não deve ser apenas emocional . Em teatro deve estar sempre presente u m a ideia apaixonada" . Kusnet concorda mas ressalta que " i d e i a a p a i x o n a d a " pres­supõe " a alta emocionalidade da ide ia e, p o r t a n t o , a o b r i g a t o r i e d a d e da presença de emoções extremamente agudas na c o m u n i c a ç ã o c o m o espec­t a d o r " , ao que o ator soviético também insiste : " C l a r o , mas n u n c a c o m ausência da ideia, do pensamento" . Talvez seja este u m dos grandes debates do teatro atual : a dosagem entre a transmissão de ideias e de e m o ç õ e s ou c o m o atingir o espectador, no sent ido de mantê-lo v i v o , d e s p e r t o , capaz de reflexão e crítica, diante de u m espetáculo . sem que i s to i m p l i q u e e m des­prezar o vigor da emoção verdadeira. T o d a a problemática da verdade cénica se insere neste debate. E u m l i v r o c o m o .4ror e Método é u m e s t í m u l o e u m a aula. N u m país onde o teatro é u m a aventura diária, onde os atores se f o r m a m improvisando no palco mesmo , onde as capengas o u retrógradas escolas de teatro não c u m p r e m u m a função mais e fe t iva . o n d e a formação do ator é u m a espécie de mágica. Ator e Método, mais d o que os dois l ivros anteriores de Kusnet , é u m convite a u m m e r g u l h o mais a p r o f u n d a d o nos indispensáveis livros de Stanislavski , para que o l e i t o r t o m e c o n h e c i m e n t o c o m u m a das profissões mais contraditórias e fascinantes, u m a necessidade quase atávica do h o m e m em sua ânsia de expressão e cr iação de valores, em seu desejo de situar-se dentro da sociedade c o m o e l e m e n t o t r a n s f o r m a d o r . E, sobretudo para os atores, ou os que p r e t e n d e m ser atores , u m convite para a aquisição de uma consciência mais nítida de sua prof issão , atual ou f u t u r a , de seus recursos, sua d i s c ip l ina , seus prob lemas e suas responsabi l i ­dades. E é ainda o testemunho e loquente de u m a p a i x ã o : u m a t o de fé no teatro e no h o m e m , escrito por u m ator que não se c o n t e n t o u e m ocupar o

pa l co p a r a sí mesmo, não a c e i t o u apr i s i onar sua experiência pessoal e m sí m e s m o , esco lhendo, c o m o necessidade v i t a l e ( s o b r e t u d o no final de sua v i d a c o m o necessidade p r i m o r d i a l ) t r a n s m i t i r seus conhec imentos , r e f o r ­m u l a r suas ideias, pesquisar cada vez mais a d i a n t e , sem medo o u p r e c o n ­c e i t o , a i n d a que sempre fiel aos valores que assumiu desde cedo. De tantas c i t a ç õ e s célebres de Stanis lavski , K u s n e t esco lheu para esta edição de Ator e Método, que i n f e l i z m e n t e aparece póstuma, j u s t a m e n t e a que def ine c o m m a i o r prec isão não apenas o l i v r o mas a ele m e s m o , c o m o ator e pro fessor : a c o n s c i ê n c i a de que é necessário sempre c o n f e r i r as leis objetivas, e elas e x i s t e m , d a c r ia t iv idade ; e para isso é necessário m a n t e r i n i n t e r r u p t o o d e s e n v o l v i m e n t o da própria experiência s u b j e t i v a . Pois teatro se aprende f a z e n d a , mas não se aprende, n e m se real iza a l g u m a coisa de consequente , se a prát ica não for acompanhada , no c o t i d i a n o , de u m a reflexão rigorosa, e x i g e n t e e intransigente .

F E R N A N D O P E I X O T O

INTRODUÇÃO

E n t r e t odas as artes, a arte dramática talvez seja a única que só em cases de abso lu ta e x c e ç ã o poder ia ser exerc ida p o r apenas u m a pessoa. Ela é essenc ia lmente suje i ta ao resu l tado do t r a b a l h o de c o n j u n t o , de equipe . Q u a n t o m a i o r f o r a h a r m o n i a ex is tente entre os e l ementos da equipe, seja e m t e a t r o , e m c i n e m a ou em televisão, q u a n t o m a i o r f o r o E S P I R I T O D E C O L E T I V I D A D E no t r a b a l h o , t a n t o m e l h o r será o r e s u l t a d o . Entre parên­teses: a pa lavra " e l e n c o " na União Soviética é t r a d u z i d a p o r " c o i e t i v o " .

Por isso as palavras do escr i tor A n t o n T c h e k o v sobre cc ier iv idade em geral p o d e m ser per f e i tamente aplicadas ao t r a b a l h o de equipe tea t ra l : "Se cada u m de nós aplicasse o m á x i m o de sua capac idade no cu l t i vo de seu t e r r e n o , e m que belo j a r d i m se t r a n s f o r m a r i a a nossa t e r r a ! "

E isso s ó é possível quando se t raba lha c o m m u i t o a m o r . Esse amor pelo t r a b a l h o c o i e t i v o em teatro nunca deve ser superado pelos anseios e vaidades pessoais. N ó s , gente de t ea t ro , somos vaidosos por exce lência , pela própria natureza de nossa arte que é e x i b i c i o n i s t a , mas o essencial e que a nossa vaidade seja c o n s t r u t i v a e não p r e j u d i c i a l ao t r a b a l h o c o i e t i v o . " A m e a arte em v o c ê , mas não a você na a r t e " . Essa frase de Stanis lavsk i também nunca deve ser esquecida pela gente de t e a t r o .

Mas o a m o r que todos nós temos à nossa ar te , ao t e a t r o , não pode ser abs t rato . A famosa frase: " A r t e pela a r t e ! " não passa de u m absurdo e de u m a m e n t i r a . O ator que d u r a n t e o processo de sua criação artística, o espetáculo , t e m a sua frente seres h u m a n o s , os espectadores , q-e aprec iam, que j u l g a m e que até p a r t i c i p a m da sua cr iação , esse a t o r não pode igno­rá-los, pois espectadores fazem parte orgânica da sua arte . Como então poder ia o a r t i s t a de teatro fazer " a r t e pela arte? "

N ã o , a nossa arte é real izada, c o m o disse S t a n i s l a v s k i , "para o h o m e m , pelo h o m e m e sobre o h o m e m ! "

Não se p o d e " e x i s t i r em c e n a " , realizar u m espetáculo teatral só pelo prazer do p r ó p r i o processo de criação. S i m , devemos a m a r a nossa arte, mas não apenas pelos t r i u n t o s e pelo prazer que ela nos p r o p o r c i o n a , mas p r i n c i ­p a l m e n t e p e l o d i r e i t o de nos c o m u n i c a r c o m o esoectador . com o nosso semelhante .

Essa c o m u n i c a ç ã o só é possível q u a n d o os pensamentos , as preocupa­ções , e n f i m t u d e de que vive o espectador, preocupe p r o f u n d a m e n t e o a tor , e q u a n d o s i m u l t a n e a m e n t e t u d o de que vive o a tor em cena possa interessar

e preocupar o espectador, p o r q u e o ún i co critério para avaliar u m espetáculo é a sua influência sobre os espectadores no dia de ho je . B e r t o l t B r e c h t disse: " E preciso criar espetáculos para o espectador que ho je c ome carne de ho j e " . E assim — em todos os espetáculos , da estreia ao ú l t imo espetácu lo .

Por isso é necessário que o a t o r responda a duas perguntas : " P o r que você faz teatro? " e " P o r que v o c ê faz hoje esse espetáculo? "

E agora que já encaramos c o m t o d a a seriedade o p r o b l e m a m á x i m o da nossa profissão, podemos " r e l a x a r " f a lando de coisas menos graves.

O espectador não vai ao t e a t r o só para " e n c o n t r a r resposta a seus prob lemas" (isto é muito raro), ele va i lá p r i n c i p a l m e n t e para se d i v e r t i r . Ele se sente constrangido quando n o t a que o teatro t e m tendência de o cate ­quizar, de lhe " d a r u m a a u l a " . E l e não gosta de se sent ir n u m a esco l inha .

Aliás, sabem vocês que nas escolas modernas procura-se a t u a l m e n t e , evitar imposições de ensinamentos? R e c o m e n d a m aos professores fazer c o m que o aluno tenha impressão de que f o i ele próprio que descobr iu a so lução para u m problema. C o m isso consegue-se a participação do a l u n o n o p r o ­cesso de ensino.

O mesmo deve se fazer e m t e a t r o : se você conseguir dar f o r m a a t r a e n t e , excitante ou divertida aos p r o b l e m a s seríssimos que você apresenta e m cena, o espectador terá vontade de p a r t i c i p a r do espetáculo — ao menos m e n t a l ­mente — e assim absorverá suas ideias i m p e r c e p t i v e l m e n t e para ele p r ó p r i o .

E raro que o espectador, a t r a í d o pela ação f o r t e do espetáculo , consiga raciocinar sobre o que vê e o u v e . Basta que ele sinta a ação . As e m o ç õ e s adquiridas, mais tarde, em casa, p o u c o a pouco serão t r a n s f o r m a d a s e m pensamentos e conclusões.

Assim o teatro E N S I N A D I V E R T I N D O E, ÀS V E Z E S , B R I N C A N D O . Por isso, a meu ver, u m dos p r o b l e m a s i m p o r t a n t e s nos estudos para o f u t u r o ator í, paradoxalmente , a capacidade de " b r i n c a r s e r i a m e n t e " , i s t o é, nunca perder o extremo prazer de exercer a sua ar te , e n q u a n t o vive e m cena os mais graves problemas da v i d a h u m a n a .

C o m o conseguir isso? Por o n d e devemos começar? A f o n t e m á x i m a de estudos para u m artista é, s e m p r e f o i e sempre será,a própria v i d a , a n a t u ­reza.

E por isso que, ao c o m e ç a r as nossas palestras sobre a iniciação à arte dramática, tomaremos por base o M é t o d o de Stanis lavski . N ã o p o r c o n s i ­derá-lo o melhor , mas por ser o único baseado nos estudos da própria natureza humana.

Todos vocês conhecem esse n o m e e não há necessidade de c o n t a r a q u i sua biograf ia (embora nela encontremos pontos de enorme importância para gente de teatro), mas é b o m r e l e m b r a r c o m o esse h o m e m c o m e ç o u os t r a b a ­lhos que nos interessam.

Ele começou a sua vida de t e a t r o no a m a d o r i s m o . A c h o i m p o r t a n t e

s u b l i n h a r esse f a t o para fr isar que Stanis lavski não p a r t i u de u m a d e t e r m i ­nada escola, não f o i i n f l u e n c i a d o por de terminadas tendências . É c laro que ele l eu m u i t o sobre t e a t r o , v i u m u i t o s t ea t ros , c o n h e c e u m u i t a gente de t e a t r o , mas n u n c a f o i pressionado por u m a d e t e r m i n a d a i d e i a .

F i l h o de u m a família rica, ele d i spunha de meios para " b r i n c a r " de t e a t r o . T e n d o e n c o n t r a d o jovens entusiastas c o m o ele p r ó p r i o , f o r m o u u m g r u p o de t e a t r o a m a d o r . Essas experiências e o seu t r a b a l h o p o s t e r i o r no t e a t r o p r o f i s s i o n a l de ram- lhe o mater ia l que p o u c o a p o u c o se t r a n s f o r m o u no que ho j e c onhecemos c o m o o " M é t o d o de Stan is lavsk i ' " .

N o t e m p o e m q u e eu comece i a t raba lhar em t e a t r o p r o f i s s i o n a l , isto é, em 1920 , não e x i s t i a o M é t o d o por escr i to . Nós c o n h e c í a m o s as tendências do Mestre através de alguns artigos escritos p o r ele e, p r i n c i p a l m e n t e , através de suas realizações n o " T e a t r o de A r t e de M o s c o u " , que sempre f o r a m m u i t o c omentadas t a n t o pelos cr í t icos , c o m o pelos pesquisadores de t e a t r o .

A influência de Stanis lavski scbre todos os teatros russos era e n o r m e já naquela é p o c a , mas ninguém, a não ser seus disc ípulos e co laboradores d i re tos , chegou a usar os elementos do seu M é t o d o c o n s c i e n t e m e n t e . Seus poucos e n s i n a m e n t o s conhec idos e seus espetáculos apenas descer tavam em todos os atores e d i re tores a vontade de exercer o seu " r r . e r i e r " m e l h o r , pensar mais n o seu t r a b a l h o , procurar pessoalmente os meies de se a p r o x i ­mar mais dos resu l tados obt idos por Stanis lavski .

Só m u i t o mais t a r d e , aqu i no Brasi l , q u a n d o pela p r i m e i r a vez t ive a o p o r t u n i d a d e de l er suas obras, cheguei a reconhecer nos e l ementos de seu M é t o d o alguns deta lhes do m e u t r a b a l h o , quase i n s t i n t i v o , daquele t e m p o . C o m p a r a n d o as experiências concretas de Stan is lavsk i c o m as m i n h a s , e m b o r a m u i t o t ímidas e vagas, mas que surg i ram sob a ir.fluência dele. naquela é p o c a , é q u e eu conceb i a ideia de l e c i onar a A r t e Dramática na base do M é t o d o .

P o r t a n t o , não sou n e n h u m "especial ista e m S t a n i s l a v s k i " , n u n c a f u i seu a luno , n e m t ive a h o n r a de c o n t a t o pessoal c o m o M e s t r e . S o u apenas u m dos m u i t o s pesquisadores que procura , na m e d i d a do poss íve l , ser útil aos que se interessam pe lo t raba lho de tea t ro . L e c i o n a n d o eu c o n t i n u o a apren­der. D u r a n t e t o d o s esses longos anos meus a lunos m e e n s i n a r a m m u i t o d a q u i l o que s o z i n h o n u n c a conseguiria descobr ir .

E agora vamos ao que interessa.

E U G É N I O K U S N E T

P R I M E I R A P A R T E

I N I C I A Ç Ã O À A R T E D R A M Á T I C A

PRIMEIRO CAPITULO

Antes de ent rar nos assuntos desta Iniciação à A r t e Dramática, acho m u i t o útil estabelecer certas n o r m a s que possam reger nossas relações, i s t o é, relações entre o que ensina e os que e s t u d a m . Para isso é preciso t o r n a r b e m claros os nossos ob je t ivos .

Se vocês estão l e n d o este t r a b a l h o é p o r q u e se interessam pelo t e a t r o . O mesmo poder ia dizer a seus o u v i n t e s u m professor de física ao i n i c i a r suas aulas: "Se vocês estão a q u i , é p o r q u e se interessam pela f í s i ca" . . . A t é a q u i a situação é idêntica: o interesse pe la matéria a ser estudada.

Mas a p r i m e i r a matéria é u m a a r t e , ao passo que a segunda é u m a ciência. As verdades da ciência são invioláveis, indiscutíveis, pe lo menos até o m o m e n t o e m que a própria c iênc ia as r e f u t e . As verdades da arte p o d e m ser submetidas a dúvidas^a^qualguer m o m e n t o , basta para isso submetê-las a novas experiências e o ferecer o seu resulta^^à_arjr^çj_aç^ãojos3ornens. E m resultado final (mas na realidade sempre temporário!) dessa apreciação poderá surgir nova verdade , c u j a duração dependerá da apreciação da m a i o ­ria.

A o c omeçar a estudar u m a a r t e , t odos t e m o d i r e i t o de d u v i d a r e de aplicar sua própria c o n c e p ç ã o sobre a essência da arte e m questão. Mas nos estudos de u m a ciência o a l u n o deve respeitar r igorosamente as n o r m a s estabelecidas. Seria u m absurdo i n c o n c e b í v e l se alguém, ao c omeçar a estu­dar física nuclear ainda duvidasse da l e i da gravidade. Mas não seria n e n h u m absurdo duv idar das leis que d e v e m reger a A r t e Dramática. Ninguém pode provar a i n v i o l a b i l i d a d e de certas n o r m a s da arte que , n o m o m e n t o , são reconhecidas pela m a i o r i a c o m o un iversa i s : para alguns elas são invioláveis, para outros apenas u m a das f o r m a s de expressão teatra l .

Isso me faz l e m b r a r a conversa que t ive c o m u m dos nossos h o m e n s de teatro . Ele me disse: " K u s n e t , n ã o está longe o t e m p o e m que o a t o r não será mais necessário e m t e a t r o ! " E u desviei a conversa exatamente p o r q u e nada podia provar e m contrár io : eu sabia que a ideia dele não era nada n o v a : u m d i re tor usa todos os meios f ís icos que encontra ao seu alcance — f o r m a s , Unhas, luzes, sons — para t r a n s m i t i r a ideia da obra dramática e, nessas condições , q u a l q u e r pessoa viva serve n o lugar de u m a t o r ; basta co locá- la na a t i tude desejada, iluminá-la c o n v e n i e n t e m e n t e , etc. E não d u v i d o que usan­do esses meios o d i r e t o r poderá conseguir m u i t o s efeitos de e m o ç ã o o u de raciocínio, mas será isso t ea t ro? E u respondo categor i camente : N ã o . Mas

4 EUCÉNIO K U S N E T

nada posso provar. Só posso dizer que, a meu ver t e a t r o é o u t r a co isa , que o teatro sem ator para mim não existe.. Stanislavski no fim de suá~vida, que ele dedicou tota lmente às pesquisas sobre todas as poss ib i l idades d o t e a t r o , disse: "Cheguei à conclusão de que os meios mater ia is de e n c e n a ç ã o são l imi tados e que o mais i m p o r t a n t e e lemento de t e a t r o é o a t o r , o h o m e m , porque seus meios, suas possibilidades não t e m l i m i t e , c o m o não t e m l i m i t e a combinação das sete notas da gama mus i ca l : ela n u n c a f o i n e m será esgo­tada pelos compositores".*!

Procuremos chegar à essência do teatro por e l iminação progress iva dos seus elementos. Sem qual deles o teatro não poder ia ex i s t i r ? S e m préd io , sem palco? Claro que pode! Basta que se façam espetáculos ao ar l i v r e . Sem cenário, sem iluminação? Pode! A natureza nos dá, às vezes, esses e l e m e n t o s em forma mais rica do que a que pode ser conseguida e m t e a t r o . Sem música? Claro. Ela nunca f o i essencial no teatro f a l a d o ; ela é útil mas não indispensável. Sem texto fixo? Por que não? As falas p o d e m ser i m p r o ­visadas como em teatro ' h a p p e n i n g " . Sem d i r e t o r ? O a t o r p o d e a u t o -dirigir-se. E sem ator? O que poderia substituí-lo? V e j a m o s .

A tecnologia moderna chegou a descobertas c o m que nossos avós não poderiam nem sonhar; os robôs-computadores s u b s t i t u e m o h o m e m e m vários setores de atividade executando taretas que a p a r e n t e m e n t e n ã o esta­r iam ao alcance do próprio h o m e m ; a cibernética t e n t a f a b r i c a r obras de arte. T u d o isso é verdade, mas ninguém poder ia i m a g i n a r que o ' ' C é r e b r o e letrônico" u m dia pudesse igualar-se ao cérebro h u m a n o .

N u m rápido programa de intormações técnicas no C a n a l 2 ^Tl' Cul­tura), em São Paulo, u m c ient is ta - l a m e n t o não ter t o m a d o n o t a do seu nome — me impressionou sobremaneira q u a n d o disse que as i n f o r m a ç õ e s que chegam ao cérebro h u m a n o , às vezes, v e m dos genes. C o m t o d o s os aperfeiçoamentos imagináveis, ninguém poderá e m sã c o n s c i ê n c i a , sonhar com a hereditariedade dos robôs . E eu acrescentaria : n e n h u m c o m p u t a d o r será capaz de se apaixonar por u m a c o m p u t a d o r a .

O ator, o homem que vive, que pensa, que sente éji ú n i c o e l e m e n t o de teatro absolutamente índispensãveT. r o d o s os o u t r o s e l e m m t o s , e m b o r a sejam de imensa utUidade,~n"3o~s"ao mais que satélites desse " s o l " d o t e a t r o que é o ator.

E finalmente, podemos perguntar : poderá o t e a t r o e x i s t i r sem especta­dor? Não! A razão da e x i s t ê n c i a d o j s a t r o é e x a t a m e n t e a sua c o m u n i c a ç ã o c o m o espectador.

E assim, e só assim que eu entendo o t e a t r o . ' Mas imaginemos que entre vocês, meus le i tores , se e n c o n t r e m pessoas

cuja opinião seja contrária à m i n h a c o n c e p ç ã o de t e a t r o . Q u e far íamos nós, eu que escrevo na base da m i n h a c o n c e p ç ã o e vocês , c o m ideia d i a m e t r a l ­mente oposta. E claro que nessas condições nós nunca chegar íamos a q u . i l -

A T O R E M É T O D O 5

quer r e s u l t a d o útil. Daí a abso luta necessidade de estabelecermos bases c o m u n s p a r a os nossos estudos. Não se assustem, n ã o pre tendo i m p o r n e n h u m d e t e r m i n a d o estilo de t e a t r o . Trata-se apenas de estabelecer o p o n t o de v i s t a c o m u m j o b r e _ o _ q u e é " b o m t e a t r o " e o j g u e é " m a u t e a t r o " j

Há uns anos se d iz ia , aliás, às vezes a inda se d iz , para qual i f i carmos u m m a u e s p e t á c u l o : " r u i m c o m o rádio-novela" . P r o c u r e m lembrar-se de alguns e x e m p l o s de rádio-novela daquele t e m p o e verão que rea lmente havia razão para essa c o m p a r a ç ã o . E n o t e m : e m m u i t o s casos não era cu lpa dos atores e s i m das c o n d i ç õ e s e m que eles t r a b a l h a v a m , pois os " s c r i p t s " eram entregues às vezes, p o u c o s m i n u t o s antes da irradiação e a nove la ia " p r o a r " sem u m a l e i t u r a sequer .

E o r e s u l t a d o n a t u r a l m e n t e era b e m t r i s t e , t u d o era estandardizado ; aqueles vi lões sanguinários c o m suas vozes roucas e suas risadas " s i n i s t r a s " , aquelas mães " s o f r e d o r a s " que , l ogo no in íc io da n o v e l a , ainda sem razão a lguma para so frer já fa lavam c o m u m nó na garganta , aqueles mar idos infiéis que ao m e n t i r à esposa gaguejavam t a n t o que nenhuma pessoa n o r m a l p o d e r i a acreditar na sua inocência , etc .

Cre i o q u e não pode haver duas opiniões a respe i to da qualidade desse t i p o de t e a t r o .

E agora p r o c u r e m exemplos do contrário , d a q u i l o que vocês pudessem chamar de b o m teat ro . P r o c u r e m lembrar-se de a l g u m b o m trabalho d o t e a t r o n a c i o n a l ou dos teatros estrangeiros, que v i s i t a m o Brasil , ou dos t rabalhos de c i n e m a . Pensem e p r o c u r e m c o m p r e e n d e r p o r que os atores desses e x e m p l o s os impress ionaram? Q u a l é a di ferença entre u m b o m e u m m a u ator? U n s dirão que o b o m ator é sempre n a t u r a l ao passo que o m a u é a r t i f i c i a l ; o u t r o s dirão que o b o m ator " v i b r a " e o m a u " f i c a f r i o " ; mais o u t r o s dirão q u e o b o m ator "_vive_o_papeP e, c o m isso, c ^ ^ _ a j i o s J a z e t acred i tar n a real idade da _e xis tê nc ia do personagerr.. ao passo q u e o m a u " r e p r e s e n t a " . \

R e s u m i n d o todas essas opiniões e poss ive lmente m u i t a s outras , pode­mos d izer q u e os maus atores não nos cony^nç_esn_da realidade do que representam e os bons convencem, foz conseguinte , o o b j e t i v o do ator que pre tende fazer " b o m t e a t r o " é conseguir essa capacidade de convencer o espectador da realidade do que se imaginoujpara a realização do espetáculo, o - ! } ^ . n o fundo","" sempre redún~da~~na transmissão da ideia do autor ao espectador .

Não é demais frisar aqu i o u t r a vez que para m i n é u m ax ioma : o a t t i s ta não p o d e c r i a r e m , ter vontade de convencer j L e o n T o l s t o i disse: " U m a obra de arte só é autêntica quando a pessoa que a aprecia não pode imaginar o u t r a coisa a não ser aqui lo que aprec ia . " T a l deve ser a força de convicção de u m a r t i s t a .

Mas v o l t a n d o ao assunto, já que se t ra ta da transmissão de u m a ideia, o

6 E U G Ê N I O K U S N E T

pr inc ipa l ob jet ivo do ator n ã o p o d e ser o de convencer o e s p e c t a d o r _ d a realidade__material da_vida, m o s t r a r - l h e como_o personagem d o r m e , a n d a , come, etc, rnas. s i m . mç*trãr3^ o que pensa, p a r a que vive.

O ator através de seu comportamento físico, exterior — m o s t r a n d o c omo o personagem come, d o r m e , anda, fala — convence o espectador d a realidade da vida interior do p e r s o n a g e m : do que ele pensa, do que ele q u e r , do que ele sente, o que vale d i z e r : convence-o da realidade da vida dp espírito humano. " A s pessoas estão j a n t a n d o , apenas estão j a n t a n d o , mas exatamente nessa hora se f o r m a a sua fel ic idade o u se a r r u i n a m as suas v idas" . (Anton Tchekov)

Assim chegamos a c o n c r e t i z a r o p r inc ipa l o b j e t i v o d o t e a t r o que se t o m a tão claro na definição de S t a n i s l a v s k i :

A A R T E D R A M Á T I C A É A C A P A C I D A D E D E R E P R E S E N T A R A V I D A D O E S P I R I T O H U M A N O . E M PÚBLICO E E M F O R M A E S T É T I C A .

C o m o podem constatar, n ã o há nisso a mínima l imitação; t o d o e q u a l ­quer estilo de teatro é aceitável, c o n t a n t o que c o n t e n h a a v ida do esp ír i to humano .

E m conversa c o m u m dos nossos diretores — e por s inal , u m exce l ente d iretor —, esse problema surgiu da seguinte f o rma . Ele me p e r g u n t o u : " E se eu lhe propusesse o papeJ_dejinTjjimj ) les ob ieto e não d_e_ym_s_ej:Jbjínian.o, por exemplo^o papel d e j u m a ^ a d e i r a — você o aceitaria? " E u r e s p o n d i : " S e essa cadeira tem amor por u m a o u t r a cadeira: se n u t r e a esperança de u m d i a se t o rnar uma p o l t r o n a ; se essajcadeira t e m m e d o ^ d T m o r r e r q u e i m a d a n u m incêndio, então eu aceito o p a p e l p o r q u e . _nes.se casq,_a sua cadeira - terá a vida dc .espírito humano . D o contrár io , você não precisa de u m a t o r — ponha uma cadeira verdadeira e que os seus atores f a l e m c o m e l a " . . .

Stanislavski e seus verdadeiros adeptos nunca f i z e ram o b j e ç ã o a n e n h u m estilo de teatro. U m dos m a i o r e s diretores do T e a t r o Sov ié t i co , N i c o l a i Okhlópkov, quando duramente c r i t i c a d o pelos seus colegas da camada c o n ­servadora que o acusavam de esti l ização e m o d e r n i s m o exagerados, r e s p o n ­deu as acusações n u m a r t i g o : " Q u e cada d i re tor use o que achar c o n v e n i e n t e e de acordo com seus princípios artísticos, c o n t a n t o que isso não s o m e n t e não prejudique, como também a j u d e , coopere na realização do mais i m p o r ­tante : a revelação do rico e complicado mundo interior do homem. D o contrário, o ator não terá nada que fazer e o d i r e t o r nada que p r o c u r a r " . E depois: " O espetáculo só se rea l i za q u a n d o se consegue revelar esse m a r de ideias, emoções e desejos; e u m m u n d o in te i ro em cada gota desse m a r " .

Apesar do seu m o d e r n i s m o , Okhlópkov se enquadrava p e r f e i t a m e n t e dentro dos princípios do M é t o d o .

E interessante notar que os mais extremados " e s q u e r d i s t a s " de T e a t r o não fogem desse tator — a v i d a d o espírito h u m a n o . Eugène lonesco , n u m

A T O R E M É T O D O 7

art igo e m que ele e x p l i c a c o m o a seu ver deve ser o t e a t r o de h o j e , escreve: " L e Théatre est dans l 'éxageration des s e n t i m e n t s , 1'éxageration q u i d is loque le rée l " . P o r t a n t o , e m b o r a e x t r e m a m e n t e exagerados, os s e n t i m e n t o s c o n t i ­n u a m a e x i s t i r n o seu t e a t r o ; p o r t a n t o existe nele a v ida d o esp í r i t o h u m a n o .

A s s i m se apresenta a p r i m e i r a parte da def inição de S t a n i s l a v s k i : " A capacidade de representar a v ida do espírito h u m a n o " .

Q u a n t o aos o u t r o s dois detalhes da de f in ição , eles são ó b v i o s : " R e p r e ­sentar . . . em público . . . " Não se pode conceber o t e a t r o s e m espectador, — ele faz par te da própria natureza desta ar te .

E finalmente: " . . . e m f o r m a estética". A ação t e a t r a l n ã o deve ser feia. C o m isso eu não q u e r o dizer que ela deve ser " b o n i t a " , ela p o d e ser h o r r o ­rosa, h o r r i p i l a n t e mas ao mesmo t e m p o bela c o m o é be la a cena da m o r t e de D e s d ê m o n a , apesar d o h o r r o r que ela causa ao espectador . Sabemos que a v ida h u m a n a está che ia de detalhes feios e que esses deta lhes talvez t e n h a m que fazer par te da a ç ã o tea t ra l , mas cabe aos cr iadores d o espetáculo dar-lhes, na m e d i d a do possível , u m aspecto que não p r e j u d i q u e o be lo da ação. Uivos p r o l o n g a d o s de u m h o m e m s u b m e t i d o à t o r t u r a , excesso de sangue e u m a f e r ida aberta n u m a cena de assassinato, detalhes de v ó m i t o n u m a cena de doença , t o d o s esses detalhes, embora representem aspectos de u m so f r i ­m e n t o rea l , e m t e a t r o causam ao espectador apenas u m a náusea e lhes t i r a m a s fpnç^n An n u i i i r n p o r r ^ n t v • do " r i c o e c o m p l i c a d o m u n d o i n t e r i o r d o h o m e j a l ! .

Então repetimos:_CL_o.bjetivo do ator é convencer o_gspectador da_reali-dade da v i d a -do_gs p i r i t o h u m a n o . Os que conseguem isso c h e g a m a realizar verdadeiros mi lagres . Vocês talvez c o n h e ç a m casos em que grandes intér­pretes de personagens históricos conseguiam convencer os espectadores das características t o t a l m e n t e contrárias à c o n c e p ç ã o histórica, c ientí f ica. E mais a inda , dois intérpretes do mesmo papel histór ico c o n s e g u i a m convencer os espectadores, e m b o r a suas ideias sobre o personagem f o s s e m c o m p l e t a ­mente d i f e rentes .

A força de c o n v i c ç ã o do teatro é tão grande que ele é capaz de conven­cer — e m b o r a p r o v i s o r i a m e n t e — u m espectador que v e m c o m u m a ideia preconceb ida sobre o espetáculo e baseada n u m a c o n v i c ç ã o pessoal p r o f u n ­da. T ive ocas ião de sent i r isso q u a n d o assisti a " O s Pequenos Burgueses" de M G o r k i n o G r a n d e T e a t r o Dramático de L e n i n g r a d o . E u , a t o r que chegou a u m a d e t e r m i n a d a c o n c e p ç ã o da obra depois de cem ensaios e quase o i t o ­centas representações dessa peça nc T e a t r o O f i c i n a , eu m e s e n t i tão preso à ação do espetáculo de Len ingrado que p e r d i t o t a l m e n t e a capacidade de rac ioc inar e de c o m p a r a r . O espetáculo me absorveu, me e n v o l v e u t o t a l m e n ­te, e m b o r a a c o n c e p ç ã o daquele teatro fosse quase d i a m e t r a l m e n t e oposta a do T e a t r o O f i c i n a . Só depois de o i t o horas de rac i o c ín io c a l m o consegui vo l tar à m i n h a c o n c e p ç ã o or ig ina l que, aliás, até agora c o n s i d e r o mais certa.

H EUGÊNIO K U S N E T

C o m o eles conseguem esse resu l tado? Q u e usam esses grandes atores para chegar a esse verdadeiro mi lagre de persuasão? A resposta, gera lmente é esta: " E u m grande t a l e n t o ! E u m g é n i o ! " M a s essa resposta não nos satisfaz a nós, atores. A ciência m o d e r n a p r o c u r a de f in i r o que é t a l e n t o , o que é intuição. U m psicólogo russo, A i e k s a n d r K r o n , diz que " f r e q u e n t e ­mente uma imagem precede u m p e n s a m e n t o l ó g i c o " e mais a d i a n t e : " e u entendo o conceito de ' intuição ' c o m o experiências não consc ient izadas adquiridas pelo homem em várias etapas de seu desenvo lv imento e, talvez mesmo, depositadas parc ia lmente em seus genes . . . " (portanto, experiên­cias hereditárias}.

Acred i tando que esse c ient i s ta t e n h a t o d a a razão, a inda assim não saberíamos como usar esses ens inamentos n o t r a b a l h o prático da nossa p r o ­fissão. A h , se a ciência pudesse e x p i i c a r - m e quais os processos q u í m i c o s e físicos que eu deveria provocar n o m e u o r g a n i s m o para igualar o m e u o l h a r ao de Laurence Olivier no filme " R i c a r d o I I I " . (Lembram-se aquela cena muda no portão do castelo? ) Mas a c iênc ia a inda está m u i t o longe dessas possibilidades.

E m b o r a tenha feito milhares de experiências de modelagem de obras de arte, algumas bem sucedidas, a ciência a i n d a não sabe expl i car , c o m o disse A K r o n , qual a diferença de ondas sonoras vibrações) entre as do v i o l o n ­celo de Pablo Casals e as de u m vio lonceí ista medíocre q u a n d o os dois in te rpre tam a mesma música.

O que nos resta é procurar c o m p r e e n d e r o que fazem os artistas geniais para conseguir esses resultados espantosos! Se nós pudéssemos c o m p r e e n d e r o que se passa na mente deles, quais são os processos que regem o seu t raba lho ! Não poderíamos, usando os m e s m o s mecanismos, chegar pe lo menos a u m a parte do que eles conseguem i n t u i t i v a m e n t e ?

F o i esse o objet ivo de Stanis lavsk i q u a n d o c o m e ç o u as pesquisas que mais tarde se transformaram no M é t o d o .

Pois bem, raciocinemos c o m ele. C o n v e n c e r ! É_possíveL_£Qnvencer alguém de alguma_coisa_em que nós mesmos não . acrficUtam.Q5? E m u i t o ditícil. U m vendedor que sente náusea só de pensar no v i n h o que oferece ao comprador , d i f ic i lmente poderá vender u m a garrafa . Mas aquele que d u r a n t e a conversa se baba todo ao descrever o pa ladar do v i n h o , este s im , convence o comprador com facilidade. Então o que deve fazer o vendedor que não gosta do v inho que oferece? Ele deve chegar a acreditar que o v i n h o é formidável, adquirir essa fé não obstante suas sensações pessoais.

Agora toma-se necessário abr i r parêntese para desfazer u m a antiga c o n ­fusão criada em t o m o do M é t o d o . O que e n t e n d i a Stanislavski sob o t e r m o " f é " ? Exigia ele do ator uma fé na rea l idade do imaginário?

Realmente, o próprio Mestre deu m a r g e m à interpretação errónea d o seu método , pois nos seus livros e n c o n t r a m o s expressões c o m o : " o a tor deve

A T O R E MÉTODO 9

sinceramente acreditar nas circunstâncias propostas, ter fé na sua r e a l i ­dade . . . "

Mas se r ea lmente fosse essa a intenção de Stanislavski . ele i n d u z i r i a o ator a perder o senso da r e a l i d a d e , a perder o c o n t a t o c o m a real idade d o m u n d o o b j e t i v o que o cerca n o pa lco . Ora , isso só é possível e m es tado pato lóg ico , pois as doenças m e n t a i s são caracterizadas exa tamente p e l a " p e r d a d o senso do r e a l " .

Mais tarde Stanis lavski t o r n o u claras suas verdadeiras intenções q u a n d o escreveu: " C h a m a m o s de ' ve rdade cénica ' aqui lo que não existe , mas p o d e r i a e x i s t i r " . E q u a n d o percebeu que d e r a m u m signif icado l i t e r a l à sua exigência da___fé!I, ele escreveu: " I s so n ã o q u e r dizer que o ator dev_e_eritregar-se n o pa lco_a_ymaespéc ie de a l u c i n a ç ã o , ^ cue ao representar o seu pape l eh^deve perder a n o ç ã o da rea l idade , t o m a n d o , por e x e m p l o , peças do cenário p o r árvores verdade i ras^etç / ' . . .

Mais tarde fa laremos d e t a l h a d a m e n t e sobre esse assunto tão i m p o r ­tante na nossa arte . Por e n q u a n t o convenhamos s implesmente que a fé a qual o Mestre se re f e r ia , e m b o r a tenha que ser abso lutamente s incera , é uma fé especí f ica . T o d a vez q u e vo l tarmos a usar esse t e r m o , c o m o o fazia Stanis lavsk i , ficará b e m e n t e n d i d o que subentendemos a " f é c é n i c a " e não a fé real . " ~ -

O nosso h ipo té t i co v e n d e d o r de vinhos também " r e p r e s e n t a v a " para o c o m p r a d o r e, p o r isso, t a m b é m p o d e m o s chamar a sua :é de " f é c é n i c a " .

U m m e n t i r o s o , para enganar u m a pessoa,não poderá de ixar de a c r e d i t a r na real idade do que i n v e n t o u , s e n ã o o seu i n t e r l o c u t o r perceberá a m e n t i r a ; mas, s i m u l t a n e a m e n t e , o m e n t i r o s o não perderá de vista a real idade d a situação — a necessidade de enganar. A sua fé nesse caso t a m b é m terá características da " f é c é n i c a " .

Se na v ida real , para c o n v e n c e r alguém da realidade do q : e i n v e n t a m o s , temos que chegar a acred i tar nessa realidade, i m a g i n e m c o m o isso deve ser i m p o r t a n t e n o t r a b a l h o de a t o r : a d q u i r i r a fé no que é i r r e a l , i n e x i s t e n t e !

Então aquele espantoso d o m de certos atores de convencer só pode ser baseado nessa o u t r a capac idade , não menos espantosa: a de a d q u i r i r a fé n o que eles representam.

Mas c o m o é que os grandes a tores conseguem essa té? Há para isso u m a explicação que p o u c o e x p l i c a : a inspiração! B a i x o u o santo e o a tor r e p r e ­senta m a r a v i l h o s a m e n t e ! O s a n t o dos atores geniais é m u i t o s impát ico — ele baixa sempre . O santo dos a t o r e s s implesmente talentosos já é u m t a n t o preguiçoso, mais instável e esses atores ficam à mercê dos caprichos d o seu santo: ho je eles r epresentam b e m , amanhã mal .

Por que então não p r o c u r a r os meios para farer " o santo b a i x a r " a nossa vontade? Por que não e s t u d a r a mecânica da inspiração? Pois n ã o é ela que rege o t r a b a l h o dos a tores geniais?

10 EUGÊNIO K U S N E T

Stanislavski t inha amizade c o m u m desses atores geniais , Tomaso Sal-v i n i , célebre ator trágico i ta l iano , o f amoso intérprete de O t e l o . Procurando compreender a natureza desse génio, Stanis lavsk i d e p a r o u , p o r analogia, c o m mais u m exemplo de inspiração: as crianças c o m seus j o g o s ebr inça je ixas . Ele .constatou que, t a n t o u m .ator g e n i a l , comp.uma_çrianç.a usavam a mesma arma: a fé cénica, .

O c o m p o r t a m e n t o das crianças d u r a n t e suas b r i n c a d e i r a s , às vezes nos causa a impressão de que elas têm u m a fé abso luta n a real idade do que escolhem para brincar. Assim, por e x e m p l o , u m a m e n i n a é capaz de chorar com lágrimas verdadeiras se alguém bater na sua " f i l h a " , mesmo se essa " f i l h a " for u m a boneca de trapos fabr i cada pela própria " m ã e " .

Parece u m exemplo convincente de u m a fé real . M a s , apesar de suas lágrimas verdadeiras, apesar da s incer idade de seus s e n t i m e n t o s , devemos dizer que a sua fé não é real, e s i m u m a " f é c é n i c a " porque naqueles momentos a menina não está t e n d e alucinações, ela n ã o perde o c o n t a t o c o m a realidade. Ela será capaz de j o g a r ao chão " a sua f u h i n h a o f e n d i d a " se naquela hora o ofensor lhe oferecer u m a boneca nova mais b o n i t a .

U m exemplo disso nos dá u m p s i c ó l o g o sov iét i co , Nastadze: " U m menino , " ga l opando" montado n u m p a u z i n h o , nos dá a impressão de acre­ditar piamente nos seus "exerc íc ios de e q u i t a ç ã o " — ele até pára, às vezes, para deixar o seu " c a v a l o " beliscar u m p o u c o de g r a m a . Mas imaginem o susto do menino se o seu " c a v a l o " de repente re l inchasse ! Ele morrer ia de m e d o " . . .

Por tanto o senso da realidade o b j e t i v a não i m p e d e a sinceridade dos sentimentos criados pela " f é cén i ca " .

N u m dos seus l ivros , Stanislavski c i t a u m caso que eu acho tão i lus tra ­t ivo que pref iro repet i - l o mesmo para aqueles que o c o n h e c e m .

N o seu teatro , para uma peça, ele precisava de u m a criança de 4-5 anos para fazer parte de u m a cena em que u m casal (os pais da menina) que está em vias de se separar, discute os últ imos detalhes da separação. Nesse m o m e n t o sua filha, c o m uma boneca na m ã o entra e p e r g u n t a ao seu pai que remédio ela deve dar à sua " f i l h i n h a d o e n t e " . O pa i lhe aconselha u m a aspirina e ela sai. C o m essa interferência da m e n i n a m o d i f i c a t u d o na vida d o casal — eles se reconci l iam.

A menina que devia fazer esse pape l chegou ao t e a t r o e m companhia de sua mãe, na hora do ensaio. O contra - regra , por f a l t a de u m a boneca, i m p r o ­visou uma c o m u m pedaço de lenha enro lado e m seda v e r m e l h a e, ao entre ­gá-lo à menina, disse: " E s t a aqui é sua f i l h a , ela está d o e n t i n h a " . Stanislavski conta que "ao receber a boneca tão grosseiramente i m p r o v i s a d a , a menina a t o m o u nos braços c o m o mesmo c u i d a d o c o m que só u m a verdadeira mãe tomaria sua fi lha doente" .

O contra-regra, indicando os dois atores em cena, c o n t i n u o u : "Aque les

A T O R E M É T O D O 11

do i s são teu pai e t u a m ã e " . Apesar da presença de sua mãe verdade i ra , a m e n i n a não fez a mínima o b j e ç ã o e ace i tou i n c o n t i n e n t i seus novos pais.

" V á lá" , disse o contra - regra , e " d i g a ao seu pai que a sua filhinha está d o e n t e . Ele vai te aconselhar u m remédio e aí v o c ê v o l t a para c á " .

A men ina e n t r o u e m cena, p u x o u a m a n g a do ator e disse: " p a p a i , ela está d o e n t e " . O ator respondeu de acordo c o m o t e x t o : " D ê u m a asp i r ina para e l a " . Mas então, e m vez de sair, a m e n i n a disse: " N ã o ! " O ator i n s i s t i u s o r r i n d o : " P o d e dar aspir ina que é b o m ! " M a s a men ina t e i m o u n o v a m e n t e : " N ã o ! ! ! " — " M a s p o r que? " Então a m e n i n a disse c o n f i d e n c i a l m e n t e : " P r e c i s a fazer l a v a g e m ! "

Stanis lavski f o i obr igado a i n c l u i r isso n o t e x t o porque a m e n i n a não m u d a v a a sua convicção de que sua f i l h a estava c o m dor de barriga.

N ã o é u m e x e m p l o m a r a v i l h o s o de inspiração desses melhores atores do m u n d o , as crianças?

Q u a n t o às suas observações n o t r a b a l h o de T o m a s o Salv in i . S tanis lavsk i c o n s t a t o u que, apesar de sua capacidade de o b t e r instantaneamente a i n s p i ­ração desejada, Salv ini não se l i m i t a v a a esperar " o santo b a i x a r " . Ele che­gava ao t e a t r o , duas, três horas antes do i n í c i o do espetáculo. L e n t a m e n t e vest ia , peça por peça. a r o u p a d o p e r s o n a g e m ; a sua maqu i lagem t a m b é m levava m u i t o t e m p o : ele observava c o m o , p o u c o a pouco , surgia no espelho o r o s t o do personagem: e depois disso, já v e s t i d o e maqui lado . ele subia ao pa l co deserto e andava soz inho pelos cenários da peça. E só depois c o m e ç a v a o espetáculo .

Por que Salvini fazia isso? Pois se ele p o d i a conseguir a inspiração a q u a l q u e r m o m e n t o , no i n i c i o d o espetácu lo , na sua pr ime i ra en t rada e m cena ! Per fe i tamente , p o d i a !

Mas então é de se supor que o r e s u l t a d o conseguido nessas c o n d i ç õ e s não o satisfazia, e que f o i p o r isso que ele passou a procurar os e fe i tos da inspiração três horas antes do espetáculo e, depo i s , pouco a pouco, p u n h a essa inspiração a funcionar materialmente, i s t o é, t rans formando -a e m ação , c o m e ç a n d o a agir corno se fosse o personagem.

Dessa maneira Sa lv in i t o r n a v a sua ação não casual c o m o mui tas vezes acontece sob o e fe i to da inspiração e s i m costumeira, exercitada, que ele p o d i a repe t i r a qualquer m o m e n t o .

A s s i m constatamos que a fé obtida através da inspiração se transforma em ação. T a n t o u m ator genial , c o m o u m a cr iança, sob o efeito da inspira­ção adquirem a vontade de agir. e então agem c o m todo o c onteúdo da v ida do espírito h u m a n o do personagem.

P o r t a n t o , o t e r m o " f é c é n i c a " pode ser t r a d u z i d o c o m o "estado psico-fisico qtte nos possibilita a aceitação espontânea de uma situação e de obje­tivos alheios como se fossem nossos". Se o a tor conseguir t o m a r a t i t u d e

12 EUGÊNIO K U S N E T

pessoal perante essa situação e esses ob je t ivos imaginários, ele sentirá v o n ­tade de agir no lugar dc personagem.

Naquele exemplo d o t raba lho de u m a t o r genia l v e r i f i c a m o s que o termo " f é cénica" pode se t o rnar bastante c laro para nós, teoricamente. Mas t o d o o problema consiste e m descobrir c o m o aquele " e s t a d o p s i c o f í s i c o " , a que nos referimos acima, poderia ser conseguido na prática.

E m vez de tentar o impossível — p e n e t r a r n o s u b c o n s c i e n t e de Sa lv in i ou de u m outro ator genia l , nosso c o n t e m p o r â n e o , para d e s c o b r i r a mecâ­nica de sua " f é cénica" — não seria mais prático es tudar e c o m p r e e n d e r como e por que agia Ote lo que Salvini representava? E já que O t e l o , e m b o r a imaginado por Shakespeare, é u m ser h u m a n o c o m t o d a a c o m p l e x i d a d e de sua vida inter ior , não seria necessário, antes de mais nada , p r o c u r a r conhecer todos os aspectos da compl i cada ação h u m a n a na v i d a real? E depois , armados c o m esses conhec imentos , não p o d e r í a m o s usar o c a m i n h o inverso do que os génios usam, i s to é, em vez de p r o c u r a r usar o nosso t a l e n t o e a nossa intuição, começar s implesmente por agir no lugar d o personagem na base da simples lógica da sua situação e dos seus ob je t ivos? E então , já agindo, não conseguiríamos chegar a acred i tar na rea l idade dessa ação? Não conse_uiríamcs, através d i s t o , obter ao menos u m a parte da " f é c é n i c a " que os génios obtém in tu i t i vamente?

F o i na base dessa hipótese que Stan is lavsk i c o m e ç o u suas pesquisas: estudar os processos naturais que regem a ação na v ida real para depois transpor os conhecimentos adquir idos para o t r a b a l h o de t e a t r o .

Nos próximos capítulos procuraremos estudar os resul tados dessas pes­quisas e a sua aplicação no nosso t raba lho .

SECUNDO CAPÍTULO

A n t e s de c o m e ç a r a l e i t u r a deste cap í tu lo , p r o c u r e m lembrar-se do que l e ram a n t e r i o r m e n t e :

— O t r a b a l h o de teatro é u m t r a b a l h o de equ ipe . — A c o m u n i c a ç ã o do ator c o m o espectador. — Nossos estudos serão fe itos na base do M é t o d o de Stanis lavski . — E necessário estabelecer bases comuns para esses-nossos estudos: o

o b j e t i v o d o t e a t r o é a revelação da vida do espírito h u m a n o , e o ob je t ivo d o a tor — c o n v e n c e r o espectador da realidade dessa v ida .

— A o r i g e m do Método é o estudo dos processos q u e regem a atuação dos atores geniais (ou das crianças): através da inspiração eles adquirem a fé no que é imaginário .

— A n a t u r e z a dessa fé em t e a t r o é especí f ica e deve ser chamada de " f é

c é n i c a " . — A " f é c é n i c a " induz o a t o r a agir e, c o n s e q u e n t e m e n t e , ele age n o

que é imaginário , ou seja, age c o m o personagem. — O p r o b l e m a da obtenção da " f é c é n i c a " : escolher u m caminho d i f e ­

rente d a q u e l e que é usado pelos atores geniais , i s to é , e m vez de usar a intuição , e s t u d a r os processos que regem a ação na vida r e a l , para que agindo d e n t r o da l óg i ca da vida do personagem conseguir a c r e d i t a r no que é i m a g i ­nário, i s t o é , o b t e r a " f é cénica" .

A s s i m , através de várias considerações , chegamos à conc lusão de que o f a t o r mais i m p o r t a n t e na nossa arte é o f a t o r A Ç À O .

E interessante notar que a palavra A Ç Ã O e o v e r b o " A G I R " fazem parte da t e r m i n o l o g i a teatral desde os t empos mais r e m o t o s . A palavra " D R A M A " e m grego significa ação . A palavra " O P E R A " , usada em todas as línguas c o m o s igni f icado de " D R A M A M U S I C A D O * * , v e m do verbo operar, ou seja. agir . A palavra " A T O R " que nos dicionários cons ta como s ign i f i ­cando s i m p l e s m e n t e "agente d o a to , o que age" , é usada e m quase todas as línguas c o m o sendo " h o m e m que representa em t e a t r o , c inema, e t c " . E n q u a n t o aos ou t ros artistas se dá u m a def inição mais concre ta escultor: o que escu lpe : pintor: o que p i n t a ; liolinista: o que t o c a v i o l i n o , etc.) ao ar t i s ta de t e a t r o ninguém chama de " t e a t r a l i s t a " ou coisa que o valha, mas s im de a t o r ; a u m a parte de peça tea t ra l não c h a m a m de " c a p í t u l o " e sim de ato.

14 EUGÉNIO K U S N E T

É claro que não se trata de u m a casual idade. O uso dessa raiz e t i m o l ó ­gica nos prova que a ideia da A Ç Ã O preocupava os homens de t e a t r o desde milénios e milénios.

Vamos pois analisar c o m o A Ç Á O se processa na vida real e c o m o ela deve se processar em teatro .

Durante uma aula para u m g r u p o de atores prof iss ionais , eu pedi a u m a atr iz , Carmen M o n t e r o , que contasse a l g u m fato impress ionante de sua v i d a . Sua narTação f o i por m i m gravada.

Ela c o n t o u u m caso que r e a l m e n t e impress ionou m u i t o s e u s colegas. À s dez horas da noite ela f o i atacada n u m a das principais ruas de São Paulo , p o r u m indivíduo que queria levá-la para d e n t r o do seu c a r r o . E c o m o ela resistiu decididamente, fo i espancada e a t i r a d a no meio da r u a , quase incons ­ciente.

E m seguida ela c o n t o u o que se passou uns dias mais t a r d e : q u a n d o ela estava passando numa outra rua b a s t a n t e escura, desceram de u m carro do is rapazes, f icando ainda mais u m d e n t r o d o carro , e se d i r i g i r a m a ela. Apesar de se ver n u m perigo m u i t o m a i o r do q u e na pr ime i ra vez ' o u talvez exata-mente por causa disso , ela i n e s p e r a d a m e n t e c r i ou coragem p o r q u e i m a g i n o u que estava armada c o m u m revólver, e p e n s o u : "agora eu m a t o u m ! " C o m as mãos nos bolsos do casaco, ela passou c a l m a m e n t e entre os dois rapazes que não t iveram coragem de atacá-la. L o g o e m seguida ela se v i u c o r r e n d o c o m o uma louca por u m a das ruas adjacentes . E s s a última parte f o i c on tada c o m tanto humor que ela mesma e os o u v i n t e s riram às gargalhadas.

O u v i n d o a gravação e m casa eu f i q u e i m u i t o impress i onado c o m a expressividade da narração e c o m a c o m p l e x i d a d e das e m o ç õ e s da m o ç a . Achei que o mater ia l era d i g n o de ser estudado c o m o u m a boa cena de teatro . Transcrevi a narração e, na- p r ó x i m a aula. propus à m e s m a a tr iz que , depois de ouvir várias vezes a gravação , estudasse o t e x t o escr i to c o m o se tosse cena de u m a peça e, e m seguida, a interpretasse n o v a m e n t e . N o t e m que se tratava de u m a moça que eu c o n s i d e r o u m a j o v e m atr i z de grande ta lento e m u i t o estudiosa.

Ela concordou e, depois de u n i a rápida preparação, i n t e r p r e t o u a cena que fo i gravada novamente.

Surpreendentemente para todo.',, inc lus ive para a própria intérprete, t o d o o valor da narração espontânea desapareceu. O que era b r i l h a n t e t u r -nOU-SC m o n ó t o n o ; o que p r o v o c o u nos ouv in tes urna c o m p a i x ã o na p r i m e i r a narração, provocou sorrisos na segunda : o q u e causou risos alegre: na p r i -' l le ira vez. causou uma espécie de es t ranheza .

Que aconteceu então? Como se n dc expl icar esse inesperado I r a -C.isso?

r a r a compreender . preci>o a t i a i i v i r c o m o t r a n s c o r r i i A Ç . V O nos fluís.cas« >. (JÍI , -r . : :>r: •.. •.! :__? Fo i Car- ., *. .\-i ;r , ; que

A T O R E MÉTODO 15

n a r r o u e s p o n t a n e a m e n t e u m caso interessante. Sua ação era espontânea , cr iada pela própria v i d a : " E u , Carmen M o n t e r o , v o u c o n t a r a m e u s amigos u m caso m u i t o i n t e r e s s a n t e " . O resto fo i c o m p l e t a d o e rea l izado p e l a pró ­pr ia n a t u r e z a , e C a r m e n M o n t e r o não prec i sou p r o c u r a r conseguir a fé n o que ela c o n t o u — ela a tinha!

Que aconteceu na segunda vez? U m t e x t o dramát ico , u m t e x t o de t e a t r o (embora criado por ela mesma, não importa!) f o i - l h e i m p o s t o c o m o obrigatório. A atr iz C a r m e n M o n t e r o teve que i n t e r p r e t a r u m pape l (embora idêntico a ela, não importa!) e agir como se fosse o personagem. Para isso o m í n i m o necessário seria e s t u d a r e compreender a lógica da ação do perso­nagem (embora fosse ela mesma, não importa!): 1) Q u a l é a s i tuação? D u r a n t e u m a aula n u m c u r s o de teatro , u m a a t r i z "não eu, Carmen Mon­tero, e sim uma atriz idêntica a mim"), a p e d i d o do pro fessor , c o n t a u m caso i m p r e s s i o n a n t e de u m assalto de que ela f o i v í t ima. 2) Q u a l é o ob je ­t i v o dessa ação? O p e r s o n a g e m acha que o caso é m u i t o interessante e quer impress ionar os seus colegas c o m a c o m p l e x i d a d e do a c o n t e c i d o . 3 ) Q u a l seria a a t i t u d e da a t r i z C a r m e n M o n t e r o d i a n t e da situação e dos o b j e t i v o s do personagem? Que f a r i a C a r m e n M o n t e r o se fosse aquela atr iz?

S ó depois de responder essas perguntas é que C a r m e n M o n t e r o p o d e r i a c omeçar a narração na segunda vez. E então , agindo d e n t r o da l óg i ca da situação e dos ob je t ivos d o personagem, ela o b t e r i a a " f é c é n i c a " . S ó nessas c o n d i ç õ e s a a tr i z estaria agindo na segunda narração como se fosse pela primeira vez.

Que fez C a r m e n M o n t e r o e m vez disso? Depois de o u v i r várias vezes a gravação, — que ela c e r t a m e n t e achou magníf ica (o que aliás era verdade!) — procurou simplesmente reproduzir suas próprias inflexões.

O que m u d o u em c o m p a r a ç ã o com o que devia ter s ido f e i t o , c o n f o r m e exp l i camos acima? V a m o s ver isso em detalhes :

1) Q u a l f o i a s i tuação desta vez? A a t r i z C a r m e n M o n t e r o i n t e r p r e ­t a n d o u m papel (e não uma atriz contando um caso interessante).

2) E o ob j e t i vo ? C a r m e n M o n t e r o q u e r e n d o p r o v a r que ela é u m a excelente atr i z (e não uma atriz querendo impressionar os seus colegas com os acontecimentos narrados).

3) E a sua a t i t u d e ? Essa f o i puramente e x i b i c i o n i s t a , não t e n d o nada que ver c o m a situação e os ob je t ivos do personagem.

C o m o , através dessa ação c o m p l e t a m e n t e desligada d o p e r s o n a g e m , poder ia C a r m e n M o n t e r o o b t e r a " í é cénica"?

E c laro que nessas c o n d i ç õ e s , a sua ação tornou-se fraca, insípida e ate falsa.

Através desse e x e m p l o ver i f i camos c o m o a A Ç Ã O se processa na v:da real e c o m o ela deve processar-se em teatro .

16 EUGÊNIO K U S N E T

E m cena nós, atores, agimos e m n o m e de u m a o u t r a pessoa, agimos como se fôssemos outra pessoa. Isso não quer d i z e r que a pessoa d o a t o r deva desaparecer deixando seu lugar ao personagem. N a d a disso. Isso s i g n i ­fica apenas que o ator aceita a situação e todos os problemas do personagem como se fossem dele próprio e então, para solucioná-los, age como tal. E evidente que os problemas do a t o r — e x e c u t a r c o m b r i l h o (como compete a um bom ator, que é) o seu t r a b a l h o , t r a n s m i t i r c o r r e t a m e n t e a ide ia d o autor , manter permanentemente o interesse e a a t e n ç ã o d o espectador, etc . — t u d o isso permanece nele, mas em estado subconsciente, p o r q u e , d u r a n t e a ação devem prevalecer esmagadoramente os p r o b l e m a s d o personagem.

Quando o ator não consegue agir n o s e n t i d o dos ob j e t i vos do persona­gem, ficam apenas os objetivos do a t o r : b r i l h a r , ser a d m i r a d o , ser " o t a l " , e t c Mas, durante o espetáculo, ao a t o r e m si não p o d e interessar o especta­dor. Ele vem ao teatro para ver a vida do personagem na interpretação do ator.

A predominância dos objet ivos d o a t o r sobre os ob je t ivos do persona­gem, o u mesmo quase-ausência desses ú l t imos , f o i a d m i r a v e l m e n t e d e m o n s ­trada pelos atores do " T e a t r o dos S e t e " e m " C i ú m e s do Pedestre" , de Mart ins Pena.

Os intérpretes desse espetáculo não p r e t e n d i a m representar os papéis dos personagens da peça e s im os papéis dos a tores contemporâneos de Mart ins Pena, representando os papéis da sua peça naquele t e m p o . Por conseguinte, os objetivos dos personagens não e r a m levados em cons ide ­ração, o problema era mostrar os o b j e t i v o s dos a tores canastrões daquele t empo .

Ass im, Sérgio B r i t o fez o pape l de u m ator - trágico que , por sua vez, fazia o papel de marido c iumento . O o b j e t i v o p r i n c i p a l do ator-trágico era demonstrar a sua formidável voz e a sua capacidade i n t e r p r e t a t i v a . As exc la ­mações " A h " e " O h " eram feitas na base de voz s u p e r i m p o s t a d a e n u m a das cenas, o t imbre da voz mudava c o n f o r m e o a n i m a l c o m que o personagem se comparava: houve u m " O o o h ! . . . " especial para tigTe e leão e u m " A a a a h ! . . . " para elefante. E c laro que os p r o b l e m a s do " m a r i d o t r a í d o " s u m i a m atrás dos problemas do ator-trágico.

Fernanda Montenegro fazia o papel de " P r i m e i r a D a m a " da c o m p a n h i a , que interpretava o papel de "Esposa A d ú l t e r a " . A p r e o c u p a ç ã o da " P r i m e i r a D a m a " era demonstrar ao público o seu v i r t u o s i s m o . Q u a n d o , " e n f r e n t a n d o a m o r t e " , dizia ao m a r i d o : " A g o r a que te o u v i o u v e - m e também! . . . " e t c , sua voz era de u m t imbre quase m a s c u l i n o , de t a n t o h e r o í s m o e coragem que a atr iz queria demonstrar. Mas q u a n d o passava a narrar sua infância : " M i n h a mãe, Deus a perdoe . . . " e t c , a sua voz a d q u i r i a o t i m b r e i n f a n t i l . Preocupada c o m esses problemas, p o d e r i a a " P r i m e i r a D a m a " agir c o m o o personagem?

A T O R E M É T O D O 17

O mesmo acontec ia c o m os o u t r o s intérpretes da peça : todos eles esta­v a m preocupados e m " b r i l h a r " nos seus papéis.

Os que assist iram àquele e s p e t á c u l o devem se lembrar que não se t r a t a v a de u m a s imples c a r i c a t u r a dos a tores ant iquados , havia u m a certa s i n c e r i ­dade na sua interpretação, eles se s e n t i a m realmente c o m o v i d o s , mas n ã o c o m o personagens e s i m c o m o " a t o r e s formidáveis que e r a m " . E é o que realmente acontece c o m m u i t o s a t o r e s : é fácil c o n f u n d i r suas próprias e m o ­ções c o m as do personagem.

O s e n t i m e n t a l i s m o é p rópr i o d o a t o r . É preciso que haja m u i t a vigilância p a r a que o a t o r n ã o seja suavít ima. E tão t e n t a d o r f a z e r u m a c e n a q u e p r o v o q u e lagr i ­mas na p l a t e i a ! A o fazer essa cena o a t o r a d m i r a a si própr io , e f ica c o m o v i d o c o m sua interpretação ,aponto de c h o r a r lágrimas deverdade .Maso que essas lá­grimas t e m a ver c o m os p r o b l e m a s d o personagem? Nada ! O a t o r sai c o m p l e -tamente da ação d o personagem, mesmo sem percebê-lo. Mas o espectador per­cebe! Ele percebe que naquele m o m e n t o presencia u m m e l o d r a m a b a r a t o e m vez de u m p r o f u n d o d r a m a h u m a n o e m que as lágimas talvez n e m devessem ter lugar .

E u t enho o prazer de confessar u m " c r i m e " desses e espero que a m i n h a confissão sirva de prova de que t o d a a vigilância é pouca para salvar o a t o r de u m dos seus maiores i n i m i g o s : o s e n t i m e n t a l i s m o .

E u t r a d u z i c o m m e u a m i g o , o f a l e c i d o B r u t u s Pedreira, u m a das peças do d r a m a t u r g o russo, L e o n i d André iev , " A q u e l e que leva b o f e t a d a s " . Quando recebi os p r i m e i r o s e x e m p l a r e s mimeografados , fiquei m u i t o emoc ionado pelas recordações que s u r g i r a m naquele m o m e n t o . E que eu fiz aquela peça e m russo, e m 1 9 2 4 , c o m u m dos geniais atores russos, I . Pevtsov. A ideia de poder representar esse t e x t o em português e mais a inda , representar não o papel que fiz, o d o Conde M a n c i n i , mas o papel f e i t o por Pevtsov, o pape l p r i n c i p a l . Essa ideia me deu vontade de e x p e r i m e n t a r imed ia tamente u m a cena da peça . E u l i g u e i m e u gravador de som e l i a cena ao m i c r o f o n e . D u r a n t e a l e i t u r a , as lágrimas me su fo caram! ! ! Então, pensei eu, a cena deve ter sa ído m a r a v i l h o s a ! L i g u e i o gravador, fiquei o u v i n d o e . . . chore i n o v a m e n t e . Era u m a p r o v a caba l : o meu p r i m e i r o o u v i n t e — eu próprio — t a m b é m ficou c o m o v i d o ! Para c o m p l e t a r o m e u " t r i u n f o " , p e d i que m i n h a m u l h e r ouvisse a gravação . Desde os pr imeiros m o m e n t o s estra­nhei u m a certa surpresa no r o s t o de la e. em seguida, uma espécie de dureza e não sei o quê mais — t u d o m e n o s a admiração que eu esperava. Q u a n d o , depois de u m l o n g o s i lêncio , i n s i s t i que ela me dissesse sua opinião , ela " p r o r r o m p e u e m u m a t o r r e n t e de i n s u l t o s " , chamando-me de canastrão, de ator de rádio-novelas, e saiu c o r r e n d o . N o p r i m e i r o m o m e n t o c t r i b u i t u d o isso a alguma o u t r a razão. P r o c u r e i a d i v i n h a r " q u e foi que eu lhe fiz? " Mas não houve nada. Passado me ia h o r a nessas considerações, fiquei u m t a n t o desconf iado: " e se ela e m parte t e m razão? " V o l t e i a o u v i r a gravação . . . e logo tive a terrível c o n f i r m a ç ã o : n ã o era em " p a r t e " , — ela t i n h a razão

18 EUGÊNIO K U S N E T

completamente , era pior do que q u a l q u e r rádio-novela ! C o m o aconteceu isso? A expl i cação não é d i f í c i l . A o começar a

gravação, eu nem me dei ao trabalho de pensar na situação e nos objetivos do personagem, l i m p e i a garganta e me dediquei unicamente a meu próprio objetivo: experimentar o meu t a l e n t o ! Provar que eu era u m ator f o r m i ­dável! . . . E vejam a que resultado lamentável c h e g u e i ! . . .

Ass im chegamos à conclusão de que os p r o b l e m a s e os ob je t ivos do a t o r não p o d e m interessar ao espectador, p o r q u e eles n ã o t êm nada a ver c o m as circunstâncias em que se passa a ação da peça . C e r t o . Mas não se deve entender isso ao pé da letra : " o a t o r nunca deve p o r seus prob lemas pessoais d e n t r o da ação cénica". Não é isso. L e m b r e m - s e de q u e n o prefácio deste l i v ro levantamos o problema da c o m u n i c a ç ã o d o a t o r c o m o espectador. Essa comunicação pode ter f o rmas variadas, a c o m e ç a r pela tendência " d a quarta parede" (hoje considerada completamente arcaica), i s to é, de isolar o ator c o m o se a plateia não existisse, c o n f o r m e se faz ia n o t e a t r o realista (ou mais exato: naturalista) do in í c i o do sécu lo , e a t e r m i n a r pela comunicação aberta que cheea a transformar-se e m diá logo entre a t o r e a plate ia c o n f o r m e acontece frequentemente no t e a t r o a t u a l .

De maneira geral, o teatro a t u a l escolheu a " c o e x i s t ê n c i a em cena d o ator-cidadão c o m o personagem". O que varia é a " d o s a g e m " dessa coexis­tência: em muitos casos ela é ostens ivamente f ísica, e x t e r i o r , e em m u i t o s outros , é quase puramente e m o c i o n a l , e s p i r i t u a l .

O exemplo t ípico da coexistência é o t e a t r o é p i c o de B e r t o k B r e c h t . A própria estrutura de suas peças exige que o a t o r , e n q u a n t o representa o papel, comente, apresente e j u l g u e o seu personagem.

Mais tarde falaremos da natureza e da técnica dessa coexistência que Stanislavski chamava no seu M é t o d o de " d u a l i d a d e d o a t o r " , o que aliás, prova que contrariamente ao que se a f i r m a até agora, n ã o havia divergência, nesse sentido, entre os dois grandes h o m e n s do t e a t r o c o n t e m p o r â n e o .

Mas voltemos ao que dissemos a respei to da necessidade 'de estudar as características da ação na v ida real para , depo is , a p l i c a r os c onhec imentos adquiridos no nosso trabalho e m t e a t r o .

A primeira part icularidade a ser n o t a d a é q u e , n a v ida real a ação sempre obedece à lógica. Essa a f i r m a t i v a de i n í c i o , parece errada. Por exemple , quem pode considerar lógica a ação de u m l o u c o ? Realmente , d o nos.-o p o n t o de vista - do p o n t o de vista de gente m e n t a l m e n t e sã - não existe lógica na ação de u m d e m e n t e . Mas e d o p o n t o de vista dele, d o louco? Pois para ele tudo o que ele faz deve ser p e r f e i t a m e n t e l ó g i c o . Por tanto , se nós fazemos o pape l de u m l o u c o , a lógica de q u e m deve interessar ao espectador? A nossa ou a d o leuco?

Isso me faz lembrar o caso de u m dos nossos exce lentes atores, Sérgio B r i t o . O caso se passou há mais de 20 anos, p r a t i c a m e n t e quase no iníc io de

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sua carre i ra , n u m a peça d i r i g i d a p o r m i m , e m que ele fazia o papel de u m n e u r ó t i c o . Havia u m a cena e m que ele, n o m o m e n t o de u m a crise aguda da d o e n ç a , beijava u m m a n e q u i m de matéria plástica, convenc ido de que se t r a t a v a de u m a moça v iva . N u m a certa a l t u r a d o t rabalho , n u m dos ensaios, o a t o r c o m e ç o u a cena c o m u m a p o r ç ã o de gestos, mervimentos e entonações de abso luta incoerência. Q u a n d o lhe p e r g u n t e i a razão disso, ele r e s p o n d e u : " M a s o personagem é u m l o u c o ! " E n t ã o , analisando c o m ele a situação logicamente, chegamos "a c o n c l u s ã o de que o personagem não poder ia achar nada de estranho no f a t o de estar b e i j a n d o u m a moça de q u e m gosta m u i t o . Po is , naquele m o m e n t o , para ele ex i s t ia u m a pessoa viva, e não u m m a n e ­q u i m a r t i f i c i a l . Bastava que o a t o r agisse c o m essa lógica e nada mais . O e f e i t o de l oucura era seguro, p o r q u e os espectadores v iam que com toda essa sinceridade e naturalidade, ele be i java u m m a n e q u i m , e não u m a m o ç a v iva . D e p o i s de constatar isso, o a t o r sempre p r o c u r a v a , t a n t o nos ensaios c o m o nos espetáculos, acred i tar na real idade da v i d a do m a n e q u i m , sentir através d o c o n t a t o de sua m ã o , o ca lo r , a maciez daque le corpo . E m resul tado , essa cena sempre provocava u m c a l a f r i o na p l a t e i a .

Há u m o u t r o exce lente e x e m p l o de u s o da lógica, em " O diário de u r n l o u c o " , de N . Gogol , i n t e r p r e t a d o p o r R u b e n s CorTea e d i r i g i d o por Ivan de A l b u q u e r q u e . Q u a n d o o personagem d i z i a : " A Espanha t e m u m re i . . . F i n a l m e n t e o descobr i ram . . . Sou e u ! " n ã o se sentia nem a mínima tendên­cia d o a tor de dar a essa frase u m aspecto de l o u c u r a , não havia nele mais d o q u e a h u m i l d a d e de u m m o n a r c a real que assumia a sua grande responsabi l i ­dade . E era exatamente essa s imples lógica q u e tornava a fala t rag i camente l o u c a e m u i t o c omovente .

E quando o pobre " r e i da E s p a n h a " , ao falar de seus trabalhos n o p l a n o da política i n t e r n a c i o n a l , d i z i a : " d e s c o b r i que a China e a Espanha f o r m a m u m único e mesmo país . . . A p r o v a está q u e , q u a n d o se escreve Espanha, dá C h i n a ! " nós sentíamos a sua l o u c u r a exatamente nessa " l ó g i c a esmagadora" .

O uso da lógica deve c o m e ç a r l o g o nos pr imeiros estudos gerais da situação e dos ob je t ivos e c o n t i n u a r necessária e obr iga tor iamente até o m í n i m o detalhe. Basta errar na lógica de u m pequeno p o n t o para a r r u i n a r a cena i n t e i r a .

V e j a m como o uso da lógica pode a j u d a r o ator para so luc ionar p r o ­b lemas b e m difíceis. D igamos que o p r o b l e m a seja o papel de u m cego. O que é u m cego? E u m a pessoa que não enxerga . Então é m u i t o s imples : eu f e cho os olhos e faço o p a p e l ! Mas essa lóg ica s implista não é su f i c iente . O d i a b o é que o cego anda de o lhos abertos e mesmo assim não vê. C o m o posso conseguir essa expressão do o lhar " ô c o " de u m cego? T o d o s nós conhecemos o vazio assustador desse o lhar q u a n d o encontramos u m cego na r u a . P o r t a n t o , é preciso que eu, o intérprete desse papel, consiga a "fé

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cénica" de não estar enxergando. Senão não p o d e r e i c onvencer n i n g u é m da realidade da minha cegueira. O que devo fazer?

Pois bem, em pr imeiro lugar , v o u p r o c u r a r c o m p r e e n d e r o q u e se passa c o m os sentidos de u m cego. Sei que a n a t u r e z a c o m p e n s a a f a l h a o u o enfraquecimento de u m determinado s e n t i d o , aguçando os o u t r o s . A visão, por exemplo , é substituída pela audição e pe lo t a t o . Esses do is s e n t i d o s n u m cego se t rans formam em visão mental. Por e x e m p l o , na r u a , o cego anda " t a t e a n d o " o chão c o m os pés o u c o m u m a bengala, para ver mentalmente os possíveis obstáculos; ele procura o u v i r todos os r u í d o s da r u a para ver mentalmente o que possa ameaçá-lo, p o r e x e m p l o , u m a u t o m ó v e l que se a p r o x i m a enquanto ele atravessa a rua.

Já que eu vou fazer o papel de u m cego, v o u p r o c u r a r agir d e n t r o das circunstâncias as quais cheguei r e f l e t i n d o l o g i c a m e n t e e a t í t u l o de ensaio, vou andar sem olhar para o chão procurando imaginá-lo, ou seja, procurando vê-lo mentalmente.

Exper imente isso, le i tor , da seguinte m a n e i r a : peça para a lguém co locar vários objetos, l ivros, caixas, tábuas, etc. E m seguida, atravesse o q u a r t o de olhos abertos, porém impedindo-se de ver o chão , p o r e x e m p l o , segurando na a l tura do seu queixo u m IÍVTO O U u m caderno . A o atravessar o q u a r t o , pense nos obstáculos cuja posição você i g n o r a e q u a n d o chegar a t o c a r neles com o pé, procure vê-los mentalmente p o r q u e , c o m u m p e q u e n o descuido de sua parte, eles podem levá-lo a u m t o m b o .

A o terminar a travessia, você constatará que apesar de t e r a n d a d o c o m os olhos abertos, deixou de ver [ou quase) o que se achava d o o u t r o l a d o do quar to .

Para maior clareza, faça u m colega seu fazer esse e x e r c í c i o n a sua pre ­sença e observe seus olhos enquanto ele estiver a n d a n d o : se ele r e a l m e n t e conseguir imaginar os objetos colocados n o c h ã o , vendo-os mentalmente, você verá o olhar de u m cego. P o r t a n t o , não se t r a t a de p r o c u r a r a c r e d i t a r na sua cegueira, — isso seria impossível — e s i m de agir d e n t r o de u m a situação em que agiria u m cego precisando atravessar u m espaço d e s c o n h e c i d o . Q u e m se lembra do f i lme " B e l i n d a " , na magníf ica interpretação de J a n e W y m a n , certamente se lembrará do o lhar cego, c o m p l e t a m e n t e ô c o , d o personagem. A c r e d i t o que esse milagre da arte dramática não f o i c onsegu ido p o r i n s p i ­ração e s im através de m u i t o t raba lho e m que p r e d o m i n o u a lóg ica e, c o n f o r ­me veremos mais tarde, provavelmente através do uso dos o u t r o s e l ementos do Método .

D a mesma maneira podem ser resolvidas outras situações d i f í ce i s : u m paralítico que procura andar, o c o m p o r t a m e n t o de u m a pessoa q u e acorda, etc.

Lembro-me que uma o u t r a aluna daquele curso para os atores pro f i ss io ­nais me perguntou durante u m a aula : " E s t o u ensaiando na televisão u m a

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cena e m q u e m e u personagem age sob h ipnose . C o m o devo encarar esse p r o b l e m a ? " Respond i que sendo a h ipnose u m estado semelhante a sono, — e m b o r a ha ja nele alguns p o n t o s de "v ig í l ia " que p o s s i b i l i t a m o c o n t a t o d o h i p n o t i z a d o c o m o h i p n o t i z a d o r — o p r i m e i r o p r o b l e m a seria "sentir -se d o r m i n d o ' ' e que para isso. seria lóg ico p r o c u r a r conseguir u m estado de m á x i m a abstração porque a pessoa está m e n t a l m e n t e f o r a d o ambiente em que se e n c o n t r a fisicamente. Para conseguir esse estado de abstração seria necessário encontrar uma preocupação tão grande que todos os cinco senti­dos do personagem fossem absorvidos por ela. E l ó g i c o que , nessas c o n ­d i ções , o a m b i e n t e f ísico de ixar ia de ex is t i r para o personagem.

Essa m i n h a explicação não f o i s u f i c i e n t e : e m b o r a concordasse c o m i g o t e o r i c a m e n t e , a atr iz não conseguiu ver nela u m a so lução prática.

— " C o m o fazer f u n c i o n a r os c inco sent idos n u m a preocupação i m a g i ­nária? "

— " C o m o na vida r e a l " , r e s p o n d i eu. — " E c o m o é que isso acontece na v i d a real? "

C o m p r e e n d i que estava f a l t a n d o u m e x e m p l o prát i co , mas u m a fel iz c o i n c i d ê n c i a a j u d o u a expl i cação . O c o n h e c i d o p s i q u i a t r a , D r . Bernardo B l a y , que assistia a aula por p u r a cur ios idade , d i r ig iu -se a u m a das alunas: " O que é q u e a senhora está fazendo? " A m o ç a e m questão o l h o u para ele literalmente como se estivesse acordando naquele momento, e disse: " N a d a " E o d i á l o g o c o n t i n u o u assim:

— " A senhora ouv iu o que nós estávamos d i z e n d o ? " — " N ã o . " — " P o r q u e ? " — " E u estava pensando . " — " E m quê? " — " N o exerc í c i o de improvisação que v o u fazer a g o r a " .

C o m o vocês vêem, não houve necessidade de u m a preocupação " t ã o g r a n d e " p a r a que a atriz ficasse c o m p l e t a m e n t e a b s t r a i d a , bastou u m a preo­cupação pequena, mas real.

A a t r i z que l evantou o p r o b l e m a disse que c o m p r e e n d e u essa lógica e mais t a r d e c o n t o u que ap l i cou c o m sucesso n o seu t r a b a l h o .

V o c ê s devem ter n o t a d o que nos e x e m p l o s que eu de i acima a lógica não é m u i t o simples. E porque , na v ida real ela é m u i t o mais compl i cada e contradi tór ia do que aquela que f r e q u e n t e m e n t e usamos e m tea t ro . A m e u ver, u m dos grandes perigos para o a tor a t u a l — que v ive no meio dos seus c o n t e m p o r â n e o s tão ps iqu icamente c o m p l i c a d o s — é s i m p l i f i c a r a lógica da v i d a , torná-la óbvia e l inear . E m t e a t r o nós representamos " O A m o r " , " O Ó d i o " , " A A l e g r i a " , mas raramente m o s t r a m o s o a m o r d o F u l a n o , o ó d i o do

22 E U G É N I O K U S N E T

Bel t rano , a alegria do C i c rano . Mas c o m o são diversos , na v i d a r e a l , as manifestações de alegria o u de t r i s teza em pessoas d i f e rentes ! C o m o são inesperados, por exemplo, u m a risada estridente no m o m e n t o de u m grande s o f r i m e n t o , ou imobil idade e s i lêncio , próprios de u m estado de p â n i c o , n o m o m e n t o de extrema fe l ic idade!

Por que eu digo isso? E p o r q u e j a V i isso nos m u i t o s c o n t a t o s h u m a n o s durante a minha vida, porque j á me acostumei c o m o inesperado e c o n t r a ­ditório c o m p o r t a m e n t o dos m e u s semelhantes.

Por isso, mesmo quando n u m a peça não e n c o n t r o n e n h u m a c o m p l e x i ­dade, eu procuro e, se for prec i so , c r i o as contradições humanas p o r q u e sei que meus espectadores também são seres contraditórios , que , há m u i t o n ã o aceitam em teatro a fórmula " p ã o - p ã o , q u e i j o - q u e i j o " .

Mas passemos agora a mais u m a característica da ação na v i d a r e a l : a ação é sempre contínua e ininterrupta. Nunca de ixamos de agir , n e m m e s m o quando dormimos : os nossos sonhos às vezes são f o r m a de ação mais i n t e n s a do que a nossa realidade. E os bons cristãos d i z e m que n e m a m o r t e in ter rompe a ação.

Cada m o m e n t o de nossa a ç ã o na vida real tem seu passado e seu f u t u r o . Quero dizer que cada m o m e n t o presente tem suas origens no passado e seus objetivos no f u t u r o . A frase de Stanis lavski : " O nosso ' h o j e ' é apenas o resultado do mov imento do nosso ' o n t e m ' em direção ao nosso ' amanhã ' " , define bem a mecânica da ação c o n t i n u e tanto na v ida real , c o m o e m cena .

Os atores deveriam preocupar-se mui^o menos c o m a ação d o m o m e n t o do que com a ação anterior e p o s t e r i o r porque a ação do m o m e n t o se realiza automaticamente se o ator realmente exerce a açao contínua.

Para ilustrar isso escolhemos u m tema m u i t o bana l , mas s u f i c i e n t e m e n t e claro e lógico, que fo i realizado p o r m i n h a aluna e c o l a b o r a d o r a C a r m i n h a Favero.

N o submundo do cr ime, u m a m u l h e r que faz parte de u m a " g a n g " sofreu várias ofensas graves — m o r t e s de m u i t a gente q u e r i d a — e n u n c a conseguiu descobrir os autores dos cr imes . Na real idade todos eles f o r a m cometidos pelo " c h e f ã o " que . p o s t e r i o r m e n t e , sempre aparecia c o m o defensor e prote tor da m u l h e r , mas que , " i n f e l i z m e n t e " , sempre por u m tr i z , não conseguia salvar as v í t imas . O seu ob jet ivo e v i d e n t e m e n t e era fazer com que ela se lhe entregasse " p o r a m o r " e não à força — o que seria fácil demais!

U m dia ela f o i prevenida p o r u m velho m e m b r o da " g a n g " , — que também estava apaixonado p o r e!a. - que o " c h e f ã o " t i n h a p l a n e j a d o o assassinato do seu pai para o d ia seguinte . Desta vez, ele t o m a r i a parte n o cr ime pessoalmente. Como s e m p r e , ele seria e n c o n t r a d o no l o ca l c o m o se tivesse chegado no último m o m e n t o para defender o p a i , mas . . . que azar! Tarde demais! . . .

A T O R E M É T O D O 23

A m u l h e r sabia q u e não pod ia recorrer à po l í c ia e que a única maneira de salvar o p a i seria m a t a r o " c h e f ã o " . Sob o p r e t e x t o de t r a t a r de u m negóc i o , ela v a i até o a p a r t a m e n t o dele, p rovoca -o , e x c i t a - o e, d u r a n t e u m be i j o m a t a - o c o m u m p u n h a l .

N a p r i m e i r a t e n t a t i v a para a realização dessa cena, C a r m i n h a só se preo­c u p o u c o m c ó d i o m o r t a l que t i n h a pe lo " c h e f ã o " . A s s i m m u n i d a , chegou até o a p a r t a m e n t o dele e é c laro que , dessa m a n e i r a , n u n c a seria recebida p o r q u e o ó d i o t ransparec ia à distância, c o m o vemos na f o t o g r a f i a n . ° 1 .

C a r m i n h a p r o c u r o u i n t e r p r e t a r u n i c a m e n t e a ação d o m o m e n t o , o m i t i n ­do p o r c o m p l e t o os dados da ação c ont ínua , c o m o passado e o f u t u r o da ação, p o r q u e c o n f o r m e o t ema p r o p o s t o o p r o b l e m a do p e r s o n a g e m não era somente m a t a r o " c h e f ã o " por ó d i o , mas s i m f i n g i r u m a p a i x ã o , envolvê-lo, i l u d i - l o e só então matá- lo , v ingando as mor tes " o n t e m " c o m e t i d a s por ele e salvando " a m a n h ã " a v i d a de seu pa i .

Passamos para a segunda t e n t a t i v a e o r e su l tado f o i o o p o s t o , embora r ã o se perdesse de v i s ta o p r i m e i r o o b j e t i v o , o de m a t a r o " c h e f ã o " , o ód io ficou d i lu ído e o q u e vemos na f o t o g r a f i a n . ° 2 é u m a grande sensualidade, u m a vo lúpia . Observamos que até o p u n h a l f o i quase esquec ido pelo perso­nagem — v e j a m c o m o ficaram relaxados os dedos da m ã o .

Só q u a n d o C a r m i n h a conseguiu reun i r d e n t r o da sua a ç ã o os dois obje­t i vos , isto é, d i r i g i r o seu " o n t e m " (o ó d i o — f o t o g r a f i a n . ° 1) n o sent ido de chegar ao seu " a m a n h ã " (salvar o pai através d o fingimento de amor — f o t o g r a f i a n . ° 3 , , f o i que ela chegou ao resu l tado sat is fatór ic . espontanea­mente .

E m t e a t r o a ação cénica f r e q u e n t e m e n t e sofre in te r rupções : intervalos entre os atos o u q u a d r o s , saídas do a tor de cena, grandes pausas em que o a t o r , e m b o r a presente em cena, fica aparentemente i n a t i v o .

Que deve fazer o a tor para e l i m i n a r o e f e i t o n o c i v o dessas interrupções? Deve m a n t e r o seu " e s t a d o c é n i c o " , i s t o é, c o n t i n u a r a g i n d o c o m o o perso­nagem, m e s m o q u a n d o está fora de cena? Há atores que p r o c u r a m fazer isso na m e d i d a d o poss íve l , mas não l i t e r a l m e n t e , é c l a r o , po is m u i t a s coisas que eles têm que fazer nos intervalos não p o d e m ser fe i tas c o m o se fossem personagens: m e l h o r a r a maqu i lagem. rever o t e x t o , c o n s u l t a r o d i r e t o r a respeito de a l c u n deta lhe i m p o r t a n t e , etc . O u t r o s atores a c h a m - e talvez c o m razão - que nos intervalos eles não d e v e m cansar demais a sua imagina­ção , e por isso "se des l igam do p a p e l " . Mas o m í n i m o que se deve exigir de t o d o e q u a l q u e r a t o r é que, antes de ent rar n o v a m e n t e e m cena . ele recorra a ação a n t e r i o r (o " o n t e m " ) e poster ior (o " a m a n h ã " ' : d o personagem, c omo vimos no e x e m p l o ac ima . ^ .

I n f e l i z m e n t e n e m todos os atores c o r r e s p o n d e m a essa exigência míni­ma. São capazes de contar u m a piada e x a t a m e n t e no m o m e n t o dc entrar para fazer u m a cena trágica. Há atores que para d e m o n s t r a r aos colegas sua

A T O R E MÉTODO 25

" t é c n i c a " f i c a m de costas p a r a a plateia , fazendo caretas c ó m i c a s p r o c u r a n ­do p r o v o c a r riso nos seus colegas, para logo e m seguida encarar a p l a t e i a c o m suas "máscaras trágicas" . E nem passa pelas suas cabeças a ideia de que naqueles breves m o m e n t o s eles c o m e t e m u m erro gravíssimo: eles c o r t a m o seu c o n t a t o e m o c i o n a l c o m a p late ia . Basta u m instante p a r a que o especta­dor m e s m o sem perceber os seus truques " t ã o engraçados" s i n t a que a l g u m a coisa i n t e r r o m p e u a sua tensão de espectador, que se f o r m o u u m v á c u o n o seu c o n t a t o c o m a cena.

E agora vamos ver a t e r c e i r a característica da ação : ela tem sempre e simultaneamente dois aspectos — ação interior e ação exterior, o u seja, ação m e n t a l e ação física.

Essas duas f o rmas de ação não p o d e m e x i s t i r e m separado , elas se processam sempre s i m u l t a n e a m e n t e , mesmo q u a n d o u m a delas a p a r e n t e ­m e n t e está ausente. Por e x e m p l o : a i m o b i l i d a d e t o t a l de u m a pessoa (ação exterior nula) s i m u l t a n e a m e n t e c o m u m a série de pensamentos frenét icos (ação interior intensa). Para compreender c o m o isso f u n c i o n a , faça u m a experiência na base de u m a ação imaginária: v o c ê a c o m p a n h a c o m u m o l h a r de longe o e n t e r r o de u m a pessoa m u i t o q u e r i d a . Por u m a o u o u t r a razão (é importante que essa razão seja bem clara para você), v o cê não p o d e a c o m p a ­nhar o e n t e r r o de p e r t o . C o m p l e t e c o m sua imaginação os deta lhes f a l t a n t e s : q u e m é o fa lec ido? E m q u e circunstâncias ele m o r r e u ? O que i m p e d e v o c ê chegar mais p e r t o ? Q u e m são as pessoas que a c o m p a n h a m o e n t e r r o ? e tc . E agora vá ag indo , o u seja: apenas acompanhe c o m o o lhar o e n t e r r o q u e você vê na sua imaginação , pensando t u d o o que pensaria o personagem nessas circunstâncias. Se você n ã o c o m e t e r n e n h u m er ro de lógica e não esquecer o " o n t e m " e o " a m a n h ã " dessa ação , nós, espectadores, c e r t a m e n t e s e n t i r e ­mos a in tens idade da sua a ç ã o i n t e r i o r apesar da sua i m o b i l i d a d e .

E fácil i m a g i n a r e e x p e r i m e n t a r a título de exer c í c i o u m e x e m p l o do contrár io : vo cê está e x t r e m a m e n t e cansado mas p o r u m a o u o u t r a razão é obr igado a d i v e r t i r alguém c o n t a n d o - l h e u m a estória m u i t o engraçada. Nesse exer c í c i o vo cê terá que e x e c u t a r u m a ação e x t e r i o r m u i t o in tensa j u n t o a u m a ação i n t e r i o r quase n u l a , consequente do seu estado de d e s â n i m o ! E c o m o no e x e m p l o a n t e r i o r , nós , espectadores, sent i remos o u ao m e n o s suspeitaremos d o seu desân imo , apesar de sua aparente a legr ia .

Se você t iver a v o n t a d e de repet ir esses dois exerc í c i os c o m o m e s m o resu l tado tão a n i m a d o r , é prec iso que você antes de mais nada restabeleça e fixe o seguinte :

1) o que você " v i u " m e n t a l m e n t e antes, d u r a n t e e depois da ação cén ica? 2) o que você pensou antes , durante e depois da ação cén ica?

N o correr da repet ição da experiência v o c ê terá que exercer fielmente todos esses detalhes.

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A s duas f o rmas da ação , a f ís ica e a m e n t a l , são l igadas entre si tão i n t i m a m e n t e que o ator d i f i c i l m e n t e poderá estabelecer c o m o e onde u m a i n f l u i sobre a o u t r a . Só u m a exper iênc ia o u u m acaso p o d e m ind i car - lhe o c a m i n h o que ele deve escolher n o uso desse e lemento d o M é t o d o , pois há sempre dois c a m i n h o s : u m — de d e n t r o para f o ra , e o o u t r o — de fora para d e n t r o . Quero dizer c o m isso q u e , p o r e x e m p l o , u m a e m o ç ã o a d q u i r i d a espontaneamente pode p r o d u z i r u m gesto m u i t o adequado, mas também u m gesto e n c o n t r a d o pelo a t o r através de u m racioc ínio l óg i co pode p r o v o c a r u m a e m o ç ã o desejada.

A t ítulo de m a i o r e s c l a r e c i m e n t o , q u e r o contar-lhes u m caso que acon ­teceu comigo d u r a n t e as representações de " C a n t o da C o t o v i a " de J e a n A n o u i l h , no T e a t r o M a r i a D e l l a C o s t a .

Na cena e m que o Bispo C a u c h o n — c u j o papel eu faz ia — p r o c u r a convencer Joana D ' A r c a a b j u r a r , eu faz ia u m gesto em direção a Joana , c o m a pa lma da m ã o v irada para c i m a , u m gesto de súplica, que surg iu e sponta ­neamente q u a n d o senti a ânsia de convencê - la . Mas ao m e s m o t e m p o esse gesto não sei exa tamente p o r q u e provocava e m m i m a sensação de m a i o r harmonia c o m a roupa de C a u c h o a e o magní f i co cenário de G i a n n i R a t t o . Este fo i o " c a m i n h o de d e n t r o p a r a f o r a " que eu usei e que me l evou a u m resultado , a m e u ver , satisfatório.

Depois de u m dos espetáculos , o c ineasta L i m a Barre to ,que acabava de assistir a representação, me disse q u e não sent iu naquele m e u gesto " u m h o m e m de i g r e j a " e que o gesto dever ia ser f e i t o de m a n e i r a inversa, i s t o é, c om a palma da m ã o v irada para J o a n a , c o m o numa b ê n ç ã o : " N ã o é u m h o m e m qua lquer — é u m b i spo que s u p l i c a , e ele suplica c o m o t a l . "

A c h e i que sua observação era m u i t o lógica e, depois de v o l t a r para casa, procure i ensaiar soz inho o t r e c h o da cena, i n c l u i n d o o gesto aconselhado c . . . de repente me senti m u i t o mais b i spo , sent i a enorme responsabi l idade perante a igreja, sent i o m e d o de não conseguir convencer J o a n a . A c o m ­plexidade dessas e m o ç õ e s e p e n s a m e n t o s me levou a ansiedade ainda m a i o r do que nos espetáculos a n t e r i o r e s .

Desta vez, c o m o vocês p o d e m cons ta tar , o caminho esco lh ido f o i " d e fora para d e n t r o " .

R e s u m i n d o , podemos d izer q u e ao c o n s t r u i r seu pape l o ator n u n c a deve perder de vista a coex i s tênc ia n a t u r a l desses dois aspectos da ação , porque só assim o seu personagem será rea lmente u m ser h u m a n o .

E af lora estamos chegando a últ ima característica da ação na v ida r e a l : tuo existe áçuó Sein objetivo. Q u a n d o agimos é sempre para conseguir olgum.i coisa, porque sempre d e s e j a m o s a lguma coisa. A p r i m e i r a vista isso não parece l óg i co . Há q u e m p o s s a p e r ^ n t a r : " E a apatia? E a prostração? Q u e tíòdc d e s e j a r u m a p e s s o a nes*c e s t a d o ' Então deve haver na nossa v i d a momentos c m q u e hão d e s e j a m o s n a d a ? " E u a f i r m o que não : m e s m o

A T O R E M É T O D O 29

q u a n d o temos a certeza de nada querer , p r o v a v e l m e n t e , lá n o f u n d o , quere­mos não querer, i s t o é , r e j e i tamos q u a l q u e r v o n t a d e . Mas, nesse caso, a nossa intenção de não t e r v o n t a d e torna-se u m o b j e t i v o . O u a inda .como o m á x i m o da f a l t a de o b j e t i v o na v i d a , seria a v o n t a d e de m o r r e r , mas a m o r t e nesse caso seria o nosso o b j e t i v o . P o r t a n t o , c o n v e n h a m o s que e m t e a t r o não possamos a d m i t i r que a ação cénica seja d e s p r o v i d a de oo jer ivos . C o m o na v i d a rea l , a necessidade e s t i m u l a a a t i v i d a d e d o h o m e m d e n t r o de u m a d e t e r m i n a d a situação, assim t a m b é m e m t e a t r o o ob je t ivo d o personagem e s t i m u l a a imaginação d o a t o r e o i n d u z a agir d e n t r o das circunstâncias da o b r a dramática.

Ve jamos u m e x e m p l o de c o m o a presença de u m o b j e t i v o o u ausência d o m e s m o se t e f l e te n o t r a b a l h o do a t o r . T i r e i esse e x e m p l o da m i n h a própria experiência, c o m p a r a n d o duas f o t o g r a f i a s minhas t iradas e m dois papéis di ferentes . V e j a m o s as duas : a p r i m e i r a , de" " M i s t e r P i t c h u m " da " Ó p e r a dos três v inténs" , ( f o t o n . ° 4 ) , e a segunda, de " M a n e c o T e r r a " , d o filme " A n a T e r r a " ( f o t o n . ° 5 ) , — f i l m e q u e nunca f o i rea l izado p o r q u e a C o m p a n h i a Vera C r u z , naquela é p o c a , t i n h a quase entrado e m falência.

V o u lhes c o n t a r a história das duas fo tograf ias . E u fiz o p a p e l de " P i t c h u m " , no espetáculo rea l izado pela Esco la Dramática da Bahia , sob a d ireção de M a r t i m Gonçalves . A n t e s de c o m e ç a r u m a das representações, eu estava m u i t o preocupado c o m alguns deta lhes da roupa e dos acessórios. U n s poucos m i n u t o s antes do i n í c i o , u m a l u n o da Escola me avisou que u m repórter precisava t i r a r c o m urgência u m a f o t o g r a f i a m i n h a . E u me recusei pois não havia mais t e m p o . Ele i n s i s t i u : " K u s n e t , só u m i n s t a n t e " . Para me ver l i v re desse p r o b l e m a , a c e i t e i , p e d i n d o q u e fossem rápidos. M a l tive t e m p o de me colocar ao lado da escr ivan inha d o escritório de " M i s t e r P i t c h u m " , t o m e i rap idamente " a a t i t u d e de M r . P i t c h u m " e p r o n t o ; a f o t o g r a f i a f o i t i r a d a . O resultado c o m o vocês p o d e m ver ( ve jam a f o t o g r a f i a n . ° 4 ) , f o i lamentável : há apenas u m a careta de P i t c h u m e n e n h u m vestígio da ação i n t e r i o r do personagem. Por q u ê ? P o r q u e naque le m o m e n t o eu não pensei e m a l g u m o b j e t i v o de M r . P i t c h u m . S ó h a v i a u m o b j e t i v o , e este era u m o b j e t i v o do ator K u s n e t — ser f o t o g r a f a d o o mais rápido possível .

A g o r a ve jam a o u t r a f o t o g r a f i a , a de M a n e c o Terra ( v e j a m a f o t o g r a f i a n . ° 5 ) . Ela f o i t i rada b e m n o in í c i o dos t r a b a l h o s . Trata-se de u m a cena e m que Maneco faz s inal a seus dois filhos para que m a t e m o índ io que seduz iu sua filha A n a . O o b j e t i v o de M a n e c o é m u i t o c o m p l e x o : p o r u m l a d o ele d e c i d i u c u m p r i r o dever d o p a i c u j a filha f o i desonrada mas, ao m e s m o t e m p o , ele daria a v i d a para ev i tar a mágoa que essa decisão causaria a sua f i l h a adorada. Esses dois ob j e t i vos contrad i tór ios f o r a m cu idadosamente estudados e usados no t r a b a l h o .

Casualmente anal isando c o m meus a lunos alguns detalhes dessa cena, constatamos que c o b r i n d o c o m u m cartão a parte i n f e r i o r do r o s t o , na

30 EUGÊNIO K U S N E T

Fotografia n.° 4

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f o t o g r a f i a , e de ixando descobertos os o l h o s , e n c o n t r a m o s neles m u i t a d u r e z a , quase u m a crueldade f r i a ; e n t r e t a n t o q u a n d o deixamos descoberta a boca , c o b r i n d o os o lhos , v i m o s u m a a m a r g u r a , u m a tr isteza que chegava às lágrimas; p o r isso o c o n j u n t o faz ia sent i r a c o m p l e x i d a d e do estado e m o c i o ­na l d o personagem. P o r t a n t o , a presença rea l dos ob j e t i vos do personagem, m e s m o n a i m o b i l i d a d e de u m a f o t o g r a f i a , faz c o m que o espectador s i n t a a sua a ç ã o i n t e r i o r .

Há u m detalhe do t r a b a l h o d o a tor q u e n u n c a deve ser perd ido de v i s t a : é a atratividade dos objetivos do personagem. Se u m ator não consegue interessar-se p r o f u n d a m e n t e pelos p r o b l e m a s d o personagem, há p o u c a p r o ­b a b i l i d a d e de sucesso n o seu t r a b a l h o . E j á q u e é ele própr io q u e m estabe­lece e dá f o r m a aos o b j e t i v o s , a a t r a t i v i d a d e dos mesmos depende dele p r ó p r i o .

C o m o sempre, o m a i o r i n i m i g o d o a t o r nesse t r a b a l h o é a tendência de s i m p l i f i c a r demais os p r o b l e m a s . Q u a n t o m a i s c o m p l e x o f o r o o b j e t i v o do personagem, t a n t o mais f a c i l m e n t e será desper tada a imaginação d o a t o r . O já c i t a d o d i r e t o r soviético — Nicolái O k h l ó p k o v , f a l a n d o sobre prob lemas da d i reção , disse: " N ã o deixe o a t o r p r o c u r a r u m b o t ã o p e r d i d o q u a n d o ele pode p r o c u r a r u m amor p e r d i d o ! "

O a t r a e n t e para nós é a q u i l o que nos interessa p r o f u n d a m e n t e . I n t e r e s ­sar-se p r o f u n d a m e n t e pelos p r o b l e m a s a lhe ios só é possível q u a n d o nós c onsegu imos colocar-nos n o lugar da pessoa. P o r isso é sempre aconselhável que o a t o r p ro cure a l g u m parale lo entre a s i tuação d o personagem e a l g u m deta lhe semelhante a sua própria v i d a . E assim q u e ele pode descobr ir mais f a c i l m e n t e a a t rat iv idade dos ob je t ivos do p e r s o n a g e m .

Para demonstrar a e n o r m e importânc ia q u e t e m a atrat iv idade dos ob je ­t i v o s , q u e r o lhes contar u m caso que me parece m u i t o i l u s t r a t i v o .

D u r a n t e os ensaios de " O C a n t o da C o t o v i a " , na cena em que J o a n a D ' A r e e n t r a n o palácio real para p r o p o r ao d e l f i m lhe con f iar o c o m a n d o do e x é r c i t o francês, Mar ia D e l l a Costa , que faz ia o p a p e l de Joana , achava que o estado e m o c i o n a l da hero ína devia ser o de t i m i d e z , p o r q u e ela, u m a s imples c a m p o n e s a , pela p r i m e i r a vez entrava n u m palác io . Apesar da lógica d o p r ó p r i o t e x t o e m que se fazia sent i r a a l t i vez de J o a n a , apesar das cenas a n t e r i o r e s e m que Joana estava e m c o n t a t o d i r e t o c o m u m ser m u i t o supe­rior aos reis, o A r c a n j o São M i g u e l , M a r i a n ã o se convencia . Ela rac i o c inava na base de u m e x e m p l o de sua própria v i d a , q u a n d o ela f o i ao Palácio do Cate te para u m a audiência c o m Getúl io Vargas . E la ia p le i tear u m subs íd io para o seu teatro que naque la época se achava e m construção. E la rac i o ­c i n a v a : " e u v o u i n c o m o d a r o nosso grande pres idente c o m os pequenos p r o b l e m a s do meu i n s i g n i f i c a n t e t e a t r o ! . . . Já na entrada do C a t e t e . m e sent i tão i n t i m i d a d a que, por pouco, não des is t i do e n c o n t r o " .

Fotografia n.° 5

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V e j a m b e m : c o m essa f o r m a e m que se revest iu o seu o b j e t i v o , ela só p o d i a se s e n t i r h u m i l d e . E t u d o isso p r o v i n h a da c o m p a r a ç ã o do grande pres idente c o m a " i n s i g n i f i c a n t e " Maria , da grande pátria c o m o " i n s i g n i f i ­c a n t e " t e a t r o . Mas p o r que a ins ign i f i cante Mar ia? Por q u e o ins igni f icante teatro? Os p r o b l e m a s da arte e m nosso país não são m a i s i m p o r t a n t e s d o que m u i t o s , m u i t o s ou t ros problemas? Por que então essa insignificância? Para dar m a i o r ênfase a m i n h a ideia, sugeri a M a r i a que considerasse o seu t e a t r o o f a t o r mais i m p o r t a n t e d o m u n d o , que se compenetrasse da ideia de que a f a l t a d o seu teatro em São Paulo p r e j u d i c a r i a o f u t u r o das gerações in te i ras , que m e s m o os problemas da miséria, da f o m e s ã o menos i m p o r ­tantes , e tc , e tc . " C o n v e n c i d a d isso , " p e r g u n t e i eu , " e m q u e estado de ânimo você e n t r a r i a n o Catete? "

E n q u a n t o e u falava, os o lhos de M a r i a b r i l h a v a m cada vez mais , e vocês prec isavam ver c o m que i n f i n i t o o r g u l h o ela se a j o e l h o u p e r a n t e o d e l f i m e c o m e ç o u a f a l a r : " G a r b o s o d e l f i m , eu , Joana D ' A r c . . . " , e t c .

A s s i m , através de u m parale lo , os o b j e t i v o s d o personagem tornaram-se grandiosos , empo lgantes para a a t r i z .

Mas não se deve esquecer de que o a t o r sempre c o r r e o perigo de c o n f u n d i r os o b j e t i v o s do personagem, que o i n d u z e m a agdr c o m o t a l , c o m os seus próprios ob je t ivos , que o i n d u z e m a se e x i b i r , a b r i l h a r , c o m o naque­le caso que c i t e i n o iníc io deste cap í tu l o , q u a n d o c o n t e i o que aconteceu c o m i g o depois de ter gravado u m a cena de " A q u e l e que leva bo fe tadas " .

Para se a p o i a r realmente sobre u m o b j e t i v o d o personagem, o ator deve saber def in í - lo c o m a máxima clareza, t o r n a n d o - o por ass im dizer palpável. Não me e n t e n d a m m a l : não estou suger indo a s impli f icação d o ob j e t i vo , mas apenas a necessidade de evitar a possível c on fusão p o r fa l ta de clareza. M e s m o u m o b j e t i v o m u i t o c o m p l e x o e contrad i tór io , c o m o por exemplo aquele de M a n e c o T e r r a , deve ser estabelecido c o m t o d a a lógica e clareza.

Por isso é aconselhávehao d e f i n i r o o b j e t i v o , usar o v e r b o " q u e r e r " na p r i m e i r a pessoa e não n u m a f o r m a descr i t i va . E m vez de d i z e r : " O ob j e t i vo do personagem é vingar a sua h o n r a " , d iga : " E u q u e r o vingar a m i n h a h o n r a " . O uso desse verbo f a c i l i t a a aquisição da " f é c é n i c a " e evita a confusão a que nos re fer imos ac ima . C e r t a m e n t e . M a r i a Del la Costa, ao entrar naque la cena c o m o d e l f i m , deve ter pensado mais o u menos assim: " E u quero que o d e l f i m me obedeça , q u e r o que me ent regue o c omando do exérc i to , p o r q u e sou a única pessoa capaz de salvar a F r a n ç a " Mas se em vez disso M a r i a pensasse: " E u quero fazer essa cena m a r a v i l h o s a m e n t e ! Q u e r o se i . t i r m u i t o o rgu lho no m o m e n t o de m e a j o e l h a r " , a que resultado ela chegaria? A u m a ação c o m p l e t a m e n t e falsa.

Apesar dos meus longos anos de t e a t r o p r o f i s s i o n a l , eu também nem sempre me s i n t o isento dessa confusão . U m caso desses aconteceu comigo em " O s Pequenos Burgueses" na cena da br iga de " B e s s ê m e n o v " c o m seu

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af i lhado NU, durante o a lmoço d o segundo a t o . N u m dos espetáculos — uns três meses depois da estreia — eu s e n t i u m verdade iro pavor q u a n d o N i l bateu c o m o punho na mesa e g r i t o u : " O senhor não pode n a d a ! . . . " L e m b r o - m e perfeitamente de que n a q u e l e m o m e n t o eu cheguei a pensar: " A g o r a ele vai me bater na cara! . . . " D e p o i s do espetáculo , r e c a p i t u l a n d o o que se passou, f iquei contentíss imo p o r ter e n c o n t r a d o c o m t a n t a c lareza essa emoção de Bessêmenov. Na n o i t e s egu in te , p reocupado e m não perdê -la . n o últ imo m o m e n t o , em cena a b e r t a pensei : " E u prec iso sent i r esse p a v o r ! " E claro que o resultado f o i u m v e r d a d e i r o fracasso: n u n c a f iz essa cena de maneira tão falsa. Por que? P o r q u e Bessêmenov não p o d i a " q u e r e r sentir o pavor" , ele podia " q u e r e r f u g i r da b o f e t a d a " , isto s i m ! Se o o b j e t i v o no último m o m e n t o fosse r e a l m e n t e esse: " E l e vai m e b a t e r ! Q u e r o fugir ! . . . " o verdadeiro pavor seria r e s u l t a d o automático desse p e n s a m e n t o .

Ass im completamos as nossas cons iderações sobre as q u a t r o caracterís­ticas essenciais da ação na vida real e o seu uso no ríosso t r a b a l h o e m t e a t r o .

Se você realmente quiser ass imilar as noções cont idas neste c a p í t u l o , saiba que não é suficiente apenas c o m p r e e n d e r e saber r e p e t i r o seu c o n t e ú ­do. É preciso fazer os exercícios suger idos '"a cegueira", "a abstração", "o resgate", "o enterro", e "a piada") e m u i t o s ou t ros que a sua imaginação possa lhe sugerir. Só assim v o c ê poderá assimilar na prática a ideia d o uso das características da ação n o seu t r a b a l h o de a tor . A n t e c i p a n d o certos problemas de nossos estudos, devo esclarecer desde já que a ação dos temas acima citados deve ser improvisada por você. P o r t a n t o , não caia no erro de preestabelecer por escrito o esquema r íg ido da ação e dos diálogos ( o u monólogos) do exercício, para seguí- los à risca. Procure i m p r o v i s a r l i v r e ­mente tanto os movimentos c o m o as fa las .

Improvisação é a base de t o d o s os t raba lhos teatrais pe lo M é t o d o de Stanislavski. Mais tarde trataremos d e t a l h a d a m e n t e do m é t o d o de i m p r o v i s a ­ção.

Insisto na necessidade de v o c ê p r ó p r i o cr iar novos exerc í c i o s , p o r q u e , desta maneira, você desenvolve mais u m a das i m p o r t a n t e s qual idades d o a tor : a sua iniciativa. Neste l i v r o p r e t e n d o sugerir m u i t o s exemplos de t r a b a ­lhos práticos e seria u m erro do l e i t o r não p r o c u r a r completa . - esse m a t e r i a l c o m o que a sua imaginação possa p r o d u z i r .

TERCEIRO CAPÍTULO

R e s u m i n d o o c o n t e ú d o d o capítulo a n t e r i o r , podemos dizer q u e as q u a t r o características f u n d a m e n t a i s da ação, — t a n t o na v ida rea l , c o m o e m t e a t r o , — são as seguintes :

1) A ação sempre obedece à lógica.

2} A ação é sempre c o n t í n u a e i n i n t e r r u p t a .

3 ) A ação sempre t e m , s i m u l t a n e a m e n t e , dois aspectos: ação i n t e r i o r e ação e x t e r i o r .

4 } Não existe ação sem o b j e t i v o s .

O c o n h e c i m e n t o dessas características é de e x t r e m a importânc ia n o t r a b a l h o do a t o r . Mas o c o n h e c i m e n t o teórico não basta, é preciso saber utilizá-lo na prática q u a n d o c o m e ç a m o s a t raba lhar c o m u m d e t e r n u n a d o mater ia l dramatúrgico , seja ele u m simples exerc í c i o o u u m c o m p l i c a d o papel n u m a d e t e r m i n a d a p e ç a .

Por onde devemos c o m e ç a r ? Já sabemos que n o p a l c o devemos agir e m nome do p e r s o n a g e m ; que

devemos aceitar , c o m o se f ossem nossos, t a n t o a situação e m que o perso ­nagem se e n c o n t r a c o m o t a m b é m os objet ivos de sua ação . Mas para c o m e ­çar a agir n o mgar do personagem é necessário, em p r i m e i r o lugar , estabe­lecer c o m a máx ima clareza quem é o personagem, quais são as suas caracte­rísticas. C o m o ele é? B o m , m a u , j o v e m , ve lho , i n t e l i g e n t e , b u r r o ? O n d e ele vive e para que vive? E . p r i n c i p a l m e n t e , o que ele quer?

A resposta a t u d o isso pode ser e n c o n t r a d a , em p a r t e , n o m a t e r i a l dramatúrgico c o m o q u a l es tamos t raba lhando . Este m a t e r i a l , cujos c o m p o ­nentes devem ser c u i d a d o s a m e n t e analisados e selecionados, servirá de base para o nosso t r a b a l h o . N o m é t o d o de Stanis lavski ele é d e n o m i n a d o c o m o t e r m o : C I R C U N S T Â N C I A S P R O P O S T A S . Para nós , atores, esse t e r m o s i g n i ­fica a verdade , a real idade da v i d a do personagem nas situações que o a u t o r da obra dramática nos p r o p õ e . P o r t a n t o , não se t ra ta da verdade da v i d a real e s i m da " v e r d a d e c é n i c a " ; espec i f i camente tea t ra l c o m o o é a " f é c é n i c a " .

A mesma verdade da v i d a real . isto é, a realidade o b j e t i v 3 . p o d e ser i n t e r p r e t a d a e apresentada p o r dois artistas de maneira m u i t o d i f e r e n t e , sem que essa diferença p r e j u d i q u e a "verdade artística", o u seja a r ea l idade subjet iva de cada u m deles.

36 EUGÊNIO K U S N E T

Assim, quando encontramos u m cavalo v i v o , esse " m a m í f e r o d o m é s t i c o so l ípede" , cujas especificações n inguém d i s c u t e p o r achá-las óbvias , estamos diante de u m a realidade ob jet iva .

E n t r e t a n t o , quando aprec iamos , p o r e x e m p l o , os quadros de D e l a c r o i x c o m seus famosos cavalos fogosos e, e m seguida, vemos " G u e r n i c a " de Picasso c o m aquele cavalo m u t i l a d o pe l o t e r r o r há enorme di ferença ent re os dois, e ainda, maior diferença ent re eles e u m cavalo real, não nos i m p e d e de aceitarmos a "verdade art ís t i ca" , i s t o é , a real idade subjet iva dos dois p intores .

Ass im, o problema do a t o r é descobr i r nas "Circunstâncias P r o p o s t a s " a sua verdade artística.

E u disse acima que a resposta às nossas perguntas sobre a n a t u r e z a da ação do personagem pode ser e n c o n t r a d a , em parte, no m a t e r i a l dramatúr­gico. Disse " e m p a r t e " porque g e r a l m e n t e os dramaturgos são m u i t o eco­nómicos em suas explicações. Eles p r e f e r e m d e i x a r os detalhes à nossa i m a g i ­nação para não l i m i t a r a nossa c r i a t i v i d a d e .

Se n u m a peça encontramos , por e x e m p l o , u m a rubr i ca c o m o esta : " J O Ã O — ( E N T R A N D O ) B o m - d i a ! " n u n c a podemos l i m i t a r - n o s a exe­

cutar a ação como está escr i to : e n t r a r e d i zer b o m - d i a . Precisamos i m a g i n a r de onde o João entra, o que aconteceu c o m o J o ã o antes, o que o J o ã o q u e r , porque o " b o m - d i a " pode ser d i t o a u m a pessoa a q u e m o J o ã o traz u m presente ou a quem ele vai m a t a r logo e m secuida.

Quantas vezes, mesmo e m grandes t e a t r o s , u m a omissão nas C I R C U N S ­T Â N C I A S PROPOSTAS mudava t o d o o s e n t i d o de u m a cena, de u m a to e até mesmo da peça inte i ra ! E não somos apenas nós , pobres m o r t a i s , que cometemos esses erros, — os grandes mestres também os c o m e t i a m . Stanis ­lavski conta que n u m dos ensaios de " T i o V â n i a " de A n t o n T c h e k h o v , o autor ficou indignado quando n o t o u que o intérprete do papel-t ítulo estava vestido como u m homem do c a m p o [Stanislavski o imaginou assim porque ele era administrador da fazenda). T c h e k h o v disse: "Mas eu e x p l i q u e i isso tão c laramente! E vocês não e n t e n d e r a m n a d a ! " . M o s t r o u , e m seguida, u m a frase no meio de uma grande r u b r i c a : " . . . end i re i ta sua gravata fina". Realmente, dessa frase devia se t i r a r a c o n c l u s ã o de que Vóinitski não p o d i a ter aspecto, nem hábitos de u m quase c a m p o n ê s , o que é de e n o r m e i m p o r ­tância para a peça inte ira .

Assim Stanislavski confessou sua omissão e c o m isso d e i x o u de c o m p l e ­tar as CIRCUNSTÂNCIAS P R O P O S T A S c o m sua imaginação.

Mas vejamos u m exemplo b e m s imples de c o m o deve f u n c i o n a r a i m a g i ­nação de u m aluno n u m e x e r c í c i o c o m as C I R C U N S T Â N C I A S P R O ­POSTAS.

Digamos que o aluno receba c o m o t e m a para o exerc íc io o seguinte : " E u vou pedir d inheiro emprestado a u m a m i g o " . Só isso, n e n h u m o u t r o

A T O R E M É T O D O 37

detalhe. Para executar essa ação s e m n e n h u m t raba lho preparatório o a l u n o d i r i a : " 0 F u l a n o , quer me e m p r e s t a r cem m i l cruzeiros? " . A não ser a estranha leveza c o m que o personagem pede u m a b o l a d a dessas, nada de interessante encont ramos nessa a ç ã o . E m vez disso o a l u n o deve c o m p l e t a r as circunstâncias tão vagas c o m sua imaginação, dentro das características da ação, que há p o u c o v e r i f i c a m o s . E l e raciocinará da seguinte m a n e i r a :

1) A lógica da ação. " A o i m a g i n a r , t u d o o que p o d i a t e r a c o n t e c i d o c o m o personagem e o que o l e v o u a pedir d i n h e i r o , t o m a r e i o m á x i m o cuidado , para evitar t oda e q u a l q u e r fa lha da lóg ica" .

2) Ação contínua, o u seja, ação anterior e ação posterior. " A g o r a v o u imaginar o que aconteceu : o p e r s o n a g e m t i r o u cem m i l cruzeiros da ca ixa d o banco onde t raba lha e deve depositá- los novamente amanhã na p r i m e i r a hora, senão será p r e s o " .

N o t e m : o seu " o n t e m " é : " t i r e i o d i n h e i r o " ; o seu " a m a n h ã " : " s e r e i preso " ; o seu " h o j e " : " e s t o u p e d i n d o d i n h e i r o e m p r e s t a d o " .

"Estará t u d o cer to d o p o n t o de vista da lógica? " . Parece que s im . E ele c o n t i n u a : \

3) Ação interna. " O personagem t e m medo do que possa acontecer , mas, e m b o r a ansioso por c o n s e g u i r o emprést imoAnão deve de ixar o a m i g o adiv inhar do que se t r a t a , p o r q u e este seria capaz de denunc iá - lo " .

4 ) Ação externa. Por isso o personagem procura parecer m u i t o c a l m o , pensando: — " A f i n a l de CQntas, n ã o é u m a coisa tão grave! E u sei que v o u me safar" .

' E a lógica? Desta vez ela parece u m pouco m a n c a : c o m o pode ele parecer m u i t o c a l m o ao ped i r u m emprést imo de cem m i l cruzeiros? E x a ­tamente essa ca lma é que p o d e r i a parecer suspeita. Então o personagem não deve p r o c u r a r esconder a sua e x c i t a ç ã o , mas deve i n v e n t a r u m a razão p l a u ­sível para j u s t i f i c a r o seu n e r v o s i s m o . Por exemplo — u m a grande o p o r t u n i ­dade c o m e r c i a l que ele p e r d e r i a se não conseguisse esse d i n h e i r o i m e d i a t a ­mente .

5) Objetivo da ação. " S e i q u e o o b j e t i v o da ação d o personagem deve ser bastante atraente para e x c i t a r a m i n h a imaginação. Se eu estivesse n o lugar do personagem, que f a t o p o d e r i a i n d u z i r - m e a r o u b a r u m a importânc ia tão grande? Já sei ! O personagem t o m o u esse d i n h e i r o para salvar a v i d a de sua mãe que está à m o r t e e deve ser operada por u m m é d i c o m u i t o c a r o . Se o personagem for preso, essa desgraça vai matar a sua m ã e " .

V e j a m c o m o o s e n t i m e n t o filial, próprio de todos os seres h u m a n o s , c r i ou a necessária a t r a t i v i d a d e d o o b j e t i v o .

' E q u a n t o à lógica, há a l g u m a falha? Parece que não .

38 EUGÊNIO K U S N E T

É claro que mui tos outros deta lhes , que d e i x o de p r o c u r a r para não fugir da simplicidade do e x e m p l o , e n t r a r i a m em j o g o , mas digamos que o trabalho com as CIRCUNSTÂNCIAS P R O P O S T A S seja considerado c o m ­pleto . Que fazer agora? C o m o assumir os p r o b l e m a s e os objet ivos d o personagem? Stanislavski oferece u m e l e m e n t o d o M é t o d o que ele c h a m a de o mágico " S E FOSSE".

U m a vez estabelecidas, analisadas e selecionadas as C I R C U N S T Â N C I A S PROPOSTAS, c omo no nosso e x e m p l o , o a l u n o se p e r g u n t a r i a : " E se eu fosse aquela pessoa? Se a minha mãe estivesse à m o r t e ? Se o único lugar onde pudesse arranjar o d i n h e i r o na hora fosse a ca ixa d o banco? E t c , e t c , e t c , . . . como eu iria agir? "

Stanislavski chama esse " S E F O S S E " de mág i co , p o r q u e ele quase q u e automat icamente desperta a V O N T A D E D E A G I R .

Para experimentar a sensação ao usar o mágico S E F O S S E , basta que o le i tor repita os pequenos exerc íc ios c i tados a n t e r i o r m e n t e , mas desta vez, só depois de estudar as C I R C U N S T Â N C I A S P R O P O S T A S e completá-las c o m a sua imaginação. Não comece antes de pensar o que segue:

1) Como eu me c o m p o r t a r i a , ao atravessar u m a r u a , se fosse cego?

2) Que faria eu se fosse pai (ou mãe) de uma menina raptada, que leva o dinheiro do resgate?

3) Que pensaria eu se estivesse acompanhando de longe o enterro de uma pessoa muito querida ?

4) Se eu, extremamente cansado, fosse obrigado a divertir alguém, como contaria eu uma piada?

Nessas condições, você sentirá m u i t o mais v o n t a d e de agir do que nas experiências anteriores.

Nunca é demais insistir e m esclarecer o v e r d a d e i r o s igni f icado de certos termos do Método. Stanis lavsk i f o i f r e q u e n t e m e n t e acusado de p r o ­curar i m p o r ao ator a aceitação t o t a l da real idade da v i d a do personagem, aquela mística metamorfose do a t o r e m cersonagem. O próprio B e r t o k Brecht fez essas acusações. Mas se isso fosse v e r d a d e , Stanislavski usaria no seu Método o termo " E U S O U " e não " S E E U F O S S E " . Esse c o n d i ­c ional é m u i t o s ignif icativo. Ele presume a aceitação simultânea da r e a l i ­dade — eu. o ator que sou, e do imaginário — o personagem que eu, o ator, poderia ser.

A i n d a em 1937, quando essa dúvida pairava n o m u n d o i n t e i r o , o famoso ator do elenco do teatro de Stan is lavsk i . L . M . L e o n i d o v n u m encon ­tro c o m os elencos dos teatros de M o s c o u deu u m a ide ia bastante clara sobre esse problema. Ele disse: "Ser ia u m v e r d a d e i r o a b s u r d o se eu dissesse: E u , Leonidov , seu o governador da c idade (um personagem de " O Inspetor

A T O R E M É T O D O 39

Geral" de N. Gógol). E u sou s i m p l e s m e n t e L e o n i d o v . Mas o que i m p o r t a é o que eu far ia se fosse o governador da c i d a d e " .

Mais tarde veremos c o m o o t e r m o " S E F O S S E " é i n t e r p r e t a d o e d e n o ­m i n a d o pela psico logia c ient í f i ca m o d e r n a . Por e n q u a n t o , usaremos os t e r m o s c o m o os e n c o n t r a m o s n o M é t o d o , dando apenas esc larec imentos necessários para ev i tar que haja u m a interpretação errónea d o seu s ign i ­ficado.

Dissemos ac ima que o uso d o mágico " S E F O S S E " n o r m a l m e n t e des­p e r t a a vontade de agir . Mas d igamos q u e isso não aconteça, que , apesar da máxima boa v o n t a d e , o l e i t o r n ã o cons iga imaginar o que ele faria se fosse . . . etc. e t c

Cre i o que isso só p o d e r i a acontecer se o l e i t o r não soubesse usar a sua imaginação, o u m e l h o r , se ele in terpre tasse m a l o s ign i f i cado da palavra imaginação.

O que s igni f ica i m a g i n a r coisas? V a m o s recorrer a u m e x e m p l o prát i co . V o c ê poderia imag inar sua via­

gem à lua? Não deve ser difícil — você deve ter visto em fo togra f ias o u e m c i n e m a as astronaves, t a n t o e m v ô o c o m o e m terra firme, e não deve ter d i f i c u l d a d e em i m a g i n a r os deta lhes .

V o c ê está d e n t r o da cab ine . O f oguete acaba de p a r t i r . Conte o que é que você está v e n d o ! Para avivar sua imaginação , peça que alguém lhe faça perguntas sobre a sua v i a g e m : o que está vendo dentro da cabine? O que está vendo pela janela? e t c , e r e sponda c o m maiores detalhes possíveis.

Desta maneira vo cê constatará que imaginar (como você acaba de fazer) significa ver as coisas ausentes, inexistentes ou irreais, . c o n t a n t o que as veja mentalmente.

Vamos fazer mais u m a pequena experiência . Olhe para u m o b j e t o , u m rádio, por e x e m p l o , e, sem tirar os olhos dele, responda a u m a série de perguntas feitas p o r u m a m i g o seu. c o m o por e x e m p l o essas: De que cor é o rádio? T e m a lgum deta lhe e m o u t r a cor? De que mater ia l é fe i to? Para que serve aquele b o t ã o à esquerda? etc . Nessas condições , ao responder essas perguntas , você dirá o que perceberá através da sua visão f ísica.

Logo em seguida, o seu a m i g o deverá passar para u m a o u t r a série de perguntas que você terá que responder também sem tirar os olhos do rádio: O n d e f o i fabr i cado este rádio? É u m a fábrica brasi le ira ou estrangeira? C o m o é essa fábrica? C o m o é a sala e m que se m o n t a m os rádios? Q u e m está t raba lhando na m o n t a g e m ? C o m o estão vestidos os operários? De que cor são os macacões? etc .

Desta vez ,ao responder , v o c ê estará f a l a n d o , não sobre o que estiver presente diante dos seus o lhos , - o rádio - e s im sobre o que você imaginou ao o u v i r a pergunta, ou seja. sobre o que você \iu mentalmente naquele momento.

4 0 EUGÊNIO K U S N E T

Se o seu amigo de repente p e r g u n t a r : Este rádio t e m a l g u m d e f e i t o na p intura? Você constatará que para responder essa p e r g u n t a será necessário u m pequeno lapso de tempo para t o r n a r a ver o rádio que , e m b o r a sempre presente diante dos seus olhos, você quase não e n x e r g o u e n q u a n t o seu amigo lhe fez perguntas sobre a fábrica, os operários, etc .

Constatamos, por tanto , que vendo as coisas imaginárias, i r r ea i s , de ixa ­mos de ver as coisas reais que estão d i a n t e de nós, e v ice -versa : basta prestar atenção às coisas físicas para que desapareçam as coisas imaginárias, c omo naquele exercíc io c o m o papel de cego que sugerimos n o c a p í t u l o a n t e r i o r . Isso nos mostra que podemos manobrar a visão física à nossa vontade, no sentido de transformá-la em visão interior.

Desta maneira, a nossa imaginação adquire agora u m aspecto menos abstrato , mais palpável para nós atores : imaginar s ign i f i ca v e r de maneira concreta o que nos é oferecido nas "Circunstâncias P r o p o s t a s " .

Essa maneira de usar a "v isão i n t e r n a " Stanis lavski c h a m a de V I S U A ­L I Z A Ç Ã O .

Depois de recorrer ao "mág i co SE F O S S E " e de se p e r g u n t a r : " C o m o eu estaria agindo nessas condições? " , o a t o r vai p r o c u r a r V I S U A L I Z A R essa ação.

Gostaria de dar u m exemplo de c o m o se processa o uso desse ele­m e n t o do Método no trabalho prático de u m t e a t r o .

O ator do Teatro Of ic ina, Renato B o r g h i , na p r i m e i r a p e ç a encenada naquele teatro , " A vida impressa e m dó lar " , fez o pape l de R a l p h Berger, f i lho de uma família j u d i a m u i t o p o b r e . O personagem, apesar de estar ganhando u m pequeno ordenado, n u n c a t e m u m vintém n o b o l s o , — ele entrega t u d o o que ganha à mãe. O intérprete d o p a p e l , f i l h o de u m a família abastada, nunca teve d i f i cu ldades financeiras c o m o , p o r e x e m p l o , o prob lema de levar sua namorada ao c i n e m a , e n q u a n t o q u e R a l p h Berger nunca teve d inhe iro para oferecer à sua noiva u m p e q u e n o d i v e r t i m e n t o como esse. Para fazer esse papel o R e n a t o , rico, deve a c e i t a r as c i rcuns­tâncias em que vive o Ra lph , p o b r e . C o m o estaria a g i n d o o ator SE FOSSE POBRE?

Para compreender a situação e m que se e n c o n t r a o p e r s o n a g e m resol­vemos improvisar uma cena fora da ação da peça. I m a g i n a m o s u m e n c o n t r o de Ralph com a sua noiva na rua. D u r a n t e o passeio a n o i v a de repente d i z : " R a l p h , leve-me ao c inema". E u p e r g u n t e i a Renato B o r g h i : " Q u e faria você se fosse Ralph? " Antes de responder, R e n a t o v i s u a l i z o u , — c o n f o r m e e x p l i ­cou mais tarde, - o pobre r o s t i n h o de sua no iva , v i s u a l i z o u a rua em que estava morando , visualizou os seus bolsos vazios, chegou a " v e r " u m a curva da rua e de repente agiu como R a l p h Berger: ele não teve a coragem de confessar a sua pobreza, ele p r e f e r i u m e n t i r e disse: " V a m o s ao cinema amanhã, está bem? Porque hoje . . . eu me l e m b r e i agora, — quantas vezes

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A T O R E M É T O D O 4 1

eu q u e r i a lhe mostrar a v is ta marav i lhosa q u e se abre daquela curva , e s e m p r e me esquecia! V a m o s dar u m passeio, v o c ê vai ver que m a r a v i l h a ! "

Através desse pequeno " l a b o r a t ó r i o " o a t o r descobr iu o que ele far ia se fosse o personagem.

O i m p o r t a n t e nesse e x e m p l o é que , d e n t r o de sua visualização, R e n a t o se viu no lugar de Ralph; não o v i u c o m os o l h o s de u m espectador, e s i m se viu agindo no lugar de Ralph. A isso nós c h a m a m o s de V I S U A L I Z A Ç Ã O A T I V A , para diferenciá-la de u m a simples c o n t e m p l a ç ã o da ação alheia.

É preciso t o m a r m u i t o c u i d a d o para não c o n f u n d i r as duas. L e m b r o - m e de u m a l u n o , que . durante u m e x e r c í c i o para o q u a l ele escolheu u m a cena de c i ú m e , p r o c u r o u p o r e m prática o uso da visualização. O resul tado f o i mais d o que lamentável: o seu " t e r r í v e l " a m a n t e c i u m e n t o não passava de u m a ridícula car icatura que fez rir t odos os seus colegas da t u r m a . D i a n t e desse resu l tado eu a f i r m e i que ele não t i n h a v i sua l i zado coisa a lguma. Para me p r o v a r o contrário, ele j u r o u que " t i n h a v i sua l i zado o personagem c o m t a n t a clareza que até p o d i a i r t o m a r café c o m e l e ! "

V o c ê s compreenderam? Esse " O t e l o " p r o d u z i d o pela sua imaginação, o u seja, v isual izado por ele, v i v i a c o m p l e t a m e n t e à parte , e ele, o a l u n o , não passava de u m simples espectador que depois de observar (contemplar) a ação d o personagem, e m vez de, ao menos , responder à pergunta : " Q u e far ia eu S E FOSSE esse h o m e m c i u m e n t o ? " , r e so lveu s implesmente macaquear o seu c o m p o r t a m e n t o . Daí o ridículo do r e s u l t a d o desse exerc íc io .

E agora, para dar u m e x e m p l o d i a m e t r a l m e n t e oposto ao a n t e r i o r , gos­t a r i a de exempl i f i car o e f e i t o d o uso da visualização sobre o t raba lho de u m a grande a t r i z . Ref i ro -me a G r e t a G a r b o .

T i v e m u i t a sorte e m regTavar u m disco n o r t e - a m e r i c a n o que, na é p o c a , não se encontrava no Bras i l . Esse disco c o n t i n h a trechos pr inc ipa is dos filmes interpretados por G r e t a G a r b o .

O que me impress i onou p a r t i c u l a r m e n t e e m e fez l embrar u m a cena do f i l m e e m todos os seus detalhes f o i u m t r e c h o de " R a i n h a C r i s t i n a " . A o o u v i r o disco eu t ive a impressão nítida de que a genial a t r i z , e n q u a n t o d i z ia 0 t e x t o , usava a "v i sua l i zação " conscientemente. As próprias "Circunstân­cias Propos tas " dessa cena e x i g i a m a consc ient ização da 'S i sua l i zação" , c o n f o r m e expl icarei aba ixo .

D o t recho escolhido destaquei duas partes e m que a rainha C r i s t i n a , depo i s de passar u m a n o i t e de a m o r c o m A n t ô n i o , o embaixador espanhol j u n t o à sua cor te , fala c o m ele. O t e x t o da p r i m e i r a parte é o que segue:

* T v e been m e m o r i s i n g th i s r o o m . . . I n a f u t u r e . . . i n my m e m o r y . . . 1 sha l l l ive a great deal i n th is r o o m . . . "

D e n t r o das "Circunstâncias Propos tas " desse t e x t o o ob j e t i vo da r a i n h a é r e t e r na memória o aspecto desse q u a r t o para usá-lo depois em suas recor­dações . Por tanto , essa fala representa , c o m o p r o b l e m a para a intérprete d o

42 E U C Ê N I O K U S N E T

papeL o uso da memória. E o que é a memória , senão a " v i s u a l i z a ç ã o " consciente do passado?

A s reticências que vocês e n c o n t r a m no t e x t o ac ima f o r a m postas p o r m i m para assinalar as pequenas pausas existentes na interpretação de G r e t a Garbo. Quem assistiu ao f i l m e ce r tamente se lembrará dos o lhos de G r e t a Garbo naqueles momentos . E les f i t a v a m o f u t u r o da r a i n h a q u a n d o e la estaria sozinha, " v e n d o " o seu passado . . .

A genial interpretação dessa p a r t e , que nos fazia sent i r t o d o o d r a m a d a pobre rainha, era certamente r e s u l t a d o dessa "v isual ização" .

C i t o a segunda parte da m e s m a cena: A N T O N I O — T e l l me, — y o u said y o u w o u l d , — w h y h a d y o u c o m e t o

this I r ; r dressed as a man? C R I S T I N A — I n m y h o m e . . . I ' m very c o n s t r a i n e d . . . E v e r y t h i n g is

arranged very f o r m a l l y . . . ANTÓNIO — A h ! . . . A c o n v e n t i o n a l house-hold? C R I S T I N A - Very . Depois da pr imeira fala de A n t ô n i o , Greta G a r b o mantém u m a pausa de

seis segundos antes de c omeçar a fa lar . As reticências r e p r e s e n t a m pausas menores. A razão da pausa m a i o r c o n t é m m i l deta lhes : a i m p o s s i b i l i d a d e de revelar a verdade; a vontade de responder à pergunta , mas de u m a f o r m a q u e não a c omprometa ; a sensação d o ridículo dessa s i tuação; o p r o t e s t o i n t e r i o r contra a vida que a obr igam l e v a r ; a sua impotência para m o d i f i c a r as coisas e, ao mesmo tempo , a aceitação das c ond i ções de sua v ida c o m o u m compromisso de honra . . . e p r o v a v e l m e n t e m u i t o s o u t r o s detalhes q u e eu não saberia citar. T u d o isso n ó s sent imos e t u d o isso é r e s u l t a d o d a q u e l a pausa de seis segundos.

N o f ina l , antes de responder : " V e r y " , há t a m b é m u m a p e q u e n a pausa que deve ser resultado de u m a "v i sua l i zação" m u i t o c o m p l e x a e c u j o r e s u l ­tado poderíamos chamar s i m p l e s m e n t e de tr iste resignação da r a i n h a .

O uso correto da "visualização a t i v a " é de imensa importância n o t r a b a ­lho de ater. Seu efeito se re f l e te t a n t o na "ação e x t e r i o r " (mímica, gestos, falas), como na "ação i n t e r i o r " {pensamentos, emoções).

A influência da "ação i n t e r i o r " d o personagem sobre o estado p s í q u i c o do espectador se efetua, às vezes, d e n t r o da i m o b i l i d a d e e d o s i lêncio t o t a l em cena. Todos nós sabemos q u e esse t i p o de ação f r e q u e n t e m e n t e é m a i s impressionante do que a ação f ís ica. Basta lembrar-se p o r e x e m p l o , d o e x c e ­lente filme "Perdidos na n o i t e " e m que os dois intérpretes p r i n c i p a i s apare ­cem mudos e imóveis em m u i t a s cenas. E e n t r e t a n t o , j u s t a m e n t e nessas cenas é que nós sentíamos m a i o r e s e m o ç õ e s : parecia-nos que estávamos vendo nos olhos dos atores o q u e eles " v i s u a l i z a v a m " .

O diretor soviético A . P o p o v , d u r a n t e m u i t o s anos de suas a t i v i d a d e s c o m o professor e d iretor , c r i o u u m estudo p r o f u n d o do que ele c h a m a v a de

A T O R E M É T O D O 43

" z o n a s de s i l ê n c i o " , o u seja, o estudo d o f u n c i o n a m e n t o e d a realização das pausas e m t e a t r o .

U m e x e m p l o disso encont ramos n u m ar t i go p u b l i c a d o na revista " T e a t r o " de M o s c o u , sob o t í tulo " A respe i to de u m a p a u s a " (janeiro 1971). A a u t o r a d o a r t i g o , A . Polevítscaia, u m a das mais ve lhas e famosas atrizes russas, descreve e m mín imos detalhes todas as ações físicas d o perso­nagem c r i a d o p o r ela, n u m a cena e m que ela, d u r a n t e sete m i n u t o s , não p r o n u n c i a u m a pa lavra sequer.

V o c ê s p o d e m i m a g i n a r o que acontecer ia se a a t r i z , a o executar essas ações físicas, deixasse de usar a "visualização a t i v a " da s i tuação e dos p r o ­blemas d o personagem? T e n h o certeza de que a p late ia t o d a estaria d o r m i n ­do n o t e r c e i r o m i n u t o . E . e n t r e t a n t o , Stanis lavsk^que várias vezes assistiu ao espetáculo , r e c o m e n d a v a a seus alunos que prestassem espec ia l atenção a essa cena c o m o u m e x e m p l o da " a r t e de s e n t i r " .

O já c i t a d o e x e m p l o do filme " B e l i n d a " , na interpretação de Jane W y m a n , é mais u m e x e m p l o do uso da "v i sua l i zação " ; a a t r i z cer tamente " v i s u a l i z a v a " o q u e a personagem não p o d i a ver p o r ser cega. C o m o em nosso p e q u e n o e x e r c í c i o ( " e x a m i n a n d o u m r á d i o " ; n o q u a l c o m p r o v a m o s que a visão física pode ser quase e l i m i n a d a pelo uso da visão i n t e r i o r , assim também a a t r i z , através da "v isual ização" aguda d o que n ã o p o d i a estar ao alcance de sua v i s t a -por exemplo, os obstáculos no chão) i conseguia a d q u i r i r a expressão dos o l h o s de q u e m não vê o que se acha d i a n t e de l e .

Para c o m p l e t a r as nossas cons iderações sobre o uso prát i co da " v i s u a ­l i z a ç ã o " , r e c o m e n d a m o s que o l e i t o r v o l t e n o v a m e n t e aos exemplos que demos nas páginas anter iores para o uso da " l óg i ca da a ç ã o " . Eles também são e x e m p l o s p e r f e i t o s para o uso da "v i sua l i zação " , q u e p o d e m servir m u i t o b e m para seus exerc íc ios . Mas, a inda m e l h o r , seria se você criasse temas novos , baseados na sua própria vivência o u t i r a d o s de obras l i t e ­rárias. •

E agora, c o m os poucos e lementos que até o m o m e n t o conhecemos, podemos fazer a lgumas experiências de sistematização d o u s o desses e lemen­tos , a e x e m p l o d o que fizemos, há p o u c o , no t r a b a l h o c o m as q u a t r o carac­terísticas da ação e m relação às C I R C U N S T Â N C I A S P R O P O S T A S . Desta vez, p o r é m , i n c l u i r e m o s no t r a b a l h o dois novos e l e m e n t o s d o M é t o d o : " O mágico SE F O S S E " e a " V I S U A L I Z A Ç Ã O " .

D i g a m o s que o assunto esco lhido seja bastante s i m p l e s : u m rapaz (ou uma moça) escreve à sua namorada (ou namorado) u m a c a r t i n h a marcando u m e n c o n t r o . T e r m i n a d a a carta , ele (ou ela) a d o b r a , p õ e - n a n o envelope e sai para enviá-la. (Para fazer esse exercício procurem não usar objetos reais, papel, caneta, etc. — deixem tudo à sua imaginação, usem objetos imagi­nários).

44 E U G Ê N I O K U S N E T

Por onde vamos c o m e ç a r ? E m p r i m e i r o lugar, t e m o s que anal isar o tema para compreendê-lo c l a r a m e n t e . I s t o s igni f i ca : estabelecer e fixar as "Circunstâncias Propostas" e comple tá - las c o m a nossa imaginação .

Q u e m é o personagem? E l e é j o v e m , v e l h o , b o n i t o , f e i o , i n t e l i g e n t e , b u r r o , rico, pobre? . . . Q u e m é a sua namorada? C o m o ela é? E m que pé estão suas relações? Quais são as in tenções d o namorado? O que é q u e ele escreve na carta? O que é que ele alega para marcar o e n c o n t r o ? Ele é sincero nessa alegação? O que é que ele p re tende na real idade? . . .

Tratando-se de u m e x e r c í c i o , n ã o devemos esquecer que , para t r a n s ­f o r m a r em ação o resultado da análise das circunstâncias propostas, que acabamos de fazer, cabe-nos usar t o d o s os e lementos até agora c o n h e c i d o s . Por isso:

1 . ° — Veri f iquemos se os de ta lhes p o r nós estabelecidos obedecem \ lógica, se não há algum absurdo , e n ã o de ixemos de e x a m i n a r através da lógica todos os detalhes do t r a b a l h o p o s t e r i o r .

2. ° — Sabendo que a ação deve ser contínua e, p o r t a n t o , deve t e r o seu passado e o seu futuro, t e m o s q u e i m p r o v i s a r m e n t a l m e n t e o que acon ­teceu antes de que o personagem c o m e ç a s s e escrever a c a r t a : C o m o se passou o último encontro? H o u v e a l g u m a conversa por te le fone? . . . E logo e m seguida: Que vai acontecer d e p o i s do encontro? O que é que o encontro pode alterar nas suas relações de hoje? O que é prec iso ev i tar o u conseguir? . . .

3. ° — Pensando na ação exterior desse exerc í c io devemos desempe­nhar c o m a máxima atenção a nossa a ç ã o f ís ica: procurar s e n t i r a real idade da presença dos objetos imaginários — d o pape l na mesa, da caneta na m ã o , do m o v i m e n t o da pena, do a p a r e c i m e n t o das l inhas escritas, e tc .

4. ° — Pensando na ação interior, — q u e ev identemente deve se p r o ­cessar simultaneamente com a ação exterior, — devemos ter presentes os pensamentos naturais que a c o m p a n h a m a ação física dentro das circunstân­cias propostas. A o segurar a f o l h a de p a p e l : "Será que ela v a i achar esse papel m u i t o barato? O envelope não dev ia ser mais b o n i t o ? . . . " A o segurar a caneta: "Es ta pena a r r a n h a u m pouco . E b o m e x p e r i m e n t a r antes . . . " Antes de começar a escrever : "Prec i so encontrar palavras que a convençam . . . que a c o m o v a m . . . V o u escrever a s s i m ! " . . . A o escrever, pare para reler, pensando: "Será q u e sa iu b o m ? " A o fechar o enve lope , visualize o rosto dela quando ela est iver l e n d o a carta , etc. etc .

5. ° — Pensando no objetivo da ação, devemos estabelecer não apenas o que o personagem quer que a conteça , o q u e representa a sua v o n t a d e , mas também o que ele não quer que a c o n t e ç a — o u seja, a sua c o n t r a - v o n t a d e . Esse c o n f r o n t o do ob je t ivo e d o o b s t á c u l o , c o n f o r m e ver i f i caremos de ta lha -

A T O R E MÉTODO 45

d a m e n t e mais tarde , é de g r a n d e importância n o t r a b a l h o de a t o r : ele c r i a a l u t a i n t e r i o r d o personagem e representa a base da dialética d a v i d a , da n a t u r a l contrad ição d o esp í r i t o h u m a n o .

N o nosso pequeno e x e r c í c i o , embora bastante p r i m i t i v o , essa c o n t r a ­dição não pode de ixar de fazer parte da ação. Se o personagem p e n s a r : " Q u e r o que nesse e n c o n t r o ela não se oponha a nada! Q u e r o que ela m e deixe fazer t u d o o que eu q u e r o ! " , ele pensará l ogo em seguida: " M a s ass im podemos chegar a u m a l o u c u r a ! . . . E depois , o que vamos fazer? E a responsabi l idade? . . . N ã o , e la n ã o va i de ixar ! . . . E terá t o d a a razão ! . . . "

A o escrever a car ta , improvisando o seu conteúdo, v o c ê sentirá o r e s u l ­

tado da fusão desses p e n s a m e n t o s . 6. ° — U m a vez c o m p l e t a d a essa parte d o t r a b a l h o , devemos p e r g u n t a r

a nós mesmos : "Se eu fosse esse rapaz , se eu tivesse u m a n a m o r a d a tão b o n i t a e desejada, se eu tivesse a esperança de conseguir o e n c o n t r o que agora v o u pedir , o que é que eu escrever ia para ela? " C o m p l e t e isso c o m o u t r a s perguntas úteis para d e s p e r t a r - l h e a vontade de escrever, e q u a n d o chegar a sentir essa v o n t a d e , basta c o m e ç a r a agir.escrevendo.

7. ° — A g o r a , d igamos q u e c o n t r a toda a e x p e c t a t i v a você não chegue a sent i r r ea lmente essa v o n t a d e . Então recorra à visualização, i s to é, repasse alguns detalhes d o t r a b a l h o c o m os elementos anter i o res , na base da " v i s u a ­l i zação" . Comece p o r v i s u a l i z a r os objetos que usa, — o p a p e l , a caneta , e t c . Depois p r o c u r e " m a t e r i a l i z a r " os seus pensamentos e m f o r m a de " v i s ã o i n t e r n a " . Por e x e m p l o , q u a n d o v o c ê se pergunta q u e m é a n a m o r a d a , c o m o ela é; p r o c u r e " v ê - l a " e m m a i o r e s detalhes até que chegue a sent i r r e a l m e n t e a atração por e la ; q u a n d o pensar n o próx imo e n c o n t r o , v isual ize -o e m t o d o s os detalhes para sent ir a necessidade de pedir esse e n c o n t r o ; e, p r i n c i p a l ­mente , q u a n d o estiver p e n s a n d o no ob j e t i vo da ação , i s t o é , n o q u e o personagem quer que a c o n t e ç a , e no que ele não quer que aconteça , p r o c u r e " m a t e r i a l i z a r " essa l u t a i n t e r i o r ao máximo através da visualização. E n ã o esqueça que só poderá c o n s e g u i r a lgum resu l tado p o s i t i v o , se a sua visua­lização for realmente ativa, o u seja, se você conseguir "se v e r " ag indo d e n t r o das circunstâncias que v i s u a l i z a .

A capacidade de usar a visualização é p r i m o r d i a l na arte de t e a t r o , p o i s ela equivale à capacidade de usar a sua imaginação, sem o que n e n h u m a a r t e existe. Por isso não é s u f i c i e n t e compreender a mecânica da visual ização e fazer algumas experiências práticas para constatar a val idez desse e l e m e n t o . Na rea l idade , o> exerc í c i os de visualização devem tornar-se parte i n t e g r a n t e da v i d a i n t e i r a do a t o r , a c o m e ç a r pelos exerc íc ios mais p r i m i t i v o s , e a t e r m i n a r por compl i cadas " v i s õ e s cósmicas" dos personagens cr iados p e j o s

dramaturgos geniais. Esses e x e r c í c i o s devem transtormar-se em ginastica diária de imaginação. Sem ela o a ter não poderá exercer a sua a r t e , c o m o

46 EUGÊNIO K U S N E T

não o poderá u m dançarino, u m c a n t o r , u m p i a n i s t a , sem fazer exerc í c ios diários de dança, vocalises, so l fe jo , etc .

Q u a n t o aos exercícios de que fa le i a c ima , q u e r o p r o p o r a q u i , apenas a t ítulo de exemplificação, alguns temas que os meus l e i t o res poderão t rans ­f o rmar em exercícios de imaginação, i s t o é, c r ia r e m redor dos mesmos "Circunstâncias Propostas" concretas (situações em que o personagem se encontra) e os seus objetivos (necessidades que deverá satisfazer).

E preferível fazer esses exerc í c i os em c o m p a n h i a de alguns amigos, po is esse t raba lho torna-se mais útil q u a n d o s u b m e t i d o à observação , c o n t r o l e e críticas alheias.

1) Imagine u m a fo lha de pape l e m c i m a de sua mesa. Procure v isua­lizá-la n i t i d a m e n t e , em todos os detalhes e, e m seguida, dobre-a em várias direções, executando c o m precisão t odos os m o v i m e n t o s das mãos " c o m o SE F O S S E " uma folha de papel reaL

Quando conseguir u m resu l tado satisfatório, p o r e x e m p l o , q u a n d o chegar a convencer o seu a m i g o de que está r e a l m e n t e l i d a n d o c o m u m pedaço de " p a p e l " , acrescente a esse e x e r c í c i o "Circunstâncias Propostas" e " O b j e t i v o s " do personagem. Por e x e m p l o : u m a m o ç a t raba lha n u m a f a b r i -queta de envelopes ganhando m u i t o p o u c o ; e n q u a n t o d o b r a o papel ela pensa, — e p o r t a n t o visualiza, — a situação de miséria e m que se encont ra a sua família. Ela precisa desse emprego , ela precisa p r o d u z i r mais para ser aumentada.

2) V o c ê acompanha com o o lhar u m c o r t e j o fúnebre . Procure visual izar n i t idamente todos os detalhes: o c a r r o , o c a i x ã o , as coroas , os a compa­nhantes. E m seguida estabeleça as "Circunstâncias P r o p o s t a s " e os " O b j e ­t i vos " . Q u e m era o falecido? Quais e r a m as suas relações c o m ele? Por que veio ver o enterro? O que o i m p e d e de a c o m p a n h a r o e n t e r r o j u n t o aos outros? etc.

3) U m h o m e m examina ruínas de u m t e a t r o q u e ele conhecia antes da demolição. Acrescente as "Circunstâncias P r o p o s t a s " e os " O b j e t i v o s " . Por exemplo u m ex-ator alcoólatra, que , há dez anos , f o i expulso do elenco desse teatro . Ele veio para ver se p o d e r i a t e n t a r de n o v o a sua antiga p r o ­fissão. Ele revive mui tos m o m e n t o s de sua v ida artística.

4) U m a mulher m u i t o feia atende a u m a c h a m a d a telefónica. U m desconhecido que não quer ident i f i car - se marca- lhe u m e n c o n t r o no j a r d i m público da cidade. Ela vai. N o banco do j a r d i m , e n q u a n t o espera, ela p r o ­cura adivinhar qual dos m u i t o s transeuntes seria o seu " n a m o r a d o " . D e repente descobre escondido atrás de u m a r b u s t o , u m rapaz que a observa rindo às gargalhadas. Depois da v o l t a para casa, ela e x a m i n a o seu ros to n o espelho.

A T O R E M É T O D O 47

A imaginação do l e i t o r poderá c r ia r m u i t o s outros temas mais p r ó x i m o s da sua vivência e, p o r t a n t o , mais a t raentes , mais exc i tantes .

E não fique decepc ionado se, apesar de t o d o o es forço , não conseguir o r esu l tado desejado. Lembre-se que v o c ê está apenas no in í c i o da l e i t u r a de u m a matéria c u j o estudo prát ico exige m u i t o t e m p o . Nas páginas seguintes v o c ê encontrará o u t r o s e l ementos d o M é t o d o que , c e r t a m e n t e , lhe f a c i l i ­tarão as experiências.

QUARTO CAPÍTULO

N o nosso último capítulo procuramos estabelecer a s e q u ê n c i a dos ele­mentos d o Método, que conhecemos até agora n o processo de e l a b o r a ç ã o da ação dramática. Assim veri f icamos que, depois de es tabe lecermos as " C i r ­cunstâncias Propostas" (a situação), podemos c o m e ç a r a agir n o s e n t i d o de realizar os objetivos (<zs necessidades) do personagem C O M O S E F O S S E M O S O P R Ó P R I O P E R S O N A G E M .

Constatamos, em seguida, que o " m á g i c o se F O S S E " só n ã o f u n c i o n a quando falha a nossa imaginação, o u seja, a visualização das "Circunstânc ias Propostas" , e que essa visualização t e m que ser sempre a t i v a , e n ã o apenas contempla t iva , o que quer dizer que o a tor deve estar sempre a g i n d o d e n t r o das circunstâncias por ele visualizadas.

E agora surge mais u m p r o b l e m a : como escolher as nossas "visões internas"? Como to rnar mais útil, mais p r o d u t i v a a visual ização das deter ­minadas "Circunstâncias Propostas"?

N o caso do exercício que propusemos no cap í tu lo a n t e r i o r (escrever uma carta à sua namorada) é óbv io que, e m p r i m e i r o lugar , d e v e m o s visua­l izar a "nossa namorada" . Mas o l e i t o r poder ia visualizá-la no seu aspecto geral, c o m o se estivesse o lhando para o r e t r a t o de u m a d e s c o n h e c i d a m u i t o bonita em geral. E m vez disso, deveria p r o c u r a r " v e r " a figura v i v a " d a q u e l a que a gente adora " porque ela é d i ferente de todas as o u t r a s ! " M a s d i f e r e n t e em quê? Não seria, pois, necessário selecionar na sua visual ização aqueles traços que a t o r n a m tão di ferente? Não seria necessário " v ê - l a " e m maiores detalhes para chegar a sentir a sua atrat iv idade?

Se o l e i t o r fez aquele exerc í c i o , deve lembrar-se de que a realização da ação dramática, — escrever a carta , — foi facilitada principalmente pela visualização dos detalhes do seu aspecto físico, bem como dos detalhes do objetivo do autor da carta.

Também deve lembrar-se de que, para rea l i za i a m i n h a p r o p o s t a de visualizar a namorada em maiores detalhes, deve ter prestado muita atenção a este ou àquele detalhe para chegar a sentir o seu e n c a n t o .

Saiba que nesse caso, você usou mais u m e l e m e n t o d o M é t o d o : " A T E N Ç Ã O CÉNICA" .

Na vida real , a palavra " a t e n ç ã o " é usada c o m o a n t ô n i m o de " d i s t r a -ç ã o " , quando, por exemplo , é exigida de u m a pessoa a m a i o r d e d i c a ç ã o ao t raba lho . A uma datilógrafa que fez erros n u m a car ta pode-se d i z e r : "Preste

A T O R E M É T O D O 49

mais a t e n ç ã o q u a n d o escreve, senão v o u desped i - l a " . Gera lmente u m a ameaça dessas é suf ic iente para que a datilógrafa d e i x e de pensar n o seu n a m o r a d o e escreva me lhor .

E x p e r i m e n t e d izer a m e s m a coisa a u m a t o r q u e , p o r estar distraído, representa m a l n u m ensaio: " P r e s t e atenção, senão e u o p o n h o na r u a ! " M e s m o se o a t o r t iver m u i t o m e d o de perder o e m p r e g o , a ameaça, p o r si s ó , p o u c o adiantará. Não será o m e d o que o fará representar m e l h o r . A única poss ib i l idade de ele fazer c o m que a sua atenção v o l t e a f u n c i o n a i é inte-ressar-se pelos objetivos (necessidades) do personagem como se fossem dele próprio.

E p o r isso que para interessar-se p r o f u n d a m e n t e pelos problemas d o personagem o a t o r deve se lec ionar , através da sua A T E N Ç Ã O CÉNICA, detalhes da visualização que possam mais f a c i l m e n t e e x c i t a r a sua imag ina ­ção e assim atraí - lo para a ação.

Q u a n d o a situação cénica, n u m d e t e r m i n a d o m o m e n t o , exigir sensações e e m o ç õ e s m a i s agudas, o a t o r reduzirá sua visualização a detalhes m í n i m o s , aos mais condensados , mais exc i tantes .

Q u a n d o , pe l o contrário, a a ção cénica e x i g i r m a i o r ca lma, maior p o n ­deração d o personagem, o a t o r deverá evocar, na sua visualização o q u a d r o geral das "Circunstâncias P r o p o s t a s " , cu jo e f e i t o e m o c i o n a l será certamente mais a m e n o .

Essa r e d u ç ã o do quadro geral e m apenas alguns de ta lhes e. vice-versa, a ampliação d o c a m p o da visualização, são exercidas n o nosso trabalho através do uso de m a i s u m e lemento d o M é t o d o , d e n o m i n a d o " C Í R C U L O S D E A T E N Ç Ã O "

A ideia desse e lemento ve i e da c omparação c o m certas características da nossa visão física. O o lho h u m a n o abrange u m c a m p o de visão de quase 180 graus. E fácil constatar isso na prática. E s t e n d a m os braços para a f rente e depois l e n t a m e n t e , pouco a p o u c o , a fastem as mãos u m a da out ra . O l h a n ­do sempre p a r a a f rente , p r o c u r e m notar até que m o m e n t o ainda estarão enxergando as mãos. Parando o m o v i m e n t o n o m o m e n t o e m que as suas mãos c o m e ç a r e m a desaparecer de sua v is ta , vocês constatarão que a l i n h a dos braços formará quase u m a l i n h a reta.

Nessa p o s i ç ã o , se qu iserem ver em detalhes as suas mãos , isto é, se prestarem muita atenção às m ã o s , constatarão que quase deixarão de enxer ­gar o que se achar na sua f r e n t e . E, pelo contrár io , se prestarem m u i t a atenção ao q u e se achar na sua f r e n t e , a visão das extremidades quase desaparecerão

Isso nos prova que podemos m a n o b r a r os " C í r c u l o s de A t e n ç ã o " da nossa visão f ísica à nossa v o n t a d e .

O m e s m o acontece c o m os "C í r cu los de A t e n ç ã o " na "Visual ização" , c o m ainda m a i o r vantagem de podermos , c o m isso. quase e l iminar a nossa

50 E U G Ê N I O K U S N E T

visão física. Se você refizer a exper i ênc ia aconselhada n o segundo c a p í t u l o , isto é, o papel de u m cego, terá u m e x e m p l o do uso dos " C í r c u l o s de A t e n ç ã o " quase a e l iminar a visão f ís ica .

Isso também explica a f a c i l i d a d e c o m que o a tor , o l h a n d o para a p l a ­teia, consegue " v e r " (visualizar) o q u e se passa nas "Circunstâncias Propos ­t a s " ; em vez do mar de cabeças dos espectadores, ele vê , p o r e x e m p l o , u m lago c o m cisnes nadando, etc.

O uso dos "Círculos de A t e n ç ã o " , além de sua e n o r m e u t i l i d a d e no trabalho preparatório, muitas vezes salva o ator em cena aber ta .

Durante u m dos espetáculos de " A V i d a Impressa em D ó l a r " , n o t e a t r o Of i c ina aconteceu-me u m a v e r d a d e i r a ca lamidade . U m p o u c o antes d o in í c i o de u m a das mais difíceis cenas d o m e u personagem, q u a n d o e u , sem fa lar , assistia ao diálogo dos ou t ros (o que me ajudava muito como preparação para a minha cena), de repente o u v i , à distância de u m m e t r o , u m a conversa na pr ime i ra f i la da plateia, quase e m v o z a l ta , entre duas pessoas c o m p l e t a ­mente bêbadas. Durante a l g u m t e m p o , apesar de u m grande e s f o r ç o , não consegui desviar a minha atenção p a r a o que se passava em cena. S e n t i - m e tão perdido que por pouco não saí d o p a l c o . Mas naquele m o m e n t o eu v i n o chão os dois sapatos de Ra lph Berger [personagem da peça) de ixados lá pe l o seu intérprete; u m dos sapatos estava v i r a d o de sola para c i m a e era tão gasto que a sola t inha u m furo a b e r t o de u n s 3 centímetros. Pois b e m , naquele m o m e n t o eu me lembrei dos " C í r c u l o s de A t e n ç ã o " , — surg iu esse t e r m o do Método como u m a possível tábua de salvação. E claro que , naque la h o r a , eu me desliguei por u m instante d o m e u p a p e l , pois estava r a c i o c i n a n d o c o m o o ator e não c omo o personagem. M a s , l o g o em seguida, sempre o l h a n d o para o f u r o do sapato, v o l t e i a agir c o m o " o velho J a c ó " . P r i m e i r o p r o c u r e i cert i f icar-me se realmente se t r a t a v a de u m f u r o tão grande, e pense i : " C o m o o R a l p h podia andar c o m esse sapato" n a rua? " E depois eu " v i " mi lhões de rapazes andando c o m sapatos ass im p e l o m u n d o i n t e i r o . T o d a a indignação e revol ta consequentes dessa visão a j u d a r a m - m e a fazer a cena talvez até melhor do que de costume, e é c l a r o q u e eu esqueci c o m p l e t a m e n t e o casal bêbado.

Agora vejam a mecânica desse caso (que, naturalmente, só mais tarde eu pude analisar): p r ime i ro , eu fechei o "Círculo de Atenção" da visão física em t o m o do furo na sola e depo is abri um enorme "Círculo de Atenção" da visualização sobre o m u n d o i n t e i r o .

Mui tos outros exemplos prát i cos d o uso dos " C í r c u l o s de A t e n ç ã o " o l e i t o r poderá encontrar nos e x e r c í c i o s recomendados nos cap í tu los a n t e ­riores e nos que, porventura , a sua imaginação criar.

A "Atenção Cénica" c o m seus " C í r c u l o s de A t e n ç ã o " l e v a m o a t o r ao " C o n t a t o e Comunicação" c o m o a m b i e n t e , isto é, c o m todos os e l ementos do espetáculo.

A T O R E M É T O D O 51

" C o n t a t o e C o m u n i c a ç ã o " é mais u m t e r m o d o M é t o d o . N a v i d a real o c o n t a t o e comunicação c o m o a m b i e n t e são tão p e r m a ­

nentes e i n i n t e r r u p t o s q u a n t o a própria ação , e t u d o q u a n t o dissemos a respe i to da A ç ã o na v i d a rea l é per fe i tamente aplicável a " C o n t a t o e C o m u ­n i c a ç ã o " . N u n c a d e i x a m o s de estar em c o n t a t o c o m o a m b i e n t e na v i d a rea l : através dos nossos c i n c o sent idos , nos c o m u n i c a m o s c o m t u d o o que se e n c o n t r a e m r e d o r de n ó s , t a n t o c o m os seres vivos c o m o c o m as coisas i n a n i m a d a s o u imaginárias. E se na v ida real a f a l t a de c o n t a t o e c o m u n i c a ­ç ã o seria u m a b s u r d o i n c o n c e b í v e l (a não ser que o personagem fosse um cadáver), c o m o p o d e m o s a d m i t i r isso em teatro?

N a v i d a real o a m b i e n t e nunca nos f a l t a , — nós sempre v i v e m o s d e n t r o dele pela v o n t a d e da n a t u r e z a . E m teatro o a m b i e n t e é c r i a d o p e l a vontade dos cr iadores d o e s p e t á c u l o .

Stanis lavsk i dá u m magní f i co e x e m p l o da necessidade de c r ia r ele­m e n t o s do a m b i e n t e , c o m os quais o a tor possa se c o m u n i c a r : " Q u e m real­m e n t e representa o p a p e l de u m rei são os cortesãos de sua c o r t e . U m h o m e m que anda c o m a cabeça orgu lhosamente erguida e n inguém, na sua passagem, lhe presta a m í n i m a atenção, p o d e ser s i m p l e s m e n t e u m i m b e c i l p resunçoso ; mas se, n a sua passagem, t o d o m u n d o se i n c l i n a e m reverência, ele pode ser u m r e i "

Que fazia T o m a s o S a l v i n i quando , já ves t ido e m a q u i l a d o , a n d a v a pelos cenários desertos? E le p r o c u r a v a o c o n t a t o c o m o a m b i e n t e e m q u e , mais t a r d e , i r i a agir c o m o O t e l o .

C o m o vocês s a b e m , n e m todos os atores fazem isso. A l g u n s v i o l a m a ação i n t e r r o m p e n d o o c o n t a t o e a c o m u n i c a ç ã o c o m o a m b i e n t e , uns de l i ­b e r a d a m e n t e , o u t r o s p o r acaso. Há m u i t o s exemplos d isso :

— O a t o r resolve " d e s c a n s a r " em cena p o r q u e não t o m a p a r t e no diá­l ogo . Ele se p e r m i t e , n a q u e l a h o r a , pensar e / Mias coisas p a r t i c u l a r e s , e às vezes age nesse s e n t i d o até f i s i camente : t i para v e r i f i c a r os c o m p r o m i s s o s para o dia l

— O a t o r n ã o p r e s t a atenção às a m a d o r i s m o isso a c o n t e c e p o r q u e o ? c o m a p r ó x i m a fa la de le própr io ; e por varias razões, fica p r e o c u p a d colegas. L e m b r o - m e de u m a a t r i c o m as falas de u m a co lega , (e' sua reação a essas fa las , sua r

ela própria e l i m i n a v a de a' o u t r a pudesse lhe causar .

— O a t o r está p r e personagem, p o r exe

so sua p e q u e n a ager

ouve . No a i l u

". l!r-- X p c i l f l l

O I I U conclusòti N a t u d z r (RJ I ° 7 2 n o

1 c o r . p i i r t d m r n t i t " .

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visão física. Se você refizer a exper i ênc ia aconselhada n o segundo cap í tu l o , isto é, o papel de u m cego, terá u m e x e m p l o d o uso dos " C í r c u l o s de A t e n ç ã o " quase a e l iminar a visão f ís ica .

Isso também explica a f a c i l i d a d e c o m que o ator , o l h a n d o para a p la ­teia, consegue " v e r " (visualizar) o q u e se passa nas "Circunstâncias Propos ­t a s " ; em vez do mar de cabeças dos espectadores, ele vê , p o r e x e m p l o , u m lago com cisnes nadando, etc.

O uso dos "Círculos de A t e n ç ã o " , além de sua e n o r m e u t i l i d a d e no trabalho preparatório, muitas vezes salva o a tor em cena aberta .

Durante u m dos espetáculos de " A V i d a Impressa e m D ó l a r " , n o t e a t r o Of i c ina aconteceu-me u m a v e r d a d e i r a ca lamidade . U m p o u c o antes d o in í c i o de u m a das mais difíceis cenas d o m e u personagem, q u a n d o eu , sem fa lar , assistia ao diálogo dos outros (o que me ajudava muito como preparação para a minha cena), de repente o u v i , à distância de u m m e t r o , u m a conversa na pr ime i ra f i la da plateia, quase e m v o z al ta , entre duas pessoas c o m p l e t a ­mente bêbadas. Durante a l g u m t e m p o , apesar de u m grande e s f o r ç o , não consegui desviar a minha atenção p a r a o que se passava e m cena. Sent i -me tão perdido que por pouco não saí d o p a l c o . Mas naquele m o m e n t o eu v i no chão os dois sapatos de Ra lph Berger (personagem da peça) de ixados lá pe l o seu intérprete: u m dos sapatos estava v i r a d o de sola para c i m a e era tão gasto que a sola t inha u m furo a b e r t o de u n s 3 centímetros. Pois b e m , naquele m o m e n t o eu me lembrei dos " C í r c u l o s de A t e n ç ã o " , — surgiu esse t e r m o do Método como u m a possível tábua de salvação. E claro que , naque la h o r a , eu me desliguei por u m instante d o m e u p a p e l , pois estava r a c i o c i n a n d o c o m o o ator e não c omo o personagem. M a s , l o g o em seguida, sempre o l h a n d o para o f u r o do sapato, v o l t e i a agir c o m o " o velho J a c ó " . P r i m e i r o p r o c u r e i cert i f icar-me se realmente se t r a t a v a de u m furo tão grande , e pense i : " C o m o o Ra lph podia andar c o m esse sapato" n a rua? " E depois eu " v i " milhões de rapazes andando c o m sapatos ass im p e l o m u n d o i n t e i r o . T o d a a indignação e revol ta consequentes dessa visão a j u d a r a m - m e a fazer a cena talvez até melhor do que de costume, e é c l a r o q u e eu esqueci c o m p l e t a m e n t e o casal bêbado.

Agora vejam a mecânica desse caso (que, naturalmente, só mais tarde eu pude analisar): p r ime i ro , eu fechei o "Círculo de Atenção" da visão física em t o r n o do f u r o na sola e depo is abri um enorme "Círculo de Atenção"da visualização sobre o m u n d o i n t e i r o .

Mui tos outros exemplos prát i cos d o uso dos " C í r c u l o s de A t e n ç ã o " o l e i t o r poderá encontrar nos e x e r c í c i o s recomendados nos cap í tu los ante ­riores e nos que, porventura , a sua imaginação criar.

A "Atenção Cénica" c o m seus " C í r c u l o s de A t e n ç ã o " l e v a m o a t o r ao " C o n t a t o e Comunicação" c o m o a m b i e n t e , isto é, c o m todos os e l ementos do espetáculo.

A T O R E M É T O D O 51

" C o n t a t o e C o m u n i c a ç ã o " é mais u m t e r m o do M é t o d o . N a v i d a real o c o n t a t o e comunicação c o m o a m b i e n t e são t ã o p e r m a ­

nentes e i n i n t e r r u p t o s q u a n t o a própria ação , e t u d o q u a n t o dissemos a respe i to da A ç ã o na v i d a rea l é per fe i tamente aplicável a " C o n t a t o e C o m u ­n i c a ç ã o " . N u n c a d e i x a m o s de estar em c o n t a t o c o m o a m b i e n t e na v i d a rea l : através dos nossos c i n c o sent idos , nos c o m u n i c a m o s c o m t u d o o que se e n c o n t r a e m r e d o r de n ó s , t a n t o c o m os seres vivos c o m o c o m as coisas inan imadas o u imaginárias. E se na v ida real a f a l t a de c o n t a t o e c o m u n i c a ­ç ã o seria u m a b s u r d o i n c o n c e b í v e l (a não ser que o personagem fosse um cadáver), c o m o p o d e m o s a d m i t i r isso em teatro?

N a v ida real o a m b i e n t e nunca nos f a l t a , — nós sempre v i v e m o s d e n t r o dele pela v o n t a d e da n a t u r e z a . E m teatro o a m b i e n t e é c r i a d o p e l a vontade dos cr iadores d o e s p e t á c u l o .

Stanis lavski dá u m magní f i co e x e m p l o da necessidade de c r ia r ele­m e n t o s do a m b i e n t e , c o m os quais o ator possa se c o m u n i c a r : " Q u e m real­m e n t e representa o p a p e l de u m rei são os cortesãos de sua c o r t e . U m h o m e m que anda c o m a cabeça orgulhosamente erguida e n inguém, na sua passagem, lhe presta a m í n i m a atenção, p o d e ser s i m p l e s m e n t e u m i m b e c i l presunçoso ; mas se, na sua passagem, t o d o m u n d o se i n c l i n a e m reverência, ele pode ser u m r e i . "

Que fazia T o m a s o S a l v i n i q u a n d o , já vest ido e m a q u i l a d o , a n d a v a pelos cenários desertos? E le p r o c u r a v a o c o n t a t o c o m o a m b i e n t e e m q u e , mais t a r d e , i r i a agir c o m o O t e l o .

C o m o vocês s a b e m , n e m todos os atores fazem isso. A l g u n s v i o l a m a ação i n t e r r o m p e n d o o c o n t a t o e a c o m u n i c a ç ã o c o m o a m b i e n t e , uns de l i ­b e r a d a m e n t e , o u t r o s p o r acaso. Há m u i t o s exemplos disso :

— O a t o r resolve " d e s c a n s a r " em cena p o r q u e não t o m a p a r t e no diá­l ogo . Ele se p e r m i t e , n a q u e l a h o r a , pensar e m suas coisas p a r t i c u l a r e s , e as vezes age nesse s e n t i d o até f i s i camente : t i r a d o bo l so sua p e q u e n a agenda para ver i f i car os c o m p r o m i s s o s para o dia seguinte .

— O a t o r não p r e s t a atenção às falas dos o u t r o s , não as ouve . N o a m a d o r i s m o isso a c o n t e c e p o r q u e o a t o r , e m vez de o u v i r , f i ca p r e o c u p a d o c o m a p r ó x i m a fa la de le própr io ; em t e a t r o p r o f i s s i o n a l , — p o r q u e o ator , por várias razões, fica p r e o c u p a d o c o m a mane i ra de r e p r e s e n t a r de seus colegas. L e m b r o - m e de u m a atr iz cujos lábios se m o v i a m e m s incronização c o m as falas de u m a co lega , (ela sabia de cor o papel da outra). E c laro que sua reação a essas fa las , suas respostas e r a m c o m p l e t a m e n t e falsas, porque ela própria e l i m i n a v a de antemão toda e qua lquer surpresa q u e a fala da o u t r a pudesse lhe causar . .

— O a t o r está p r e o c u p a d o c o m outras coisas f o r a dos p r o b l e m a s d o personagem, p o r e x e m p l o , c o m u m r e f l e t o r apagado que o d e i x o u no

52 E U G Ê N I O K U S N E T

escuro, c o m u m móvel o u , u m o b j e t o f o ra d o l u g a r , etc. É u m a verdade i ra t o r t u r a contracenar c o m u m colega nessas c o n d i ç õ e s ; o seu o lhar oco faz a gente também perder o c o n t a t o c o m o a m b i e n t e .

— O ator procura c o n t a t o c o m a p la te ia p o r va idade , p o r e x e m p l o : u m a atr iz preocupada em ex ib i r os seus dotes f ís icos .

N u n c a é demais repet i r e fr isar que o c o n t a t o e a c o m u n i c a ç ã o c o m a plateia não somente são inevitáveis, c o m o t a m b é m necessários, mas é c laro que nunca devem ser procurados p o r va idade . A i n d a no prefácio eu disse que o maior ob jet ivo do t e a t r o deve ser e x a t a m e n t e a comunicação c o m o espectador.

J u l g o necessário, nesta h o r a , esclarecer de antemão u m a dúvida que f requentemente surge nos meus c o n t a t o s pessoais c o m os a lunos : " Q u e m deve comunicar-se c o m o espectador , o a t o r o u o personagem? " E c laro que só pode ser o ator . O personagem, c o m o u m ser h u m a n o cr iado pelo d r a m a ­t u r g o , vive a sua vida dentro das ' 'Circunstâncias Propos tas " , i n d e p e n d e n t e do espectador, pois este últ imo n o r m a l m e n t e não faz parte das situações e m que vive o personagem, salvo se o a u t o r da o b r a de l iberadamente i n c l u i os espectadores como part i c ipantes da ação dramática. A não ser nesses casos específ icos, o personagem t e m c o n t a t o e c o m u n i c a ç ã o apenas c o m o ambiente e os outros personagens da peça.

Q u a n t o ao ator, ele deve estar p e r m a n e n t e m e n t e em c o n t a t o e c o m u n i ­cação c o m o espectador, c o m o , aliás c o m t o d o s os elementos do m u n d o ob j e t i vo que o cerca.

Então, — perguntará o l e i t o r , — e x i s t e m s i m u l t a n e a m e n t e essas duas pessoas, o ator e o personagem? E se i s t o é verdade , c o m o se processa essa coexistência?

Já dissemos que a " encarnação do p a p e ' - ' não significa substituição mística do ator pelo personagem, pois nesse caso o m u n d o o b j e t i v o d e i x a r i a de ex is t i r para o ator . Ele apenas aceita t o d o s os problemas do personagem, assume todas as suas responsabi l idades, e a d q u i r i n d o a " f é c é n i c a " na rea l i ­dade da sua existência, vive c o m o se fosse c personagem c o m a máxima sinceridade, mas, ao mesmo t e m p o , não perde a capacidade de observar e c r i t i ca r a sua obra artística — o personagem.

Essa coexistência do a tor e d o personagem f o i denominada por Stanis ­lavski c o m o t e rmo " D u a l i d a d e do A t o r " .

Antes de entrar no mérito do m e c a n i s m o desse processo que a t u a l m e n t e é expl icado e c on f i rmado c i e n t i f i c a m e n t e peia psicologia m o d e r n a , gostaria de contar u m caso que aconteceu na m i n h a v i d a de teatro e que d e m o n s t r a c laramente a existência da " D u a l i d a d e do A t o r " .

N o segundo capítulo deste l i v r o eu c o n t e i o que me aconteceu c o m a gravação d? uma cena da peça " A q u e l e que leva b o f e t a d a s " de L . Andréiev,

A T O R E M É T O D O 53

peça que eu fiz c o m o a t o r russo gen ia l I . Pevtsov. A sua interpretação, às vezes, chegava a verdade iros mi lagres da arte dramática: ele conseguia c o n ­vencer não somente os espectadores , mas também os seus colegas de cena. É difícil de acredi tar , mas é v e r d a d e .

N a cena que v o u c o n t a r há u m m o m e n t o quando " A q u e l e " (e o apelido do personagem interpretado por Pevtsov), e m pensamento , chega à dec i são de se matar m a t a n d o t a m b é m C o n s u e l o , a m o ç a que ele ama.

Nessa cena, M a n c i n i (o meu papel), n u m grande m o n ó l o g o , descreve seu br i lhante e rico f u t u r o depo is de conseguir vender a sua filha adotíva, C o n ­suelo. E nesse m o m e n t o q u e , a t ra ído pelo olhar estranho de A q u e l e q u e o lha para o espaço , M a n c i n i i n t e r r o m p e o seu m o n ó l o g o e p e r g u n t a : " V o c ê está rindo? " , e q u a n d o A q u e l e r esponde : " N ã o " , ele c o n t i n u a seus deva­neios.

Pois b e m , q u a n d o eu o l h e i p a r a Pevtsov, não sei o que m e aconteceu : eu v i a m o r t e nos olhos dele . . . F i q u e i tão p e r t u r b a d o que esqueci onde estava, o que devia dizer . . . D e v o ter f e i t o u m a pausa enorme p o r q u e , naque le m o m e n t o , o u v i Pevtsov d izer b a i x o e quase sem mexer os lábios : " V o c ê v a i falar ou não? " Isso m e fez l i t e r a l m e n t e acordar e eu c o n t i n u e i a cena.

Pensem b e m nos detalhes desse f a t o : se eu fiquei tão p e r t u r b a d o é porque nos olhos do a t o r Pevtsov eu v i a v ida real do personagem A q u e l e . Mas, ao l a d o desse personagem v i v o e real , estava o a tor , também v i v o e r e a l , assustado c o m a a t i t u d e de u m j o v e m colega atrapalhado .

Há poucos anos, q u a n d o meus alunos me perguntavam por quais m e i o s poder iam eles chegar a e x p e r i m e n t a r o e fe i to da " D u a l i d a d e do A t o r " , eu só pod ia responder que , u m a vez evidenciada a existência desse e l e m e n t o n o trabalho de m u i t o s atores_, os a l u n o s , que p r o x i m a m e n t e também ser iam atores, p o d e r i a m ter cer teza de q u e . u m d ia , chegariam à sensação da d u a l i ­dade no seu t raba lho e m t e a t r o e que essa sensação lhes p r o p o r c i o n a r i a u m imenso prazer de estar t r i u n f a n d o n a sua arte .

Mas. i n f e l i z m e n t e , n a q u e l a é p o c a eu não podia exp l i car a mecânica d o uso desse e lemento .

Hoje eu estou e m c o n d i ç õ e s de a f i r m a r que a " D u a l i d a d e do A t o r " t e m u m a expl icação científ ica e que nós temos a possibi l idade de cr iar u m m é t o ­do de usar esse e l emento c o n s c i e n t e m e n t e .

A p a r t i r de 1939 na União Soviética os cientistas i n i c i a r a m inúmeras pesquisas c o m o i n t u i t o de invest igar vários aspectos da influência da i m a g i ­nação sobre o c o m p o r t a m e n t o h u m a n o . D u r a n t e m u i t o s anos mi lhares de pessoas de várias camadas sociais f o r a m submetidas a u m a série de exper iên­cias nos laboratórios especial izados .

A descrição dessas exper iênc ias , os resultados o b t i d o s e as conc lusões científicas a esse respeito f o r a m pub l i cados por R. G. N a t a d z e em 1 9 7 2 n o seu l i v r o i n t i t u l a d o " A imaginação c o m o f a t o r do c o m p o r t a m e n t o " .

54 EUGÉNIO K U S N E T

A q u i não há lugar para comentár ios deta lhados sobre o l i v r o . Quero citar e comentar apenas alguns trechos que possam e l u c i d a r os problemas que nos interessam.

E m síntese, o autor demonstra n o seu l i v r o o f u n c i o n a m e n t o da i m a g i ­nação, t a n t o dentro das situações reais (atividades utilitárias), c o m o também dentro das situações imaginárias, i rrea is , fantásticas (atividades artísticas, — o que nos interessa sobremaneira).

Mas em todas as atividades o h o m e m realiza o seu t r a b a l h o através de uma preparação que o autor do l i v r o c h a m a de " A ç ã o I n s t a l a d o r a " , o u simplesmente "Instalação" .

Ele define esse t e r m o c o m o segue: " Instalação é estado de prontidão d o sujeito para a execução de u m a ação adequada, i s t o é, a mob i l i zação coor­denada de toda a sua energia psico-f ísica, que p o s s i b i l i t a a satisfação de uma determinada necessidade dentro de uma determinada situação".

Portanto , a f i m de conseguir a " I n s t a l a ç ã o " (estado de prontidão) para realizar qualquer espécie de t r a b a l h o , — seja ele utilitário o u artístico, — o h o m e m deve usar a sua imaginação n o sent ido de :

1) Estabelecer a situação e m que o su je i t o se e n c o n t r a . 2) F ixar as necessidades que o .su je i to deve satisfazer.

Esse esquema serve t a n t o para o t r a b a l h o de u m l a v r a d o r , c o m o para o de u m artista.

Mas se para u m lavrador a " I n s t a l a ç ã o " lhe p o s s i b i l i t a a realização de uma ação dentro da realidade objetiva (lavrar e semear o seu terreno, vender os seus produtos, etc), u m art i s ta deve conseguir a " Insta lação" no sentido de realizar uma ação proveniente do seu mundo subjetivo (criar uma estátua, compor uma música, representar um papel em teatro, etc).

Por tanto , a diferença entre u m e o o u t r o consiste n a natureza das " s i tuações" e das "necessidades". N o p r i m e i r o elas são reais , n o segundo — imaginárias.

R. G. Natadze dedica-se no seu l i v r o p r i n c i p a l m e n t e ao es tudo do c o m ­p o r t a m e n t o humano dentro de situações imaginárias.

O surgimento da " Ins ta lação " (estado de prontidão) na base de u m a situação imaginária, — diz ele no seu l i v r o , — é c o n d i c i o n a d o não à represen­tação [contrariamente ao que é característico para a psicologia empírica tradicional (a freudiana — E. K.) que entende a ação estimuladora da repre­sentação em si como um fenómeno], mas à A T I T U D E D O S U J E I T O P A R A C O M O R E P R E S E N T A D O .

Por tanto , a " Instalação" d e n t r o de u m a situação imaginária só pode surgir quando o artista toma atitude em relação ao imaginado como se este fosse real.

A T O R E M É T O D O 55

A s s i m , o esquema para a Instalação, nessas cond i ções , é a m p l i a d o c o m o segue:

1) Estabelecer a situação imaginária. 2 ) F i x a r as necessidades imaginárias. 3 ) T o m a r a t i tude at iva para c o m o i m a g i n a d o .

M i l h a r e s de experiências feitas em laboratór ios especializados p r o v a r a m c o m a abso luta evidencia que a Instalação (estado de prontidão) na base de situações imaginárias é possível mesmo quando o sujeito tem certeza da irrealidade do imaginado, e até quando a sua percepção da situação real é contrária à situação imaginária.

N ã o vejo possibi l idade de descrever a q u i os exper imentos fe i tos nos laboratór ios . Seria obr igado a dar m u i t o s e x e m p l o s de vários aspectos da pesquisa, sem o que a expl i cação não seria c l a r a .

Por isso, para e x e m p l i f i c a r esse f e n ó m e n o , p r e f i r o recorrer a u m e x e m ­p l o t i r a d o da prática t e a t r a l .

Procuremos analisar o que acontece c o m u m ator quando ele, d u r a n t e a representação de u m espetáculo , está e m c e n a d ia logando c o m u m o u t r o personagem.

O l h a n d o para a f r e n t e , ele vê q u a t r o c e n t a s pessoas sentadas na p la te ia . E a sua percepção da situação real: ele, o a t o r , representando para os espectadores.

D u r a n t e o diálogo da cena, sempre o l h a n d o para a f rente , ele descreve o que " v ê " o personagem: u m a paisagem c o m bosques, lagos, etc . E a situação imaginária: o personagem fa lando c o r h u m o u t r o sobre o que ele " e s t á v e n d o " .

Não obstante a percepção da situação real (a plateia) que é contrária à s i tuação imaginária (a paisagem), o a tor consegue a " Insta lação" , i s t o é, a " f é c é n i c a " na realidade da situação imaginária.

P o r t a n t o , podemos cons iderar c i e n t i f i c a m e n t e provado que o a t o r pode " m o b i l i z a r t oda a sua energia ps i co f í s i ca " n o s e n t i d o de viver s inceramente as s i tuações em que vive o personagem imaginário c o m o se fosse rea l , en ­q u a n t o ele, o a tor , c o n t i n u a t e n d o certeza de q u e essas situações e o p rópr i o personagem são fictícios, sendo que essa c e r t e z a não pre jud ica a s incer idade da sua vivência em cena. -

C o m o vê o l e i t o r , isso e x p l i c a a " D u a l i d a d e d o A t o r " que Stan is lavsk i , a i n d a antes de 1938 (ano de sua morte), a f i r m a v a , mas não estava e m c o n d i ç õ e s de provar c i e n t i f i c a m e n t e .

De acordo c o m as pesquisas a que nos r e f e r i m o s acima, para conseguir o estado de " D u a l i d a d e do A t o r " são necessárias duas " Instalações" . A p r i ­m e i r a pode ser chamada de " p r o f i s s i o n a l " , o u seja, a " Instalação" que visa o t r a b a l h o prof iss ional d o a tor d e n t r o da rea l idade ob je t iva .

56 EUGÊNIO K U S N E T

O esquema para essa " Ins ta lação " seria:

1 ) Situação: sou a tor do t e a t r o t a l , estou fazendo o t a l p a p e l , e t c . 2 ) Necessidade: conseguir o m e l h o r r esu l tado poss íve l c o m o m e u

t r a b a l h o .

O l e i t o r poderá n o t a r q u e esse esquema é i g u a l ao q u e c i t a m o s , p o r e x e m p l o , para o t raba lho de u m lavrador . N o s dois casos consegue^e a mobi l ização das energias psicofísicas do indiv íduo para r e a l i z a r o seu t r a b a ­l h o prof iss ional c o m o m á x i m o p r o v e i t o possível , d e n t r o da r e a l i d a d e ob j e t i va .

O fa tor mais i m p o r t a n t e dessa " i n s t a l a ç ã o " é a presença de um grande prazer em alcançar o resultado máximo no seu trabalho (no caso do ator "criar o personagem " ) .

U m a vez conseguida a p r i m e i r a " Insta lação" e c o n s t a t a d a a presença d o prazer de criação, o ator " n ã o pensa mais n i s so " , - ele d i r i g e t o d a a sua imaginação no sent ido de conseguir a segunda " I n s t a l a ç ã o " , a d o perso ­nagem que é o p r o d u t o do seu m u n d o sub je t ivo .

O esquema da segunda " Insta lação" , p o r t a n t o , deve ser c o m o segue:

1) Estabelecer a situação do personagem.

2) F i x a r as necessidades d o personagem.

3 ) T o m a r a t i tude at iva , i s t o é, agir no lugar d o personagem c o m o se ele fosse real .

Acontece que, — sempre de acordo c o m as pesquisas r ea l i zadas , — a p r i m e i r a "Instalação" (a da realidade objetiva) f o r m a u m a espéc ie de f u n d o para a projeção da segunda e, embora i n c o n s c i e n t e m e n t e , i n f l u i s obre o c o m p o r t a m e n t o do ator em cena e n q u a n t o ele age no lugar d o p e r s o n a g e m c o m o se este fosse real.

E m u i t o esclarecedora a explicação do c o m p a n h e i r o de K . S. S t a n i s ­l a v s k i V . I . Nemiróvitch-Dântchenko^sobre o c o n c e i t o " D u a l i d a d e d o A t o r " .

" A diferença entre as e m o ç õ e s na vida real e as e m o ç õ e s cénicas c o n ­siste no fato de que, q u a n d o na vida real , u m a pessoa é v í t ima de u m a grande desgraça, ela só sofre e chora , mas o a t o r e m cena, q u a n t o mais sincera e pro fundamente vive a desgraça do personagem, t a n t o mais sente a alegria de sua criação. E essa alegria, de mane i ra a l g u m a , d i m i n u e a i n t e n s i ­dade e a paixão de sua desgraça".

E m b o r a essa explicação t e n h a sido dada m u i t o s anos antes da p r i m e i r a publicação dos estudos sobre a " Insta lação" , p o d e r í a m o s d i z e r q u e , n o p r o ­n u n c i a m e n t o de V . I . Nemiróvitch-Dântchenko, " o prazer de c r ia ção do a t o r " significaria hoje o resultado da " P r i m e i r a Insta lação" q u e f o r m a u m a espécie de f u n d o sobre o q u a l o ator p r o j e t a o r e s u l t a d o da " S e g u n d a Instalação" — os so fr imentos d o personagem.

A T O R E M É T O D O 57

É p o r isso q u e o a tor , e m b o r a às vezes chegue a l e v a r as emoções d o personagem às últimas consequências , n u n c a perde o c o n t a t o c o m a rea l i ­dade o b j e t i v a (palco, atores, cenários e principalmente, espectadores) e não precisa ter m e d o de perder o c o n t r o l e da sua ação cénica .

G r a f i c a m e n t e o t raba lho d o a t o r c o m as duas " I n s t a l a ç õ e s " apresenta-se da seguinte m a n e i r a :

A Ç Ã O I N S T A L A D O R A E M T E A T R O

I.» Instalação:

S I T U A Ç Ã O

A R E A L I D A D E (O trabalho do ator)

A T I T U D E A T I V A (do atori

N E C E S S I D A D E

I N S T A L A Ç Ã O

Sobre o f u n d o geral desta " I n s t a l a ç ã o " d i r i g i d a no s e n t i d o da real idade (palco, colegas, cenário, espectadores, etc.) pro jeta-se a " A ç ã o I n s t a l a d o r a " n o s e n t i d o d o imaginário (aruação d o personagem) .

II.» Instalação:

0 I M A G I N Á R I O (a vida do personagem)

S I T U A Ç Ã O N E C E S S I D A D E

A T I T U D E A T I V A (do ator como se fosse o

personagem) <

N I T I D E Z D A S V I S U A L I Z A Ç Õ E S 1 A T I V I D A D E

M O T O R A

A T I V I D A D E I N T E G R A L (ação psicofisica)

1

I N S T A L A Ç Ã O

i

A Ç Ã O CÉNICA

58 EUGÉNIO K U S N E T

A q u i convém esclarecer alguns deta lhes i m p o r t a n t e s d o t r a b a l h o de "Instalação" . Para t a n t o , c i t o a b a i x o alguns trechos do r e s u m o d o l i v r o " Imaginação c o m o fator do c o m p o r t a m e n t o " , de R. G. Nastadze.

1) A N I T I D E Z das imagens d o representado (imaginado — E. K.), e m ­bora não seja condição indispensável para a elaboração da " I n s t a l a ç ã o " cor ­respondente, sempre ajuda ao s u r g i m e n t o da mesma, visto que c o n t r i b u i n a elaboração daquela at i tude at iva que e s t i m u l a o seu s u r g i m e n t o (Lembrem-se dos "Círculos de Atenção" do Método — E. AC.).

2 ) U m papel considerável, t a n t o na criação da n i t idez das imagens d o representado, c o m o também na e laboração da a t i t u d e at iva para c o m o imaginado , representa A A T I V I D A D E M O T O R A do su je i t o , c o r r e s p o n d e n t e ao imaginário (Lembrem-se da interdependência da "ação interior"e "Ação exterior" — E. K.)

3) A capacidade de e laborar " I n s t a l a ç õ e s " na base de imaginação é E X E R C I T Á V E L .

E m resultado de exercícios s istemáticos nesse sent ido f o i c o n s t a t a d o que:

P r i m e i r o : Todas as pessoas (adultas, de profissões intelectuais) s u b m e ­tidas às experiências em a m b i e n t e de laboratório , conseguem e laborar " Instalações" na base de imaginação e s t a n d o cientes da i r rea l idade da s i t u a ­ção imaginária.

Segundo: Os exercícios f a c i l i t a m cons iderave lmente a e laboração de "Instalações" , d i m i n u e m o es forço necessário para a o b t e n ç ã o da a t i t u d e ativa específica em relação ao representado (imaginado - E. K.) e

Ter ce i r o : A u m e n t a m a estabi l idade das " Insta lações" e s t imulados pela imaginação.

(Este último trecho confirma o que sempre afirmamos quanto à neces­sidade, tanto nas escolas como nos teatros, de permanentes exercícios de imaginação. — E. K.)

E evidente que. apesar da aparente s i m p l i c i d a d e , o uso das duas " I n s t a ­lações" s imultaneamente , representa grandes di f iculdades para atores p o u c o experientes.

Não se apressem, pois, a executar a prática desse e l emento . N o t e m que os elementos do Método , que até agora conhecemos, c o i n c i d e m c o m o signif icado dos detalhes do processo da " A ç ã o I n s t a l a d o r a " .

A psicologia moderna p r a t i c a m e n t e c o n f i r m o u o M é t o d o de Stanis­lavski , c o r r i g indo apenas a sua t e r m i n o l o g i a : o que Stanis lavski chamava de 'Circunstâncias Propostas" , na l i n g u a g e m dos psicólogos é c h a m a d o de

' "Situação" ; o t e r m o " o b j e t i v o d o p e r s o n a g e m " , na psicologia é "necessi-

A T O R E MÉTODO 59

dade" , " o mágico SE F O S S E " é " A t i t u d e A t i v a " na ps ico logia e finalmente " a Fé C é n i c a " de Stan is lavsk i é equivalente à " Ins ta lação" .

A o conhecer mais t a r d e ou t ros e lementos d o M é t o d o t e n t a r e m o s sempre ligá-los à ide ia de " I n s t a l a ç ã o " , chegando assim, p o u c o a p o u c o , ao uso consc iente do M é t o d o de Stanis lavski sob a l u z da ciência m o d e r n a .

Mas v o l t e m o s aos p r o b l e m a s de " C o n t a t o e C o m u n i c a ç ã o " . Os meios de c o m u n i c a ç ã o p o d e m ser t eo r i camente d i v i d i d o s e m f í s i cos

e m e n t a i s . D i g o t e o r i c a m e n t e p o r q u e , na prática, não e x i s t e m , — n e m na vida real e n e m em t e a t r o , — meios de comunicação p u r a m e n t e f ís icos (por exemplo, um gesto) sem q u e o indivíduo (o ator) s i m u l t a n e a m e n t e n ã o use meios m e n t a i s (um pensamento, uma emoção).

O que existe é m a i o r o u m e n o r aprox imação do ind iv íduo o r a dos meios quase p u r a m e n t e f í s i cos , o ra dos quase p u r a m e n t e m e n t a i s .

A predominânc ia destes o u daqueles meios de c o m u n i c a ç ã o em t e a t r o é d i tada não pe l o est i lo e s p e c í f i c o da obra dramatúrgica, — c o n v e n c i o n a l o u realista, — c o m o , às vezes, pensam nossos homens de t e a t r o , e s i m pela lógica das "Circunstâncias P r o p o s t a s " da peça em questão : nas peças de Brecht o u D u r r e n m a t t f r e q u e n t e m e n t e encontramos c o m u n i c a ç ã o a b e r t a e d ireta c o m o espectador , o q u e leva o ator à necessidade de usar, de p r e f e ­rência, me ios f ís icos , ao passo que o teatro de T c h e k o v exige d o a t o r a máxima parc imônia na exter ior i zação da ação do personagem.

Mas n u n c a , e m h ipó tese a lguma, u m m e i o de c o m u n i c a ç ã o p o d e r i a exc lu i r o o u t r o . Os adeptos de Brecht . seus alunos e c o n t i n u a d o r e s d a sua obra (como, aliás, ele próprio no fim de sua vida), não negaram a necessi­dade de e m o ç õ e s sinceras n o t r a b a l h o de ator , b e m como os atuais r epresen ­tantes e adeptos do r e a l i s m o e m teatro não negam a necessidade da c o m u n i ­cação consc iente do a t o r c o m o espectador.

P o r t a n t o , o a tor m o d e r n o que representa papéis em todas as espécies de obras dramatúrgicas deve t e r a capacidade de usar s i m u l t a n e a m e n t e os dois t ipos de c o m u n i c a ç ã o : a quase puramente e m o c i o n a l d e n t r o de u m a a p a r e n ­te i n a t i v i d a d e física. — o u seja, na i m o b i l i d a d e , - e a quase p u r a m e n t e física, — o u seja, a grande m e s t r i a no uso de t o d o o seu apare lho f í s i c o , — mas n u n c a desprov ida da v i d a i n t e r i o r do personagem.

A existência dos me ios f ís icos de comunicação é ev idente para o espec­t a d o r : gesto, palavra , a t i t u d e c o r p o r a l , mímica , mas a existência dos m e i o s menta is , esp ir i tuais o e spec tador só pode constatá-los pe l o e f e i t o q u e eles lhe causam.

Há m u i t o s exemplos d i sso : u m ator que faz u m a cena de costas p a r a a plateia , e m abso luta i m o b i l i d a d e e que apesar disso nos t r a n s m i t e c o m grande in tens idade sua v i d a i n t e r i o r ; ou, em c i n e m a . - " c l o s e - u p " d e u m

6 0 EUGÉNIO K U S N E T

rosto comple tamente imóvel ; o u , f i n a l m e n t e , os o l h o s d o a tor I . Pevtsov na cena que eu conte i neste cap í tu l o para d e m o n s t r a r o que é a " D u a l i d a d e d o A t o r " .

O efeito desse estado p s í q u i c o d o a t o r sobre o espectador , Stanis lavsk i chamava de I R R A D I A Ç Ã O . "Parece que dos o l h o s e de t o d o o c o r p o d o ator , — dizia ele, — sai u m a espécie de ténues fios l u m i n o s o s que a t i n g e m o espectador"-

A t u a l m e n t e a psicologia e x p l i c a esse e f e i t o p e l o uso c o r re to da " I n s t a ­lação" .

N o tocante ao " p r e e n c h i m e n t o das pausas " (termo de Stanislavski — E. AL) — escreve R. G . Natadze , — " d e v e m o s d i z e r que , quando o a t o r consegue elaborar u m a " I n s t a l a ç ã o " adequada , ele está e m cond ições de conseguir nuances de expressão do r o s t o e d o c o r p o tais que suas e m o ç õ e s at ingem e c o m o v e m o espectador, e m b o r a o p r ó p r i o a t o r fique parado e m silêncio e sem movimentos percept íveis . E, p e l o c ont rár i o , temos exemplos de que u m ator não consegue " p r e e n c h e r a p a u s a " até que não e labore a " Instalação" referente à situação imaginária q u e deva p r o d u z i r o c o r respon ­dente estado psíquico do p e r s o n a g e m " .

Ass im podemos encarar c o m c e r t o o t i m i s m o , a poss ib i l idade de chegar­mos através de u m trabalho rac i ona l ao m e n o s a u m a pequena parte d a q u i l o que a natureza t e m de mais p r o f u n d o e prec ioso p a r a nós atores — o nosso subconsciente.

A comunicação emoc iona l e m seu estado p u r o ex is te na natureza.

N u m a palestra i n t i t u l a d a " C o m u n i c a ç ã o E m o c i o n a l " que o D r . Bernar ­do Blay fez na Fundação A r m a n d o Alvares Penteado o nosso grande p s i q u i a ­tra deu aos seus ouvintes exemplos dessa espécie de c o m u n i c a ç ã o dos quais o mais c laro f o i o das relações de u m a mãe c o m seu f i l h o recém-nascido. Através do choro da criança, que é o seu ú n i c o m e i o de comunicação f ís ica, a mãe estabelece c o m precisão o seu d iagnós t i co : d o r de barr iga , f o m e , d o r de o u v i d o , etc. e prat i camente nunca erra .

Mas o mais impress ionante f o i a descr ição de u m a experiência que o D r . Blay t i n h a fe i to c o m u m a pac iente s u r d o - m u d a , d u r a n t e u m p e r í o d o de pesquisas que ele empreendeu naquele c a m p o . E m b o r a tenha conhec ido o al fabeto de surdo-mudos, o que lhe p e r m i t i u c o m u n i c a r - s e fac i lmente c o m a sua paciente, n u m d e t e r m i n a d o e n c o n t r o ela recusou-se de usar o a l fabeto e ficou del iberadamente de costas para o D r . B l a y . A p e s a r de m u i t a insistência sua, a moça não v o l t o u à c o m u n i c a ç ã o n o r m a l e c o n t i n u o u de costas. C o n ­f o rmado , o Dr . Blay ficou em si lêncio , o l h a n d o para sua nuca e esperando o que acontecesse.

A T O R E M É T O D O 6 1

Pois b e m , o D r . B l a y , u m autênt i co c i e n t i s t a , c o n t o u u m a coisa que c o n t a d a p o r u m a o u t r a pessoa p o d e r i a parecer sonho de u m poe ta : naquele si lêncio a sua paciente " c o n t o u - l h e " t o d a a tragédia da sua v tda de s u r d o -m u d a c o m o se estivesse n a r r a n d o c o m palavras .

L e m b r o - m e da p r i m e i r a impressão q u e isso me causou. E u pensei : Se eu possuísse a décima parte da capac idade d a q u e l a moça de se c o m u n i c a r e m o ­c i o n a l m e n t e , eu seria o m a i o r a t o r d o m u n d o .

64 EUGÊNIO K U S N E T

E L A — Agora que te o u v i , ouve-me t a m b é m . Fecha todas as p o r t a s , prega-as, calafeta-as, rodeia-me de todas as cautelas , q u e eu he i de achar u m a ocasião para fug i r !

E L E - T u ? E L A - E u ! E L E - A h ! E L A - S i m ! E L E - Daqui? E L A - Eu . . . E L E - Ha - ha! E L A - I r e i !

Q u e m assistiu a esse espetáculo deve se l e m b r a r da precisão de t i r o s de metralhadora , c om que esse diálogo f o i p r o n u n c i a d o , porque os atores , — não Fernanda e Sérgio, e s im os atores do t e m p o de M a r t i n s Pena, c o n f o r m e iá comentamos no segundo c a p í t u l o , — esses atores só estavam preocupados em mostrar a sua dicção e a sua voz i m p o s t a d a , e x c l u i n d o por c o m p l e t o toda a passibilidade de se o u v i r e m u m a o u t r o . O resu l tado f o i u m a e s t r o n ­dosa gargalhada na plateia.

Mas para sentir o e fe i to do contrár io , i s t o é , o e f e i t o d o uso da " V i s u a ­lização das Falas" , gostaria que meus le i tores q u e tivessem a sorte de ter assistido ao f i lme " A n a K a r e n i n a " c o m G r e t a G a r b o se lembrassem de u m a cena em que o príncipe V r o n s k i , depois de chegar à conclusão que devia r omper c o m A n a , comunica - lhe que se a l i s tou n u m r e g i m e n t o para l u t a r na guerra da Sérvia contra a T u r q u i a . O diálogo c o m e ç a assim!

V R O N S K I — A n i a . . . th i s l e t t e r i s n ' t f r o m m y m o t h e r . A N N A - No? V R O N S K I - T h a t is f r o m Iashv in . A N N A - Well? V R O N S K I - Wel l , I . . . I 've been w a n t i n g t o t e l l y o u for some t i m e .

I . . . promissed Iashvin to . . . i n l i s t i n a w a r . A N N A - What war? As duas primeiras palavras que A n a p r o n u n c i a , " N o " ? e " W e l l " ? são

de quase absoluta indiferença, p o r q u e da visualização das falas de V r o n s k i : " A carta não é da m i n h a m ã e " e " E l a é de I a s h v i n " , ela não pode e x t r a i r nada que a possa i n q u i e t a r . Mas q u a n d o ela ouve a frase: " E u p r o m e t i a Iashvin me alistar na g u e r r a " e imag ina [visualiza] o seu s igni f i cado , o e fe i to é indescritível. Ela não gr i ta q u a n d o p e r g u n t a : " Q u e guerra? " , c o n ­t i n u a imóvel, mas a sua repent ina angústia que nós sent imos , i n c l u i e m o ç õ e s tão complexas que u m simples espectador f ica a t u r d i d o e esmagado p o r elas, e u m h o m e m de teatro levaria m u i t o t e m p o para analisar u m a pequena parte da provável visualização da a t r i z .

A T O R E M É T O D O 65

O l e i t o r talvez p e r g u n t e : " M a s c o m o é que se pode saber se isso f o i resul tado da visualização das falas de V r o n s k i ? " Rea lmente não t e n h o n e n h u m e lemento para a f i r m a r isso, s ó G r e t a Garbo poder ia dizer-nos a verdade. Mas que i m p o r t a ? Se f o i apenas resultado de sua genial intuição , não nos adianta — c o n f o r m e j á t i v e m o s ocasião de c o m e n t a r , — p r o c u r a r analisar a mecânica de seu gén io . Já sabemos que isso é impossível . Mas se supusermos que a visualização tivesse f e i t o parte do seu t r a b a l h o (e é o que sinceramente suponho), então b a s t a r i a anal isarmos, mesmo que fosse u m a pequena parte das imagens prováveis dessa visualização, para que pudésse­mos t i r a r disso u m e n o r m e p r o v e i t o , po is através do uso dessas imagens poder íamos chegar a u m a p e q u e n a p a r t e d o resultado que ela, Gre ta G a r b o , conseguiu, o que para nós já seria m u i t o .

Através de constantes e x e r c í c i o s o a t o r adquire a capacidade de o u v i r em cena, isto é, v isual izar as falas a t i v a m e n t e , agindo e reagindo de a c o r d o c o m o e fe i to da visualização.

E m u i t o i m p o r t a n t e d u r a n t e esses exerc íc ios não perder de vista que para t o rnar a "visual ização das f a l a s " r e a l m e n t e ativa é necessário comentar do ponto de vista do personagem as imagens resultantes da "v isual ização" . E u ins is to : C u i d a d o ! Não as c o m e n t e d o p o n t o de vista d o a tor que i n t e r ­preta o papel. Essa confusão acontece f r e q u e n t e m e n t e .

Vamos a u m e x e m p l o . Se você quiser estudar a h i p o t é t i c a visualização das falas de V r o n s k i ,

usada por Greta G a r b o no pape l de A n a Karen ina , você deverá chegar à conclusão que para conseguir o e f e i t o desejado a visualização deve p r o d u z i r na mente da atr iz imagens nítidas da guerra , de u m d e t e r m i n a d o c o m b a t e e, f i n a l m e n t e , do m o m e n t o e x a t o da m o r t e do príncipe ' jogo dos "C írcu los de A t e n ç ã o " } . São essas as imagens q u e d e v e m p r o d u z i r o c h o q u e emoc iona l e consequentemente o estado de angústia d o personagem.

Mas você não poderá d e i x a r de i m a g i n a r também os pensamentos de A n a diante das imagens e m ques tão . Eles ser iam, por e x e m p l o : " G u e r r a ? Ele vai à guerra? Mas . . . então ele v a i m o r r e r ! E eu? C o m o poderei v iver eu? . . . " Esses pensamentos c e r t a m e n t e a u m e n t a r i a m a angústia de A n a , por serem exc lus ivamente seus, e não de G r e t a Garbo .

Mas se — para m a i o r c lareza d o e x e m p l o , — pudéssemos imaginar u m absurdo , em vez daqueles p e n s a m e n t o s e G r e t a Garbo pensasse: " E x c e l e n t e visualização! V o u fazer essa cena m a g n i f i c a m e n t e b e m ! " , q u a l seria o resu l ­tado?

E m resumo, c o m o uso da "v i sua l i zação das falas" o a tor e l imina m u i t a s di f iculdades no seu t r a b a l h o preparatór io — seja nos ensaios, seja no seu t raba lho i n d i v i d u a l e m casa, — b e m c o m o consegue evitar d i f i cu ldades que possam surgir e m cena aberta . N ã o é r a r o acontecer que o ator perca, p o r u m a ou o u t r a razão, o c o n t a t o c o m a ação do personagem. Há varias m a n e i -

6 6 EUGÊNIO K U S N E T

ras de remediar essa situação e, en t re elas, a que c i t a m o s há p o u c o — os "Círcu los de Atenção" , — mas q u a n d o isso acontece d u r a n t e u m diálogo, é mais fácil recorrer à "Visualização das Fa las " .

A q u i convém abrir parênteses para esclarecer u m a possível dúvida q u a n t o ao uso consciente dos e lementos do M é t o d o p e l o a t o r n o correr de u m espetáculo, quando ele se e n c o n t r a em cena a b e r t a , a g i n d o c o m o o personagem.

N o r m a l m e n t e , de i m e d i a t o , isso só pode t razer resu l tados negativos. O ator que faz, por exemplo , o pape l de Bessêmenov e m " O s Pequenos B u r ­gueses" e que, durante o espetáculo , n u m a cena do p r i m e i r o a to , chega a pensar: " A g o r a vou usar a visualização da fala de T ê t e r e v ! " , o u " A g o r a seria útil fechar o Círculo de Atenção sobre o sorr iso de T ê t e r e v ! " , esse ator nunca poderá agir em seguida como o personagem, p o r q u e o pensamento é do ator. Ele precisaria de u m a pausa para assimilar o e f e i t o do uso desse e lemento para recomeçar a agir c o m o o personagem.

E m vez daqueles pensamentos, depo is de o u v i r a fa la de Têterev, ele deve pensar: "Esse m a l t r a p i l h o se atreve a fa lar assim c o m m i n h a m u ­lher ! . . . A h , agora ele vai v e r ! " O u então , p res tando a m á x i m a atenção à expressão do rosto de Têterev que s o r r i , pensar: " A h , está a c h a n d o graça? M u i t o b e m ! Agora você vai é c h o r a r ! "

Essa confusão geralmente acontece c o m os atores que se d e d i c a m m u i t o ao estudo do Método , mas a inda não têm prática s u f i c i e n t e para usá-lo corretamente .

C o m permissão do meu a m i g o , A b r ã o Fare , q u e r o c o n t a r o que lhe aconteceu quase no início de sua carre i ra , q u a n d o ele faz ia o pape l de u m camponês nordestino na peça de G u a r n i e r i " O F i l h o d o C ã o " . Ele estava m u i t o preocupado com a realização de u m a cena e m que o personagem t e m medo de descobrir que a criança recém-nascida seja u m " f i l h o do C ã o " porque t e m pés de bode. Pois b e m , Abrão me c o n t o u q u e , ao levantar o pan inho que cobria a cestinha da criança, ele chegou a pensar e m cena durante o espetáculo: " A g o r a eu prec iso v isual izar os pés da c r iança ! " (por­que é claro que não havia nenhuma criança dentro da cesta). E evidente que c o m esse pensamento o ator c o r t o u a sua ligação c o m a ação d o personagem.

Os elementos do Método d e v e m ser usados c o n s c i e n t e m e n t e apenas durante o trabalho preparatório, nos ensaios, no t r a b a l h o e m casa.

Quando digo que o uso desses e lementos e m cena a b e r t a pode salvar o ator , é porque naquele m o m e n t o ele se sente p e r d i d o de q u a l q u e r maneira . Se, naquelas condições, ele passa a agir c o m o a t o r , p e n s a n d o : " V o u usar a Visualização das Falas" , não causa c o m isso m a l m a i o r . Basta que consiga realmente interessar-se pelas falas ouvidas para que a a ç ã o perdida seja restabelecida.

A T O R E M É T O D O 67

A l é m de todos os bene f í c i o s que nos t r a z o uso dessa simples l e i da fala h u m a n a , nós, atores , ganhamos m u i t o e s t u d a n d o outras par t i cu lar idades dessa f o r m a de ação que é a F A L A .

O que i m p o r t a na nossa ar te não é s o m e n t e o sent ido das palavras que p r o n u n c i a m o s em cena. Os sons, a c o m b i n a ç ã o dos sons que f o r m a m a p a l a v r a também são de e n o r m e importância n o nosso t r a b a l h o : q u a n t o mais express iva fôr a palavra pelas características pecul iares de seus sons, t a n t o mais contribuirá ela para expressividade da a ç ã o .

V o c ê s conhecem a o r i g e m da l i n g u a g e m h u m a n a ? O h o m e m p r i m i t i v o c o m e ç o u por i m i t a r os sons da natureza . I m a g i n o que , para avisar ao o u t r o q u e u m t e m p o r a l estava se a p r o x i m a n d o , ele i m i t a v a os seus r u í d o s : b - r - r - r - . . . t - r - r - r - . . ., e q u a n d o a t e m p e s t a d e passava, ele i n f o r m a v a : Ss-s-s- . . . Ch-ch-ch . . . Essas imitações d e r a m or igem à f o rmação das p r i m e i r a s palavras que n a t u r a l m e n t e c o n s e r v a r a m os mesmos sons o n o m a -t o p a i c o s , c o m o por e x e m p l o , " t r o v ã o " e " s i l ê n c i o " . N a passagem de u m i d i o m a para o o u t r o , as palavras s o f r i a m alterações na sua e s t r u t u r a , mas g e r a l m e n t e conservavam o seu aspecto o n o m a t o p a i c o : trovão, d o n n e r (alemão), thunder (inglês), g r o m (russo). A l e t r a " r " está presente e m todas elas.

E fácil constatar isso c o m p a r a n d o as duas línguas tão distantes pela sua o r i g e m , c o m o o russo e o português.

Grosnar = Kárcat, em russo T r o m b e t a — Trubá, e m russo T a m b o r = Barabán, e m russo

N o t e m que na f o rmação das duas últ imas palavras, t a n t o em português c o m o em russo, e n t r a m , além do " r " , os sons " b " , " m " e " n " que através de sua essência o n o m a t o p a i c a , — " t r o m " , " t a m " , " b a n " , — dão u m a ideia b a s t a n t e clara do s ign i f i cado das palavras.

A s vogais também possuem sua express iv idade pecul iar . V e j a m c o m o esses sons das vogais e m si dão características aos nomes dos i n s t r u m e n t o s m u s i c a i s : tuba (som bem baixo), t r o m b o n e (som menos baixo), cas tanho la (som mais alto) c í m b a l o (som agudo). E m russo o e fe i to é o mesmo p o r q u e os n o m e s desses i n s t r u m e n t o s t êm as mesmas raízes lat inas .

E interessante c o m p a r a r o e f e i t o do s o m " U " nas duas línguas:

T u r v o = mútniy , e m russo Crepúsculo = s u m r a k , e m russo L u t o = tráur, e m russo

E curioso que, para o s i gn i f i cado " n u v e m " , em russo há duas palavras: tútcha — nuvem escura, e ó b l a k o — n u v e m b r a n c a . E u tenho a impressão de que o próprio som da p r i m e i r a tútcha, é mais escuro do que o da segunda, ó b l a k o .

6 8 EUGÊNIO K U S N E T

É c laro que nem todas as palavras t e m or igem o n o m a t o p a i c a , n e m todas têm essa expressividade sonora. O i m p o r t a n t e para nós é saber que esse v a l o r espec í f i co da sonoridade da palavra existe e que ele é de m u i t a u t i l i d a d e na nossa ar te .

O ator que t e m por hábito cu idar de t u d o que possa ser útil a o seu t r a b a l h o deve acostumar-se a apreciar os sons das palavras, usar esse v a l o r sem es forço , por simples hábi to ; deve aprender a amar a sua l íngua e a p r e ­ciar a sua expressividade que e m u l t i m a análise sempre consiste na h a r m o n i a entre o s ignif icado da palavra e o seu valor s onoro .

C o m o são felizes os atores que sabem sent ir e e n c o n t r a r n o t e x t o sons que lhes a judem a interpretá-lo. Claire B l o o m e m " R o m e u e J u l i e t a " , ence­nado pe lo teatro " O l d V i c " , deu exemplo disso na " cena da sacada" . O trecho a que me re f i ro é o seguinte :

M y b o u n t y is as boundless as the sea; M y love is deep; the more I give t o thee, T h e more I have. for b o t h are i n f i n i t . Esse " i n f i n i t " ela o p r o n u n c i a c o m c inco " e n e s " : " i n n n n n f i n i t . . . " o

que c o m u n i c a à fala realmente u m sentido de m o v i m e n t o para o i n f i n i t o , para a eternidade.

H o u v e mui tos exemplos disso também, no exce lente e s p e t á c u l o "D iár i o de u m L o u c o " de N. G ó g o l , cr iado por Rubens Correa , na d i reção de Ivan de A l b u q u e r q u e . Gostar ia de c i tar u m dos exemplos que m e i m p r e s ­s ionou part i cu larmente .

Q u a n d o Poprístchin, o l o u c o , c o n t a que no escritório da repart i ção ele acabou assinando u m d o c u m e n t o c o m o n o m e de " F e r r r n a n d o O i t a v o " , esses três erres que o ator pôs na pronúncia da palavra a j u d a r a m - n o m u i t o no p r o b l e m a de t r a n s m i t i r a f i r m e z a de caráter do " n o v o m o n a r c a espa­n h o l " , personagem em que o p o b r e funcionário púb l i co t r a n s f o r m o u - s e na sua l oucura . 0 maravi lhoso o r g u l h o que nós v i m o s no ros to d o " r e i " f o i sal ientado ainda mais pela sonor idade da palavra " F e r r r n a n d o " .

E n t r e t a n t o , quando n u m o u t r o t recho , depois de espancado n o h o s ­p í c i o , ele responde ao " G r a n d e I n q u i s i d o r " [que na realidade é um funcio­nário do hospício): " M a s eu sou Fernando O i t a v o ! . . . " , o ú n i c o erre quase imperceptível , contrastando c o m a cena a n t e r i o r , fez-nos s e n t i r t o d a a h u m i l d a d e e a submissão do p o b r e personagem.

Há pouco eu disse que. o a t o r deve acostumar-se a usar o v a l o r s o n o r o do t e x t o sem esforço , por hábi to , i n s t i n t i v a m e n t e . Isso fez l e m b r a r - m e de u m caso que aconteceu c o m a conhec ida atr iz polonesa S tep inska ,que t r a b a ­l h o u n o elenco de "Os C o m e d i a n t e s " sob a direção de Z i e m b i n s k i e m co la ­boração adminis t rat iva c o m B r u t u s Pedreira.

D u r a n t e u m ensaio ela p r o n u n c i o u : " E as arróres e m f l o r . . . " B r u t u s c o r r i g i u : " A r v o r e s " . A atr iz o l h o u f r iamente e disse: " N ã o senhor , a r v o r e s ! "

A T O R E M É T O D O 69

B r u t u s i n s i s t i u : " S t e p i n s k a , eu s o u bras i le i ro e v o c ê m a l f a l a português. E u sei c o m o se deve p r o n u n c i a r : árvores" . — " N ã o senhor , v o c ê está m u i t o enganado : a r v o r e s ! " - " M a s por quê? " E a resposta f o i : " P o r q u e é mais b o n i t o ! " E r e a l m e n t e não lhes parece que a palavra " a r v o r e s " é mais sonora do que "á rvores ? " A te imos ia absurda da atr i z só pode ser expl icada pelo seu háb i to de sempre procurar a m a i o r expressividade s o n o r a em qualquer língua.

Mas , v o l t e m o s ao in íc io deste cap í tu lo , q u a n d o estávamos falando da "Visua l i zação das Fa las" . As falas representam u m a das f o rmas de ação e, c o m o t a l , d e v e m obedecer às n o r m a s que regem a ação h u m a n a na v ida real .

L e m b r e m - s e de que u m a das mais i m p o r t a n t e s características da ação é a lógica. E de la que devemos p a r t i r ao i n i c i a r m o s u m t r a b a l h o c o m qualquer e l e m e n t o do M é t o d o .

A in f lexão , a ênfase que se dá a u m a o u a várias palavras numa frase deve obedecer à lógica das intenções , dos ob je t ivos da pessoa que a diz.

E n t r e t a n t o , essas inflexões às vezes são dadas m e c a n i c a m e n t e , a l teran­do dessa m a n e i r a até o próprio s e n t i d o da frase. Prestem atenção aos diálo­gos dub lados nos f i lmes da T V e vocês terão m u i t o s e x e m p l o s desses erros.

Para e x e m p l i f i c a r isso vamos escolher u m a frase s imp les , m u d a n d o a r b i ­t r a r i a m e n t e a acentuação das palavras, para ver c o m o isso se ref lete na lógica da ação . _

A frase é: " O ensaio de hoje f o i marcado para as o i t o da n o i t e " . ( C o m e c e m o s p o r acentuar a p r i m e i r a pa lavra , depois a segunda, etc.

1) O ensaio de ho je f o i marcado para as o i t o da n o i t e . A razão dessa inflexão pode ser, por e x e m p l o , a v o n t a d e de explicar u m

e r r o : " V o c ê está enganado, não se trata da aula. O ensaio de hoje f o i marca­do para as o i t o da n o i t e " .

2) O ensaio de hoje f o i m a r c a d o para as o i t o da n o i t e . A c e n t u a n d o a palavra " h o j e " a pessoa p r o v a v e l m e n t e quer corr ig ir u m

o u t r o e r r o : "Você pensou que se tratasse do ensaio de amanhã? Não, o ensaio de hoje f o i marcado para as o i t o da n o i t e " .

3 ) O ensaio de hoje foi m a r c a d o para as o i t o da n o i t e . A provável razão dessa inf lexão seria, p o r e x e m p l o : " V o c ê quer dizer

que o ensaio não apareceu na ordem do dia? Não senhor , o ensaio foi marcado para as o i t o da n o i t e " .

E assim p o r d iante . Esse p e q u e n o e x e m p l o pode lhes parecer s imples demais , quase i n f a n t i l ,

e que não a d i a n t a ins is t i r n u m a coisa tão óbvia. Mas o caso é que. apesar da aparente s i m p l i c i d a d e do p r o b l e m a , nossos d i re tores gastam horas e horas de seu t r a b a l h o para exp l i car e c o r r i g i r os erros de lógica q u e os seus ator . c o m e t e m .

70 E U G Ê N I O K U S N E T

Vale ,po is , a pena ins is t i r nos e x e r c í c i o s que possam f a c i l i t a r o t r a b a l h o do ator nesse sent ido . Esses e x e r c í c i o s chamam-se " L E I T U R A L Ó G I C A " .

Qualquer t e x t o literário serve p a r a esse f i m . Basta que antes de l er u m a determinada frase, você se p e r g u n t e : " O que é que o a u t o r quis d izer c o m uso? " Responda e.,na base da l óg i ca da resposta, aceite a intenção , o o b j e ­t i v o do autor , e leia. E c laro q u e m u i t o s erros são possíveis , q u a n d o esse exerc í c io é f e i t o sozinho, sem u m c o n t r o l e alheio . Faça-o pois c o m u m colega. T r o q u e ideias c o m ele, d i s c u t a , c omente e t o m e n o t a desses c o m e n ­tários.

Se, em vez de u m t e x t o q u a l q u e r , v o c ê usar u m t e x t o dramatúrgico , submeta a l e i tura ao mesmo processo de comentar os o b j e t i v o s , mas l e m -bre-se de que desta vez, não se t r a t a dos objet ivos d o a u t o r da obra , e s i m , dos problemas, das necessidades d o personagem c u j o t e x t o v o c ê est iver lendo . Por tanto , comente esses problemas como se você fosse o personagem. Q u a n d o você chegar a t o m a r n o t a dos seus comentár ios , saiba que está c r iando mater ia l para mais u m e l e m e n t o d o Método — " M O N O L O G O I N T E ­R I O R " . Este será o assunto do nosso p r ó x i m o capítulo .

SEXTO CAPÍTULO

A n t e s de e n t r a r e m considerações sobre esse novo e l e m e n t o d o M é t o d o , o M O N Ó L O G O I N T E R I O R , devo prestar ao l e i t o r alguns esc larec imentos .

Os que c o n h e c e r a m o M é t o d o através da l e i t u r a das obras de Stanis­lavski d e v e m lembrar - se de que ele usava u m o u t r o t e r m o , n o s e n t i d o m u i t o a m p l o , o S U B T E X T O .

Para ele o s i g n i f i c a d o desse t e r m o era: " A v ida do espír i to h u m a n o do personagem, que o seu intérprete sente e n q u a n t o p r o n u n c i a as palavras d o t e x t o " . P o r t a n t o , o " S u b t e x t o " é resultado d o uso de t o d o s os e l e m e n t o s d o M é t o d o que o intérprete d o pape l tivesse empregado n o seu t r a b a l h o c o m o t e x t o : e laboração das "Circunstâncias Propostas" , a " V i s u a l i z a ç ã o " c o m os seus " C í r c u l o s de A t e n ç ã o " , o "mág i co SE F O S S E " , a "V isua l i zação das F a l a s " , etc .

A assimilação g r a d a t i v a desses elementos pelo a for deve c r i a r n o seu subconsc iente "correntes subaquáticas, enquanto na superfície do rio corre o texto da peça". Por m e i o desta bela i m a g e m Stanis lavski nos dá a ide ia bastante c lara sobre o m e c a n i s m o do " S u b t e x t o " .

Para p o d e r m o s d i s p o r de u m t e r m o mais palpável, mais . prát i co no t r a b a l h o c o t i d i a n o d o a t o r , s imp l i f i camos o seu s ign i f i cado c o m o sendo "tudo aquilo que o ator estabelece como pensamento do personagem antes, depois e durante as falas do texto".

Já faz m u i t o s anos q u e os colaboradores de Stanis lavsk i , na União So­viética, e n c o n t r a r a m e passaram a usar no t r a b a l h o de t e a t r o u m t e r m o mais c laro e prát i co : o " M O N Ó L O G O I N T E R I O R " . Há m u i t o s anos t a m b é m , no Bras i l , passamos a usá-lo c o m o sendo " o pensamento d o p e r s o n a g e m " .

U m er ro c o m u m dos estudantes de arte dramática é o uso d o seu própr io rac i o c ín i o , dos seus pensamentos pessoais, para a criação d o " M o n o ­logo I n t e r i o r " . E u m e r r o parecido c o m o que c o m e n t a m o s n o t e r ce i ro cap í tu lo q u a n d o c o n t a m o s o "caso do amante c i u m e n t o " .

O verdade i ro " M o n ó l o g o I n t e r i o r " só pode ser estabelec ido depo is do uso dos e lementos necessários, cu lminados p o r " O Mágico SE F O S S E " .

Se o t e x t o de u m a o b r a dramatúrgica é criação exc lus iva d o d r a m a ­t u r g o , o " M o n ó l o g o I n t e r i o r " é obra exc lus iva d o ator que assume o pape l . O " M o n ó l o g o I n t e r i o r " só pode ser criado espontaneamente, i s to é , através de u m a improvisação da ação do personagem d e n t r o das "Circunstâncias P r o p o s t a s " .

74 EUGÊNIO K U S N E T

C o n f o r m e a nossa sugestão nas páginas a n t e r i o r e s o a t o r d i v i d i r i a o seu t raba lho em duas etapas:

1. ° Compreender . (Raciocínio do ator sobre o problema). 2. ° Realizar a ação do personagem (Improvisar as "Falas Internas" e

dizer o texto: "nuvem").

A T O R — 1.° (Raciocinando) O m e u p r o b l e m a é d e i x a r de ter interesse a lgum em pronunc iar a palavra " n u v e m " . O que estar ia pensando o perso­nagem nessas condições?

2 . ° (As "Falas Internas" e o texto). Dizer a p a l a v r a " n u v e m " ? Para quê? E u , por mim,não vejo nada de interessante nessa palavra, n e m vejo razão a lguma para dizê-la . . . A c h o - a até m u i t o c h a t a . . . Mas já que você pede, está b e m : nuvem.

Se você , le i tor , seguir esse rac i o c ín io e usar as " F a l a s I n t e r n a s " sugeri ­das, cer tamente , ao pronunc iar a palavra " n u v e m " irá satisfazer a exigência do d i r e t o r — o " t o m branco" .

I I — D I R E T O R — Agora diga essa palavra c o m desprezo .

A T O R — 1.° (Raciocinando) Para sent i r desprezo por u m a d e t e r m i ­nada n u v e m eu devo achá-la m u i t o i n s i g n i f i c a n t e . M a s sua insignificância só pode ser constatada quando c o m p a r a d a c o m a g r a n d i o s i d a d e de u m a o u t r a n u v e m . C o m o deveriam ser as duas nuvens?

2 . ° (As "Falas Internas" e o texto). A q u e l a n u v e n z i n h a branca? Ela impressiona você? Essa pequena m a n c h a i n c o l o r ? A n u v e m rea lmente impressionante é da cor de c h u m b o ! N u v e m de t e m p e s t a d e ! Ela ro la pelo h o r i z o n t e , ela esmaga a Terra ! Essa é que i m p r e s s i o n a ! Mas aquela lá . . . Ora , grande coisa! Nuvem.

I I I — D I R E T O R — Diga a mesma coisa c o m g r a n d e admiração.

A T O R - 1.° (Raciocinando) E u só p o d e r i a a d m i r a r u m a nuvem bela em comparação c o m alguma coisa feia. O que seria? O u t r a n u v e m que seja feia? E difícil de imaginar. Então talvez o c o n t r a s t e e n t r e a nuvem e o r es to da paisagem? Vamos tentar .

2 . ° (A "Fala Interna" e o texto). A paisagem parec ia tão m o n ó t o n a , c o m aquele céu azul claro, tão pál ido , sem u m a m a n c h a . . . E, de repente , eu v i atrás do te lhado uma mancha branca que subia . . . E t u d o m u d o u , veio a alegria, a vontade de respirar de p e i t o che io . A h , c o m o era bela aquela mancha ! . . . N u v e m !

I V - D I R E T O R — Bem, agora diga essa palavra c o m h o r r o r , em pânico.

A T O R — 1.° (Raciocinando) O que é que p o d e r i a causar-me pânico em relação a u m a nuvem? Só se ela fosse o in í c i o de u m a tempestade. Não, não é suf ic iente . Deve ser mais d o que u m a t e m p e s t a d e , - u m tufão!

A T O R E M É T O D O 75

2 . ° (A "Fala Interna" e o texto). O l h a lá, ve ja! A q u i l o ! . . . A q u i l o q u e está se a p r o x i m a n d o tão r a p i d a m e n t e . . . O l h a , vem quase t o cando nas ondas do mar ! . . . E que v e n t o ! . . . Deve ser u m a tempestade . . . E das grandes ! . . . Não, é m u i t o p i o r , é u m tu fão . . . C o r r a m , f u j a m ! N u v e m !

Espero que, apesar de seu p r i m i t i v i s m o , esses exemplos lhes dêem u m a ide ia bastante clara d o processo de c r iação das "Falas I n t e r n a s " que , b e m e n t e n d i d q , f a z e m parte essencial d o " M o n ó l o g o I n t e r i o r " .

Mas é preciso que , além disso, o l e i t o r n o t e u m p o r m e n o r m u i t o i m p o r ­t a n t e desses exemplos : e m t o d o s eles o final da " F a l a I n t e r n a " é sempre l i g a d o , de maneira m u i t o lógica, c o m o i n í c i o d o t e x t o , i s t o é , c o m a pa lavra " n u v e m " . Dessa mane ira o a t o r consegue c o m u n i c a r ao t e x t o o c o n t e ú d o e m o c i o n a l desejado:

I - (Para que resulte o desinteresse) . . . Mas já que v o c ê pede, está b e m : n u v e m .

I I - (Para sentir desprezo). . . O r a , g rande coisa! N u v e m . I I I — (Para causar admiração) A h , c o m o era bela aquela m a n c h a ! . . .

N u v e m . I V — (Para produzir pânico) C o r r a m , f u j a m ! . . . N u v e m !

Q u a n d o o ator o m i t e essa l igação o u n ã o a t o r n a suf i c ientemente lógica o " M o n ó l o g o I n t e r i o r " perde sua ef ic iência o u , em m u i t o s casos, chega a d e t u r p a r toda a ação.

Para constatar isso basta i n t e r r o m p e r a " F a l a I n t e r n a " antes da l igação lógica que e x e m p l i f i c a m o s a c i m a :

A T O R - 2 . ° (As "Falas Internas" e o texto). D i z e r a pa lavra " n u v e m " ? Para quê? E u , por m i m , n ã o ve jo nada de interessante nessa palavra, n e m vejo razão a lguma para dizê-la . . . Acho-a até m u i t o chata ! . ' . . (interrompe e passa a dizer o texto) N u v e m .

O l e i t o r pode constatar que o r e s u l t a d o emoc iona l da " F a l a I n t e r n a " assim i n t e r r o m p i d a é desprezo : " . . . A c h o - a até m u i t o chata ! . . . N u v e m " , e não indiferença de u m " t o m b r a n c o " que o d i r e t o r p e d i u : " . . . Mas já q u e você pede, está b e m : n u v e m " .

O l e i t o r poderá fazer a mesma exper iênc ia c o m os outros três e x e m p l o s . Falhas de lógica, - a p a r e n t e m e n t e ins igni f i cantes - às vezes p r e j u ­

d i c a m cenas inte iras . Gostar ia de i l u s t r a r o e f e i t o de u m desses erros c o m e t i d o p o r m i m

m e s m o . Trata-se da p r i m e i r a e n t r a d a d o v e l h o pequeno-burguês, Bessême­nov , no p r i m e i r o a to de " O s Pequenos Burgueses" de M. G o r k i . Ele e n t r a o u v i n d o o seu f i l h o assobiar.

BESSÊMENOV - (Entrando) V a i assob iando , va i ! . . . Mas a m i n h a petição vai ver que você esqueceu de fazer o u t r a vez! . . .

76 EUGÊNIO K U S N E T

P I O T R - F i z , fiz.

BESSÊMENOV — A t é que e n f i m e n c o n t r o u u m a f o l g u i n h a ! . . . C u s t o u , hein? . . . {Esai).

Desde o in íc io dos ensaios o m e u rac i o c ín io sobre essa cena era o seguinte. O pai está m u i t o i r r i t a d o c o m t o d o s os p r o b l e m a s de sua vida (entre outras coisas, sente dor nos rins). Ele ouve o seu filho assobiar e, o que é p i o r , fazer isso na sala em que há í cones . D a í o m e u " M o n ó l o g o I n t e r i o r " p r i m i t i v o decorr ia da rel ig ios idade o f e n d i d a p e l o c o m p o r t a m e n t o do filho e da consequente irritação d o ve lho .

A " F a l a I n t e r n a " , resultante desse rac i o c ín io , t o m o u a segu inte f o r m a : " T u d o vai m a l em m i n h a casa, t u d o ! E agora esse a í ! . . . Essa gente não

t e m n e n h u m a m o r a l ! Ve ja s ó ! Está assobiando d i a n t e das imagens dos santos! Sacrílego! Sem v e r g o n h a ! "

E para ligar logicamente ao t e x t o , eu r e p e t i a :

" D i a n t e dos ícones! D iante dos í c ones ! . . . "

Quando eu diz ia o t e x t o :

" V a i assobiando, v a i ! . . . " etc. sent i , até o fim da cena, o e f e i t o e m o c i o ­nal preestabelecido: irritação causada pela ofensa ao s e n t i m e n t o rel ig ioso . Parecia t u d o certo .

Mas eu nunca senti u m verdadeiro prazer e m fazer essa cena. A solução encontrada não me satisfazia, comece i a achá-la m u i t o p r i m i t i v a , m u i t o l inear : u m velho i r r i t a d o e nada mais. N e n h u m a cont rad i ção . S i m p l e s demais para G o r k i .

E de repente eu e n c o n t r e i dentro do própr io t e x t o a razão das minhas dúvidas: " . . . Mas a m i n h a petição va i ver que você esqueceu, o u t r a vez " .

Então, — pensei que — o o b j e t i v o do v e l h o não era s i m p l e s m e n t e " x i n g a r o sacrí lego". Ele quer ia também que o filho fizesse a p e t i ç ã o de que ele precisava m u i t o . E, para consegui-la, ele estava a p e l a n d o , através de u m a i r o n i a maldosa, ( "Até que e n f i m e n c o n t r o u u m a f o l g u i n h a ! . . . C u s t o u , hein? " } aos sent imentos de h u m a n i d a d e d o f i l h o . C o m o f o i q u e eu não reparei antes nesse erro de lógica, tão evidente?

C o m isso a minha " F a l a I n t e r n a " tornou-se d i f e r e n t e :

" V e j a m só ! Está assobiando! Não respeita n e m D e u s ! Q u a n t o m e n o s a m i m : . . . Mas é n a t u r a l — pra quê? ! Não precisa! Ele é u m rapaz m o d e r n o , formidável! Tão inte l igente , — ele sabe o que q u e r ! "

O final dessa fala é a u t o m a t i c a m e n t e l igado ao t e x t o : " V a i assobiando, v a i ! "

E eu c o n t i n u e i c o m a m i n h a " F a l a I n t e r n a " : " M a s a j u d a r u m p o u ­q u i n h o ao seu velho pai que sacr i f icou t o d a sua v i d a para o b e m dos f i lhos .

A T O R E M É T O D O 7 7

— B o b a g e m ! Pra quê? O V e l h o não vale mais n a d a ! M a s eu já sabia disso.

Assob iar v o c ê assobia . . . "

A s últ imas palavras representavam a l igação lógica c o m o t e x t o :

" M a s a m i n h a petição v a i ver que v o c ê esqueceu d e fazer, o u t r a v e z . "

D e p o i s d a resposta do filho:

P I O T R - F i z , fiz . . .

a " F a l a I n t e r n a " c o n t i n u o u :

" N ã o é p o s s í v e l ! ! ! V o c ê teve pena do seu pa i ? ! Q u e m i l a g r e ! "

A s últ imas palavras eram ligadas l o g i c a m e n t e ao t e x t o :

" A t é q u e e n f i m e n c o n t r o u u m a f o l g u i n h a ! . . . C u s t o u , hein? "

A s alterações que eu fiz, a j u d a d o p o r u m a s imples lógica, t o r n a r a m a

a t i t u d e do personagem m u i t o mais contraditór ia e, p o r isso, mais h u m a n a . C r e i o q u e , ao l er esse t r e c h o , o l e i t o r pode pensar : " M a s c o m o é que u m

ator p o d e usar " F a l a s I n t e r n a s " tão longas nas pausas mín imas que e n c o n ­t r a m o s d e n t r o de u m espetáculo? "

De fato , " n o espetáculo a " F a l a I n t e r n a " n u n c a t e m extensão como nos nossos e x e m p l o s . Q u a n d o r e a l m e n t e assimiladas pe lo a t o r através de m u i t o s ensaios, as " F a l a s I n t e r n a s " v o l t a m ás suas f o r m a s p r i m i t i v a s , c o m o na v ida r e a l : elas se t r a n s f o r m a m em exc lamações , f r a g m e n t o s de visões, imagens vagas, etc .

N o i n í c i o do t r a b a l h o , q u a n d o o ator c o m e ç a a c o m p o r o seu " M o n ó ­l o g o I n t e r i o r " na base daquelas duas etapas, — o r a c i o c í n i o e a ação d o personagem, — a extensão das " F a l a s I n t e r n a s " depende d o t e m p e r a m e n t o e da e s t r u t u r a ps íquica do ator . A l g u n s c r i a m verdade i ros romances , ou t ros se l i m i t a m a a lgumas l inhas . Mas cur tas ou longas o i m p o r t a n t e é que as " F a l a s I n t e r n a s " s u r t a m o e fe i to desejado. N o correr d o t r a b a l h o elas se condensam e, p o u c o a p o u c o , se r eduzem à extensão e x a t a m e n t e i g u a l à que se t e m na v ida rea l .

V o u p r o c u r a r t o r n a r mais c lara a mecânica dessa r e d u ç ã o gradativa das " F a l a s I n t e r n a s " , usando para isso u m e x e m p l o t i r a d o d a v ida real .

U m d ia e u f u i p rocurar u m amigo na repartição e m que ele trabalhava. N a sua sala e n c o n t r e i u m a m o ç a que , à m i n h a p e r g u n t a se o meu amigo rinha d e i x a d o a l g u m recado para Eugénio, r e s p o n d e u sorrindo: Não senhor , mas ele não d e m o r a . Sente-se p o r f a v o r " . E depo is de u m a pausa: " E ver ­dade que " O s Pequenos Burgueses" e n t r a m n o v a m e n t e e m cartaz? ' L e m -b r o - m e que eu fi: urna pequena pausa e respondi muito gentilmente: " S i m senhora , no i n í c i o d o mês que v e m " .

Q u a n d o f i q u e i soz inho , sentado naquela sala sem nada que fazer, p r o ­c u r e i d i v e r t i r - m e imag inando que o meu p e q u e n o d iá logo c o m a moça fosse

78 E U G Ê N I O K U S N E T

cena de u m a peça. Q u a l seria o m e u " M o n ó l o g o I n t e r i o r " se eu precisasse representar essa cena?

E m p r i m e i r o lugar, p r o c u r e i restabelecer na m e m ó r i a , c o m prec i são , o que se passou na m i n h a m e n t e d u r a n t e a pequena pausa que eu f i z antes de responder.

L e m b r e i - m e que m e n t a l m e n t e f iz u m a exc lamação " A h ! " e s i m u l t a n e a ­mente " v i " o bar do Teat ro O f i c i n a durante u m i n t e r v a l o d o e s p e t á c u l o , c o m mais ou menos cem pessoas, entre as quais a m o ç a que me a t e n d e u n a repartição.

T a n t o a exclamação " A h ! " c o m o a " v i s ã o " d o bar c o u b e r a m p e r f e i t a ­mente dentro da pausa de u m segundo , que eu f i z .

Ass im, pois , processou-se o m e u " M o n ó l o g o I n t e r i o r " d e n t r o da r e a l i ­dade da vida.

Mas que faria eu se precisasse representar esse papel? Nesse caso, e u não poder ia usar para o m e u " M o n ó l o g o I n t e r i o r " apenas a q u i l o q u e a realidade p r o d u z i u : a exc lamação " A h ! " e a visão d o bar d o t e a t r o , p o r q u e , em p r i m e i r o lugar , teria que c o m p r e e n d e r o que me fez e x c l a m a r " A h ! " e por quê eu " v i " a moça no bar d o t e a t r o .

E f o i o que eu fiz — p r o c u r e i t r a d u z i r em pensamentos c o n c r e t o s a exc lamação e as visões daquele m o m e n t o .

A f o rma que esses pensamentos t o m a r a m f o i a p r o x i m a d a m e n t e a seguinte :

— Por que ela p e r g u n t o u a respei to da vo l ta de " O s Pequenos B u r g u e ­ses" em cartaz? .

— Por quê? (Visão do bar) A h ! Já sei. Porque ela já assistiu à p e ç a , j á conhece o espetáculo.

— Mas por que ela se l e m b r o u da peça ao me ver? — Evidentemente porque ela me conhecia c o m o a t o r daquele t e a t r o . — Mas, ao perguntar , ela s o r r i u . Por quê? — Talvez porque gostasse d o espetáculo. — Bem, mas ela sorr iu para m i m , e c o m evidente prazer . — Ora . porque p r o v a v e l m e n t e gostou de m i m na peça ! F o i esse " a u t o d i á l o g o " de u m ator vaidoso que causou a pausa e m e fez

responder m u i t o g e n t i l m e n t e . Se eu continuasse a t r a b a l h a r c o m a cena, essa " F a l a I n t e r n a " r e l a t i v a ­

mente longa para u m t e x t o tão pequeno , pouco a p o u c o , seria r e d u z i d a à exclamação " A h ! " e à "v i sua l i zação " da moça no bar .

E assim que a redução das " F a l a s I n t e r n a s " se processa no nosso t r a b a ­lho em teatro .

E m u i t o i m p o r t a n t e que o l e i t o r compreenda que os e x e m p l o s d a d o s neste capítulo representam apenas esquemjs do que rvnie ser u m " M o n ó ­logo I n t e r i o r " .

A T O R E M É T O D O 79

N a r e a l i d a d e , m e s m o q u a n d o o ator ac red i ta t e r f i x a d o o seu " M o n ó ­logo I n t e r i o r " este c o n t i n u a sempre mutável, sempre d e p e n d e n t e das p a r t i ­cu lar idades de cada espetáculo : d o estado ps i co f í s i co d o a t o r , das relações dele c o m os o u t r o s personagens que também n u n c a são estáveis, da reação da p l a t e i a , etc .

C o n f o r m e j á c o m e n t a m o s ao falar da " D u a l i d a d e d o A t o r " e da " A ç ã o I n s t a l a d o r a " , o a t o r e o seu personagem c o e x i s t e m e i n t e r d e p e n d e m . E c o m o os dois são seres humanos , e p o r t a n t o mutáveis, a v i d a i n t e r i o r deles não pode caber d e n t r o de u m " M o n ó l o g o I n t e r i o r " r íg ido e f i x o .

C o m o j á sabe o l e i t o r , o " M o n ó l o g o I n t e r i o r " é o b t i d o p e l o ator através de improvisações . P o r t a n t o ele é p r o d u t o da espontane idade d o a t o r , e / o m o t a l , n u n c a pode ser f i x a d o d e f i n i t i v a m e n t e senão d e i x a r i a de ser espontâneo .

O ú n i c o f a t o r que deve ser permanente é a lógica das "Circunstâncias P r o p o s t a s " . Se o a t o r conseguir nunca sair da lógica da a ç ã o , as alterações espontâneas que se p r o d u z i r e m n o seu " M o n ó l o g o I n t e r i o r " só poderão ser benéficas p o r q u e elas irão manter o personagem d e n t r o d a dialética de u m ser h u m a n o .

E pois e v i d e n t e a sut i leza desse e l e m e n t o e a c o n s e q u e n t e d i f i c u l d a d e de l idar c o m ele c o n s c i e n t e m e n t e .

Mas e n q u a n t o estamos t r a b a l h a n d o na base de r a c i o c í n i o , — o que é indispensável d u r a n t e estudos da arte dramática, — não p o d e m o s f icar mane ­j a n d o apenas as " s u t i l e z a s " da nossa profissão. Prec isamos de e lementos mais só l idos , mais palpáveis.

Por isso, a f ixação esquemática d o ' " M o n ó l o g o I n t e r i o r " em nossos exemplos parece -me útil, porque ela visa m a i o r clareza das possíveis soluções dos p r o b l e m a s d o a t o r .

A o t e r m i n a r este cap í tu lo , gostaria de p r o p o r aos m e u s le i tores que , a t í tu lo de e x e r c í c i o , repetissem a cena de " A t o r e D i r e t o r " , s u b s t i t u i n d o a palavra " n u v e m " p o r out tas palavras c o m o p o r e x e m p l o " g u e r r a " , "si lên­c i o " . P r o c u r e m e n c o n t r a r "Falas I n t e r n a s " que lhes p e r m i t a m p r o n u n c i a r essas palavras :

1 . ° — C o m o n u m a simples l e i t u r a . 2. ° — C o m desprezo. 3. ° — C o m grande admiração. 4. ° — C o m h o r r o r , e m pânico .

Para aval iar o resu l tado o b t i d o , p r o c u r e m assistência de u m colega.

S E G U N D A P A R T E

M E I O S D E C O M U N I C A Ç Ã O E M O C I O N A L

SÉTIMO CAPÍTULO

Creio que você , l e i t o r , m u i t a s vezes o u v i u essas famosas frases: " O espetáculo não é m a u , mas f a l t a ritmo! . . . " , ou "Essa cena precisa de m u i t o mais ritmo' . . . "

Esses comentár ios são c o m u n s nos intervalos de u m espetáculo, t a n t o na plateia c o m o nos bast idores d o t e a t r o . Não sei se os comentadores que usam essas frases têm u m a ide ia e x a t a do que significa o ritmo em t e a t r o . Sei quedem m u i t o s casos, ao d izer " r i t m o " , ^les subentendem s implesmente a rapidez c o m que a ação da peça dever ia se desenrolar.

E indiscutível que o r i t m o e m teatro é u m p r o b l e m a de imensa i m p o r ­tância, e é exatamente por isso que ele não deve ser encarado c o m t a n t a ingenuidade.

Por onde vamos c o m e ç a r para entender como e p o r que o r i t m o faz parte da arte dramática? C o m e c e m o s por ver como se def ine o s igni f i cado da palavra " R i t m o " . N o Pequeno Dic ionár io Brasileiro da Língua Portuguesa encontramos o seguinte :

" E m Música, a g r u p a m e n t o de valores de t e m p o c o m b i n a d o s p o r m e i o de acentos: organização do m o v i m e n t o d e n t r o do t e m p o , c o m v o l t a per ió ­dica de t empos rortes e t e m p o s fracos , n u m verso, n u m a frase mus i ca l , e t c ; em Física, Fis io log ia , e t c , m o v i m e n t o c o m sucessão regular de e l ementos fortes e e lementos fracos : e m artes plásticas e na prosa, harmoniosa c o r r e ­lação das par tes . "

Se a detinição é c lara n o q u e diz respeito â música e à poesia, e se mesmo em relação à física e à f i s i o l o g i a , ela é bastante compreensível , não se pode dizer o mesmo a respe i to da def inição do r i t m o na prosa: h a r m o n i o s a correlação das partes. E m que consiste essa harmonia? C o m o se processa a correlação das partes?

Por isso me parece, que para compreender o que é o ritmo na prosa é bom começar por entender m e l h o r c o m o func iona o r i t m o na música.

Para fac i l i tar a c o m p r e e n s ã o d o nosso prob lema, comecemos por s i m p l i ­ficar a própria def inição. Para nós o r i t m o cm música será: "d iv isão d o compasso musical em valores de t e m p o " .

Vamos ver isso n u m e x e m p l o m u i t o simples.

84 E U G Ê N I O K U S N E T

Imaginemos que cada u m desses c i n c o compassos tenha duração de q u a t r o segundos. Nessas c o n d i ç õ e s , p o d e r í a m o s d i v i d i r o espaço de q u a t r o segundos em vários valores de t e m p o , c o n f o r m e f e i t o n o nosso e x e m p l o :

Compasso n.° 1 — Não dividindo o compasso , t e m o s u m a n o t a [valor de tempo) de duração de q u a t r o segundos.

Compasso n.° 2 — Dividindo em dois temos duas notas de duração de dois segundos cada uma.

Compasso n.° 3 — Dividindo em quatro t emos q u a t r o notas de u m segundo cada uma.

Compasso n.° 4 — Dividindo em duas notas de duração diferente t e ­mos u m a nota de três segundos e u m a de u m segundo.

Compasso n.° 5 — Dividindo em cinco notas de duração diferente t e ­mos u m a nota de dois segundos e q u a t r o de me io segundo cada u m a

O número de divisões possíveis não t e m l i m i t e . Convenhamos pois que, para a m a i o r fac i l idade de nosso rac ioc ín io , a

divisão do compasso musical , c o m o ela é fe i ta no nosso e x e m p l o , representa o ritmo em música.

Mas é preciso notar que o r i t m o apresentado g r a f i c a m e n t e , c o m o o fizemos no nosso exemplo , só ex is te e m t e o r i a . Para torná- lo real idade, i s t o é, para transformá-lo em música, t e m o s que i m p r i m i r - l h e u m a d e t e r m i n a d a velocidade (que os músicos chamam de andamento) e acrescentar u m a melodia .

De ixando de lado o p r o b l e m a de m e l o d i a . — p o r q u e o que nos interessa é o ritmo mesmo sem melodia , d igamos d e n t r o de u m a percussão, — pode ­mos dizer que o ritmo pode r e a l m e n t e e x i s t i r acresc ido apenas de u m a determinada velocidade.

C o m o vimos na definição d o ritmo, existe e m música mais u m t e r m o : " t e m p o " . Sua definição no m e s m o d ic ionár io é a s e g u i n t e :

"Cada uma das partes c o m p l e t a s de u m a peça m u s i c a l , em que o anda­m e n t o m u d a ; duração de cada par te d o c ompasso " .

S impl i f i cado novamente , p o d e m o s d i ze r : " P a r a nós o t e r m o " t e m p o " é velocidade do ritmo".

Nessas condições , e já que os dois, — o t e m p o e o ritmo — não podem existir em separado (a não ser em teoria), S t a n i s l a v s k i , no seu t raba lho e m teat ro , sempre usou o t e rmo ú n i c o — T E M P O - R 1 T M O — fr isando c o m isso a absoluta necessidade de nunca separar esses dois fa tores na sua aplicação e m teatro .

Para que o le i tor possa e x p e r i m e n t a r o e f e i t o d o " t e m p o - r i t m o " , damos abaixo exemplos de várias divisões d o compasso , a c o m e ç a r por mais s imples e t e rminando por combinações mais compl i cadas .

A T O R E M É T O D O 8 5

Apresentamos esses e x e m p l o s e m do is pentagramas cada u m , e o ú l t i m o e m três, para que o l e i t o r possa experimentá- los em f o r m a de percussão organizada c o m duas o u três pessoas, o u então usando u m m e t r ô n o m o para m a r c a r o t e m p o - r i t m o d o p e n t a g r a m a de b a i x o e executando as bat idas dos o u t r o s personagens pessoa lmente .

Regule o m e t r ô n o m o para várias ve loc idades , a l terando assim o t e m p o , e a companhe as bat idas de a c o r d o c o m a divisão constante d o p e n t a g r a m a de c i m a . Procure s e n t i r e c o n s t a t a r o e f e i t o que lhe causa cada alteração d o t e m p o : ela o t o m a mais a n i m a d o ? o u m a i s concentrado? o u mais tr iste?

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86 EUGÊNIO K U S N E T

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isso u m a música. Se você t e m u m a v i t r o l a , p o n h a u m d i s c o de música orquestrada e toque-a n o r m a l m e n t e , usando a rotação i n d i c a d a — 3 3 r p m ou 45 , o u 78 . E m seguida rep i ta o t r e c h o esco lh ido a l t e r a n d o a r o t a ç ã o , por e x e m p l o , tocando o disco gravado em 33 r p m c o m ve loc idade de 7 8 r p m , ou vice-versa. D e n t r o de experiências desse t i p o não é raro s e n t i r u m a alegria frívola causada por u m a marcha fúnebre , só p o r q u e ela f o i t o c a d a e m t e m p o acelerado.

P o r t a n t o o efeito emoc iona l do t e m p o - r i t m o sobre u m o u v i n t e nunca depende apenas do r i t m o e m si , — seja ele s imples o u c o m p l i c a d o , — e sim de harmoniosa interdependência desses dois fatores, tempo e ritmo. A l t e ­rando u m deles, alteramos o e fe i to g l oba l do t e m p o - r i t m o .

Nas experiências feitas c o m o q u a d r o ac ima o l e i t o r c e r t a m e n t e pode constatar que o efeito d o ritmo m u i t o p r i m i t i v o (letra A) p o d e ser aguçado pela aceleração do t empo , e que o r i t m o mais c o m p l i c a d o (letra F) pode ser bastante exc i tante mesmo c o m o t e m p o l e n t o .

Mais convincente ainda seria o c o n f r o n t o de certas obras musicais . C o m o u m exemplo , gostaria de sugerir a c omparação da Q u a r t a S i n f o n i a de H a y d n c o m o "Pássaro de F o g o " de S t r a v i n s k i . Cre i o que são d o i s discos fáceis de se conseguir para o u v i r .

Na s infonia de H a y d n você vai e n c o n t r a r trechos de m á x i m a singeleza: vanos ins t rumentos t o cam a mesma m e l o d i a , d e n t r o d o m e s m o ritmo. Se você tivesse a opor tun idade de ver as p a r t i t u r a s orquestradas dessas duas obras, constataria a enorme diferença entre elas, po is e m "Pássaro de F o g o " m u i t o s instrumentos tocam s imul taneamente melod ias d i f e r e n t e s e em ritmos diterentes. Por isso podemos chamar certos t rechos da s i n f o n i a de H a y d n de exemplos de R I T M O S I M P L E S , ao passo que a lguns t rechos de Strav insk i são exemplos de R I T M O C O M P L I C A D O .

Mais tarde, por meio de vários e x e m p l o s , ver i f i caremos que a c o m p l e x i ­dade do " t e m p o - r i t m o " na arte dramática decorre d o f a t o de q u e f r e q u e n t e ­mente ele é composto de vários t e m p o - r i t m o s d i f erentes . Nesses casos vamos

A T O R E M É T O D O 87

chamá- lo de T E M P O - R j T M O C O M P O S T O para diferenciá-lo do T E M P O -R I T M O S I M P L E S .

A g o r a podemos dizer que t emos u m a n o ç ã o m a i s o u menos exata d o que é o ritmo em música. Mas c o m o e por que i r íamos usá-lo no t r a b a l h o e m t e a t r o fa lado?

E m p r i m e i r o lugar, pela de f in ição que c i t a m o s , podemos constatar que o ritmo ex i s te pra t i camente e m todas as a t i v idades h u m a n a s , inc lus ive na prosa.

A n a t u r e z a i n t e i r a é organizada na base d o ritmo, a começar pelo m o v i ­m e n t o dos astros e t e r m i n a n d o pe l o m o v i m e n t o das amebas. T u d o n o m u n ­do obedece ao ritmo.

O h o m e m p r i m i t i v o sentia a presença d o ritmo e m t u d o : na regular idade do m o v i m e n t o do sol , da l u a , d o ru ído da c h u v a o u de u m a cascata, nas pulsações d o próprio coração . A s s i m os s e n t i m e n t o s d o h o m e m p r i m i t i v o t a m b é m passaram a obedecer ao r i t m o , p r i n c i p a l m e n t e nas primeiras m a n i ­festações religiosas, nos cantos e nas danças rituais que , p o u c o a p o u c o , se t r a n s f o r m a r a m e m ação t e a t r a l q u e , por sua vez , c o n t i n u o u a obedecer ao ritmo.

Não há pois dúvida que a prosa em t e a t r o t a m b é m deve obedecer ao ritmo. Sei que , no in íc io , é dif íci l de se c o n v e n c e r disso. Como p o d e m o s e n c o n t r a r ritmo, cuja presença é tão ev idente nos versos de poesias, c o m o encontrá - lo n a q u i l o que é a n t ô n i m o da poesia, na prosa?

R e a l m e n t e , não é fácil, p o r q u e os atores d o t e a t r o fa lado que. ao r e p r e ­sentar, conseguem agir e falar d e n t r o de u m " t e m p o - r i t m o " certo , chegam a esse r e s u l t a d o de maneira geral i n t u i t i v a m e n t e e n ã o consc ientemente . Nes­sas c o n d i ç õ e s eles têm d i f i c u l d a d e e m c o n s t a t a r e fixar o t e m p o - r i t m o o b t i d o .

Mas o t e m p o - r i t m o que eles c r i a m ex i s te ! E prec iso que eles sa ibam usá-lo à sua v o n t a d e !

É impress ionante o e x e m p l o de Shakespeare. E m suas obras f r e q u e n t e ­m e n t e passava da prosa à poesia, e vice-versa. A t o r i n a t o que era. sentia que n u m d e t e r m i n a d o trecho da peça havia necessidade de u m ritmo mais n í t ido , que a ação da cena o ex ig ia .

O m e s m o p o d e m e d e v e m fazer os a tores , sem que, para isso, seja necessário alterar o texto da obra. Eles p o d e m co locar ritmo mais n í t i d o d e n t r o de sua interpretação d o pape l , t o r n a r o t e x t o da prosa mais ritmado, q u a n d o as "Circunstâncias P r o p o s t a s " o e x i g i r e m .

V e j a m o s u m exemplo que e m p r i m e i r o lugar v a i nos provar a existência real do t e m p o - r i t m o achado p o r atores intuitivamente e em seguida m o s t r a r por onde u m ator deve c o m e ç a r para vencer a dificuldade do uso consciente desse tempo-ritmo.

88 EUGÊNIO K U S N E T

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E m cinema os atores representam cenas que são f i lmadas e m espaços de t e m p o relativamente cur tos ; essas cenas são ligadas entre si e m " c o p i õ e s " ; faz-se a dublagem dos diálogos , colocam-se os sons sup lementares , e t c : ligam-se os " c o p i õ e s " e o filme está quase p r o n t o . Fa l ta apenas a mús i ca . Chega u m compos i tor , assiste à exibição do filme e depois escreve e grava a música.

Sabemos que a música é c o m p o s t a de h a r m o n i a , m e l o d i a e ritmo. O n d e é que o compos i tor poderá e n c o n t r a r o ritmo para essa sua m ú s i c a ? É evidente que só poderá encontrá- lo na ação que se desenrola no f i l m e , inc lus ive , bem entend ido , n o c o m p o r t a m e n t o f í s i co e nas falas dos intér­pretes dos papéis. Portanto o c o m p o s i t o r não i n v e n t a u m ritmo n o v o , ele sub l inha , comple ta e em par te corr ige o ritmo já ex i s tente , c r i a d o pe los intérpretes i n t u i t i v a m e n t e .

Mas, se em vez de assistir ao filme p r o n t o , o c o m p o s i t o r recebesse apenas o " s c r i p t " para o q u a l devesse escrever u m " f u n d o m u s i c a l " ? Esse " f u n d o m u s i c a l " , cr iado por u m b o m músico , c e r t a m e n t e seria de g r a n d e u t i l i d a d e para os intérpretes dos papéis, porque os far ia sentir o t e m p o - r i t m o da sua ação no filme.

E se o próprio ator tivesse essa capacidade de cr iar o " f u n d o m u s i c a l " para cada cena do f i lme? Se ele, a exemplo d o c o m p o s i t o r , conseguisse "pensar mus i ca lmente " e n q u a n t o improvisasse as cenas d o seu papel? O seu t e m p o - r i t m o estaria p r o n t o m u i t o antes dele en f rentar a câmara.

E esse o problema dos estudos do t e m p o - r i t m o na prosa.

U m exemplo do uso do " t e m p o - r i t m o " n u m espetáculo de p u r a p r o s a , f o i " O Diário de u m L o u c o " de N . Gogol . Os seus cr iadores , I v a n de A l b u ­querque e Rubens Corréa.chegaram a criar u m verdade i ro e x e m p l o d o uso desse e lemento no trabalho de t e a t r o . Se o " t e m p o - r i t m o " do e spe tácu lo f o i cr iado i n t u i t i v a m e n t e no c o r r e r dos ensaios, — e é exa tamente isso q u e eu suponho , — é certo que depois ele f o i fixado e usado c o n s c i e n t e m e n t e , po i s todos os detalhes do " t e m p o - r i t m o " se repe t iam c o m precisão nos espetá­culos. C o m o já disse, o espetáculo t o d o f o i marcado pelo uso e x e m p l a r d o " t e m p o - r i t m o " , mas há cenas e m que esse f a t o r torna-se p a r t i c u l a r m e n t e c laro . Escolhi u m a cena cujo " t e m p o - r i t m o " me pareceu tão c l a r o q u e v i a possibilidade de apresentá-lo e m f o r m a gráfica, c o m o e m música. E o q u e vou tentar em seguida.

Nessa cena o personagem, depois de m e d i t a r sobre a poss ib i l idade de le ser descoberto c omo o único h e r d e i r o do t r o n o espanho l , de r epente t o r ­na-se m u i t o t r i s te : por a lgum t e m p o , ele vo l ta à real idade , lembra-se d o que disse sua empregada Mavra. É a p a r t i r desse m o m e n t o que eu gos tar ia de fazer a minha demonstração.

A T O R E M É T O D O 89

M O D E R A T O = J 8 0

g l l í t\Jí~W \C Marra disse que eu es- uva muito distraído à mesa.

f a t o acho que quebrei dois copos

3

em meditação

PRESTO

6c ou por -ção de cacos (O tamborilar dos dedos)

* - 5 ? 1

ir- ^ * Sr r ° r rir rr rir ' • v >'' . (Passos) . Depois de jau

txr eu sa -( p i n dar um passeio perto das moncankas .

D e v o acrescentar ainda que as pequenas pausas n o t r e c h o " P r e s t o " e ram preenchidas c o m uns golpes de respiração o f egante , q u e c o n t i n u a v a m mar ­cando o " t e m p o - r i t m o " mesmo nas pausas.

E n o t e m q u e não há n e n h u m exagero n o m e u e x e m p l o : os pentagramas ac ima p r o d u z e m f i e l m e n t e as pausas e o " t e m p o - r i t m o " u s a d o por Rubens Corrêa, detalhes estes que t i r e i m e t i c u l o s a m e n t e da gravação que fiz d u r a n t e u m dos espetácu los .

E n t r e t a n t o , d u r a n t e a representação, n u n c a m e passou pela cabeça a ideia do " t e m p o - r i t m o " que Rubens Corrêa usava; eu s i m p l e s m e n t e senti a força de sua interpretação .

Espeto t e r t o r n a d o bastante c lara a razão p o r q u e devemos usar esse e l e m e n t o d o M é t o d o no nosso t r a b a l h o .

E agora surge u m p r o b l e m a mais d i f í c i l : o que devemos fazer para descobr ir o " t e m p o - r i t m o " desejável? E m que f o r m a ele e n t r a no nosso t r a b a l h o ? ,

Nas aulas de " t e m p o - r i t m o " os estudantes chegam a compreender o p r o b l e m a através de várias experiências práticas c u j o c o n t e ú d o - e m u i t o

90 E U G Ê N I O K U S N E T

difícil de se expl icar por escr i to n u m l i v r o . T e n t a r e i apresentar u m a ide ia que talvez t o rne possível u m a o u o u t r a experiência pessoal.

Longe de m i m a ideia de dar a q u i u m a receita para o uso d o " t e m p o -ritmo". Esse e lemento é de u m a s u t i l e z a e c o m p l e x i d a d e tão grandes que a d i f i cu ldade de seu uso só p o d e ser venc ida por u m l o n g o e s istemático t raba lho c o m muitas e mui tas experiências práticas que sempre d e v e m ser feitas sob u m contro le rígido.

A sugestão que pre tendo fazer a q u i só deve ser encarada p o r v o c ê s c omo u m me io de adqu i r i r apenas u m a noção de c o m o se c r ia e se usa o " t e m p o - r i t m o " . Não se e m p o l g u e m , pois,, c o m u m a possível sensação de sucesso nas experiências que v o u p r o p o r .

Vamos usar para esse fim o e x e m p l o de Rubens Corrêa. I m a g i n e m que o " t e m p o - r i t m o " do trecho c i t a d o fosse cr iado p o r u m a s imples intu ição . Nesse caso, nem o próprio R u b e n s Corrêa ter ia n o ç ã o do " t e m p o - r i t m o " que ele mesmo c r i o u .

Mas se ele pudesse ouvir a gravação da cena e transcrevê-la, c o m o eu a fiz, ter ia diante dele a reprodução , e m f o r m a gráfica, d o " t e m p o - r i t m o " que ele c r i o u i n t u i t i v a m e n t e e c u j a existência ignorava. A s s i m ele t e r ia o seu " t e m p o - r i t m o " conscientizado e materializado visualmente.

Mas ele poderia ir ainda mais l onge em suas experiências. E m vez de dizer o t e x t o da cena em voz a l t a , ele poder ia " p e n s á - l o " , c o m o se o t e x t o fosse o seu " m o n ó l o g o i n t e r i o r " e, e n q u a n t o pronunciasse m e n t a l m e n t e as palavras, marcaria cada sílaba c o m u m a bat ida na mesa. T o d a a sequência dessas batidas deveria ser registrada n u m gravador de s o m .

A o ouv i r a gravação, ele estar ia d iante da material ização, desta vez sonora, do seu " t e m p o - r i t m o " q u e , acred i to , deveria causar- lhe as mesmas sensações que ele já t i n h a o b t i d o i n t u i t i v a m e n t e , o que c e r t a m e n t e seria de grande ut i l idade no seu t r a b a l h o .

P o r t a n t o , seria útil se o a t o r , ao ensaiar, pudesse d i zer o t e x t o da cena o u v i n d o s imultaneamente o s o m gravado do seu " t e m p o - r i t m o " .

Mas, não podendo sempre t e r a seu lado u m gravador para poder o u v i r o seu " t e m p o - r i t m o " enquanto ensaiasse a sua cena, ele seria o b r i g a d o a gravar os sons da percurssão na sua m e m ó r i a .

Nessas condições , enquanto estwesse dizendo o texto da cena, ele pro­curaria ouvir mentalmente o "tempo-ritmo" gravado que assim c o r r e r i a paralelamente ao t e x t o , átivando a i n d a mais o e fe i to causado a n t e r i o r m e n t e pelos outros elementos do M é t o d o , c o m " a visual ização" , " o m á g i c o SE F O S S E " , " o m o n ó l o g o i n t e r i o r " , e t c .

E este o caminho que m e parece aproveitável para suas experiências pessoais, na f o rma que nós usamos e m nossas aulas.

A maneira de fixar o " t e m p o - r i t m o " através de u m a percussão, c o m o exempl i f i camos acima, e v i d e n t e m e n t e é longe de ser a única. E l a é mais

A T O R E MÉTODO 91

conven iente para as pessoas p o u c o versadas e m música. Os que c o n h e c e m música o u possuem o d o m musical p o d e m pre fe r i r o uso de t rechos de u m a música c o n h e c i d a c u j o ritmo corresponda jna sua op in ião , às características do t e x t o . Sendo essa mús i ca conhec ida , poder ia ser f a c i l m e n t e gravada na memória do a t o r . Seria a i n d a m e l h o r se ele pudesse c o m p o r u m a espécie de "mús i ca de f u n d o " , c o m o o fez o nosso h ipo té t i c o c o m p o s i t o r e m c i n e m a . E finalmente há atores de grande senso r í tmico cu ja imaginação c r i a e fixa o " t e m p o - r i t m o " que n ã o precisa ser gravado, — ele a c o m p a n h a o t e x t o p o r pura intuição d o a t o r .

A g o r a q u e r o l e m b r a r aos le i tores que , sendo o " t e m p o - r i t m o " u m dos fatores da ação h u m a n a , ele obedece às leis que regem a própria a ç ã o , — ele t e m , s i m u l t a n e a m e n t e ^ d o i s aspectos: " t e m p o - r i t m o i n t e r i o r " e " t e m p o -ritmo e x t e r i o r " . Os d o i s raramente têm as mesmas característ icas, c o m o também r a r a m e n t e as t e m a própria ação e m seus dois aspectos.

O uso s imultâneo d o s dois aspectos d o " t e m p o - r i t m o " p r o d u z o que chamamos de " t e m p o - r i t m o c o m p o s t o " .

N a cena de " O Diár io de u m L o u c o " temos u m raro e x e m p l o d o contrá­rio, isto é, de " t e m p o - r i t m o s imples " .

Que os l e i t o res mais esclarecidos em p s i q u i a t r i a me p e r d o e m a s i m p l i f i ­cação exagerada que eu a d o t o para tornar mais clara esta rápida exp l i cação .

Psicose é c a r a c t e r i z a d a pela perda do senso de real idade o b j e t i v a . O m u n d o o b j e t i v o é subs t i tu ído na mente do ps i copata pelo m u n d o fantástico , que o seu cérebro d o e n t e c r i o u .

Nessas c o n d i ç õ e s n ã o há contradições possíveis na ps ique d o d o e n t e , ele diz o que pensa e pensa o que d iz . Daí a un i c idade do seu " t e m p o - r i t m o " .

A s pessoas cons ideradas ps iquicamente n o r m a i s v i v e m e m p e r m a n e n t e c o n f l i t o entre a p e r c e p ç ã o da realidade o b j e t i v a e a representação (interpre­tação) dessa rea l idade . D a í a permanente divergência ent re a a ção i n t e r i o r ( " M o n ó l o g o I n t e r i o r " ) e a ação física (falas e movimentos).

Para i l u s t r a r isso c o m u m e x e m p l o m u i t o s imples , p r o p o n h o q u e i m a g i ­n e m u m a v e n d e d o r a de f e i ra , n u m dia de m u i t o calor , v e n d e n d o sua merca­dor ia , d igamos , f r u t a s .

A sua " r e a l i d a d e o b j e t i v a " é essa: sol i m p i e d o s a m e n t e q u e n t e , sono lên ­cia, f raqueza , apat ia . S ã o esses os fatores que o r i g i n a m o seu " t e m p o - r i t m o i n t e r i o r " m u i t o l e n t o .

Mas a sua " r e a l i d a d e s u b j e t i v a " é a abso luta necessidade de vender , q u a n t o antes, suas f r u t a s . Por isso ela t e m que gr i tar a l t o e a l egremente os nomes das f r u t a s que v e n d e , para chamar a atenção e p r o v o c a r a s i m p a t i a dos fregueses. E isso q u e f o r m a o seu " t e m p o - r i t m o e x t e r i o r " m u i t o agi tado .

O " t e m p o - r i t m o c o m p o s t o " resultante da fusão dos do is , deve dar o resul tado p r o c u r a d o — a contradição h u m a n a .

92 EUGÊNIO K U S N E T

Sempre procurando meios de d a r a m a i o r c lareza poss íve l às minhas expl icações, v o u novamente recorrer a e x e m p l o s apresentados gra f i camente , embora saiba que a matéria tão s u t i l c o m o o " t e m p o - r i t m o " não possa ser reduzida à materialização exagerada.

V a m o s pois a u m exemplo de " t e m p o - r i t m o c o m p o s t o " . U m a senhora recebe em sua casa vários amigos da famí l ia . Ela procura

ser g e n t i l c o m todos os convidados para t o r n a r sua v i s i ta agradável. Digamos que isso seja o seu único objetivo. E l a está c a l m a e segura de s i . São estas as "circunstâncias propostas" . Depois de submetê-la ao t r a b a l h o igual ao que vocês fizeram nos exercícios dos capí tu los anter iores e, p r i n c i p a l m e n t e , depois de cr iar as "falas I n t e r n a s " c o r respondentes à s ituação a n t e r i o r â ação cénica (o que ela fez ou pensou antes da recepção), p r o c u r e m executar a ação que contém apenas duas frases que a senhora d i r i ge a u m amigo cuja vis i ta ela não esperava.

S E N H O R A — O h , mas que prazer ! V o c ê p o r aqui? V I S I T A — V o c ê sabe c o m o eu gos to de sua casa. A l i c e não pôde v i r ,

está u m pouco adoentada. S E N H O R A — Que é isso? Nada de grave, espero? V I S I T A - Não, nada.

E b o m notar desde já que entre a p r i m e i r a e a segunda frase da senhora há u m a pausa durante a qual ela escuta o v i s i t a n t e . Essa pausa também está sujeita ao " t e m p o - r i t m o " da cena.

Que " t e m p o - r i t m o " deve ser usado nessa cena? A personagem está calma, segura de si, contente . Que " m ú s i c a de f u n d o " v o c ê esco lher ia? Não seria u m a valsa calma, não m u i t o l e n t a , n e m m u i t o v iva? P o r t a n t o , seria u m r i t m o de 3/4.

O que estaria pensando a personagem antes de c o m e ç a r o d iá logo c o m o visitante? Digamos que seja o seguinte : " T u d o corre m u i t o b e m . Graças a D e u s ! " Esta " f a l a i n t e r n a " teria o " t e m p o - r i t m o " que g r a f i c a m e n t e poder ia ser apresentado assim:

M O D E R A D O = J 88

METRON.

T u d o corre muito U m . Gt»»;a. * Dm»!

FT-r-r : r r 7 '-'ff

A T O R E M É T O D O 93

O segundo pentagrama m o s t r a o " t e m p o - r i t m o " básico em f o r m a de bat idas d o m e t r ô n o m o e deve ser m a n t i d o antes, d u r a n t e e depois da " f a l a i n t e r n a " , b e m c o m o d u r a n t e t o d o o diálogo .

A s s i m seria o " t e m p o - r i t m o " da preparação da cena, da sua "ação ante ­rior".

Passemos agora ao t e x t o da cena. D e n t r o d o " t e m p o - r i t m o " preestabe­l e c i d o , o seu aspecto seria o seguinte :

M O D E R A T O = J 88

oh: U que prazer você por

METRON. ff r i r ^ V I S I T A — (falando dentro do ritmo básico que o metrônomo continua

batendo) V o c ê sabe c o m o eu gosto de sua casa. A l i c e não pôde vir, está u m p o u c o a d o e n t a d a .

PERSON.

METRON.

Que é Uso' Nada de grave, espere

11 f I f I V I S I T A — (sempre dentro do ritmo básico) N ã o , nada.

A s s i m se apresenta o " t e m p o - r i t m o s i m p l e s " dessa simples cena, p o r q u e preestabelecemos que o único objetivo da senhora seria ser agradável, o que elimina toda a qualquer contradição em sua ação.

M a s d igamos que as "c ircunstâncias p r o p o s t a s " sejam acrescidas de u m e l e m e n t o n o v o : a personagem está e m vias de a b a n d o n a r seu m a r i d o . O seu amante exige que ela o faça hoje m e s m o e disse que telefonaria d u r a n t e a festa. E l a não t e m coragem de i r e m b o r a ho je e não sabe o que fazer. E v i d e n t e m e n t e está m u i t o nervosa, mas faz questão de não deixar os c o n v i ­dados perceberem o seu estado.

Q u e f o r m a tomar ia , nesse caso, a preparação da cena? Por u m lado , ela p r o c u r a r i a conservar a c a l m a e para isso taria o pos­

sível para ela própria acred i tar que nada de extraordinário estivesse aconte -

94 EUGÊNIO K U S N E T

cendo, pois só assim poderia convencer os seus conv idados . E l a es tar ia p e n ­sando: " t u d o corre m u i t o b e m ! Graças a D e u s ! . . . "

Mas, ao mesmo t e m p o , não poder ia de ixar de sent ir o peso de sua indecisão, o pavor do que pode acontecer. A sua " f a l a i n t e r n a " , neste caso poder ia ser, por e x e m p l o : " Q u e faço? . . . Não t e n h o c o r a g e m ! . . . O h ! m e u Deus!

Se procurarmos u n i r o " t e m p o - r i t m o " da preparação da cena c o m o u t r o que possa corresponder ao acréscimo que f izemos nas " c i r cunstânc ias p r o ­postas" , o c o n j u n t o poderá ter o aspecto seguinte:

M O D E R A T O = J 88

Ritmo 1 °

Ritmo 2.°

METRON.

Tudo cor- re muito bem Graças

Que faço? Não tenho coragem

r r r ir i'

a Deus

truz.

Este é u m exemplo de " t e m p o - r i t m o c o m p o s t o " c ont rad i tó r i o e m que os dois componentes devem i n f l u i r u m sobre o o u t r o . C o m o c o n s e g u i r isso na prática? Não há fórmula a l g u m a , mas podemos t e n t a r .

Para começar , creio que seria conven iente :

1) Gravar a percussão d o " r i t m o 2 . ° " j u n t a m e n t e c o m as b a t i d a s d o m e t r ô n o m o , para poder ouvi-las e n q u a n t o diz o t e x t o d o " r i t m o 1 . ° " .

2 ) Gravar a percussão d o " r i t m o 1 . ° " c o m as bat idas d o m e t r ô n o m o enquanto pronunc ia o t e x t o d o " r i t m o 2 . ° " .

Ass im você teria a p r i m e i r a sensação do e f e i t o de u m " t e m p o - r i t m o " sobre o o u t r o .

Q u a n d o você constatar que sente o e f e i t o i n q u i e t a n t e e a n g u s t i a n t e desse " t e m p o - r i t m o c o m p o s t o " , deixe de lado as gravações e t r a t e d e s i m ­plesmente dizer o t e x t o : " t u d o corre . . . " , etc . A c r e d i t o que , nessas c o n d i ­ções, você poderá constatar que a sua maneira de dizer o t e x t o t o r n o u - s e d i ferente .

Se você tiver d i f i cu ldade e m chegar ao resu l tado desejado, p o d e r á expe ­rimentar u m a outra maneira, p o r e x e m p l o , usar o " t e m p o - r i t m o i n t e r i o r " (o "ritmo 2.°") ao pronunc iar o t e x t o , — ("Que faço? . . ."etc.) — e n q u a n t o ouve a fala do vis i tante .

A T O R E MÉTODO 95

PERSON.

VISITA:

METRON.

3 3? Que faço Não tenho coragem

Você sabe como gosto de sua casa. Alice não pode rir . . . etc

1

Cre io q u e , e m b o r a compreendesse b e m a mecânica d o " t e m p o - r i t m o c o m p o s t o " , o l e i t o r cer tamente ter ia que fazer u m a p e r g u n t a : " D e p o i s de cr iar e f i x a r os dois c o m p o n e n t e s , como poderia o ator manter em mente o "tempo-ritmo interior", enquanto exercesse o "tempo-ritmo exterior" c o m re la t iva f a c i l i d a d e graças ao a p o i o substancia l que lhe dá o ato de dizer o t e x t o ? O n d e poder ia ele e n c o n t r a r esse a p o i o p a r a o " t e m p o - r i t m o i n t e r i o r ? "

A c h o q u e ele poder ia procurá-lo nas ações físicas q u e a c o m p a n h a m as falas. Basta q u e essas ações este jam d e n t r o da lógica das "circunstâncias p r o p o s t a s " e c o r r e s p o n d a m , por sua natureza , ao " t e m p o - r i t m o " p r o c u r a d o .

T o d o s nós fazemos m u i t o s m o v i m e n t o s , gestos, s em mesmo nos dar c o n t a disso. Mas esse c o m p o r t a m e n t o inconsc i en te deve t e r sua razão de ser e c e r t a m e n t e ref lete a lgum " t e m p o - r i t m o i n t e r i o r " . Por e x e m p l o , u m t r e m o r do pé e n q u a n t o o resto do c o r p o está e m a b s o l u t a i m o b i l i d a d e ; u m h o m e m q u e , fa lando c a l m a m e n t e , faz u m milhão de assinaturas n u m a fo lha de p a p e l ; u m a pessoa que rói unhas , apesar de parecer m u i t o ca lma.

T o d o s esses t iques , e m u i t o s o u t r o s que v o c ê s p o d e m imag inar , p o d e m ser usados, mesmo e m cena aberta, para apo iar e, por assim dizer , m a t e r i a l i z a r o " t e m p o - r i t m o i n t e r i o r " . E ev idente q u e esses t iques só p o d e m ser usados quando cabem l og i camente d e n t r o da ação cénica.

M u i t o s atores usam para f i x a r o " t e m p o - r i t m o i n t e r i o r " os sons, os ruídos e os m o v i m e n t o s e m cena, c o m o p o r e x e m p l o , o t ique- taque d o relógio , o b a r u l h o do mar , a t r o v o a d a , e t c , e f i n a l m e n t e a música que a c o m p a n h a a cena.

A t o r e s q u e não u t i l i z a m a sonoplast ia d o espetácu lo são in imigos de si própr ios , po i s n u m b o m espetáculo não há sons casuais, — _todos c lrs são cr iados p e l o d i r e t o r e x a t a m e n t e para f i x a r os " t e m p o - r i t m o s " «la peça.

E f r e q u e n t e nos trabalhos de alguns bons d i re tores bras i l e i ros , — seja P U I t e a t r o , e m c i n e m a ou em televisão, — que a s onop las t ia entra p r o p o s i u l m e n t e em cont rad i ção c o m a ação cénica.

U m magn í f i c o e x e m p l o disso é u m a cena d o f i l m e de A n s e l m o D U a t t c , " O Pagador de Promessas". Nessa cena, e n q u a n t o o personagem, Zé « ' ° B u r r o , e x t e n u a d o , perdendo as últimas forças, l e n t a m e n t e carrega ; i Hia

% E U G Ê N I O K U S N E T

pesada c ruz , na esquina da r u a os populares dançam u m a b a t u c a d a n u m ritmo frenético.

A c r e d i t o que essa contrad i ção r í tmica f o i de grande a juda n o t r a b a l h o do intérprete do papel, L e o n a r d o V i l a r . N a plateia nós sentíamos que d e n t r o do seu e x t r e m o cansaço havia t a m b é m u m a imensa ansiedade. E i s t o , c re io eu, só pod ia ser resultado desse " t e m p o - r i t m o c o m p o s t o " .

T e r m i n a n d o esse capí tulo , t e n h o a impressão de que o l e i t o r talvez s inta uma certa perplexidade diante d o p r o b l e m a do " t e m p o - r i t m o " . Todas as partes do capítulo podem parecer bas tante claras, mas o c o n j u n t o , talvez por ser c o m p l e x o demais, é capaz de escapar da compreensão .

E que , na aplicação prática, o " t e m p o - r i t m o " da prosa raramente t e m precisão do ritmo musical , c o m o nos meus exemplos que dei apenas para evitar a falta de clareza.

A criação e o uso do " t e m p o - r i t m o " depende de inúmeros fa tores , dos quais o mais i m p o r t a n t e é a e s t r u t u r a psíquica, a personal idade do a t o r , o que t o r n a ainda mais c o m p l e x o o e s t u d o desse p r o b l e m a .

Mas gostaria de t e r m i n a r este c a p í t u l o c o m u m a n o t a de o t i m i s m o . E preciso que o ator conf ie no p o d e r c r i a d o r da natureza . E preciso que ele saiba estabelecer condições e m que a própria natureza possa cr iar através dele. A cond i ção essencial para isso é a espontaneidade do a t o r . Essa c o n d i ­ção só é conseguida através do uso de improvisações, e é e x a t a m e n t e d e n t r o de u m a ação improvisada que nasce o " t e m p o - r i t m o " . E então basta que o ator saiba fixá-lo para que o p r o b l e m a seja d e f i n i t i v a m e n t e reso lv ido .

Mais tarde , ao estudar a "anál ise a t i v a " , — o últ imo m é t o d o que Stanis­lavski revelou antes de m o r r e r , — veremos c o m o isso se processa.

OITAVO CAPÍTULO

Até agora, c o m o o l e i t o r deve ter n o t a d o , o que nos p r e o c u p o u f o i a necessidade de dar u m a ide ia mais clara possível sobre a m a i o r i a dos e lemen­tos do M é t o d o de Stan is lavsk i , vistos através dos p r o b l e m a s atuais d o nosso t e a t r o .

O m a i o r per igo na apl icação prática do M é t o d o é sua f ragmentação , o u seja, o uso de cada e l e m e n t o em separado.

Stanis lavski c o m p a r a v a os elementos d o seu M é t o d o c o m os pios de caçador : basta escolher u m p io certo para que t o d a a caça v e n h a soz inha . Por e x e m p l o , a " v i s u a l i z a ç ã o " adequada da " s i t u a ç ã o " , c o m seus " c í r c u l o s de a t e n ç ã o " b e m selecionados, provoca o s u r g i m e n t o da " a ç ã o i n t e r i o r " p ro curada que, por sua vez, cr ia a u t o m a t i c a m e n t e o " m o n ó l o g o i n t e r i o r " c o r respondente à ação da cena, c o n t r i b u i n d o , c o m isso na e laboração da " ins ta lação " .

Meus a lunos f r e q u e n t e m e n t e me p e r g u n t a v a m : " M a s q u a l seria esse p i o certo? C o m o esco lhê- lo? " N o r m a l m e n t e a resposta era: " T e n t e ! T e n t e até e n c o n t r a r o mais ú t i l " .

F e l i z m e n t e , agora há possibi l idade de usar u m m é t o d o seguro que a u t o ­m a t i c a m e n t e envolve t o d o s os elementos. Stanis lavski d e n o m i n o u esse m é t o ­do de "Anál ise A t i v a " .

E m b o r a o m é t o d o da "Anál ise A t i v a " não tenha sido usado , até agora, s i s t emat i camente , n o t e a t r o bras i le iro , houve m u i t a s experiências feitas pelos nossos h o m e n s de t e a t r o , experiências estas que se a p r o x i m a r a m bas­tante do m é t o d o usado p o r K . S. Stanislavski no fim de sua v ida e a m p l a ­m e n t e d ivu lgado pelos seus colaboradores depois de sua m o r t e .

I n f e l i z m e n t e o própr io Stanislavski não nos d e i x o u nas suas obras escri­tas ens inamentos s is temat izados e concretos , c o m o ele c o s t u m a v a fazer ante ­riormente c o m t o d o e q u a l q u e r e lemento novo de seu " M é t o d o " .

Os adeptos de Stan is lavsk i c o n t i n u a r a m , c o m o ainda c o n t i n u a m , as suas pesquisas, e há m u i t o s l ivros de a l to valor sobre o assunto da "Anál i se A t i v a " . Os seus autores enr iqueceram m u i t o a matéria c o m o r e l a t o das experiências práticas fe i tas em t e a t r o , mas c o m o é óbv io , não houve n e n h u m que tivesse f e i t o u m e s t u d o c o m p l e t o esgotando todos os p r o b l e m a s e todas as dúvidas.

Resta-nos, pois, c o n t i n u a r m o s as experiências na base d o que até agora conhecemos. O sucesso o u o fracasso dependerá da nossa h a b i l i d a d e .

9 8 EUGÉNIO K U S N E T

E m que consiste o m é t o d o da "Anál i se A t i v a " ? C o m o diz o p rópr i o t e r m o , é u m a maneira dos atores ana l i sarem o m a t e r i a l dramatúrgico : a n a l i ­sá-lo em ação, ou seja, procurar c o m p r e e n d e r a obra dramática através da ação praticada pelos intérpretes dos papéis na base de conhec imentos super­ficiais da peça, e não na base de longos estudos cerebrais .

Isso, evidentemente, pressupõe a d iminu i ção ou quase e l iminação, da análise puramente racional que , a n t e r i o r m e n t e , representava a par te essen­cial do trabalho c o m uma peça. N o t r a b a l h o c o m o m é t o d o da "Anál i se A t i v a " basta que os atores c o n h e ç a m o c o n t e ú d o da peça a p o n t o de poder contá-la com clareza, para que a "Anál ise A t i v a " possa ser in ic iada .

Nessas condições , é evidente que a única m a n e i r a de executar a ação da peça nos ensaios é improvisá-la de acordo c o m que os atores acabam de conhecer.

A improvisação é a base da cr iação e m todas as artes. I m p r o v i s a o escultor, improvisa o músico, i m p r o v i s a o a t o r . N ã o improv isa o c o n t a d o r , o mecânico, - no seu t raba lho eles apenas i m i t a m o que já f o i c r i a d o e t rans formado em regras fixas pelos o u t r o s .

O artista sempre cria coisas inéditas. Por isso u m músico ao c r ia r o u ao executar uma obra musical não deve sofrer influência de outras obras o u outras interpretações, senão ele corre o per igo de i m i t a r em vez de c r iar . A sua criação deve ser sempre espontânea.

E m teatro a espontaneidade é a mais i m p o r t a n t e qual idade de u m a t o r . Espontaneidade e ta lento t ornaram-se , e m t e a t r o , quase s inónimos. A frase: "e le é u m ator m u i t o e s p o n t â n e o " pode ser substituída pela frase: " E l e é de m u i t o t a l e n t o " . Se part i rmos d o pr inc íp io de q u e a espontaneidade se revela na ação improvisada, - ou vice-versa, que a a ção improvisada é o r e su l tado da espontaneidade inata, - podemos chegar à conc lusão de que o d o m de improvisação bem desenvolvido pode s u b s t i t u i r o que chamamos de t a l e n t o .

Mais tarde veremos c o m o se processa a improvisação no c o r r e r dos ensaios pelo método da "Análise A t i v a " . Por e n q u a n t o quero apenas frisar que a presença da improvisação, n u m a o u n o u t r a f o r m a , é a b s o l u t a m e n t e necessária em todas as etapas do t r a b a l h o , a c o m e ç a r do p r i m e i r o ensaio e t e rminando pelo último espetáculo.

Para o l e i tor deve ser bastante c lara a ide ia de começar os t raba lhos pela improvisação de uma ação apenas c o n h e c i d a super f i c ia lmente . Mas c o m o improvisar aqui lo que já f o i decorado e r e p e t i d o m i l vezes nos ensaios e nos espetáculos? C o m o poderia f u n c i o n a r a espontaneidade do a t o r nessas condições?

E m pr ime i ro lugar, é preciso esclarecer que não estamos fa lando de improvisação relativamente l i v r e , c o m o no in í c i o do t raba lho , e s im da presença do espírito de improvisação, n u m a o u n o u t r a f o r m a , d u r a n t e t odos os períodos do trabalho c o m u m a peça . E isso só é possível q u a n d o o a t o r

A T O R E MÉTODO 99

adquire a capacidade de conceber sempre com surpresa a ação preestabele­cida, corno se ela fosse inesperada.

Não devemos estranhar esse f e n ó m e n o , — temos vários exemplos disso em outras artes. U m p i a n i s t a , t o c a n d o a mesma música e m todos os seus concertos , executa as mesmas c o m b i n a ç õ e s de notas escritas na p a r t i t u r a , dentro do mesmo ritmo e leva e m consideração sempre as mesmas i n d i c a ­ções do c o m p o s i t o r . E e n t r e t a n t o , se o concert ista f o r rea lmente u m a r t i s t a , sempre haverá u m a di ferença na sua interpretação em cada c o n c e r t o , d i f e ­rença essa que os o u v i n t e s constatarão emoc iona lmente . São b e m c o n h e c i ­dos os comentár ios dos f r e q u e n t a d o r e s dos concertos : " H o j e ele t o c o u tão d i f erente ! Parecia o u t r a música ! . . . " , mas e m que consist ia a diferença, esse ouv in te não saberia e x p l i c a r . E po i s evidente que o p ian is ta também i m p r o ­visa d e n t r o dos l i m i t e s obr igatór ios da obra musica l , tocando-a como se fosse pela primeira vez.

O que e s t i m u l a a sua improv isação são vários e lementos que se e n c o n ­t r a m fora da o b r i g a t o r i e d a d e e q u e var iam de u m concer to para o o u t r o : o seu própr io estado p s i c o f í s i c o , a sua "visual ização" da obra m u s i c a l , a reação da p la te ia .

Na prática do a t o r esses e l e m e n t o s são ainda mais ricos e e s t imulantes . Sem c o n t a r a influência do seu estado psicofísico (que em grande parte depende dele próprio, pois a predisposição para o seu trabaUio artístico depende da sua "primeira instalação"), há u m vasto c a m p o de surpresas est imulantes , que representa o seu c o n t a t o , em cena. c o m os c o m p a n h e i r o s , que também nunca r e p r e s e n t a m c o m a mesma precisão, b e m c o m o a reação da plateia , que e m t e a t r o , g e r a l m e n t e , reage da maneira mais sensível d o q u e nos auditórios de música.

E note-se: n u m v e r d a d e i r o t e a t r o o espírito de improvisação n u n c a perturba , n e m p r e j u d i c a a h a r m o n i a do espetáculo, p o r q u e todos os atores são acostumados a improvisar sem nunca perder de vista os objetivos comuns e, por isso, sempre improvisam dentro dos limites preestabelecidos. Isto é, d e n t r o das "c ircunstâncias p r o p o s t a s " .

O e x e m p l o mais c o n v i n c e n t e desse f enómeno é o j o g o de f u t e b o l . N i n ­guém duv ida que o sucesso de u m j ogador de f u t e b o l depende da sua capacidade de i m p r o v i s a r o j o g o , c o n f o r m e as surpresas que lhe causa o j o g o dos adversários; mas o seu i m p r o v i s o , por mais agudo que seja, nunca p o d e ser t o t a l m e n t e l i v re , p o r q u e dele d e p e n d e m os seus dez companhe iros que têm em m i r a o mesmo o b j e t i v o q u e e l e : trpl.

Para desenvolver o seu d o m de improvisação o j o g a d o r de f u t e b o l v ive tre inando , sempre t e n d o e m vista o aperfeiçoamento da técnica d o j o g o de c o n j u n t o , e não apenas o seu sucesso pessoal.

E o que deve fazer t a m b é m o a t o r : tre inar o seu d o m de improvisação no sentido de desenvolver a sua receptividade da ação dos outros, ou seja, a

100 EUGÊNIO K U S N E T

capacidade de usar em cada nova improvisação o m á x i m o de sua atenção para perceber a ação dos o u t r o s , compreendê- la , c omentá - la e depois (só depois) reagir, pois é através da ação dos o u t r o s q u e nós concebemos o in íc io da nossa própria ação.

E o p o r t u n o l embrar ao l e i t o r que a recept iv idade de q u e estamos fa lan ­do t e m as mesmas características dos " c í r c u l o s de a t e n ç ã o " e das leis da fala h u m a n a de que t ratamos nos cap í tu los anter i o res .

Graças ao seu poder de receber, o a t o r consegue c a p t a r , e m cada n o v o espetáculo, novos detalhes da ação cénica , aos quais , p o r serem novos para ele, reage c o m a autêntica surpresa. Essa faculdade^ q u a n d o b e m desenvol­v ida , garante ao ator a possibi l idade de sempre estar d e n t r o do espírito de improvisação e poder l u t a r c o n t r a o m a i o r f lagelo d o t e a t r o : a mecanização progressiva dos espetáculos em cartaz e o uso c o s t u m e i r o dos " c l i c h é s " pelos atores.

Mas mesmo se o ator reconhece p l e n a m e n t e a necessidade da improv i sa ­ção no seu t raba lho , pouco lhe a judar ia o c o n h e c i m e n t o teór i co do p r o b l e ­ma e a lgum d o m natura l . O d o m de improvisação , salvo raras exceçõcs de grande ta lento , só se t o r n a p r o d u t i v o depois de passar p o r longos per íodos de exerc íc ios e treinos de imaginação.

Alguns dos nossos d i re tores , adeptos sinceros d o m é t o d o da "Anál ise A t i v a " , acabaram abandonando-o p o r q u e não e n c o n t r a m atores capazes de improv isar . Os atores de longa prática e m t e a t r o p r o f i s s i o n a l , acostumados durante m u i t o s anos c o m o m é t o d o de análise c e r e b r a l , sentem-se m u i t o mais à vontade dentro, do a m b i e n t e dos "ensaios à m e s a " e, conseguindo bons resultados, s implesmente graças a seu t a l e n t o , não v ê m n e n h u m a neces­sidade de aderir ao m é t o d o de improvisação.

Q u a n t o aos atores j ovens , p r o d u t o das nossas escolas, i n f e l i z m e n t e eles não e n t r a m no t raba lho em t e a t r o pro f i s s i ona l s o l i d a m e n t e armados c o m a prática de improvisação.

Apesar das condições e conómicas dif íceis e m q u e , ge ra lmente , vive o nosso t ea t ro , alguns d iretores , d i a n t e dessas def ic iências , "dão -se ao l u x o " de t re inar e i n s t r u i r os seus atores e m matéria de i m p r o v i s . ç ã o , antes o u durante os ensaios da peça esco lh ida . Essa m e d i d a , e m b o r a i n c o m p l e t a e insu f i c i ente , chega a dar resultados apreciáveis p o r q u e através dela o d i re tor consegue criar e manter a comunicação emocional entre o palco e a plateia, que a meu ver é o m a i o r p r o b l e m a d o nosso teatro a t u a l -mente .

A improvisação de u m a cena representa e x e c u ç ã o de u m a série de ações físicas cabíveis d e n t r o das "c ircunstâncias p r o p o s t a s " , que já sabemos, envolve automat i camente a ação i n t e r i o r do a tor . A p e r m a n e n t e i n t e r d e p e n ­dência desses dois fatores f o i co locada p o r Stanis lavsk i c o m o alicerce para o seu " M é t o d o de Ações Físicas". Mais tarde este m é t o d o , c o m apenas algu-

A T O R E M É T O D O j Q l

mas alterações de o r d e m técnica, t r a n s f o r m o u - s e no que ho je conhecemos c o m o "Anál ise A t i v a " .

" E m cada ação f í s i ca" , d i z i a S tan is lavsk i "se ela não for mecanizada ( g r i f o m e u — E. K . ) esconde-se u m a a ç ã o i n t e r i o r , u m s e n t i m e n t o " . Os comentar i s tas das obras de Stan i s lavsk i , K . C. K r i s t i e V . N . P r o k o f i e v , acrescentam a isso: " M a s por m e i o desse n o v o m é t o d o o ator chega aos s e n t i m e n t o s i n d i r e t a m e n t e , através da v ida orgânica do c o r p o h u m a n o " .

Para que os le i tores possam ter u m a i d e i a mais clara sobre as origens da "Aná l i se A t i v a " e da sua organic idade d e n t r o da arte dramática, remeto -os ao t r e c h o do l i v ro de Stanis lavski " A Criação de u m p a p e l " (Edição Civiliza­ção Brasileira, pag. 2 3 8 ) , em que ele apresenta u m diálogo imaginário de u m professor da escola dramática c o m u m g r u p o de atores famosos. E i m p o s ­sível imaginar u m a expl i cação mais s imples e mais clara.

Q u a n t o à maneira de que Stanis lavsk i usava para realizar o t r a b a l h o c o m a "Aná l i se A t i v a " , e n c o n t r a m o s exp l i cações m u i t o claras a esse respeito no l i v r o " A V i d a T o d a " de M a r i a K n e b e l , a n t i g a aluna, atr iz e c o l a b o r a d o r a de Stan is lavsk i . E m 1936 , dois anos antes da m o r t e do mestre , ela f o i c o n v i ­dada a lec ionar no seu ú l t imo estúdio e x a t a m e n t e na época em que Stan is ­l a v s k i estava real izando suas pr ime i ras experiências do novo m é t o d o , c o m os a lunos da sua escola e os atores do seu t e a t r o .

" O s pr imeiros e x p e r i m e n t o s " , escreve M . K n e b e l , " c o n s i s t i a m no uso de do is elos inseparáveis: u m rápido r e c o n h e c i m e n t o dentro das "c ircunstâncias p r o p o s t a s " , por me io de rac ioc ín io e, e m seguida, u m " labora tór i o " . (*)

" O reconhec imento por m e i o de r a c i o c í n i o pressupunha u m a m e t o d o ­l o g i a m u i t o mais precisa do que a a n t e r i o r divisão da peça e do papel e m " p e d a ç o s " (**} . Nasceu o t r a t a d o sobre os " a c o n t e c i m e n t o s " o u , c o m o d iz Stanis lavski , os " f a t o s a t i v a n t e s " da peça , q u e pudessem ser usados c o m o verdadeiros propulsores da a ç ã o " .

N o Brasi l nós a d o t a m o s o t e r m o " R o t e i r o dos A c o n t e c i m e n t o s " . A seleção dos " f a t o s a t i v a n t e s " é u m p r o b l e m a difícil . U m er ro d o

d i r e t o r , nesse sent ido , pode p r e j u d i c a r e d e s v i r t u a r o t raba lho dos atores o u dos a lunos .

E m p r i m e i r o lugar surge o p r o b l e m a : os " a c o n t e c i m e n t o s " devem ser apresentados c o m m u i t a c lareza, c o m m u i t o s detalhes , ou super f i c ia lmente? M . K n e b e l conta que , q u a n d o ela apresentava a Stanislavski a sua l is ta de

( * ) T a n t o M. Knebel , c o m o o próprio S t a n i s l a v s k i , usavam em russo uma palavra francesa " é t u j e " , no sentido de "esboço de um e s t u d o " . Preferimos adoçar o termo "laboratório" por ser mais usual no B r a s i l .

( * * ) " U n i d a d e s de extensão", c o m o consta da tradução brasileira de " A criação de u m p a p e l " , pag. 24S.

102 EUGÊNIO K U S N E T

" a c o n t e c i m e n t o s " , ele invar iave lmente lhe p r o p u n h a cortes drást i cos , para que a peça pudesse ser vista pelo a tor , c o m o ele d i z i a , " d u v o i d ' o i s e a u " , i s to é, n o seu aspecto geral e m que se destacasse apenas o m a i s i m p o r t a n t e , de ixando os detalhes aos cuidados da própria "Anál ise A t i v a " .

" Q u a n t o ao sentido dos " l abora tór i o s " , c o n t i n u a M . K n e b e l , " a ide ia de Stanislavski também m u d o u . A n t e r i o r m e n t e , ele i m p r o v i s a v a c o m os alunos várias cenas " e m r e d o r " da peça. Os " l a b o r a t ó r i o s " re fer iam-se ao passado do personagem ou aos episódios capazes de esclarecer a " b i o g r a f i a " d o personagem Poster iormente , os alunos f a z i a m " l a b o r a t ó r i o s " s obre os acon­tec imentos da própria peça" .

Stanis lavski não se cansava de repe t i r que o m é t o d o da " A n á l i s e a t i v a " , p e r m i t e ao a tor inc lu i r n o processo de análise não s o m e n t e o seu cérebro , como também o seu corpo . Ass im o a t o r penetra fisicamente n o âmago da ação, dos choques e dos c o n f l i t o s e m que o personagem t o m a p a r t e .

E m b o r a aparentemente m u i t o s imples , o m é t o d o , na sua apl i cação prá­t ica, apresenta muitas di f iculdades p o r não ter s ido a i n d a s u f i c i e n t e m e n t e s istematizado.

Stanis lavski deixou-nos u m p lano , b e m c o n c r e t o , de t r a b a l h o c o m u m papel pe lo " M é t o d o de Ações Físicas", n o seu c i t a d o l i v r o (pag. 248). Pela riqueza dos detalhes e pela sua clareza, esse p lano dever ia serv ir de e x e m p l o , aparentemente ainda hoje , para q u e m se interessasse p o r esse t r a b a l h o espe­c í f i co . Mas o p lano f o i cr iado no p e r í o d o a n t e r i o r àquele e m q u e M . K n e b e l cooperou c o m Stanislavski na elaboração e nas pesquisas d o m é t o d o da "Análise A t i v a " . C o m o já v imos , Stanis lavski a l t e r o u p r o f u n d a m e n t e alguns detalhes, p r inc ipa lmente n o que diz respe i to à divisão d o m a t e r i a l dramatúr­gico em " p e d a ç o s " , subst i tu indo -o pela seleçâo dos " f a t o s a t i v a n t e s " . Ele m o r r e u antes de conc lu i r esse t r a b a l h o .

Os seguidores de Stanislavski c o n t i n u a r a m suas exper iênc ias . A lguns pub l i caram os resultados obt idos , mas não é fácil ass imi lar a técnica d o método através da le i tura dos l ivros e art igos escritos a r e s p e i t o . Eles não são concludentes e, às vezes, são até bastante contradi tór ios , o q u e nos dá a impressão de que todos os trabalhos dos adeptos de S t a n i s l a v s k i a inda se e n c o n t r a m e m fase de pesquisas i n d i v i d u a i s . Não nos resta, p o i s , o u t r a so lu­ção senão seguir o mesmo c a m i n h o de experiências na base d o q u e conhe ­cemos até agora.

Baseando-me e m algumas experiências feitas p o r m i m , p r o c u r a r e i dar uma ideia do uso desse processo.

Q u a l seria a melhor maneira de i n i c i a r o t r a b a l h o de u m a peça , pelo método da "Análise A t i v a " ?

E u hesito entre u m a le i tura (uma só!), e u m a s imples narração da peça pelo d i re to r . A meu ver, as duas formas são validas para u m a experiência c o m os alunos de uma escola dramática. Mas n u m t r a b a l h o c o n c r e t o c o m os

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atores a c o s t u m a d o s c o m o m é t o d o de improv isação , a escolha deve ser f e i t a pelo d i r e t o r , c o n f o r m e vários fatores que ele deve levar e m consideração: o nível i n t e l e c t u a l e artístico do seu e lenco , a experiência prof issional dos seus atores , a c o m p l e x i d a d e da obra dramática, a h a b i l i d a d e d o próprio d i r e t o r de d e s p e r t a r a atenção e a cur ios idade dos atores através de u m a narração, o prazo q u e ele t e m para os ensaios, etc . E n f i m , é a prática que pode i n d i c a r a m e l h o r escolha. O i m p o r t a n t e é que o d i r e t o r n ã o perca de vista o o b j e t i v o p r e p o n d e r a n t e nesse p e r í o d o : despertar o m a i o r interesse possível e p r e p a r a r o e s p í r i t o dos atores para a improvisação da ação cénica. Uma série de pequenos exerc íc ios de "v i sua l i zação " e de " m o n ó l o g o i n t e r i o r " , c o m o aqueles que sugerimos no fim d o terce i ro c a p í t u l o , seriam de grande u t i l i ­dade , p o i s p o d e r i a m predispor o a t o r para o a to de improvisação.

O ú n i c o m e m b r o da equipe que deve conhecer a peça deta lhadamente é o d i r e t o r . Ele deve estar em c o n d i ç õ e s de responder a todas as perguntas dos atores , mas e m hipótese a lguma deve c o m e ç a r os trabalhos pelos seus p r ó ­pr ios comentár ios . A razão desta r e c o m e n d a ç ã o é óbvia : quanto mais s i m ­ples e m e n o s detalhada f o r a ação p r o p o s t a , t a n t o mais l i v re será a p r i m e i r a improv isação dos atores.

N a m e d i d a do possível , t u d o deve ser en t regue à in i c ia t iva do ator . E ele que deve procurar as melhores c ond i ções para o seu próx imo i m p r o v i s o e, p o r t a n t o , é ele que deve pedir esc larec imentos sobre o que lhe parecer vago ou i n s u f i c i e n t e durante a l e i t u r a ou narração d o d i r e t o r . Este deve apenas or ientá- lo para evitar , desde o i n í c i o , erros primários .

O d i r e t o r não deve c o m e ç a r a improvisação de u m a determinada cena antes de constatar que os atores estão e m c o n d i ç õ e s de poder :

1) C o n t a r o que acontece na cena. E m t e r m o s de " Instalação" (vide o quarto capítulo) isso s igni f ica responder a p e r g u n t a : qua l é a " s i t u a ç ã o " e m que se processa a ação em cada d e t e r m i n a d o p e r í o d o da cena?

2) Responder a p e r g u n t a : Quais os o b j e t i v o s do personagem? E m t e r m o s de " Ins ta lação" isso s i g n i f i c a : quais são as "necessidades" d o personagem que ele precisa satisfazer e m cada d e t e r m i n a d o p e r í o d o da cena?

3 ) Responder o que far ia o a t o r : c o m o ele estaria agindo f is icamente se estivesse na situação d o personagem que p r o c u r a realizar seus objet ivos . E m t e r m o s de " Insta lação" isso s ign i f i ca : " t o m a r a a t i t u d e a t i v a " como se o a tor fosse o personagem.

(Aqui temos que fazer uma ressalva muito importante • Agir fisicamente não quer dizer executar apenas uma série de gestos e movimentos do perso­nagem. É um erro interpretar assim esse termo de Stanislai,slti. A fala huma­na também é uma ação física. Ela é consequência do pensamento humano e portanto também faz parte da ação física do personagem).

104 EUGÊNIO K U S N E T

U m a vez concluída essa p r i m e i r a parte do t r a b a l h o , a " I n s t a l a ç ã o " se efetua e o ator está em cond i ções de improv isar a cena.

E i m p o r t a n t e que, antes de começar a improvisação, o d i r e t o r e x p l i q u e novamente aos atores que a " I n s t a l a ç ã o " é u m estado de prontidão p s i c o -física para a realização de u m a d e t e r m i n a d a tare fa . E m t e a t r o , para conse ­guir essa prontidão, o a tor t o m a a " a t i t u d e a t i v a " d i a n t e dos p r o b l e m a s d o personagem, o que quer d izer : d u r a n t e a improvisação ele nunca deixa de usar a "visualização" e o "monólogo interior" do personagem.

Sem isso, muitas vezes o c o r r e , apesar da aparente clareza da " s i t u a ç ã o " e das "necessidades", ao a t o r , exc i tado pela perspect iva de u m t r a b a l h o m u i t o atraente, esquecer o l a d o rac ional do p r o b l e m a e passar a d e s c o b r i r , em p r i m e i r o lugar, o que ele sentiria se fosse o personagem, e m vez de simplesmente responder a p e r g u n t a i o que ele faria n o lugar do p e r s o n a g e m .

T o d o s nós, atores, sabemos c o m o é tentador descobr ir , desde os p r i ­meiros m o m e n t o s , os sent imentos que levam o personagem "às lágrimas amargas" ou " a o riso c r i s t a l i n o " .

E b o m insist ir na expl icação de que o ob je t ivo da "Anál ise A t i v a " n ã o é a busca de emoções , e sim a própria análise a c ompreensão d o q u e o personagem faz. As emoções virão c o m o consequência n a t u r a l de u m a a ç ã o certa.

C o n f o r m e já dissemos, Stanis lavski recomendava que antes de c o m e ç a r o t raba lho pelo método da "Aná l i se A t i v a " , o a tor apreciasse a peça " d e bem a l t o " , ' "du vo l d 'o iseau") , sem detalhes, p r o c u r a n d o ver apenas o m a i s i m p o r t a n t e .

Esse problema exige m u i t o c u i d a d o da parte do d i r e t o r que , r e p e t i m o s , é o único m e m b r o da equipe que deve conhecer a peça p r o f u n d a m e n t e . E ele que deve preestabelecer o m í n i m o de " f a t o s a t i v a n t e s " que p o s s a m servir, c o m o disse Stanislavski , de propulsores da ação d u r a n t e a i m p r o ­visação.

Para que os " f a t o s a t i v a n t e s " possam realmente servir de p r o p u l s o r e s , a divisão da "peça em " a c o n t e c i m e n t o s " deve ser m o t i v a d a m u i t o menos p e l a mudança das " s i tuações" do q u e pelas alterações que s o f r e m as "necess i ­dades" do personagem. O d i r e t o r deve descobrir os m o m e n t o s e m que m u ­dam as intenções e os ob jet ivos d o personagem e, e x a t a m e n t e n o m o m e n t o da mudança, i n t e r r o m p e r a cena, dando início a u m t re cho novo .

O u t r o prob lema, não menos grave, é o vo lume de in formações sobre a peça, que o d i r e t o r deve dar aos atores. A insuficiência de c o n h e c i m e n t o s das "circunstâncias propostas" pode levar os atores m u i t o longe do c o n t e ú ­do da peça. o que representaria u m a perda de t e m p o injustificável. Por o u t r o lado, o excesso de detalhes, e m b o r a m u i t o úteis e m si , é capaz de p r e o c u p a r demais o ator e, c o m isso, cercear a sua l iberdade de ação . C o m o e n c o n t r a r uma medida certa?

A T O R E M É T O D O 105

G o s t a r i a de i l u s t r a r essas d i f i cu ldades c o n t a n d o u m caso que se deu c o m i g o d u r a n t e o t r a b a l h o de estudos c o m u m g r u p o de a t o r e s .

N u m a das aulas , escolhemos c o m o m a t e r i a l para o e x e r c í c i o de "Anál ise A t i v a " a cena f i n a l de T r e p l i o v no ú l t imo a to de " A g a i v o t a " d e A . T c h e k o v .

O p e r s o n a g e m , depois de ter d e f i n i t i v a m e n t e fracassado c o m o d r a m a ­t u r g o , acaba de p e r d e r N i n a , a única m u l h e r que ele amava. Depo i s de u m a cena de e x t r e m o desespero, N i n a sai. S o z i n h o , d u r a n t e u m l o n g o si lêncio, T r e p l i o v chega à c o n c l u s ã o de que nada mais resta na sua v i d a e que , agora, não há o u t r a saída senão a m o r t e . D u r a n t e u m a pausa de d o i s m i n u t o s ele fica, rasgando l e n t a m e n t e todos os seus papéis e m a n u s c r i t o s e os j o g a em» b a i x o da e s c r i van inha . E é estranho que a única frase q u e * l e p r o n u n c i a d u r a n t e essa cena é : " N ã o é b o m que alguém e n c o n t r e N i n a no parque e depois c o n t e à m a m ã e . . . Isso pode magoá-la . . . " C o m isso ele sai. E n t r a m os o u t r o s personagens e, dentro de uns poucos m i n u t o s , ouve-se u m t i r o , T r e p l i o v acaba de m o r r e r .

O a t o r des ignado para esse exerc í c i o c onheceu a p e ç a , c o n f o r m e nos disse, através de u m a única l e i t u r a na véspera daque la aula .

A o c o m e n t a r a cena m u i t o s u p e r f i c i a l m e n t e , p r o c u r e i ev i tar detalhes , d e i x a n d o t u d o , a t í tu lo de experiência, aos cu idados d o a l u n o . Ele f a l o u sobre os seus insucessos em l i t e r a t u r a , sobre as suas re lações c o m N i n a e, p a r t i c u l a r m e n t e , sobre a cena trágica entre os dois n o ú l t imo a t o .

E u me de i p o r sat is fe i to , mas, antes de c omeçar a improvisação , l e m -bre i - lhe da necessidade de preocupar-se mais c o m a ação f ís ica do persona­gem do que c o m os seus sent imentos .

O a l u n o c oncent rou - se e, em seguida, i m p r o v i s o u a cena da destruição dos papéis e a cena do próprio suic íd io (esta última não faz parte do texto da peça).

É prec iso d i zer que o a luno i m p r o v i s o u as cenas c o m m u i t a s inceridade, v imos lágrimas nos seus olhos . E e n t r e t a n t o as cenas p r o d u z i r a m p o u c o e fe i to sobre os presentes , não c o m o v e r a m quase ninguém.

Para esclarecer a razão disso, ped i ao a t o r que nos expl icasse qual era o seu " m o n ó l o g o i n t e r i o r " durante a c o n c e n t r a ç ã o e o que ele estava pen ­sando.

— " E s t a v a pensando na m i n h a m o r t e p r ó x i m a " , — r e s p o n d e u ele, " n a dor que causaria a bala ao penetrar no crânio , n o desespero d a m i n h a mãe e dos o u t r o s d u r a n t e o m e u enterro . A visualização m u i t o i n t e n s a de t u d o isso causou-me u m a e n o r m e t r i s t e z a " .

— " E que mais? " — pergunte i eu. — " C r e i o que f o i só isso" , e p r o v a v e l m e n t e vendo o m e u desaponta­

m e n t o , c o n t i n u o u , - " V o c ê acha pouco? Mas você m e s m o disse que eu devia p r e o c u p a r - m e mais c o m a ação física. Por isso me p r e o c u p e i c o m o ato da m i n h a m o r t e " .

106 E U G Ê N I O K U S N E T

— " M a s eu não disse", — r e s p o n d i eu, — " q u e você não dev ia p r e o -cupar-se c o m as razões do s u i c í d i o , disse? A frustração de t o d a a sua v i d a , o seu fracasso c omo d r a m a t u r g o , o seu desespero ao perder N i n a , não p e n s o u em t u d o isso? "

— " Q u a n d o eu podia pensar nisso? " — " E n q u a n t o rasgava os p a p é i s " . — " B e m , eu pensei, mas . . . a n t e s " . — " Q u a n d o " ? — " O n t e m , depois da l e i t u r a da p e ç a " . — " O que vale dizer que desta vez não pensou? " — " E verdade" , — confessou o a tor .

Resumindo : o seu " v o l d ' o i s e a u " era a l to demais , ele só v ia a m o r t e e suas consequências, o que lhe c a u s o u u m a grande auto -p iedade (chave barata para todos os melodramas). A s informações sobre "as c ircunstâncias propostas " que ele usou na improv isação f o r a m insu f i c i en tes . N a p e ç a o fa to de sua m o r t e t e m menos importânc ia do que as causas que o l e v a r a m ao suicídio . Se as causas são o m i t i d a s , a m o r t e , p o r si , p o u c o i m p r e s s i o n a .

E m b o r a absolutamente s i n c e r o , o a tor não causou ao espec tador m a i s do que " a pena do c o i tad inho q u e m o r r e " , pouco mais do que causaria u m a notícia po l i c i a l n u m j o r n a l .

T u d o isso eu conte i ao a t o r , e, receando que ele esquecesse deta lhes i m p o r t a n t e s , pedi que repetisse todas as razões que l evaram T r e p l i o v ao suicídio. Quando ele esquecia a l g u m detalhe c o m o , por e x e m p l o , l e i t u r a de u m a carta de amor, antes de rasgá-la, ou de u m caderno c o m a p r i m e i r a cena de teatro , que ele escreveu a inda n o t e m p o de co l ég i o , e o u t r o s papéis que ele devia " v i s u a l i z a r " antes de rasgá-los, eu subl inhava a importânc ia desses detalhes.

Q u a n d o o ator c o m e ç o u a preparação para a cena, a sua c o n c e n t r a ç ã o levou m u i t o mais t empo do que na p r i m e i r a vez. Isso me d e i x o u i n q u i e t o , — comecei a sentir e lamentar o m e u e r r o : sobrecarreguei o rapaz c o m o excesso de detalhes, d i f i c u l t a n d o - l h e a jmprov isação .

Realmente , u m m i n u t o depo is de ter c o m e ç a d o a cena de rasgar os papéis, ele parou . Quando lhe p e r g u n t e i , por que? ele disse que não conse­guia lembrar-se o que mais ele dev ia ler antes de rasgar, além da c a r t a e d o caderno, e que isso o de ixou c o m p l e t a m e n t e fora de ação.

Além de pedir-lhe desculpas p e l o erro imperdoável que c o m e t i , p r o p u s que ele deixasse de pensar nos detalhes e que se concentrasse apenas n a " s i tuação " e nas "necessidades" : fracasso t o t a l na sua v ida e o inevitável suicídio, apesar do medo de m o r r e r . Depois de u m a rápida preparação ( 'ação a n t e r i o r " ) o ator r e c o m e ç o u a improvisação.

A T O R E MÉTODO 107

Desta vez não v i m o s lágrimas nos seus o lhos , ele parec ia quase c a l m o , mas a tensão nervosa que a cena causou entre os seus colegas l e v o u alguns deles às lágrimas.

O seu " m o n ó l o g o i n t e r i o r " , que ele p r o c u r o u restabelecer e m voz a l ta , c o r respond ia à nossa sugestão, e nas frases que desta vez ele c i t o u , não houve n e n h u m a referência aos " s e n t i m e n t o s trágicos" , não h o u v e mais que u m rac i o c ín io sobre a situação sem o u t r a saída senão a m o r t e . E n t r e t a n t o , a sua improv isação f o i u m verdadeiro e x e m p l o de c o m u n i c a ç ã o e m o c i o n a l entre o a t o r e a p l a t e i a .

' U m a exce lente demonstração de c o m o se usa u m s imples rac ioc ín io n o t r a b a l h o c o m a " A n á l i s e A t i v a " e c o m o disso r e s u l t a m e m o ç õ e s é dada no anexo do l i v r o " A cr iação de u m p a p e l " .

N u m a cena que não f o i publ icada no t e x t o d o l i v r o , o pro fessor T o r t s o v d e m o n s t r a aos a lunos da escola o t raba lho c o m o papel de K l e s t a k o v , e m " O i n s p e t o r g e r a l " , na cena de sua p r i m e i r a entrada . Para m a i o r c lareza , t r a d u z i u m pequeno t r e c h o , no qual o professor T o r t s o v r a c i o c i n a e m voz al ta e n q u a n t o ensaia a cena , i m p r o v i s a n d o t u d o .

" . . . E s t o u c o m f o m e , mas onde é que v o u arranjar c o m i d a ? Não sei o que fazer. M a n d a r Oss ip ou i r pessoalmente ao bu fe te e fazer lá u m grande escândalo c o m o d o n o da hospedaria? N o lugar de K l e s t a k o v eu também estaria i n d e c i s o " .

T o r t s o v n o v a m e n t e saiu do palco . D e m o r o u fora m u i t o t e m p o , prova ­v e l m e n t e para se cercar m e n t a l m e n t e das "circunstâncias p r o p o s t a s " .

Depo i s l e n t a m e n t e abr iu a p o r t a e, indec iso , p a r o u n o u m b r a l . E m seguida, t e n d o r e s o l v i d o i r ao bu fe te , T o r t s o v a b r u p t a m e n t e v i r o u as costas a Óssip para que este lhe tirasse dos o m b r o s o s o b r e t u d o , e o r d e n o u , c u r t o : " T i r e ! "

Depo i s c o m e ç o u a fechar a p o r t a atrás de si para descer ao b u f e t e , mas de repente acovardou-se , parou m u i t o q u i e t i n h o , e t i m i d a m e n t e de novo e n t r o u n o q u a r t o , f e c h a n d o a p o r t a devagarinho.

" A pausa f o i l o n g a demais " , c o m e n t o u T o r t s o v , " h o u v e m u i t o s detalhes supérfluos, i n v e n t a d o s , mas uma ou o u t r a coisa veio da r e a l i d a d e " .

(£ claro, que,durante todo esse tempo, Tortsov não estava procurando "sentir" coisa alguma, ele estava simplesmente raciocinando e comentando a ação que acabava de executar. — E. K.)

- " B e - e - e m ! . . . " , c o n t i n u o u ele fa lando entre os d e n t e s . "Para c o m ­preender a rea l idade da ação na peça, por e n q u a n t o basta-me o que eu achei nesta cena. C o m t e m p o t u d o isso vai assentar m e l h o r . V a m o s ad iante , ao segundo ep i sód io q u e eu chamaria " e s t ou c o m f o m e " . Al iás , o p r i m e i r o episódio t e m o m e s m o prob lema . . . "

108 E U G Ê N I O K U S N E T

Ele parou , f i cou m u i t o t e m p o pensat ivo , imóvel, f a l a n d o b a i x i n h o : — "Be-e-em! . . . C o m p r e e n d o ! . . . A escada p r i n c i p a l f i ca . . . a í " , ele

i n d i c o u o corredor , por onde acabava de entrar . " O que é que m e a t r a i mais? " , perguntou ele a si p r ó p r i o .

" T o r t s o v não fazia nada, apenas m e x i a os dedos, c o m o que p r o c u r a n d o ajudar o seu raciocínio. C o n t u d o estava se operando nele u m a certa a l t e ra ­ção , ele se tornava desamparado , c o m os olhos de u m c o e l h o assustado, e t o d o o seu rosto parecia o de u m a criança, mais manhosa do que zangada . Ele ficou imóvel, e n t o r p e c i d o , não pensando em nada, c o m o o lhar p a r a d o n u m p o n t o . Depois, c o m o que a c o r d a n d o , perscrutou c o m os o lhos t o d o o q u a r t o procurando alguma c o i s a " .

" E u admire i a sua f i r m e z a n o t r a b a l h o . A d m i r e i a inda mais o f a t o de que, não obstante a sua aparente i n a t i v i d a d e , eu senti t o d a a in tens idade de sua vida i n t e r i o r " .

Pensem bem no resultado dessa demonstração. O raciocínio frio c o m que o professor Tortsov estava e l a b o r a n d o as ações físicas de K l e s t a k o v não impediu que os sentimentos reais surgissem espontaneamente, a p o n t o de causar admiração aos espectadores.

U m dos maiores obstáculos na prática dos " l a b o r a t ó r i o s " , c o m u m grupo de atores pouco exper ientes n o campo de improvisação, é a o b r i g a ­tor iedade de enredos f i xos , de temas concretos. Basta d izer ao a t o r : " I m p r o v i s e o que eu acabo de te c o n t a r " , para que ele se s inta a inda mais constrangido do que nas famosas " l e i t u r a s expressivas" às quais o b r i g a v a m o ator antigamente para que ele revelasse as suas "poss ib i l idades no c a m p o emoc iona l da peça" .

Nesse caso, o andamento d o t r a b a l h o depende m u i t o da h a b i l i d a d e d o d i r e t o r . O constrangimento desaparece quando o d i r e t o r consegue "se­d u z i r " os seus atores t o m a n d o par te do jogo de improvisação j u n t o c o m eles, atraindo-os ao j ogo até que eles próprios " a c h e m graça" nas i m p r o ­visações.

L e m b r o - m e de u m ator q u e , desde o início dos t raba lhos c o m u m a peça. declarou-se contrário ao m é t o d o da "análise a t i v a " . Ele e x p l i c o u que estava acostumado a u m o u t r o processo, com o q u a l , aliás, dava-se m u i t o b e m : receber o t e x t o , p r o c u r a r compreendé - lo através de várias l e i t u r a s , assimilá-lo a ponto de " s e n t i r o p a p e l " e só começar a agir n o lugar do personagem depois de decorar o t e x t o . Ele não concebia n e n h u m a o u t r a maneira de trabalhar.

A razão de sua a t i t u d e , a m e u ver, não era apenas o hábi to de t r a b a ­lhar de maneira d i ferente , era u m a t o r m u i t o j o v e m para ter hábitos e n r a i ­zados. A verdadeira razão era s implesmente a inibição. Ele se j u l g a v a incapaz de improvisar e, c o m o a maior ia dos atores , t i n h a m e d o de expor-se ao ridículo.

A T O R E MÉTODO 109

E x p l i q u e i - l h e que pessoa lmente julgava-me u m péssimo i m p r o v i s a d o r , mas que este f a t o não m e i m p e d i a de usar improvisação d e n t r o das m i n h a s poss ib i l idades , p o r q u e a prática me d e m o n s t r o u a grande u t i l i d a d e desse m é t o d o .

Para convencê - l o p r a t i c a m e n t e , pedi a co laboração dos seus colegas mais e x p e r i m e n t a d o s , no s e n t i d o de improv isar u m a cena em que fosse mais fácil envolver o a t o r . F o i e s co lh ida a mais engraçada cena da peça, e m que o personagem do a t o r era l íder de u m a alegre mistif icação. Provocado e i n s t i ­gado p o r t odos nós , e le , p o u c o a pouco , c o m e ç o u a sent i r o g o s t o da l ide rança (oh, vaidade do ator!) e, em seguida, quase sem demora integrou-se no p a p e l : t o m o u c o n t a da b r i n c a d e i r a em p u r a improvisação.

E m poucos dias esse a t o r tornou-se u m dos maiores entusiastas d o m é t o d o . A l ém de se s e n t i r m u i t o à vontade d e n t r o da a tmos fera de b r i n ­cadeira geral das p r i m e i r a s improvisações, ele aprendeu r a p i d a m e n t e a e x t r a i r da sua ação vários detalhes i m p o r t a n t e s para a c o m p o s i ç ã o d o perso­nagem. T u d o isso se processava, c o n f o r m e ele disse, d e n t r o de u m a abso lu ta espontane idade .

O p r o b l e m a da e s p o n t a n e i d a d e , no nosso m e i o , é a inda m u i t o c o n f u s o . Há atores que p r e z a m t a n t o a sua espontaneidade que têm m e d o de p r e j u ­dicá-la pelos estudos da a r t e dramática. " O u há espontaneidade e, p o r t a n t o , há u m verdade i ro a t o r " , d i z e m eles, " o u não há espontaneidade e, então , não a d i a n t a n e n h u m m é t o d o " .

U m dos meus a l u n o s , d i s c u t i n d o esse p r o b l e m a d u r a n t e u m a aula , disse que achava imposs íve l a d q u i r i r a espontaneidade r e a l , igual àquela que nos é dada pela própr ia natureza, m e s m o através dos recursos da "Anál ise A t i v a " .

Para i l u s t r a r sua ideia , ele c i t o u o espetáculo de A d e m a r G u e r r a , " H a i r " . Ele achava que o segredo d o a l t o nível do espetáculo era a espontane idade autêntica da m a i o r i a dos intérpretes, e que u m resul tado i g u a l nunca p o d e r i a ser o b t i d o por ou t ros m e i o s .

" O s atores do e l e n c o " , disse ele, " r e a l m e n t e a d o r a m a j u v e n t u d e e suas manifestações na peça. P o r que gastar t e m p o exp l i cando - lhes isso? E x p l i c a r o que é j u v e n t u d e aos q u e rea lmente são j ovens é o m e s m o que p e r f u m a r u m a f l o r c o m a água de c o l ó n i a " .

A c r e d i t o que , e m p r i n c í p i o , ele t i n h a razão e que a admirável e sponta ­neidade daqueles j ovens a tores era intocável.

Mas eu p e r g u n t o : p o r q u a n t o t e m p o o d i r e t o r p o d e r i a m a n t e r essa espontaneidade autêntica de t odos os seus intérpretes? Não es tar iam eles, a lgum d ia , cansados dessa alegria diária? A sua espontaneidade não c o r r e r i a o risco de s u c u m b i r sob o peso da obrigação de repet i r sempre a mesma a ç ã o ' E então , e m vez de u m a verdadeira c o m u n i c a ç ã o e m o c i o n a l q u e era a chave do espetáculo , não f i c a r i a apenas a sua f o r m a cos tumei ra , b o n i t a mas

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f r ia (o que, aliás, aconteceu no fim da carreira da peça)? E , nesse caso, c o m o subs t i tu i r a espontaneidade autêntica, mas j á esgotada?

A resposta não se fez esperar. D u r a n t e u m curso organizado no t e a t r o " A q u a r i u s " para o elenco da peça " H a i r " e para vários atores de f o r a , eu propus ao grupo, c o m o exerc í c io de improv i sação , o t ema do in í c i o da peça ,

p r i m e i r o encontro de " h i p p i e s " e n q u a n t o a atr i z Mar ia He lena cantava " A q u a r i u s " .

Os atores deviam concentrar-se para a a ç ã o p o r me io de u m a " c a r t a " , — u m novo recurso que e x p l i c a r e i mais t a r d e , mas que, no f u n d o , é u m a improvisação dos antecedentes da ação c é n i c a e. p o r t a n t o representa u m a i l a s f a s e s da "Análise A t i v a " .

Cada ator , quando t e r m i n a v a a sua " c a r t a " , pod ia e n t r a r e m cena e começar a comunicar-se livremente c o m os seus amigos do g r u p o " h i p p y " desprezando até mesmo as marcações da f a m o s a cena de " câmara l e n t a " .

Uns v inte atores, não ocupados naque le t r a b a l h o , ficaram c o m o especta­dores na plateia.

A concentração, ou seja, o processo de escrever as " c a r t a s " e a en t rada lenta, u m por u m , dos atores, l e v a r a m m u i t o t e m p o e chegaram a cansar os nossos espectadores.

Q u a n d o no palco reuniu-se a p r o x i m a d a m e n t e a metade dos p a r t i c i p a n -t e i , a ação ficou bastante an imada . Mas q u a n d o , finalmente, t o d o s os atores

m e o n t r a r a m em cena, eles chegaram a c r ia r u m ambiente de Suprema amizade e felicidade humana que se t r a n s f o r m o u em verdade i ra c o m u n i ­cação emoc iona l co let iva : havia risos, lágrimas e aplausos t a n t o na p late ia t o m o no palco.

E n o t e : não se tratava de u m t e m a n o v o , capaz de exc i tar a imaginação dos atores pela sua nov idade , e s i m de u m espetáculo em vias de meca-n l i i ç l o .

Isso nos demonstrou que a e s p o n t a n e i d a d e esgotada pode ser r e a d q u i ­rida através do trabalho c o m a "Aná l i se A t i v a " . Se o resul tado não f or tão per fe i to c o m o aquele que a n a t u r e z a p r o d u z através da espontaneidade autêntica do ator , pelo menos eíe será mais duradouro e menos sujeito a ilesgaste e mecanização, pois poderá ser s empre renovado consc i entemente e não dependerá da inspiração d o a t o r .

Para ver as causas reais disso, basta l embrar - se das par t i cu lar idades da " I nstalação", verificadas e c o n f i r m a d a s c i e n t i f i c a m e n t e .

1) A "Instalação" , o u usando o t e r m o d o m é t o d o de Stan is lavsk i , a " f é cénica" , é um estado psicofísico que nos possibilita a aceitação de uma tttuaçÒo e de objetivos alheios como se fossem nossos (veja o fim do pri­meiro capitulo).

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2) A imaginação, — e p o r t a n t o , a espontaneidade, — é uma faculdade exercitável. A espontaneidade i n a t a pode ficar a t r o f i a d a por falta de e x e r c í ­cios, o u crescer e enriquecer-se pelos exercíc ios de imaginação c o n s t a n t e s que, em t e a t r o , sempre r e d u n d a m n o uso de " Insta lações" .

3) A " I n s t a l a ç ã o " (a " f é c é n i c a " ) , quando e laborada c o r r e t a m e n t e , é estável e fixa (veja o quarto capítulo). Isto quer dizer que ela p o d e ser repetida sem que a repetição p r e j u d i q u e sensivelmente a espontaneidade d o ator . A "Instalação" sobre situações imaginárias, c o m o ela é sempre e m teatro , cria, c o n f o r m e f o i p r o v a d o c i en t i f i camente , ilusões que perduram enquanto o indivíduo mantém a atitude ativa para com o imaginado.

P o r t a n t o , é evidente que a " A n á l i s e A t i v a " , c o n f i r m a d a c i e n t i f i c a m e n t e e aprovada na prática por ter d a d o excelentes resultados , deve ser usada e m nossos teatros . A m e u ver, a única coisa que dificulta o seu uso em larga escala é a falta de atores acostumados com a prática de improiisações.

N u m dos encontros que t i v e c o m nossa gente de t e a t r o , u m d i r e t o r m e p e r g u n t o u se eu acharia poss ível usar o m é t o d o de "Anál ise A t i v a " q u a n d o o prazo para a m o n t a g e m de u m a peça fosse m u i t o c u r t o , por e x e m p l o , u m mês. E u respondi que , se os a tores de seu elenco não tivessem prática de improvisação, seria u m a v e r d a d e i r a l oucura tentar a "Anál ise A t i v a " nessas condições , mas que, numas p o u c a s experiências feitas c o m atores b e m t r e i ­nados e m improvisações (embora de pouca prática em teatro profissional), fo i p rovado que u m a peça p o d e ser estreada c o m apenas u m mês de ensaios .

E m p a r t e , isso se e x p l i c a p e l o fa to de que as improvisações, além de indispensáveis no t r a b a l h o d o a t o r , r e d u n d a m n u m a real e c o n o m i a de t e m p o no t r a b a l h o do d i r e t o r , por várias razões entre as quais há as seguintes:

— p o r q u e o d i r e t o r , d u r a n t e as improvisações dos seus atores, f r e q u e n ­temente constata e corr ige possíveis erros de sua própria c o n c e p ç ã o d o t e x t o dramatúrgico, e laborada p r e v i a m e n t e , — ele gasta menos t e m p o e m seus estudos teór i cos :

— p o r q u e , d u r a n t e as improvisações , ele adquire ideias novas e m a i s nítidas sobre as futuras " m a r c a ç õ e s " , que às vezes p o d e m ser fixadas desde logo ;

— e, p r i n c i p a l m e n t e , p o r q u e o d i r e t o r o b t é m exemplos de " t e m p o -ritmo" c r iado espontaneamente que também pode ser selecionado e fixado na hora .

Mas a improvisação é u m " p a u de duas p o n t a s " . Ela pode trazer u m bem inestimável, c o m o t a m b é m pode causar grandes t rans to rnos , se não f o r usada r a c i o n a l m e n t e .

Na prática do uso dos " l a b o r a t ó r i o s " em nossos teatros houve m u i t o s casos q u a n d o os atores , e s t i m u l a d o s pelo d i r e t o r que lhes dava a l i b e r d a d e

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i l i m i t a d a para improvisar d e n t r o de u m tema r e l a t i v a m e n t e vago, conse­guiam resultados impressionantes da vivência i n t e r i o r autênt ica d o perso­nagem, nas suas mais agudas manifestações. A p a r e n t e m e n t e os atores a d q u i ­riam, através disso, u m mater ia l e m o c i o n a l de grande impor tânc ia para a interpretação do papel.

Mas quando , para f ixar os resultados o b t i d o s — o q u e , e v i d e n t e m e n t e era o o b j e t i v o essencial dos trabalhos — o d i r e t o r ped ia para r e p e t i r o i m p r o ­viso, os atores não conseguiam r e p r o d u z i r a déc ima parte d o r e s u l t a d o ante­rior. Isso frequentemente causava perp lex idade de par te a p a r t e , chegava a p r o d u z i r u m a decepção t o t a l e até o a b a n d o n o do m é t o d o de improvisação.

Q u a l seria a causa do insucesso d o a tor ao r e p e t i r o " l a b o r a t ó r i o " ? Por que ele não conseguia resultado igual o u , ao menos , s e m e l h a n t e ao da p r i ­meira vez?

É que na repetição desaparecia o f a t o r nov idade , surpresa . Na pr ime i ra vez o ator agia espontaneamente sob o e f e i t o da es t imula ­

ção sugestiva do d iretor e da incitação da sua própria imag inação que em nada f o i l i m i t a d a pelo d i re tor .

Mas na segunda vez, antes de repe t i r o " l a b o r a t ó r i o " a p e d i d o do d i re ­t o r , o a tor , em vez de se entregar n o v a m e n t e a u m a e x c i t a ç ã o inconsc i ente , encontrava-se diante de u m p r o b l e m a b e m consc iente : " C o m o é que vou repetir? O que é que vou fazer para f i x a r o resultado? E. aliás, q u a l f o i esse resultado? "

E a resposta não v inha, porque o a tor não conseguia restabelecer na memória as ações que lhe t i n h a m causado as sensações do p r i m e i r o i m p r o ­viso; porque ele, depois do p r i m e i r o " l a b o r a t ó r i o " , de ixava de fazer o mais i m p o r t a n t e : analisar friamente o resultado conseguido, c o n s t a t a r , selecionar e fixar os elementos de ação usados por ele i n t u i t i v a m e n t e d u r a n t e a i m p r o ­visação: o seu " m o n ó l o g o i n t e r i o r " e as suas "v i sua l i zações " . Graças a in ter ­dependência da ação física e à ação m e n t a l , ele p o d e r i a n a repetição do " l a b o r a t ó r i o " , usar conscientemente o que de " p a l p á v e l " tivesse encon­t rado , na certeza de que a " a ç ã o i n t e r i o r " c o m as suas e m o ç õ e s vo l tar ia a u t o m a t i c a m e n t e durante a repetição, enr iquec ida a inda m a i s pelas novas descobertas. Lembrem-se do e x e m p l o da interdependênc ia desses dois aspectos da ação humana, n u m a cena de " O C a n t o da C o t o v i a " , que c i tamos no segundo capítulo.

Mui tas vezes o ator cria i n t u i t i v a m e n t e t o d o o " t e m p o - r i t m o " da cena que improv i sa , mas se ele e o d i r e t o r não se derem c o n t a d isso , a preciosa descoberta ficará esquecida.

Lembrem-se do maravi lhoso " t e m p o - r i t m o " do " D i á r i o de u m l o u c o " de N . Gogo l . Se os seus criadores, Ivan de A l b u q u e r q u e e R u b e n s Correa, não o tivessem f ixado fisicamente — c o m o eu p r o c u r e i d e m o n s t r a r no capí­t u l o anter i o r . — talvez o próprio espetáculo ter ia p e r d i d o g rande parte de

A T O R E M É T O D O 1 1 3

suas qualidades e, além disso, t e r i a ficado m a i s expos to ao risco de se ver u m d i a mecanizado . A c r e d i t o que o apo io s ó l i d o para o permanente frescor d a q u e l e espetáculo f o i o seu " t e m p o - r i t m o " e n c o n t r a d o i n t u i t i v a m e n t e , mas f i x a d o consc ientemente j u n t o aos o u t r o s e l e m e n t o s selecionados d u r a n t e os ensaios.

Nesse processo de p e r m a n e n t e seleção dos resultados da ação i m p r o ­v isada é que reside o v e r d a d e i r o va lo r da " A n á l i s e A t i v a " .

Nas recordações de M a r i a K n e b e l no seu l i v r o " A vida t o d a " e n c o n t r a ­m o s u m a admirável conc lusão que a a u t o r a t i r a de u m a conversa que ela, no seu t e m p o de aluna da escola-estúdio d o T e a t r o de A r t e , teve c o m a pro fes ­sora E. S. Telechova.

A professora lhe disse: " Improv i sação só pode se t o rnar f o r m a s u p r e m a de ar te t ea t ra l , se o a t e r conseguir e n q u a d r a r seu i m p r o v i s o sempre d e n t r o das "circunstâncias p r o p o s t a s " .

E depois, fa lando do a t o r genial M i k h a i l Tchekov , c o m q u e m M . K n e b e l estava estudando a n t e r i o r m e n t e , a pro fessora disse: " F o i b o m ele ter c o n t a g i a d o você c o m o espírito de improv i sação , mas o m a l é que você não a p r e n d e u a fazer o essencial: conservar o q u e v o c ê adquire através da i m p r o ­visação e saber usá-lo à sua v o n t a d e " .

Depois da criação espontânea da ação c én i ca , deve-se usar n o v a m e n t e o mais p u r o rac ioc ínio sobre os resultados conseguidos , para selecioná-los. r e j e i t a n d o os que este jam fora da lógica das "c ircunstâncias p r o p o s t a s " e os que sejam de pouca eficiência o u importânc ia .

N o decorrer de m u i t o s t raba lhos f e i t o s p o r m i m j u n t o aos a lunos e atores constate i que a consc iênc ia da necessidade de selecionar os e lementos da ação improvisada n e m sempre é s u f i c i e n t e para levar o t raba lho a resul­tados satisfatórios. Para usar esses e l ementos novos c o m o máx imo p r o v e i t o nas improvisações subsequentes, é preciso saber usá-los com a mesma espon­taneidade da improvisação anterior.

De que maneira pode o a t o r conseguir q u e a co l ocação consciente de fat ores racionalizados não p r e j u d i q u e a sua espontaneidade na próx ima improvisação?

E m p r i m e i r o lugar , p r o c u r e m o s c o m p r e e n d e r o que é que pode p r e j u ­d i c a r a espontaneidade nesse caso. É e x a t a m e n t e a tendência de usar os novos elementos conscientemente. Se o a t o r , d u r a n t e a improvisação, se l e m b r a r de repente que ele deve i n c l u i r este o u aquele e lemento , é c laro que , naque le m o m e n t o , desaparece o própr io esp í r i t o de improvisação, pois o a t o r , e m plena ação i m p r o v i s a d o r a , p r o c u r a racionalizá-la, o que, ev idente ­m e n t e , ex c lu i a própria improvisação .

Por isso, o ator n u n c a deve perder de v i s t a a necessidade de d i s t i n g u i r , d u r a n t e o t raba lho pe lo m é t o d o de "Anál i se A t i v a " , as duas fases que se usam a l ternadamente :

114 EUGÊNIO K U S N E T

1) Selecionar rac iona lmente os elementos da ação i m p r o v i s a d a . Esses elementos devem tomar f o r m a de " M o n ó l o g o I n t e r i o r " e de " V i s u a l i z a ç õ e s " do personagem, de cujo teor o a t o r pode t o m a r n o t a p o r escr i t o . P o r t a n t o , essa fase é puramente rac ional .

2) E m seguida, a par t i r d o início de u m a nova improv isação , o a tor deve dedicar-se unicamente ao " C o n t a t o " e à " C o m u n i c a ç ã o " c o m a ação cénica ora improvisada, isto é , prestar a máxima atenção ao que se passa e m cena, usando para isso os " C í r c u l o s de A t e n ç ã o " e a " V i s u a l i z a ç ã o das Falas" , c omentando e aval iando ininterruptamente t o d a a ação i m p r o v i s a d a pelos outros . Só assim o ator pode fazer f u n c i o n a r n o v a m e n t e a sua espon ­taneidade dentro das circunstâncias novas resultantes da seleção f e i t a .

Q u a n t o ao perigo de perder de vista os novos e lementos se lec ionados o ator não deve preocupar-se c o m isso, pois a própria n a t u r e z a se encarregará do processo de fazer ressurgir e m ação i m p r o v i s a d a , i n d e p e n d e n t e m e n t e de sua vontade , t u d o o que f o i gravado na sua mente através do r a c i o c í n i o . Se o ator realmente passou pelo treino no sentido de desenvolver a sua receptivi­dade da ação dos outros, c o n f o r m e comentamos no in íc io deste c a p í t u l o , ele estará sempre p r o n t o para receber esse auxí l io de sua n a t u r e z a c r i a d o r a .

Possíveis pequenas falhas nesse processo, i s t o é, o d e s a p a r e c i m e n t o de u m o u o u t r o detalhe selecionado, não representa per igo a l g u m , p o i s nos comentários seriam constatadas e novamente sub l inhadas .

E m b o r a a seleção dos e lementos da ação i m p r o v i s a d a seja, n o r m a l ­mente , feita pelo d iretor e c o m u n i c a d a durante os comentár ios aos a tores , estes também podem e devem fazer a seleção por c o n t a própria . N ã o i m p o r ­ta que a escolha seja errada, d u r a n t e os comentár ios surgirá u m a discussão com o d i re tor e isso só poderá ser útil, pois o a t o r chegará à c o n c l u s ã o correta não por uma simples indicação do d i r e t o r , mas através da sua própria in i c ia t iva , o que certamente fixará o resultado na m e n t e do a t o r m a i s n a t u ­ra lmente .

A aplicação dos e lementos selecionados nas improvisações subsequentes exige m u i t a habil idade e prática do d i r e t o r que deve saber e n c a m i n h a r as improvisações sempre na direção certa, e s t imular a imaginação dos atores c o m sugestões oportunas , que p o d e m ser feitas em voz al ta d u r a n t e a ação improvisada. A o intercalar as suas réplicas, o d i r e t o r não deve ter m e d o de " d e s t r u i r o estado emoc ional do a t o r " . Para m a i o r eficiência desse t r a b a l h o , o d i re tor pode, inclusive t o m a r parte na ação i m p r o v i s a d a c o m o u m perso­nagem imaginário aux i l iar , não existente na peça. Os atores , p o r sua vez, devem acostumar-se c o m as intervenções do d i r e t o r , p r o c u r a n d o aceitá-las com a maior natural idade, c o m o se elas fizessem parte n o r m a l da i m p r o ­visação.

A T O R E MÉTODO 1 1 5

D u r a n t e os comentários que n o r m a l m e n t e são f e i t o s depois de cada " l a b o r a t ó r i o " , o d i r e t o r , para j u s t i f i c a r suas críticas às falhas de lógica c o m e t i d a s pe los atores, ou para t o r n a r mais claras as indicações que lhes da sobre os n o v o s e lementos de ação , lê u m d e t e r m i n a d o t r e c h o da cena corres­p o n d e n t e e, e m seguida, comenta-a .

C o m isso, ele não somente corr ige as falhas e i n d i c a o caminho c e r t o , c o m o t a m b é m faz c o m que os atores ass imi lem, cada vez mais , o t e x t o da peça e o r e t e n h a m na memória a u t o m a t i c a m e n t e . D e s t a mane ira o diálogo i m p r o v i s a d o p o u c o a pouco é substituído pelo t e x t o e x a t o da peça.

Nas poucas experiências e m que a "Anál ise A t i v a " f o i usada co r re ta -m e n t e , os a tores nunca precisaram decorar o t e x t o , ele se fixava na memória impercept ível m e n t e .

A o s l e i t o r e s que duv idarem disso gostaria de c o n t a r u m dos casos que f r e q u e n t e m e n t e acontec iam nas minhas experiências c o m os nossos atores.

A o t r a b a l h a r c o m u m d e t e r m i n a d o g rupo de a tores , usamos como m a t e ­rial para os nossos estudos o t e x t o de "Os Pequenos Burgueses " . A i m p r o v i ­sação da cena de Helena c o m Têterev no 3 . ° a t o f o i r e p e t i d a muitas vezes pelos m e s m o s intérpretes. As improvisações sempre f o r a m comentadas antes de serem repe t idas .

N u m a c e r t a a l t u r a , no tamos que d u r a n t e a improv isação muitas falas f i c a r a m idênticas às do t e x t o de G o r k i .

C o m o a c o n t e c e u isso, se a a t r i z fazia questão de não m e m o r i z a r o t e x t o , e s im sempre e un i camente improvisá-lo? Não p o d i a tê - lo m e m o r i z a d o i n v o ­l u n t a r i a m e n t e ? F o i exatamente o que aconteceu , p o r q u e durante os c o m e n ­tários nós c i távamos vários detalhes do t e x t o o r i g i n a l p a r a corr ig i r os erros de lógica c o m e t i d o s durante a improvisação. Se, p o r e x e m p l o , na cena i m p r o v i s a d a n ã o sentíamos a f e m i n i l i d a d e de H e l e n a , apontávamos à atr i z essa omissão e, para j u s t i f i c a r a nossa crítica, c i távamos as falas c omo : "E les a d o r a v a m os passarinhos, como adoravam a mim também . . . " , o u : " E u me vestia, s ó para agradá-los, da mane ira mais v istosa poss íve l . . . " Essas c i t a ­ções e r a m tão o p o r t u n a s e interessavam t a n t o a a t r i z q u e se fixavam na sua memória m u i t o mais fac i lmente do que através da " d e c o r a ç ã o " .

É e v i d e n t e a enorme vantagem desse processo. A assimilação pau la t ina do t e x t o da peça e l imina o m a i o r m a l do processo de decorar o pape l : a aceitação obrigatória de um texto em cuja criação o ator nunca tomou parte.

N o processo de assimilação p a u l a t i n a o a t o r aceita as correções do t e x t o por ele i m p r o v i s a d o , pouco a p o u c o , não por i m p o s i ç ã o , mas em sucessivas discussões depo is de cada improvisação, cedendo à lógica e â qualidade d o t e x t o da peça .

Através desse processo o a tor chega à sensação de ser o co-autor do t e x t o e, por isso, o aceita como se fosse dele própr io .

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Se no iníc io dos trabalhos é aconselhável evitar detalhes das " c i r c u n s ­tâncias propostas" para não d e i x a r de ver a peça " d u v o l d ' o i s e a u " , é prec iso não esquecer que a colocação paulatina desses detalhes é inevitável e neces­sária. Os atores devem pouco a p o u c o c o m e ç a r a t o m a r c o n h e c i m e n t o t a n t o dos diálogos c omo das ações físicas exatas .

O b o m ou o mau te rmo desse processo de conhec imentos e assimilações paulat inos dos elementos obr igatór ios da peça (texto, movimentos, am­biente, costumes, etc.) depende i n t e i r a m e n t e da sensibi l idade d o d i r e t o r : apressando demais esse processo, ele p r e j u d i c a a improvisação, p o r q u e ao i n t r o d u z i r antes do t empo m u i t o s deta lhes obrigatórios, t o l h e c o m isso a l iberdade da ação do a tor ; mas, a t r a s a n d o - o , perde t e m p o , v i c i a seus atores e m improvisações gratuitas e i m p r o d u t i v a s e reduz o seu interesse p e l o t raba lho .

Esse último fator , — o p e r m a n e n t e interesse dos atores pe l o processo d o t raba lho , — talvez possa servir de cr i tér io para o d i r e t o r . N o t a n d o alguns sinais de tédio, — a falta de atenção espontânea e de cur ios idade , — o d i r e t o r talvez deva acelerar a co locação dos deta lhes .

E preciso levar em consideração a n a t u r a l impaciência dos atores n o sentido de querer exper imentar , q u a n t o antes, os resultados o b t i d o s nas improvisações diretamente sobre o t e x t o da peça.

É preciso explicar aos atores que , se a tentação os levar a e x p e r i m e n t a r isso em casa, eles porão em risco o b o m andamento do seu t r a b a l h o nos ensaios, porque , fazendo a experiência sem contro le a lhe io , eles c e r t a m e n t e prestarão atenção quase exclusivamente ao resultado emocional do trabalho (é tão conhecido esse vício do ator!) e poderão chegar à verdadeira adoração dos seus próprios sentimentos. C o m isso, é evidente, eles porão e m per igo toda a necessária lógica e acabarão t o m a n d o por base de t r a b a l h o e l ementos completamente errados.

Até aqui , em traços gerais, p r o c u r a m o s expor a ideia de c o m o deve ser processada a "Análise A t i v a " de u m a peça .

E evidente que seria u m a b s u r d o estabelecer c o m precisão a o r d e m cronológica em que devem ser usadas as etapas do t r a b a l h o . O b o m senso e a prática devem sugerir ao d i r e t o r as alterações dessa o r d e m , de acordo c o m as particularidades do seu eventual t r a b a l h o : o nível e a experiência do e lenco , a natureza da peça, o prazo des ignado para os ensaios, etc.

Resta-nos acrescentar que , q u a n d o falamos do uso dos " l a b o r a t ó r i o s " no processo de analisar as "c ircunstâncias propostas" , é ev idente que não nos reterimos apenas aos " l a b o r a t ó r i o s " sobre as ações constantes do t e x t o da peça. E de enorme importância submeter ao mesmo processo as ações ' extra-cênicas", a começar pela b i o g r a f i a dos personagens e ao t e r m i n a r pela " a ç ã o a n t e r i o r " de cada cena.

A T O R E MÉTODO ^yj

F e l i z m e n t e , o uso de u m e lemento novo l evou-me casualmente a u m a série de experiências b a s t a n t e detalhadas e de ixou -me u m m a t e r i a l c o n s i ­derável que me parece úti l para resolver o p r o b l e m a de improvisações sobre os temas das ações " e x t r a - c ê n i c a s " .

E este m é t o d o que eu p r e t e n d o expor no p r ó x i m o cap í tu lo .

NONO CAPITULO

N u m determinado p e r í o d o d o t r a b a l h o c o m u m grupo de atores, c o m e ­cei a prestar atenção a u m recurso q u e , a n t e r i o r m e n t e , só usava c o m o u m dos exercíc ios de imaginação. Nesse e x e r c í c i o o a l u n o escrevia u m a car ta imaginária, isto é, ele não usava n o processo de escrever objetos reais, c o m o papel , caneta, etc. todos esses acessórios e r a m imaginários. (Ve ja o t e r c e i r o cap í tu lo ) .

Resolvi , pois, exper imentar esse e x e r c í c i o c o m o u m possível recurso para a chamada " c o n c e n t r a ç ã o " , o u seja, a preparação m e n t a l para a ação cénica.

Os meios de concentração que até agora estão sendo usados e m nosso teatro f requentemente são m u i t o de f i c i en tes . D i z e m ao a t o r : " A n t e s de entrar e m cena, procure c o n c e n t r a r - s e " . " D e que maneira? " , p e r g u n t a o ator . " O r a . pense como se você fosse o p e r s o n a g e m ! " E o pobre do a t o r senta-se n u m canto do palco, fecha os o l h o s , tapa os ouvidos ( c o m isso ele procura isolar-se do ambiente em que está sendo feito o trabalho) e, c o m todos os músculos contraídos n u m e s f o r ç o m á x i m o de " s e n t i r o perso­n a g e m " , c omeça a pensar.

E óbvio que o resultado dessa " c o n c e n t r a ç ã o " não pode ser p o s i t i v o . O ator , nesse caso, procura exercer apenas a ação m e n t a l , — a de pensar — e x c l u i n d o propos i ta lmente t oda e q u a l q u e r a t i v idade física. O r a , é p r o v a d o c i ent i f i camente que " a at iv idade m o t o r a d o su j e i t o é de considerável i m p o r ­tância na elaboração da sua a t i t u d e a t iva para c o m o i m a g i n a d o " . [R. C. Nastacbe. Veja o q u a r t o cap í tu lo ) .

E preciso, pois dar ao a t o r a poss ib i l idade de usar o m í n i m o necessário de at iv idade física durante a sua c o n c e n t r a ç ã o . E preciso achar u m processo em que se possa reunir o p e n s a m e n t o l i v r e , não cons t rang ido pelo a m b i e n t e em que o ator trabalha, e a ação física i g u a l m e n t e l i v r e .

Nos nossos trabalhos, n o r m a l m e n t e , antes de começar a improvisação de u m a determinada cena, faz íamos " l a b o r a t ó r i o s " sobre a ação " e x t r a -cênica" , ou seja, a ação precedente . Nesse caso não havia necessidade de nenhuma concentração especial, pois o p rópr i o " l a b o r a t ó r i o " t raz ia em si os elementos necessários.

Mas f requentemente as circunstâncias d o t r a b a l h o ou as par t i cu lar idades do mater ia l dramatúrgico (cenas curtas de dois personagens, monólogos, etc.) obr igavam o ator a fazer o seu " l a b o r a t ó r i o " soz inho , o que ev iden-

A T O R E M É T O d O 1 1 9

temente , era m u i t o mais di f íc i l d o que improv i sar e m c o m p a n h i a de seus colegas.

Nessas cond i ções , alguns a tores executavam a ação preparatória m e n t a l ­m e n t e , acrescentando apenas a lguns gestos e m o v i m e n t o s ; o u t r o s " p e n s a v a m em voz a l t a " ; o u t r o s a inda sa íam d o palco para fazer seus " l a b o r a t ó r i o s " i so ladamente .

De mane i ra geral , n o t á v a m o s que a m a i o r i a dos atores e n c o n t r a v a grande d i f i cu ldade e m se c o n c e n t r a r por esses meios . Eles não consegu iam abstrair-se d o ambiente e m que se encontravam. T a m b é m faltava-lhes u m apoio f ís ico seguro e l ó g i c o para a sua ação m e n t a l .

Mas não f o i p o r acaso que d e s c o b r i esse apoio no exer c í c i o de "escrever cartas" . E m vários cursos meus , quando a " c a r t a " era usada c o m o u m simples exerc í c i o de imaginação, e u observava c o m m u i t a admiração e c u r i o ­sidade o c o m p o r t a m e n t o dos a l u n o s e n q u a n t o eles " e s c r e v i a m " . T o d o s eles, c om a rara exceção de pessoas c o m p l e t a m e n t e desprovidas de imaginação, depois de preparar o t e m a da " c a r t a " e a p a r t i r do m o m e n t o de " e s c rever " a pr imeira palavra, conseguiam s e m es forço a lgum abstrair-se t o t a l m e n t e d o ambiente e m que se e n c o n t r a v a m e dedicar-se i n t e i r a m e n t e à sua tare fa sem o m í n i m o c o n s t r a n g i m e n t o . H a v i a alunos que "escrev iam a c a r t a " d u r a n t e vinte m i n u t o s sempre c o m a m e s m a seriedade de u m a ação real , às vezes grave, às vezes alegre, mas s e m p r e acompanhada de pequenos gestos e expressões fisionómicas m u i t o espontâneas. L e m b r o - m e de u m a l u n o que no meio da " c a r t a " i n e s p e r a d a m e n t e p r o r r o m p e u em lágrimas e so luços q u e não conseguia d o m i n a r , e m b o r a fizesse u m grande es f o r ço : ele escondia o rosto e virava as costas à plateia.

E note — no m e i o dos o u v i n t e s dos meus cursos f r e q u e n t e m e n t e h a v i a gente sem a mínima experiência t e a t r a l e, mesmo assim, era admirável ver todos eles fazerem a cena c o m espontaneidade e expressividade de grandes atores, ou então de autênticas crianças.

Depois de constatar esses e f e i t o s inesperados, p r o c u r e i s u b s t i t u i r a c o n ­centração m e n t a l pe lo processo de escrever cartas, e desta vez não i m a g i ­nárias, mas s i m cartas r e a l m e n t e escritas a lápis e sobre u m papel real.

A prática d e m o n s t r o u mais t a r d e que esse recurso rea lmente oferece ao ator a possibi l idade de agir s o z i n h o , durante o t r a b a l h o preparatório, n u m a atmosfera de espontaneidade , p o i s n o processo de escrever não há nada q u e possa i m p e d i r a sua c o n c e n t r a ç ã o e t o l h e r a sua Uberdade de ação. Nesse processo o a t o r rea lmente consegue abstrair-se do ambiente em que se encontra .

O u t r o f a t o r de indiscutível u t i l i d a d e é a própria natureza de todas as cartas em geral. U m a carta n u n c a é u m m o n ó l o g o , e s im u m diálogo i m a g i ­nário c o m o destinatário. A pessoa que escreve sempre supõe esta ou a q u e l a reação do destinatário ao t eor da c a r t a e prat i camente responde de a n t e m ã o

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a essas supostas reações. M u i t o i m p o r t a n t e t a m b é m é o f a t o de que o a t o r , nessa f o r m a de concentração, não d e i x a de agir f i s i c a m e n t e : ele escreve. Da í a organicidade desse processo n o t r a b a l h o d o a t o r .

C o m p a r e m isso c o m a c h a m a d a " c o n c e n t r a ç ã o m e n t a l " . O ator , e m estado de passividade física t o t a l , d istraído pelo que acontece em seu redor , deve imaginar o diálogo, deve dialogar m e n t a l m e n t e c o m u m a pessoa ausen­te. E evidente que isso é m u i t o difícil para os a tores p o u c o treinados e m improvisações.

O l e i t o r já deve ter c o m p r e e n d i d o que o processo de escrever cartas é u m a das formas de improvisação sobre u m tema . Mas o que i m p o r t a é o f a t o de que, devido à organicidade dessa f o r m a , o a t o r e n c o n t r a mais faci l idade em a d q u i r i r a " f é cénica" na real idade da ação que se lhe p ropõe , ou e m outras palavras ele chega mais f a c i l m e n t e a e laborar u m a " insta lação" .

Por isso, não é apenas para o e fe i to de c o n c e n t r a ç ã o que se deve usar esse recurso. Sendo u m a das formas de improv isação , ele deve fazer parte dos trabalhos pelo método da "Anál ise A t i v a " . De i n í c i o , ele ocupa nela o seguinte lugar: depois da l e i t u r a de u m a d e t e r m i n a d a cena, os atores d o elenco, c omo sempre, são conv idados a narrá-la a f i m de restabelecer na memória o seu " r o t e i r o dos fatos a t i v a n t e s " , a s i tuação e m que se encontra o personagem e os seus objet ivos . Depois disso, e antes de passar à i m p r o ­visação, os atores escrevem a carta .

Mais tarde daremos exemplos desse processo e da sua aplicação em outras etapas do trabalho , mas agora cabe-nos, para m a i o r clareza, exp l i car o que é o mais i m p o r t a n t e no in íc io d o uso desse r e c u r s o . E a escolha d o destinatário da carta. Ele deve ser u m a pessoa que , p o r sua natureza, possa m o t i v a r a absoluta franqueza na e x p o s i ç ã o , por m e i o d a carta , de todos os problemas do personagem. Esta é a escolha c o r r e t a p a r a muitas situações cénicas simples. Mas. ev identemente , haverá m u i t a s e x c e ç õ e s em que, pela lógica de situações contraditórias, o a t o r será o b r i g a d o a escolher u m c a m i ­nho d iametra lmente oposto , escrevendo talvez a u m i n i m i g o a q u e m deverá i l u d i r por meio de mentiras conscientes . A escolha f i n a l , f requentemente mesclada. — dependerá da lógica das "c ircunstâncias p r o p o s t a s " , do m a t e r i a l dramatúrgico. Nas experiências que c i taremos mais ta rde o l e i t o r verá alguns exemplos dessas situações.

Por tanto , a escolha do destinatário da carta deve ser feita cuidadosa­mente . U m erro de lógica pode causar t r a n s t o r n o s e perda de t empo no t raba lho .

A improvisação da cena deve ser fe i ta i m e d i a t a m e n t e depois do término da carta, pois u m intervalo grande pode r o m p e r a i n t e g r i d a d e da l inha de ação conseguida durante o processo de escrever a car ta . Mas , para reforçar o e fe i to da carta sobre a próxima improvisação da cena, o d i r e t o r , que, eviden­temente deve estar a par do sent ido geral da car ta , pois o t ema f o i e laborado

A T O R E M É T O D O 1 2 1

de c o m u m acordo entre ele e o a t o r , — o d i r e t o r pode improvisar o papel d o destinatário que, depois de receber e ler a c a r t a , vem para ped ir esclareci­m e n t o s verbais.

U m erro c o m u m que os atores c o m e t e m ao escrever suas pr ime i ras cartas é de reler e de c o r r i g i r o t e x t o e s c r i t o , antes de começar a i m p r o v i s a ­ç ã o . E ó b v i o que c o m isso o a t o r arr isca d e s t r u i r a espontaneidade a d q u i r i d a através da car ta : em vez de entregar-se à improv isação sob o e f e i t o da car ta , o a t o r c o m e ç a a rac ioc inar e a c r i t i c a r a sua ação improvisada na carta . Mais t a r d e , depois da improvisação da cena, ele p o d e r á e mesmo deverá rac ioc inar t a n t o sobre o c o n t e ú d o da c a r t a , c o m o t a m b é m sobre os detalhes da i m p r o ­visação, para selecionar e l ementos úteis, c o n f o r m e dissemos no cap í tu lo a n t e r i o r , mas não deve fazer isso n o d e c o r r e r desse t raba lho espec í f i co , i n t e r r o m p e n d o a improv isação ,que é u m a t o subconsciente c o m rac ioc ín io , u m a t o consc iente .

A l é m das experiências nas aulas c o m vários grupos de atores , t ivemos a o p o r t u n i d a d e de e x p e r i m e n t a r a " c a r t a " na prática de u m t e a t r o pro f i s s i o ­n a l , tentando , , a t í tulo de exper iênc ia , c o r r i g i r algamas falhas e vencer a lgumas d i f i cu ldades persistentes na representação de u m a peça em cartaz .

U m dos atores d o elenco, f a l a n d o de u m a cena sua, disse que a detes­tava e e m todos os espetáculos t i n h a " v o n t a d e de vê-la pelas costas" e, e m b o r a compreendesse a sua importânc ia na p e ç a , nada conseguia fazer.

Depois de c o m e n t a r n o v a m e n t e c o m ele a situação e estabelecer os o b j e t i v o s do personagem, p r o p u s que ele escrevesse u m a carta . L o g o surg iu o p r i m e i r o p r o b l e m a : a q u e m dever ia ele escrevê-la? E que o p r i n c i p a l o b j e ­t i v o d o personagem era bastante c o m p l i c a d o . Tratava-se de u m a a r t i m a n h a c u j o segredo não p o d i a ser reve lado a n e n h u m dos personagens da peça . T i v e m o s pois , que i n v e n t a r u m " a m i g o d o p e i t o " a q u e m o h o m e m pudesse c o n f i a r o segredo e, s o b r e t u d o , p e d i r conse lhos , v is to que o seu p l a n o de ação era arriscado e ex ig ia m u i t o r a c i o c í n i o , sangue f r i o e capacidade de fingir b e m a situação engendrada . A esco lha d o hipotét ico amigo l e v o u a l g u m t e m p o , porque o a t o r p r o c u r o u ava l iar todos os riscos de c o n f i a r o seu segredo a esta ou aquela pessoa.

U m a vez dec idida a escolha, o a t o r r e c a p i t u l o u a situação e os o b j e t i v o s : 1) Q u e r o esmagar aquele s u j e i t o . Para p o d e r vingar-me dele, precise

cr iar u m a t r a m a b e m engenhosa para que n inguém possa adivinhá-la antes e descobr i r o seu a u t o r depois da e x e c u ç ã o d o p l a n o . V o u submeter o m e u p l a n o à opinião do m e u amigo .

2) V o u pedir que ele me diga se não acha os riscos demasiados e se, na sua op in ião , valeria a pena arriscar .

F o i a p r o x i m a d a m e n t e nessa base q u e o a t o r escreveu a car ta . Q u a n d o ele a t e r m i n o u , eu l o g o e n t r e i n u m d iá logo i m p r o v i s a d o c o m ele. na q u a l i ­dade de destinatário, sobre o assunto da c a r t a .

122 EUGÊNIO K U S N E T

U m trecho da cena em questão f o i representado l ogo e m seguida ( £ óbvio que o texto não pôde ser improvisado por ter sido decorado pelo ator e repetido em muitos espetáculos).

E m resultado desse t raba lho , o a t o r disse que não somente e n c o n t r o u resposta a muitas das suas dúvidas, c o m o também percebeu o c o m p l i c a d o e contraditório estado emoc ional d o personagem, o que d e s p e r t o u nele u m grande interesse pela cena.

O u t r o s atores do elenco também e x p e r i m e n t a r a m d u r a n t e as aulas o e fe i to desse recurso, usando para esse f i m i g u a l m e n t e as cenas da peça.

' A p l i c a n d o os resultados obt idos ao seu t r a b a l h o c o t i d i a n o , nos espetáculos , t i v e r a m a impressão de terem me lhorado a sua interpretação.

Não se tratava de t raba lho c o m o f i m espec í f i co de c o r r i g i r o espetá­cu lo , e s im de meras experiências demonstrat ivas para f a m i l i a r i z a r os atores c o m esse novo recurso, mas mesmo assim constatamos mais u m a vez a sua u t i l i d a d e prática, pois, como já dissemos, o processo de escrever u m a carta em nome do personagem também é u m a improvisação l i v r e d e n t r o das "circunstâncias propostas" . Falta- lhe , ev identemente , a ação f ísica da cena, mas é exatamente isso que se c omple ta , l ogo em seguida, pela improv isação t o t a l da cena por meio da "Análise A t i v a " .

Há mais u m a vantagem no uso da carta antes de e n t r a r na improv isação da cena. M u i t o s atores não possuem o d o m do i m p r o v i s o , o u e n t ã o i g n o r a m a sua capacidade de improvisar , pois m u i t o s dos nossos atores n u n c a t i v e r a m c o n t a t o c o m esse m é t o d o . Seja c omo for , a o b r i g a t o r i e d a d e da improv isação nesse t raba lho os constrange de antemão: "Será que v o u me e x p o r ao ridí­culo? " E n t r a n d o com esse pensamento n o t r a b a l h o da "Aná l i se A t i v a " eles se c o n d e n a m a u m fracasso inevitável.

C o m p a r e m isso c o m o conv i te de apenas escrever u m a c a r t a . Ninguém obr iga o ator a coisa alguma, ninguém o corr ige , n e m o c r i t i c a d u r a n t e o t r a b a l h o , ele sente-se isolado até dos olhares curiosos dos colegas e c o m p l e ­tamente l ivre na sua criação. E c o m esse espírito de e spontane idade que ele entra em seguida, na improvisação da "Anál ise A t i v a " já p r e p a r a d o para esse t raba lho pela improvisação da carta.

C o m o exemplo mais concreto do uso desse recurso , q u e r o c o n t a r c o m o fo i f e i t o por u m grupo de atores o t r a b a l h o c o m a cena de T a t i a n a e Têterev , no f i m do segundo ato de "Os Pequenos Burgueses" de M . G o r k i . P r o c u r a r e i exempl i f i car não somente os bons resultados o b t i d o s , mas t a m b é m alguns verdadeiros fracassos, e tentare i expl icar o que os causou.

Eis o t e x t o que usamos para os nossos exerc í c ios .

T Ê T E R E V — (De repente nota a figura de Tatiana no canto da sala). Q u e m está aí?

T A T I A N A - Sou eu . . .

A T O R E M É T O D O 1 2 3

T Ê T E R E V - V o c ê ? H u m . . . t ive a impressão q u e . . . T A T I A N A — Não , sou eu . . . T Ê T E R E V — C o m p r e e n d o . Mas por quê é que v o c ê está aqui? T A T I A N A - (Baixo, mas com clareza e precisão). Porque eu não t e n h o

n e m c o m q u ê , nem para quê v iver . (Têterev dirige-se para ela com passos tranquilos e em silêncio) E eu não sei p o r q u ê e s t ou cansada, por que s i n t o t a n t a angústia, você compreende . . . U m a angústia que quase chega a u m h o r r o r . T e n h o v in te e o i t o anos e t e n h o v e r g o n h a . . . vergonha de me sent i r tão f raca . . . tão inex i s tente . D e n t r o de m i m está t u d o vazio . . . T u d o secou, a r d e u , ardeu t u d o . E u s i n t o . E u s i n t o isso. F o i acontecendo p o u c o a p o u c o , f o i crescendo . . . u m vaz io . Mas p o r q u e é que estou lhe d i z e n d o t u d o isso?

T Ê T E R E V — Não en tendo . . . es tou m u i t o , m u i t o b ê b a d o . Não e n t e n ­do nada , n a d a . . .

T A T I A N A — Ninguém me fala c o m o eu q u e r o . . . E u t i n h a esperança que ele c o m e ç a s s e a falar . . . Esperava m u i t o t e m p o , esperava em silêncio. Mas essa v i d a . . . essas brigas . . . essa m e s q u i n h a r i a . . . essa vulgaridade . . . t u d o me esmagou. Insensivelmente . M e esmagou . E eu não t e n h o mais forças para v i v e r . E m m i m até o m e u desespero é i m p o t e n t e . . . Es tou c o m e ç a n d o a sent i r o h o r r o r . Agora , neste m o m e n t o , eu s i n t o h o r r o r .

A r u b r i c a do autor antes d o m o n ó l o g o de T a t i a n a : " B A I X O , M A S C O M C L A R E Z A E P R E C I S Ã O " , l evou o d i r e t o r da peça à ideia de que, d u r a n t e o seu m o n ó l o g o , Tat iana não p o d i a e x t e r i o r i z a r as e m o ç õ e s naturais para u m a situação dramática c o m o aquela . Por isso ele d e c i d i u que t o d o o m o n ó l o g o devia ser d i t o em " t o m b r a n c o " , a p a r e n t e m e n t e inexpress ivo . A c e i t a m o s i n t e i r a m e n t e essa ideia para o nosso e x e r c í c i o e p r o c u r a m o s justificá-la na nossa análise.

Através de u m rápido rac i o c ín io chegamos à c o n c l u s ã o de que o " t o m b r a n c o " de T a t i a n a só poder ia ser r e s u l t a d o de u m a contradição . Por u m lado , assombrada pela not íc ia que acabou de o u v i r , anunc iada pelo própr io N i l , sobre o seu casamento p r ó x i m o c o m Pol ia , ela c e r t a m e n t e passou p o r m u i t o s m o m e n t o s de t o r t u r a de c iúme , de d o r , ta lvez p o r u m acesso de cólera, de ó d i o . Por o u t r o l a d o , l ogo em seguida , ela chegou à decisão de suicidar-se. Para poder aceitar a m o r t e c o m o a única saída certa, ela p r o ­c u r o u c o n v e n c e r a si própria da i n u t i l i d a d e de t u d o na v i d a , inclusive d o seu a m o r a N i l , e chegou a acreditar nisso.

N ã o v o u entrar e m todos os detalhes p s i c o l ó g i c o s da cena (por exemplo, teria sido ela sincera na sua decisão de morrer, se acabou tomando um vene­no tão fraco? ) , porque a nossa intenção f o i apenas e x p e r i m e n t a r o recurso " c a r t a " sobre u m a situação contraditór ia : " M i n h a dec isão de morrer é i r r e ­vogáve l " , e ao mesmo t e m p o : " A h , se eu pudesse v iver e ser feliz c o m N i l ! "

124 E U G Ê N I O K U S N E T

Ass im chegamos à conc lusão de q u e a intérprete d o pape l deveria p r o ­curar acreditar (adquirir a "fé cénica") n o que acabou a c r e d i t a n d o T a t i a n a , ou seja, na sua indiferença para c o m as causas que a l e v a r i a m ao su i c íd i o . Isso obr igar ia a atriz a aceitar a existência simultânea das duas sensações de T a t i a n a , d iametralmente opostas : ela constatar ia a p r o f u n d i d a d e d o seu s o f r i m e n t o , mas instantaneamente reagir ia re je i tando a sensação, negando-a com inesperada facilidade " p o r q u e j á estaria m o r t a ! " P r e d o m i n a n d o esta última sensação, Tat iana va i fa lar n u m " t o m b r a n c o " através d o q u a l o espectador não poderá deixar de s e n t i r o seu s o f r i m e n t o recalcado .

£ completamente impossível realizar conscientemente s ituações c o m o essa, de grandes conf l i tos i n t e r i o r e s , c o m todas as suas contrad i ções . Elas só se rea l izam subconscientemente, através de u m a " ins ta lação" . R e c o r r e n d o a uma carta , procuramos chegar a e laborar u m a " ins ta lação" adequada.

U m a vez estabelecida a lógica da situação, u m a das o u v i n t e s d o curso designada para esse trabalho , escreveu a sua carta. C o m o destinatário ela escolheu " u m amigo de infância que se suicidara havia vários a n o s " . Essa inesperada escolha pareceu-me m u i t o c e r t a porque ajudava a atr i z a a c r e d i t a r no seu "desl igamento da v i d a " .

C o m o vêm, t u d o parecia favorecer o p róx imo t r a b a l h o da a t r i z : u m a boa análise lógica com alguns detalhes m u i t o úteis. E e n t r e t a n t o . . .

Logo depois de terminar a c a r t a , a a t r i z passou à improvisação d o seu m o n ó l o g o . Qual não f o i a nossa surpresa q u a n d o , em vez d o " t o m b r a n c o " , assistimos a uma cena melodramática na qua l , por p o u c o , não f a l t a r a m lágrimas e soluços.

Por que aconteceu isso? E n c o n t r a m o s a expl icação na própria c a r t a , nos trechos que c i t o abaixo,

" B r e v e estarei aí j u n t o de v o c ê que d e i x o u este m u n d o t r i s t e , des t ru ído e escolheu o caminho que agora é o ú n i c o que eu t enho . . . "

" . . . minha última esperança, o Nil ( G r i f o m e u . E. K . ) va i casar-se c o m P o l i a . . . "

" . . . Ele era a minlia única saída, a única p o r t a . . . "

" . . . Quinhentas vezes pensei ne le , como iria beijá-lo, abraçá-lo e matar todo esse desejo . . . E ele vai casar-se c o m a Polia . . . "

V e j a m quantas lamentações e q u e i x a s ! E n e n h u m a palavra a favor da sua " indi ferença" , do seu desejo da " p a z na m o r t e " ! A contrad i ção prev i s ta na análise lógica não fez parte da c a r t a . E claro que, nessas c o n d i ç õ e s , a pieguice que se p r o d u z i u f o i inevitável.

Por que aconteceu isso, e m b o r a a a t r i z , — por s inal , m u i t o i n t e l i g e n t e , — tivesse f e i t o uma análise tão clara?

E que mui tos dos nossos j ovens colegas, sent imenta is p o r n a t u r e z a , adoram " so f r imentos e lágrimas d o p e r s o n a g e m " e, q u a n d o entregues à sua

A T O R E MÉTODO 125

l i v r e inspiração, o que sempre acontece no processo de "escrever a c a r t a " , p e r d e m o r a c i o c í n i o p o r q u e i n s t i n t i v a m e n t e q u e r e m conservar esse b r i n ­q u e d o tão q u e r i d o , o s e n t i m e n t a l i s m o .

Cabe agora sa l i entar n o v a m e n t e a vantagem desse recurso : se essa i m p r o ­visação fosse f e i t a sem o u s o prévio da carta r ea lmente escr i ta , c o m e t e n d o a a t r i z o m e s m o e r r o , n ó s , para descobrir as suas causas, ter íamos q u e e x a m i ­nar t o d o o seu " m o n ó l o g o i n t e r i o r " restabelecido v e r b a l m e n t e , o q u e c e r t a ­m e n t e seria m u i t o d i f í c i l , po is a a t r i z teria d i f i c u l d a d e e m restabelecê- lo c o m precisão.

Depo i s de c o m p r e e n d e r o seu erro , a a t r i z v o l t o u a escrever. Dessa segunda carta d o u a b a i x o a lguns trechos escolhidos .

" M e u a m i g o , o ú n i c o de q u e m preciso, l o g o v o u estar c o m você . Vai ser tão bom. É o ú n i c o c a m i n h o . Não que eu esteja me lamentando. O h , não ! . . . ( G r i f o s meus. E. K . )

" . . . quase pensei q u e N i l fosse i m p o r t a n t e na m i n h a v i d a , mas n ã o , não é importante nem ele e nem Polia . . . "

" . . . o B ê b a d o não interessa , as coisas que ele diz só servem para os desesperados, não é o meu caso . . . "

" . . . G o s t a r i a de c o n t a r p o r que eu resolvi i r . . . mas não. Bobagem." " . . . £ inexplicável. . . eu estou tranquila, não é verdade ? . . . "

N o t e m c o m o d e n t r o d a improvisação dessa car ta , absolutamente espon­tânea, — a a t r i z não p a r o u u m a vez sequer para pensar sobre o q u e estava escrevendo, — aparece c l a r a m e n t e a contradição da personagem. E l a f o r ça a indiferença para c o m o seu d r a m a e a sua m o r t e p róx ima (frases grifa­das) e, s i m u l t a n e a m e n t e , s u r g e m fragmentos que r e f l e t e m a real idade de sua situação:

" . . . quase pensei que N i l fosse i m p o r t a n t e . . . " , ou " . . . gostar ia de c o n t a r p o r que resolvi i r . . . " , e para f i n a l i z a r u m a

verdadeira fusão desses do i s estados emocionais : " E inexplicável . . . eu estou tranquila, não é verdade? "

Desta vez, a improv i sação da cena f o i m u i t o d i f e r e n t e . A atr i z c o n s e g u i u aquele c o n t e ú d o dramát i co o c u l t o que , embora m u i t o in tenso , apenas t r a n s ­parecia através d o " t o m b r a n c o " , deixando-nos per turbados d iante d a sua aparente ca lma.

C o n t i n u a n d o o t r a b a l h o , sempre c o m cartas novas, ela progress ivamente melhorava a q u a l i d a d e da improvisação , mas às vezes, por causa de u m a só frase incompat íve l c o m a lóg ica da ação, o resu l tado era p r e j u d i c a d o .

A s s i m , n o fim de u m a c a r t a m u i t o boa em s i , ela escreveu: " . . . É m u i t o i m p o r t a n t e eu saber por que as coisas não têm s e n t i d o

quando se encaram de o u t r a f o r m a ? "

126 EUGÊNIO K U S N E T

Esse inesperado f i n a l desv iou a a t r i z d o c a m i n h o c e r t o traçado nos trabalhos anteriores, porque a frase " E m u i t o i m p o r t a n t e eu saber . . . " ev identemente re f l e t iu sua grande p r e o c u p a ç ã o c o m o estado e m o c i o n a l d o personagem, o que novamente a l e v o u à auto-p iedade . Para e x p l i c a r a causa do lapso, a atr iz confessou que , e n q u a n t o escrevia, inesperadamente f i c o u " b a r a t i n a d a " . Por quê? Ela não soube e x p l i c a r , mas ace i tou a r n i n h a h i p ó ­tese: o que pod ia ser esse " b a r a t i n a m e n t o " se não o resultado de u m e m p o l ­gamento involuntário pelos p r o b l e m a s sent imenta i s do personagem? E m vez de s implesmente pensar ela p r o c u r o u sentir.

Os pequenos deslises dessa espécie obr igaram-nos v o l t a r a c o m b a t e r o perigo de cair no sent imenta l i smo .

Gostar ia que esse meu conse lho n ã o fosse mal i n t e r p r e t a d o . N ã o p r e t e n ­do aconselhar que e l i m i n e m , nesse p e r í o d o de t raba lho , t odos os s e n t i m e n ­tos, que ev i tem todas as e m o ç õ e s , mas n o t raba lho preparatório pe l o m é t o ­do da "Análise A t i v a " (inclusive nas cartas) o raciocínio deve t e r l u g a r p r e d o m i n a n t e . Por tanto , o erro não seria o f a t o de o ator ter e m o ç õ e s , mas a sua tendência de obtê-las a q u a l q u e r c u s t o , c o m o i n f e l i z m e n t e , m u i t a s vezes acontece c o m os atores por p u r o s e n t i m e n t a l i s m o , o que eu acho m u i t o perigoso.

Q u e r o lembrar aos le i tores que já d e m o n s t r e i isso no segundo c a p í t u l o deste l i v r o c o m o meu própr io e x e m p l o , c o n t a n d o c o m o f i q u e i c o m o v i d o com a m i n h a interpretação de u m a cena.

M u i t o s atores., percebendo, — e ta lvez c o m m u i t a razão, — o v a l o r e a riqueza da sua imaginação, c o m e ç a m a " a c a r i c i a r " demais t o d o e q u a l q u e r f r u t o casual dela.

Na prática das " c a r t a s " t ive a o p o r t u n i d a d e de constatar essa p a r t i c u l a ­ridade em alguns atores. Houve u m caso q u e me parece m u i t o i l u s t r a t i v o .

A o veri f icar a carta de u m a a t r i z , c h a m e i sua atenção para a f a l t a de clareza em alguns pontos .

" P o r e x e m p l o " , disse eu , " o que s igni f i ca este traço l o n g o que i n t e r ­rompe a frase no meio? "

" S i g n i f i c a : não me d e s o b e d e ç a " ' , r e spondeu a atr i z . " M a s por que você não escreveu isso c laramente? " " P o r q u e não vejo necessidade dessa clareza. Na m i n h a m e n t e , s í m b o l o s

e pequenas visões me c o m u n i c a m m u i t o m a i o r clareza do que frases i n t e i r a s . O traço reto que passei na carta m e d e u u m a ideia m u i t o clara sobre a firmeza das intenções do p e r s o n a g e m " .

Concorde i c o m ela, mas . . . e m t e r m o s . " V o c ê t e m razão. Na v ida r e a l , u m a imagem (um símbolo) f r e q u e n t e ­

mente precede o pensamento e dá m a r g e m à sua formulação. E a própria natureza que se encarrega desse m e c a n i s m o . E m teatro , esse processo t a m ­bém pode levá-la a resultados m a r a v i l h o s o s , mas só se vo cê f o r capaz de

A T O R E MÉTODO 1 2 7

realizar através da sua i n t u i ç ã o tudo e sempre, a c o m e ç a r d o " s í m b o l o " e t e r m i n a n d o pela f o r m u l a ç ã o d o pensamento c o n c r e t o , p o r q u e nesse caso você n ã o precisará n e m da " c a r t a " , nem da "Anál ise A t a v a " e n e m de t o d o o " M é t o d o " de Stanis lavsk i . M a s se, pelo contrário , vo cê não p u d e r c o n f i a r u n i c a m e n t e n o seu t a l e n t o e sua sensibil idade e, p o r t a n t o , f o r o b r i g a d a a recorrer p o r necessidade a " c a r t a " , ou a qua lquer o u t r o e l e m e n t o d o t r a ­ba lho consc iente , saiba que os " s í m b o l o s " não são suf i c ientes , p o r q u e , para poder usar o seu exce lente a chado , o " t raço r e t o " , usá-lo sempre e com segurança, você terá que c o m e ç a r p o r destr inchar esse s í m b o l o , passá-lo pe l o seu rac i o c ín i o e depois , através de m u i t o s ensaios, p o u c o a p o u c o , r eduz í - l o n o v a m e n t e àquele " t r a ç o r e t o " . ( N O T A : No fim do sexto capítulo o leitor poderá rever os detalhes desse processo de ampliação do símbolo e a sua posterior redução). Sem isso, o resultado n u n c a será seguro : ho je o " t r a ç o " surge espontaneamente e se t r a d u z em pensamentos (monólogo interior) p o r vias subconsc ientes ; amanhã, não se sabe porquê , ele conserva apenas o seu aspecto m a t e r i a l , u m traço m o r t o que não p r o d u z e fe i to a l g u m , e o ator não age em cena, ele representa.

N a v ida real , para agir c e r t o é preciso pensar cer to . E m t e a t r o , p a r a agir certo n o lugar do personagem é preciso, em p r i m e i r o lugar , descobr ir os seus pensamentos .

E isso que o a t o r consegue por meio das cartas. Ele pensa l i v r e m e n t e e, e n q u a n t o escreve, fixa m a t e r i a l m e n t e os seus pensamentos , p o d e n d o , e m seguida, rac iona l i zar e se lec ionar os resultados o b t i d o s e s p o n t a n e a m e n t e . O resu l tado final desse processo geralmente é u m a ação c lara e, (embora frequentemente muito complexa), desprovida de t oda con fusão da i n v e n -c ionice psicológica . P a r a d o x a l m e n t e ela é s imples d e n t r o de t o d a a sua c o m p l e x i d a d e , c o m o deve t e r s ido simples o l u m i n o s o sorr iso dos p r i m e i r o s cristãos e n f r e n t a n d o a m o r t e na goela dos l eões . (* )

Gos tar ia de dar u m e x e m p l o de t raba lho c o m o uso da " c a r t a " , b e m sucedido no sent ido de rea l i zar c o m clareza e s imp l i c idade u m a s i tuação cénica bastante c o m p l i c a d a . Esse t raba lho f o i real izado pe lo mesmo g r u p o de atores c o m a cena de H e l e n a e Têterev n o terce i ro a to de " O s Pequenos Burgueses" .

E m m u i t o s espetáculos nessa cena em que se revela não s o m e n t e a essência do pape l de H e l e n a , c o m o p r i n c i p a l m e n t e a f i l o s o f i a de M . G o r k i sobre o va lo r da v i d a , a m a i o r d i f i cu ldade para várias atrizes que , até aí, t i v e r a m f e i t o o pape l , sempre f o i o m o n ó l o g o que transcrevo a seguir:

(*) A complexidade dessa situação tem uma explicação científica no livro "Introdução à R e f l e x o l o g i a " dos D r s . A c y l d o Nascimento, José T e i t e r o i i , F e r n a n d o C a r r a z e d o e Wilfred M. Hmds :pag. 7 3 ) .

128 EUGÊNIO K U S N E T

H E L E N A - (Sonhadora) Q u a n d o eu v iv ia na prisão era m u i t o d i f e ­rente . . . m e u m a r i d o era u m grande j o g a d o r de cartas . . . bebia m u i t o e ia sempre caçar . . . eu era l i v re . . . não ia a lugar n e n h u m . . . não recebia v is i tas . . . v i v i a c o m os p r i ­sioneiros . . . são m e s m o gente m u i t o boa na i n t i m i ­dade . . . gente t r e m e n d a m e n t e engraçada, simples, d e l i ­cada . . . j u r o ! Q u a n d o eu os observava, achava incrível que u m fosse assassino, o u t r o ladrão , o u t r o o u t r a coisa qualquer . . . às vezes eu p e r g u n t a v a : " V o c ê matou? — " S i m , mãezinha Helena Nicoláievna, m a t e i , que é que se vai fazer? " M e parecia que esse assassino t i n h a de ixado cair sobre si a c u l p a de u m o u t r o . . . que ele era u m a pedra jogada p o r u m a força e s t r a n h a . . . E u comprava t u d o q u a n t o era rev ista , l i v r o . . . dava tabaco , v i n h o . . . mas só u m p o u c o ! . . . Nos passeios eles j o g a v a m bo la , amarel inha . . . Palavra de h o n r a ! À s vezes eu l ia uns l ivros cómicos e eles riam c o m o crianças . . . C o m p r e i passari­nhos, cada cela t i n h a u m a gaiola . . . Eles adoravam os passarinhos, c o m o me a d o r a v a m a m i m também . . . F i ca ­vam m u i t o contentes q u a n d o eu p u n h a u m a blusa verme­lha, amarela . . . eles a d o r a v a m as cores berrantes e ale­gres . . . e eu m e vest ia , só para agradá-los, da maneira mais vistosa p o s s í v e l . . . (Suspirando) Era b o m estar c o m eles . . . Não sent i passar aqueles três anos, e quando u m cavalo m a t o u o m e u m a r i d o , acho que c h o r e i menos p o r ele do que pela cadeia . . . Mas a q u i nessa c idade, não . . . Não v ivo b e m , não . . . Esta casa t e m alguma coisa de mau . . . Não são as pessoas que são más . . . é o u t r a coisa . . . estou m e t o r n a n d o m u i t o t r i s t e . . . "

O que con fund ia as intérpretes d o pape l era aquela r u b r i c a : " S O N H A ­D O R A " . Atrás dela as atrizes d i f i c i l m e n t e p e r c e b i a m o verdade i ro o b j e t i v o do personagem, e o m o n ó l o g o se t o m a v a u m a g r a t u i t a recordação poé t i co -melancólica.

N o nosso trabalho , antes de c o m e ç a r a car ta , p r o c u r a m o s ver a cena dentro da clareza e da s impl i c idade a que me r e f e r i antes .

Part imos da pergunta : " O que é que Helena está fazendo na cena d o m o n ó l o g o ? " , e respon­

demos s implesmente : " E l a está contando a Têterev u m caso da v ida d e l a " . "Para que"? " "Para i lustrar como a fe l i c idade é possível , m e s m o n u m ambiente de

máxima desgraça h u m a n a " .

A T O R E M É T O D O 129

" P o r que ela quer i l u s t r a r isso? " • " P o r q u e quer c o m p r e e n d e r , e ta lvez , remediar a situação absurda e m

que se e n c o n t r a m todos na casa de B e s s ê m e n o v " . Depois disso só f a l t o u i m p r o v i s a r a ação "extra-cênica" , o que a a t r i z

fez escrevendo u m a car ta a Têterev . Veja c o m o essa lógica tão s imples se reflétiu na car ta i

"Têterev . V o c ê é u m h o m e m i n t e l i g e n t e . E u acho, aliás, que é i n t e l i ­gente demais. Então me e x p l i q u e u m a coisa . Por que não se pode ser fel iz? E u não consigo c o m p r e e n d e r . V e j a T a t i a n a . A o que sei, na v ida de la não aconteceu n e n h u m a desgraça tão grande a p o n t o de levá-la a t e n t a r o suic í ­d i o . A perda de u m n o i v o , b o b a g e m . Se p e r d e u é porque não era d e s t i n a d o a ela, é po rque t e m u m o u t r o m e l h o r p o r v i r .

A desgraça de t o d a essa gente a q u i nesta casa me dá raiva e eu não sei o que fazer por eles. E u sou i m e n s a m e n t e f e l i z e é m u i t o s imples , é só amar a v i d a . Parece que ninguém percebe que isso é a base da fe l i c idade . E u p e r c e b i isso há m u i t o t e m p o , e n u m a m b i e n t e q u e , f rancamente , se eu te c o n t a r , vo cê não vai acred i tar , mas eu j u r o , aquele t e m p o era b o m . T u d o era tão m a r a v i l h o s o e não se i n t e r r o m p i a c o m o a q u i . O t e m p o passava e a gente n e m sent ia . Os dias e r a m v iv idos p o r gente q u e c o m o eu amava a v ida e o prazer ac ima de t u d o . Me e x p l i q u e , Têterev , faça eu compreender o que se passa. V e j a . . . "

Neste p o n t o ela i n t e r r o m p e u a car ta e passou à improvisação da cena. Q u e m quiser e x a m i n a r essa c a r t a d o p o n t o de vista de todas as " c i r c u n s ­

tâncias p ropos tas " da peça ficará m a r a v i l h a d o , como eu fiquei, c o m esse r e s u l t a d o : no a to tão e s p o n t â n e o c o m o escrever uma car ta , a a t r i z i n c l u i u r e sumidamente quase t o d o s os e l e m e n t o s necessários para a interpretação da cena, d e n t r o de todas as características d o personagem e das suas relações c o m os ou t ros , c o m T a t i a n a , Têterev , os Bessêmenov, etc.

E n o t e : a ca r ta não l e v o u m a i s de dez m i n u t o s e f o i escrita sem u m a pausa sequer, o que e x c l u i t o t a l m e n t e a hipótese de t e x t o e laborado de antemão .

E preciso t a m b é m sal ientar u m d e t a l h e m u i t o i m p o r t a n t e dessa carta . E l a t e r m i n a assim: " M e e x p l i q u e , Têterev , faça eu compreender o que se passa. Ve ja . . . "

Este final e, p r i n c i p a l m e n t e , as reticências depois da palavra " V e j a " f o r m a m u m a ligação da car ta c o m o o b j e t i v o d o m o n ó l o g o : " E u q u e r o compreender e, p o r Uso, v o u te e x p l i c a r " , o que a u t o m a t i c a m e n t e e l i m i n a aquela tendência de m e l o d r a m a t i z a r o i n í c i o : (sonhadora) Q u a n d o eu v i v i na prisão era m u i t o d i f e r e n t e . . . e t c .

A ligação do final da car ta c o m o i n í c i o da improvisação da cena é u m f a t o r m u i t o i m p o r t a n t e . C o m o já disse, o a t o r . logo que t e r m i n e a carta ,

130 EUGÊNIO K U S N E T

deve passar à improvisação sem demora , para não i n t e r r o m p e r a l i n h a de ação. I m a g i n e m então c omo é i m p o r t a n t e a fluência dessa passagem.

Q u a n d o o ator , por descuido ou por f a l t a de experiência , não consegue estabelecer essa ligação por m e l h o r que seja o t eo r de sua c a r t a , ele e n t r a na improvisação da cena vac i lante , e às vezes não chega a restabelecer a l i n h a de ação.

E evidente que essa falha torna-se menos p r e j u d i c i a l q u a n d o se usa u m "d iá logo do personagem c o m o destinatário da c a r t a " antes de c o m e ç a r a improvisação da cena.

D u r a n t e o t raba lho c o m a última cena t i v e m o s a o p o r t u n i d a d e de expe ­rimentar esse recurso mais d e t a l h a d a m e n t e . J u l g o útil descrever a q u i u m pequeno t re cho dessa experiência.

Desta vez, quando a atr iz t e r m i n o u a car ta , passamos ao d i á l o g o i m p r o ­visado no q u a l eu assumi o papel de Têterev. A l ém de d ia logar c o m ela na base da carta , — cujo sentido geral eu conhec ia , — p r o c u r e i p rovocá - la c o m perguntas e insinuações referentes a alguns detalhes i m p o r t a n t e s das " c i r ­cunstâncias propostas " da peça. Ass im nesse diálogo apareceu u m d e t a l h e que. até então f o i pouco e x p l o r a d o pela a t r i z , t a n t o nas suas car tas , c o m o nas improvisações: o ód io que Helena t e m dos que i m p e d e m a f e l i c i d a d e da vida. dos que a o p r i m e m .

I m p r o v i s a n d o o papel de Têterev, p r o c u r e i p r o v o c a r esse ó d i o . N u m dado m o m e n t o pergunte i :

" O que é que você faria c o m eles, se tivesse o poder? " " M a n d a r i a todos eles para os t rabalhos forçados na Sibéria! Q u e eles

aprendam lá a serem fe l izes ! " , respondeu ela fur i o sa . Isso, n a t u r a l m e n t e , deu u m novo i m p u l s o e m o c i o n a l à improv i sação da

cena. O e lemento que i n t r o d u z i não somente c o m p l e t o u a ação c o m u m detalhe f a l t a n t e , c omo também e s t i m u l o u a imaginação da a t r i z e c o m u ­n i c o u á cena u m r i t m o novo, mais exc i tante .

Se tivéssemos gravado os dois últimos exerc í c i o s , — o que , i n f e l i z m e n t e não f o i f e i t o , — teríamos reg istrado , c o m abso luta evidência, a d i ferença entre os dois " t e m p o - r i t m o s " .

Durante os trabalhos c o m esse grupo e x p e r i m e n t a l [ê ass:m que passa­mos a chamá-lo), sempre procuramos esclarecer todas as dúvidas, p o r mais elementares que fossem, relacionados c o m o m é t o d o e m exper iênc ia .

E n t r e elas surgiu u m a dúvida m u i t o séria: não p o d e r i a o r e c u r s o da " c a r t a " ficar gasto e até i n u t i l i z a d o pelos possíveis abusos na sua e x p l o ­ração? Não aconteceria c o m ele o que acontece que os ant ib ió t i cos cu jo e fe i to sobre os micróbios enfraquece devido aos abusos?

E b e m possível. T o m a r antibióticos no caso de u m s imples r e s f r i a d o e tão insensato c o m o "escrever u m a c a r t a " para esclarecer p o r q u e o perso­nagem sente f ome depois de passar 24 horas sem c o m e r .

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A T O R E M É T O D O 1 3 1

Nas s i tuações s imples , nas quais , para resolver o p r o b l e m a cén i co , é s u f i c i e n t e usar u m a boa "v i sua l i zação" e u m " m o n ó l o g o i n t e r i o r " adequado , e l e m e n t o s estes resultantes de u m a rápida " i n s t a l a ç ã o " , o uso constante da " c a r t a " p o d e r i a levar esse recurso à sua irremediável mecanização .

Mas n ã o vejo razão para se p r i v a r d o seu a u x í l i o p o r mera prudência, q u a n d o e n c o n t r a m o s prob lemas , e m b o r a s imples , mas dif íceis de se resolver p o r o u t r o s meios . Por e x e m p l o , q u a n d o o a t o r t r a b a l h a n u m ambiente que o constrange o u d i s t ra i (muitas pessoas, muito barulho) e não consegue abstrair-se de le .

E m r e s u m o , usem a " c a r t a " sempre que t i v e r e m di f iculdades c o m o u t r o s recursos , mas nunca c o m o u m e l e m e n t o obr igatór io no seu t r a b a l h o .

U m a o u t r a dúvida que surg iu d u r a n t e os t r a b a l h o s f o i a possibi l idade o u não de usar as cartas nos espetáculos ou nos ensaios m a i s adiantados. " C o m o é que se p o d e escrever u m a carta nos últ imos m o m e n t o s , antes de entrar e m cena? "

R e a l m e n t e , não há n e m poss ib i l idade n e m necessidade de fazer isso. C o m o t o d o e qua lquer e l emento d o " M é t o d o " , a " c a r t a " também passa p e l o processo de condensação através das repet ições nos ensaios, exa tamente c o m o a c o n t e c e c o m a "v i sua l i zação" e o " m o n ó l o g o i n t e r i o r " . O uso desses e l ementos n o in íc io do t r a b a l h o , c o m o se l e m b r a o l e i t o r , exige m u i t o t e m p o , mas c o m o correr dos ensaios eles se s i n t e t i z a m , t rans formando-se finalmente e m visões concentradas ao m á x i m o , e m s í m b o l o s ou exc lamações e m vez de frases completas .

E isso q u e o ator u t i l i z a n o ú l t imo m o m e n t o antes de entrar em cena. Ele não prec isa escrever, basta que na |ua m e n t e sur ja u m desses s í m b o l o s para que o e f e i t o da carta v o l t e t o t a l m e n t e .

E f i n a l m e n t e mais u m a dúvida : ao escrever u m a car ta , é necessário escrevê-la r e a l m e n t e , usando para isso u m p a p e l , u m lápis, etc. ou seria su f i c i en te f i n g i r escrever, não u s a n d o o b j e t o a l g u m ? O que seria preferível?

Q u a n d o a carta é usada c o m o u m e x e r c í c i o de imaginação , é óbv io que não se deve usar objetos reais, d e i x a n d o t u d o à imaginação do a luno . Mas q u a n d o ela é empregada c o m o u m recurso n o t r a b a l h o d o a tor , t u d o d e p e n ­de das "c ircunstâncias p r o p o s t a s " , cu ja lógica deve i n d i c a r a maneira c e r t a .

Nessa escolha o mais i m p o r t a n t e é c r ia r c o n d i ç õ e s que possam a judar o a tor a a c r e d i t a r que, ao escrever, ele age r e a l m e n t e c o m o o personagem d e n t r o das "circunstâncias p r o p o s t a s " .

Por e x e m p l o , nos exerc íc ios c o m u m a cena de l o u c o s , que fizemos c o m u m g r u p o de atores, pre fer imos não usar ob j e tos reais , p o r q u e assim conse­gu imos c o l o c a r a ação dos personagens c o m p l e t a m e n t e fora da realidade de gente n o r m a l . O ator acredi tava mais na lógica do c o m p o r t a m e n t o de u m d e m e n t e q u a n d o ele próprio d o b r a v a u m p a p e l invisível ou molhava c o m a língua a p o n t a de u m lápis imaginário.

132 E U G É N I O K U S N E T

É c laro que no t raba lho c o m u m a peça real ista esse p r o c e d i m e n t o seria c o n t r a p r o d u c e n t e . Mas às vezes p r o b l e m a s práticos d o t r a b a l h o o b r i g a m o d i r e t o r a alterar essa o r d e m . Por e x e m p l o , m e s m o que o m a t e r i a l d o t r a b a ­l h o ex i ja u m a carta imaginária, o d i r e t o r pode p r e f e r i r que seus atores escre­v a m rea lmente , isto para poder v e r i f i c a r e m seguida o t e x t o e s c r i t o , c o m o fizemos nas nossas experiências c o m " O s Pequenos Burgueses" .

Para f ina l izar este capítulo , e m vez de resumir o seu c o n t e ú d o e c o m e n ­tá-lo pessoalmente, pre f i r o c i t a r o t r e c h o i n i c i a l da car ta que receb i d o d i r e t o r do Grande Teat ro Dramático de L e n i n g r a d o , G. A . T o v s t o n ó g o v .

" . . . C o m m u i t o interesse l i o seu t r a b a l h o . Parece-me m u i t o i m p o r ­tante que você procure compreender e m p r o f u n d i d a d e o processo c r i a d o r e m teat ro , p a r t i n d o do p o n t o de v i s ta de K . S. Stanis lavski , " r e d e s c o b r i r para s i " o seu M é t o d o , encontrar seu p r ó p r i o c a m i n h o , seus própr ios passos d e n t r o do processo cr iador .

A c h e i m u i t o interessante o r e curso de "escrever car tas " . Esse recurso ajuda a realizar a " l a m i n a ç ã o " (a sobreposição sucessiva das camadas — E. K ) da v ida psíquica do personagem, dá a poss ib i l idade de d i s c i p l i n a r , c o n ­cret izar os pensamentos do p e r s o n a g e m , p e r m i t e ver i f i car a j u s t e z a d o " m o n ó l o g o i n t e r i o r " do ator , e finalmente, estabelece a lógica da c o n d u t a do personagem, os mot ivos de seu c o m p o r t a m e n t o . . . "

DÉCIMO CAPÍTULO

Para finalizar o m e u l i v r o gostaria de fa lar do que cons idero o p o n t o c u l m i n a n t e de t o d o s os anseios de qualquer a t o r que se preze e q u e seja d igno de exercer a sua a r t e . Q u e r o falar da c o m u n i c a ç ã o essenc ia lmente e m o c i o n a l .

Para c o m e ç a r , p r o p o n h o que nos c o l oquemos , de p ropós i t o , d i a n t e de u m a possível dúvida d o l e i t o r : p o r que devo preocupar -me e m usar espec ia l ­mente a c o m u n i c a ç ã o e m o c i o n a l , se a improvisação d e n t r o da " A n á l i s e A t i v a " e a consequente " I n s t a l a ç ã o " me reve lam todos os pensamentos e as e m o ç õ e s do personagem e, p o r t a n t o , me p o s s i b i l i t a m a c o m u n i c a ç ã o e m o ­c iona l c o m o espectador a u t o m a t i c a m e n t e ?

P r o c u r a n d o esclarecer essa dúvida, — aliás m u i t o lógica, — devo l e m b r a r ao l e i t o r , e m p r i m e i r o l u g a r , q u e no f i m do q u a r t o capí tu lo c i t e i u m e x e m ­plo de c o m u n i c a ç ã o p u r a m e n t e emoc iona l t e s t emunhada p e l o D r . B e r n a r d o Blay , e x e m p l o este que ele e x p ô s n u m a conferência sobre esse t e m a . T e r m i ­nei a descr ição do e x e m p l o p o r confessar a m i n h a p r o f u n d a inveja dos que possuem o d o m de c o m u n i c a ç ã o puramente e m o c i o n a l , po is t e n h o ce r teza que, se o t ivesse J poder ia r e a l i z a r verdadeiros milagres no m e u t r a b a l h o .

Mas aquele e x e m p l o f o i extra ído pelo D r . Bernardo B l a y da sua prát ica , da própria v i d a . Fa l ta saber se exemplos semelhantes e x i s t e m na prát ica de t e a t r o e, e m caso p o s i t i v o , v e r i f i c a r quais são os efeitos que a c o m u n i c a ç ã o p u r a m e n t e e m o c i o n a l causa sobre o espectador.

T r a t a n d o - s e de u m p r o b l e m a m u i t o c o m p l i c a d o , p r o c u r a r e i n a r r a r d e t a ­l h a d a m e n t e u m caso que a m e u ver é u m a p r o v a da existência da c o m u n i ­cação p u r a m e n t e e m o c i o n a l e m t e a t r o .

E u t ive o prazer de e n c o n t r a r aqui , em São Paulo , u m ator russo que cons idero u m dos atores geniais da nossa a tua l idade . Trata-se de I . M . S m o k t u n o v s k i que eu v i pe la p r i m e i r a vez n o pape l de pr ínc ipe M i c h k i n , na encenação de " O I d i o t a " de D o s t o i e v s k i , no Grande T e a t r o Dramát i co e m L e n i n g r a d o . A té agora, d e p o i s de m u i t o s anos, a inda cons idero aquele espe­táculo o m e l h o r entre t o d o s q u e v i na m i n h a l onga v ida .

Mais tarde eu v i esse a t o r e m vários f i l m e s , c o m o " H a m l e t " , " T i o Vânia" , " C r i m e e C a s t i g o " e. f i n a l m e n t e em " T c h a i l c o v s k i " .

Ass is t i r a esses f i lmes f o i para m i m u m i m e n s o prazer estét ico que s e n t i ; c o m o u m simples espectador . Mas, além de espectador, eu sou ator e p r o ­fessor de arte dramática. P o r isso, não podia de ixar escapar a o p o r t u n i d a d e

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134 EUGÊNIO K U S N E T

de me encontrar c o m esse a tor , e mais u m a vez, p r o c u r a r c ompreender c o m o f u n c i o n a u m génio.

Eis u m trecho do diálogo que t ive c o m I . M . S m o k t u n o v s k i .

E U — Sou partidário da tendência e m t e a t r o a t u a l , que obr iga o a t o r a comunicar-se c o m o espectador p r e f e r i v e l m e n t e p o r meios emoc iona is . O que é que você pensa a esse respeito?

I . M . S. — Estou de acordo c o m v o c ê . "Se v o c ê não estiver a r d e n d o , não poderá in f l amar ninguém", d i z ia o f a l e c i d o p o e t a russo Iessenin. Mas a comunicação em teatro não deve ser apenas e m o c i o n a l . E m teatro deve estar sempre presente u m a ideia apa ixonar ia .

E U - Cer to , mas a própria expressão que v o c ê acaba de usar — u m a ideia apaixonada, - pressupõe a a l ta e m o c i o n a l i d a d e da ideia e, p o r t a n t o , a obr igator iedade da presença de e m o ç õ e s e x t r e m a m e n t e agudas na c o m u n i ­cação c o m o espectador.

I . M . S. — Claro , mas nunca c o m ausência da i d e i a , do pensamento .

E U — Cer to . Mas me parece que v o c ê m e s m o deu u m e x e m p l o de comunicação puramente e m o c i o n a l , i s t o é, comunicação em que o especta­dor não podia, de maneira alguma, constatar a presença de um pensamento, mas constatava e sentia a presença de muitas emoções contraditórias.

I . M . S. — Onde e quando isso aconteceu?

E U - Estou falando de sua últ ima cena n o filme " T c h a i k o v s k i " . V o c ê faz essa cena, quase toda de costas para a p l a t e i a [para a câmara). Nós não vemos o seu rosto , vemos apenas suas costas. Q u e fez você para que nós , na plateia , tivéssemos sentido a sua m o r t e p r ó x i m a ? P o r q u e e n q u a n t o eu estava o lhando para as suas costas, houve u m m o m e n t o que estremeci e pensei de repente (mesmo agora me lembro perfeitamente como isso se passou): " E s t e h o m e m está m o r r e n d o ! " Qua l não f o i o m e u e s p a n t o q u a n d o , e x a t a m e n t e •naquele m o m e n t o , ouv i a voz d o l o c u t o r d o filme: " O i t o dias depois deste concer to T c h a i k o v s k i fa leceu" . Para m i m essas palavras f o r a m apenas u m a conf irmação do que eu já tinha adivinhado olhando para as suas costas. E n t r e t a n t o , você estava regendo a o r q u e s t r a c o m grande enlevo, c o m m u i t a v ida. C o m o você conseguiu revelar ao espec tador essa imensa c o m p l e x i d a d e das e m o ç õ e s de Tchaikovski?

(Em vez de dar uma resposta direta, Smoktunovski fez uma pergunta).

I . M . S. — O que era a música para T c h a i k o v s k i ?

E U — E m p r i m e i r o lugar, a v i d a . . .

I . M . S. - A vida, c e r t o ! Mas, quer d i zer , a m o r t e também?

E U — N a t u r a l m e n t e . Mas acha que T c h a i k o v s k i poder ia estar pensando na m o r t e exatamente naquela hora?

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A T O R E M É T O D O 1 3 5

I . M . S. — N ã o ! Ele estava p e n s a n d o na vida. E u estava regendo u m a orquestra rea l de c e n t o e v i n t e m ú s i c o s de pr ime i ra categor ia . Sent ia -me e x t r e m a m e n t e ag i tado e a b s o r v i d o pe la música.

E U — A g o r a c o m p r e e n d o a i n d a m e l h o r porque a sua " a b s o r ç ã o " t o ­m o u todos os nossos sentidos e nos fez perceber desde o i n i c i o da cena final a alegria da criação artística, a a legr ia da v ida .

C o n t i n u a m o s a sent i r a v i t a l i d a d e de T c h a i k o v s k i m e s m o q u a n d o v o c ê ficou de costas para nós , s ent íamos isso e m cada m o v i m e n t o de seus braços , de suas mãos que , c o m e x t r e m a t e r n u r a , conv idavam os i n s t r u m e n t o s a entrar

U m ator , sentado na p l a t e i a , p o d e r i a apreciar esse l a d o da sua i n t e r p r e ­tação c o m o u m a excelente s o l u ç ã o para u m prob lema c é n i c o r e l a t i v a m e n t e c laro : a alegria de viver através da cr iação artística. Ele até poder ia i m a g i n a r quais f o r a m os meios que v o c ê u s o u para a realização da cena: o seu " m o n ó ­logo i n t e r i o r " e a sua " v i s u a l i z a ç ã o " .

Mas parece-me que para o m e s m o ator-espectador n u n c a poder ia ficar claro o que v o c ê fez para q u e e le , s i m u l t a n e a m e n t e , c o m a sensação de alegria da v ida , chegasse a s e n t i r c e r t a i n q u i e t u d e que e v i d e n t e m e n t e ema­nava das suas costas, pois para m i m f o i indubitável que eu sent i a m o r t e próxima de T c h a i k o v s k i nas l i n h a s de suas costas.

Poderia vo cê c o n t a r o que se passava no seu íntimo d u r a n t e aquela cena — seus sent imentos , seus pensamentos?

I . M . S. — F o i u m r e s u l t a d o n a t u r a l da síntese da v ida e da m o r t e . T c h a i k o v s k i adorava a v ida , mas sabia que ele estava m u i t o doente .

E U — Perdoe a m i n h a insistência, mas eu preciso c o m p r e e n d e r : q u a n d o T c h a i k o v s k i estava regendo a o r q u e s t r a , ele não estava pensando na m o r t e ?

I . M . S. — Não , ele estava p e n s a n d o na v ida . E U — P o r t a n t o , a ideia da m o r t e só poder ia estar no seu subconsciente? I . M . S. — (depois de uma pausa) S i m , é poss íve l . . . O l h a , eu não q u e r o

desiludí-lo, — no f u n d o você t e m razão , — mas eu sou partidário de so luções mais claras, mais s imples .

E U — C o m p r e e n d o . É b e m p r ó p r i o d o seu ta l ento e n c o n t r a r so luções simples para situações de e x t r e m a c o m p l e x i d a d e . Basta p o r e x e m p l o que pela sua cabeça passe u m p e n s a m e n t o : "S íntese da v ida e da m o r t e " , para que você fique i n s t a n t a n e a m e n t e i n f l a m a d o por essa ideia e que , l ogo e m seguida, a t r a n s f o r m e i n t u i t i v a m e n t e em ação cénica e x t r e m a m e n t e c o m ­plexa e contraditória e, e x a t a m e n t e p o r isso, abso lutamente h u m a n a .

Se eu a inda ins i s to , é apenas p o r q u e estou preocupado c o m as d i f i c u l ­dades dos atores que possuem m u i t o menos ta l ento que v o c ê ; p o r q u e , não apenas entre meus a lunos , mas t a m b é m no meio da m a i o r i a dos nossos atores prof iss ionais , não há p r e p a r o su f i c i ente para e n f r e n t a r todas as s u t i -

136 EUGÊNIO K U S N E T

lezas da dramaturg ia de alto va lor ps i co l óg i co e p r i n c i p a l m e n t e para realizar a q u i l o que você consegue c o m t a n t a fac i l idade — " a c o m u n i c a ç ã o emo­c i o n a l " .

A p r o x i m a d a m e n t e neste p o n t o i n t e r r o m p e m o s o nosso diálogo. Eis , pois, u m exemplo de c o m u n i c a ç ã o p u r a m e n t e e m o c i o n a l d e n t r o da

arte dramática. Os leitores poderão lembrar-se de o u t r o s e x e m p l o s , c o m o o já c i t a d o e x e m p l o de Laurence O l i v i e r e m " R i c a r d o I I I " , o u d o a tor russo I . Pevtsov em " A q u e l e que leva b o f e t a d a s " , e ta lvez , de a lguns o u t r o s gigantes da arte de teatro .

E evidente que sempre haverá u m a grande d i ferença entre a i n t e r p r e ­tação de u m desses génios e a de u m a t o r c h a m a d o " m é d i o " , p o r mais que esse últ imo se esforce no uso da "Aná l i se A t i v a " .

Mas teríamos nós o d i r e i t o de c ruzar os braços , a legando s implesmente que o privilégio do milagre da c o m u n i c a ç ã o e m o c i o n a l p u r a só pertence aos poucos "e le i tos "? Não seria u m erro cons iderar que devemos dar-nos p o r satisfeitos c o m os resultados que conseguimos através da "Anál ise A t i v a " d e n t r o dos moldes que descrevemos n o sét imo e o i t a v o cap í tu los ?

E se tentássemos descobrir meios seguros para a m p l i a r ainda mais o c o n t a t o c o m o nosso subconsciente? Por e x e m p l o , c o m o poder ia o ator repetir conscientemente o processo da própria n a t u r e z a — o recalque d o passado que, pos ter iormente , fizesse par te da sua v ida ps íquica , influindo subconscientemente sobre seu c o m p o r t a m e n t o ?

Mas,para isso, em p r i m e i r o lugar é prec iso c o m p r e e n d e r o que s igni f ica " reca lcar o passado". C o m o se processa o " r e c a l q u e " ?

T o d o s esses problemas e a " m a l d i t a necessidade de sempre p r o c u r a r expl i car o inexplicável" me l evaram a u m a série de experiências , em parte j á descritas no meu l i v ro " Introdução ao M é t o d o da A ç ã o I n c o n s c i e n t e " .

E preciso que eu comece p o r a b r i r , mais u m a vez, parênteses, confes­sando u m erro na termino log ia que usei naquele l i v r o .

A ação humana é sempre consc iente . Ela só p o d e ser resultado da conscientização dos processos ps íqu i cos que , f r e q u e n t e m e n t e , se rea l izam no nosso subconsciente. O que r ea lmente p o d e m o s , às vezes, chamar de inconsciente é o nosso c o m p o r t a m e n t o , o u seja, o aspecto e x t e r i o r da nossa ação, que nem sempre é passível de rac i o c ín io l ó g i c o , c o m o por e x e m p l o , o aspecto das costas de I . M . S m o k t u n o v s k i na cena f i n a l do f i l m e " T c h a i k o v s k i " .

Para compreender a mecânica desses processos p s í q u i c o s , r e c o m e n d o calorosamente a meus leitores o l i v r o i n t i t u l a d o " I n t r o d u ç ã o à Re f l exo -l o g i a " de autor ia dos doutores A c y l d o N a s c i m e n t o , José T e i t e l r o i t , Fernan­do Carrazedo e W i l f r e d Hinds . N o c o r r e r deste cap í tu l o p r e t e n d o re fer i r -me f requentemente a exemplos e expl i cações daquele l i v r o tão esclarecedor para nós, atores.

A T O R E M É T O D O 137

O relatório de u m a das aulas realizadas e m 1958 no " A c t o r ' s S t u d i o " e m N o v a I o r q u e pela p r i m e i r a vez m e fez s e n t i r a necessidade de pesquisar a poss ib i l i dade de e n c o n t r a r u m m é t o d o que permit isse ao a tor agir exata ­m e n t e c o m o agimos nós c o n t e m p o r a n e a m e n t e , i s to é, sob a p e r m a n e n t e inf luência da nossa v i d a i n t e r i o r , do nosso subconsc iente . Este f a t o r a m e u ver f o r m a , hoje em d i a , os traços caracter íst icos d o h o m e m a t u a l , traços que p o d e r í a m o s chamar de sua " e s q u i s i t i c e n o r m a l " , o u , se qu i serem, sua " a n o r m a l i d a d e c o s t u m e i r a " . Sem ela, u m h o m e m deixa de ser t i p i c a m e n t e a t u a l .

O a u t o r relata o c o m e n t á r i o de El ia K a z a n n u m a aula sobre a cena de O t e l o e Iago, onde dois p a r t i c i p a n t e s do " S t u d i o " acabavam de usar c o m o m a t e r i a l para o exerc í c i o u m caso da v ida r e a l , a fim de i lus t rar c o m o u m v io lent í ss imo s e n t i m e n t o de c iúme p o d e surg i r inesperadamente .

Eis o que ele c o n t o u :

" . . . L e m b r o - m e de u m i n c i d e n t e que aconteceu há alguns anos n u m a festa e m casa de amigos. E n t r e os c o n v i d a d o s hav ia u m j o v e m casal: ela era o p r ó p r i o m o d e l o de m u l h e r alegre, risonha, expans iva em sociedade; ele era u m destes t ipos , vocês sabem, d o t a d o de u m a imensa " f i s i c a l i d a d e " , grande , t o d o músculo . T i n h a se casado n o v a m e n t e , depois de u m a p r i m e i r a união i n f e l i z c o m u m a m u l h e r que f o r a e m b o r a c o m u m o u t r o , e isso acabara em d i v ó r c i o .

O ambiente era alegre e c a l m o , e ele p a r t i c i p a v a de co rpo e a lma . Era c i u m e n t o ? V i o l e n t o ? C e r t a m e n t e não . E e n t r e t a n t o . . .

Eis que na e u f o r i a geral u m rapaz p õ e a m ã o sobre o o m b r o de sua m u l h e r . . . O h o m e m se a p r o x i m a , l evanta a m ã o do o u t r o e a de ixa ca ir . O o u t r o r i e coloca de n o v o a m ã o sobre o o m b r o da moça , que também Se põe a r i r . O h o m e m torna-se u m a fera , i n t i m a o o u t r o a ret i rar a m ã o . Ele não t i r a . O d i v e r t i m e n t o era geral . O h o m e m rira d o bolso u m canivete , abre-o e atravessa a mão do seu " r i v a l " . . . "

Se o personagem da narração de E. K a z a n não era c i u m e n t o por n a t u ­reza , é evidente que ele agiu sob o e f e i t o de a lguma coisa que ele própr io i g n o r a v a , pois não havia n e n h u m m o t i v o plausível para tanta violência.

Que faria eu. a tor , se me fosse p r o p o s t o i n t e r p r e t a r essa cena? E m p r i m e i r o lugar , p r o c u r a r i a i m a g i n a r as circunstâncias que pudessem

levar o personagem a essa inexplicável e x p l o s ã o de ciúme. Por isso, p r o c u r e i i m a g i n a r o seu passado. Imag ine i o que aconteceu no

seu p r i m e i r o matr imónio : a traição da m u l h e r , t o d a a t o r t u r a d o c iúme, t o d a a v e r g o n h a e desonra d o m a r i d o enganado e f ina lmente o d ivórc io e o a r d e n t e desejo de esquecer a sua desgraça. M a i s tarde ele consegue esquecer, p o r q u e encontra u m a m u l h e r que é p u r a . s incera, c i n d i d a e por isso b e m e n t e n d i d o , digna de t o d a a conf iança . Ele se casa. Pergunte a ele se t e m

138 EUGÊNIO K U S N E T

a lguma dúvida a respeito de sua nova esposa, e ele lhe r e sponderá , c o m a absoluta sinceridade, que neste casamento não há e n e m n u n c a haverá lugar para c iúme.

E e n t r e t a n t o , f o i suf i c iente u m p r e t e x t o i n s i g n i f i c a n t e p a r a que , do f u n d o d o seu subconsciente, irrompesse o esquecido sentimento — o c iúme.

P o r t a n t o , o ciúme c o n t i n u o u e x i s t i n d o no seu s u b c o n s c i e n t e mesmo depois d o segundo casamento, mas o personagem ignorava a sua existência.

O m e u raciocínio me pareceu m u i t o c e r t o . A s s i m sendo , m e u p r i m e i r o p r o b l e m a seria conseguir u m a " ins ta lação " para i m p r o v i s a r u m a cena d o p r i m e i r o matrimónio:

" S i t u a ç ã o " — casamento, m u i t o a m o r e de repente a i n e s p e r a d a traição da m u l h e r .

"Necess idade" — lutar pela sua fe l i c idade apesar dos o b s t á c u l o s i n t r a n s ­poníveis — a mulher fugiu c o m o u t r o .

" A t i t u d e " — " Q u e far ia eu nessas cond i ções? "

O resultado desta " insta lação" ev identemente seria improv i sação de u m a cena de ciúme v io l ento .

P o r t a n t o , o prob lema não seria tão dif íc i l . Mas se o personagem realmente conseguiu esquecer, reca lcar as e m o ç õ e s

do seu passado e, depois agiu sob a influência inconsc i ente desses acontec i ­mentos , c omo poderia eu, a t o r , encaminhar-me conscientemente n o sent ido de passar pelo mesmo processo de recalque para poder agir sob o seu efe i to?

N a vida real esses processos realizam-se i n d e p e n d e n t e m e n t e da vontade do indivíduo.

E m u i t o esclarecedor u m caso que K . S. Stan is lavsk i c o n t a nas suas recordações sobre alguns encontros c o m A n t o n Pávlovitch T c h e k o v . Casual­mente , sem n e n h u m ob je t ivo didático, ele dá e x e m p l o b r i l h a n t e d a influên­cia d o passado sobre o c o m p o r t a m e n t o de u m a pessoa.

" . . . Nas minhas visitas a A n t o n Pávlovitch, a gente se sentava , bat ia papo. E le , sentado no seu confortável divã. dava suas toss idelas , de vez em q u a n d o levantava a cabeça para dar, através d o p ince -nez , u m a o l h a d a na m i n h a direção.

Naqueles momentos eu me sentia muito feliz e alegre, p o r q u e , ao entrar em sua casa, esquecia todas as encrencas havidas antes da m i n h a chegada (Grifos meus — E. K.). E, de repente , aprove i tando u m m o m e n t o de silên­c io , T c h e k o v disse: " E s c u t e , você está c o m cara m e i o esquis i ta . Q u e f o i que aconteceu? "

P o r t a n t o , apesar da sinceridade da alegria e prazer d o e n c o n t r o c o m A . P. T c h e k o v , havia no c o m p o r t a m e n t o de Stanis lavski algo que ele própr io

A T O R E M É T O D O 139

i g n o r a v a , mas que f o i perceb ido p o r T c h e k o v . S ó depois da sua observação f o i q u e Stanis lavsk i pôde c ons ta tar as causas d o seu c o m p o r t a m e n t o u m t a n t o e s t r a n h o .

S u p o n h a m o s que essa pequena e r e l a t i v a m e n t e s imples cena fizesse par te de u m a peça. De que m a n e i r a o a tor usaria os e l ementos do " M é t o d o " para p o d e r agir realmente sob a influência das encrencas daquele dia?

P r o v a v e l m e n t e o ator far ia u m " l a b o r a t ó r i o " sobre os desagradáveis a c o n t e c i m e n t o s e, através dessa improvisação, o b t e r i a o m a u h u m o r . Mas o m a l é que ele não poder ia c o m e ç a r c o m m a u h u m o r a cena em que deveria aparecer sinceramente alegre graças ao prazer do seu e n c o n t r o com T c h e k o v .

C o m o poder ia ele esquecer o recém-adquir ido m a u h u m o r e, de repente , entregar-se s inceramente à alegria do e n c o n t r o ? E , além disso, a sua alegria , e m b o r a s incera , deveria ter aspecto u m t a n t o d u v i d o s o , para que T c h e k o v pudesse n o t a r o seu estado p s í q u i c o . C o m o fazer isso? Pois u m ator decente não i r i a s imp lesmente f ing i r a alegria .

C o m o vêem, mesmo n u m a cena a p a r e n t e m e n t e simples como essa o a tor p o d e encont rar grandes d i f i cu ldades .

E c o m o i r i a ele resolver o p r o b l e m a , m u i t o mais c o m p l i c a d o , de o u t r o caso que Stanis lavski c o n t a nas mesmas recordações?

" . . . E u me encontrava no m e u c a m a r i m e m c o m p a n h i a de A n t o n Pávlovitch T c h e k o v quando e n t r o u u m a m i g o m e u . h o m e m jov ia l e alegre, c ons iderado no nosso meio c o m o sendo u m a pessoa u m t a n t o leviana.

D u r a n t e a permanência d o h o m e m no m e u c a m a r i m , A n t o n Pávlovitch f i c o u a observá-lo m u i t o sério, não t o m a n d o par te da nossa conversa. Depo i s da saída d o h o m e m , A n t o n Pávlovitch, m u i t o p e n s a t i v o , várias vezes a p r o x i -mou-se de m i m e fez mui tas perguntas a respe i to d o m e u amigo . Q u a n d o eu p e r g u n t e i sobre a razão da sua cur ios idade , ele r e s p o n d e u :

— " E s c u t e , você não está v e n d o que ele é u m s u i c i d a ? ! " "Essa inesperada afirmação me pareceu até m u i t o engraçada. I m a g i n e m

c o m q u e enorme espanto eu m e l e m b r e i disso q u a n d o , alguns anos mais tarde , soube que o meu amigo t i n h a se s u i c i d a d o " .

Para i n t e r p r e t a r essa cena o a t o r deveria, c o m o no caso de Elia K a z a n , recorrer à sua imaginação para c r ia r l o g i c a m e n t e o passado do personagem.

Q u e aconteceu na v ida desse h o m e m , que o t i n h a levado ao estado ps íqu i co perceb ido por T c h e k o v ? Por que a sua j o v i a l i d a d e , tão evidente e indubitável para t o d o o m u n d o , r esu l t ou sendo apenas u m a capa que enco­br ia sua permanente angústia, ignorada p o r ele p rópr i o ? O u acham que sempre sent ia a presença de sua angústia, mas a p r e n d e u a ocultá-la dos outros? N ã o , não acred i to , p o r q u e ele n u n c a conseguir ia enganar c o m a sua alegria f i n g i d a u m h o m e m tão sensível e i n t e l i g e n t e c o m o Stanislavski.

O q u e deve ter acontec ido c o m ele f o i m u i t o d i f e r e n t e : diante de u m a imensa e insuportável mágoa que so freu , - por e x e m p l o , a morte da única

140 EUGÊNIO K U S N E T

m u l h e r que a m o u , — a própr ia natureza veio para socorrê - lo , a p a g a n d o na sua consciência t u d o que c a u s o u o seu s o f r i m e n t o e s u b s t i t u i n d o o seu p s s a d o por u m a nova rea l idade subjet iva — a alegria de v iver . M a i s t a r d e , a l g u m acontec imento novo deve ter f e i t o c o m que o passado, c o m t o d o s os seus so fr imentos , ressurgisse n a sua consciência, c u l m i n a n d o c o m o seu suicídio.

Não se t rata de imagens sent imenta i s para ev i tar u m a exp l i cação prec i sa sobre u m assunto tão c o m p l i c a d o . O que expus n u m a f o r m a b e m p r i m i t i v a é p lenamente c o n f i r m a d o pela ps i co l og ia reflexológica.

Para demonstrar isso d o u aba ixo alguns trechos d o já c i t a d o l i v r o , " I n t r o d u ç ã o à Re f l exo l og ia " .

1) Pavlov define o r e f l e x o c o m o " u m e lemento de adaptação c o n s t a n t e do organismo em relação ao m e i o que o c i r c u n d a ; adaptação esta que per ­m i t e a este organismo u m estado de equilíbrio c o m o m e i o " . (Pag. 18)

2) Reflexos são todos os atos d o organismo que surgem e m resposta a estímulos dos receptores e q u e se real izam c o m partic ipação d o s i s t e m a nervoso centra l , i n c l u i n d o n o estado n o r m a l sua seção s u p e r i o r : o c ó r t e x cerebral . [Pag. 177)

3) . . . todos os f e n ó m e n o s ps íquicos , por c o m p l e x o s que se jam, t ê m por base mater ia l o sistema de conexões temporárias do c ó r t e x c e r e b r a l . A formação e o f u n c i o n a m e n t o destas conexões temporárias p e r m i t e m q u e as funções psíquicas possam i n f l u i r sobre a at ividade h u m a n a , regular e d i r i g i r os atos do h o m e m e influir sobre a forma como ele reflete a realidade objetiva. [Pag. 46)

4) A dinâmica da A t i v i d a d e Nervosa Super ior (os processos que se realizam no córtex e no subcórtex cerebrais^ f o i o b j e t o de exaus t i vo e s t u d o da Escola Pavloviana. revelando-se p o u c o a pouco a c o m p l e x a d inâmica dos dois processos fundamentais — Excitação e Inibição (das células do córtex e subcórtex cerebrais - E. K.). (Pag. 38)

5) \enhum processo psíquico pode surgir p o r si m e s m o , sem que atue sobre o cérebro uma determinada excitação. (Pag. 53)

6) Excitação e Inibição se completam, se substituem reciprocamente. Ao cessar a excitação n u m d e t e r m i n a d o foco, a inibição a substitui; i n s i -nua-se no intervalo de t e m p o e n t r e dois m o m e n t o s exc i tatór ios , apaga os efeitos das estimulações a p r o x i m a d a s , instala-se nos pontos em que a exci­tação atingiu densidade extralimite. (Pag. 67)

(Nota: A excitação que atinge a densidade extralimite ameaça a inte­gridade das céltdas. Xeste caso a inibição substitui a excitação automati­camente salvando assim o indivíduo do perigo de distúrbios graves no funcio-

A T O R E M É T O D O

namento da Atividade Nervosa Superior, o que poderia resultar em neuroses ou psicoses).

7 ) A sobrecarga do processo de exc i tação p o d e s u r g i r por efeito de traumas psíquicos supramaximais. (Pag. 82)

8) A inibição d o núcleo da e s t r u t u r a dinâmica p a t o l ó g i c a leva ao esque­cimento do incidente traumático, não havendo verba l i zação . (Pag. 103)

9) E s q u e c i m e n t o é imposs ib i l idade de recordar o u reconhecer algo, ou e q u i v o c a ç ã o d o r e c o n h e c i m e n t o o u recordação . Sua base fisiológica é a inibição das conexões temporárias. (Pag. 171)

10) Normalmente as conexões temporárias estabelec idas no córtex cerebral aí permanecem num estado de disponibilidade, podendo em deter­minadas circunstâncias, constituir um conteúdo de consciência. (Pag. 100)

Sei que seria u m absurdo pretender dar u m a ide ia c l a r a sobre assunto tão c o m p l e x o , p o r m e i o desses poucos trechos c i tados . P o r isso, r e m e t o os le i tores n o v a m e n t e à " I n t r o d u ç ã o à R e f l e x o l o g i a " . M a s , nesta a l t u r a , é m u i t o i m p o r t a n t e t e r a lguma noção da mecânica dos r e f l e x o s e dos p r o b l e ­mas da p s i c o l o g i a ref lexológica para c o m p r e e n d e r o s i g n i f i c a d o dos q u a t r o últ imos i t ens q u e m a i s nos interessam f r e n t e aos p r o b l e m a s deste capí tu lo .

A sobrecarga d o processo de exc i tação , — que p o d e ameaçar a i n t e g r i ­dade das células cerebrais , — pode surgir p o r e f e i t o dos t r a u m a s psíquicos s u p r a m a x i m a i s . (item 7).

O personagem d o caso c o n t a d o p o r E l i a K a z a n , c o n f o r m e a nossa supo­sição, s o f r e u u m a m á g o a insuportável, o u seja, u m t r a u m a p s í q u i c o supra-m a x i m a l .

A inibição d o n ú c l e o da e s t r u t u r a dinâmica pato lóg i ca , i s t o é, a inibição do f o co que acaba de sofrer perturbações causadas p e l o t r a u m a (sobrecarga de excitação) leva o individuo ao esquecimento do incidente, (item 8).

É o que nós c h a m a m o s , na nossa hipótese , de " s o c o r r o d a natureza que apaga na consc i ênc ia d o indivíduo t u d o o que causou seu s o f r i m e n t o " .

A base fisiológica d o esquec imento , o u seja, o seu f a t o r f ís ico , e a inibição das c o n e x õ e s temporárias, (item 9).

A s c o n e x õ e s temporárias resultantes da exc i tação , apesar da inibição, p e r m a n e c e m e m es tado de d i s p o n i b i l i d a d e , i s t o é, f o r a da consc iênc ia do indiv íduo , (item 10).

E m d e t e r m i n a d a s circunstâncias elas p o d e m novamente c o n s t i t u i r u m c o n t e ú d o de consc i ênc ia . Is to quer dizer que u m novo i n c i d e n t e e ate u m a simples palavra p o d e m " r e a t i v a r as c o n e x õ e s p r e e x i s t e n t e s " . (P<*g- 97). C o m isso, e v i d e n t e m e n t e , ressurgem as e m o ç õ e s esquecidas.

F o i e x a t a m e n t e o que aconteceu c o m o personagem de E l i a Kazan — u m a simples b r i n c a d e i r a reavivou t oda violência das e m o ç õ e s esquecidas.

I

142 E U G Ê N I O K U S N E T

Todas essas considerações nos l evam à conc lusão de q u e , para i n t e r ­pretar o papel do suicida no caso c o n t a d o por Stanis lavski (naturalmente enriquecido com muitos detalhes do passado do personagem, inclusive a cena anterior ao momento da primeira tentativa de suicídio), o a t o r d e v e r i a :

1) Fazer u m a " insta lação" sobre a situação que , f i n a l m e n t e , o leva ao suicídio . Improv isar u m " l a b o r a t ó r i o " em que o f a t o r p r i n c i p a l seria a excitação levada às últimas consequênc ias , e

2) "Esquecer " t u d o , o u seja, conseguir a inibição de t u d o o que f o i a d q u i r i d o através da excitação.

Só nessas condições o a t o r p o d e r i a agir c o m o rea lmente agiu o perso ­nagem, i s to é, sob a influência in consc i en te do seu passado.

Mas como executar conscientemente o processo de inibição que, na vida real, é realizado pela própria natureza independentemente da vontade do indivíduo ?

Cre io que encontre i resposta a essa pergunta n u m e n c o n t r o que t ive durante m i n h a viagem de pesquisas que fiz à E u r o p a e p r i n c i p a l m e n t e à União Soviética.

E m Leningrado tive o prazer de conhecer o d i r e t o r d o " G r a n d e T e a t r o Dramát i co " , G . A . T o v s t o n ó g o v , e assistia a alguns espetáculos , e n t r e os quais " O I d i o t a " de D o s t o i e v s k i , encenado em " m i s - e n - s c è n e " d o d i r e t o r . Esse espetáculo levou-me a m u i t a s reflexões sobre o p r o b l e m a de c o m u n i ­cação e m o c i o n a l .

À disposição do d i re tor encontravam-se excelentes atores e n t r e os quais o já c i t a d o I . M . S m o k t u n o v s k i n o papel central de pr ínc ipe M i c h k i n . I s t o expl ica e m parte a enorme impressão que o espetáculo me causou , mas só em par te , pois evidentemente h o u v e também o e f e i t o do t r a b a l h o d o d i r e t o r c o m os seus atores. Por isso f o i m u i t o natura l m i n h a ânsia p o r conhecer o m é t o d o de seu trabalho j u n t o aos atores. Por que meios ele c o n s e g u i u levá-los a esse resultado que eu cons iderava u m autêntico mi lagre?

N u m a conversa m u i t o c u r t a c o m ele, n a t u r a l m e n t e não p u d e chegar a n e n h u m a conclusão e, só depois da m i n h a vo l ta a São Paulo , q u a n d o re ceb i seu l i v r o " D a Profissão do D i r e t o t " que teve a b o n d a d e de m e m a n d a r , comecei a compreender o processo de seu t raba lho .

Eis alguns trechos que inf luíram m u i t o no m e u t r a b a l h o p e d a g ó g i c o depois da m i n h a vo l ta ao Bras i l .

" . . . Se falarmos da m e t o d o l o g i a , devemos dizer que t a n t o o a t o r , c o m o o d i r e t o r devem esforçar-se para conseguir a temperatura máxima da incan­descência emocional para depois tratar da redução ao mínimo dos meios de expressão". (Todos os grifos neste t r e c h o são meus. E . K . )

Ve j o n is to u m a analogia quase t o t a l desse m é t o d o consc iente de t r a b a ­lho em teatro c o m os processos n a t u r a i s segundo a r e f l e x o l o g i a .

A T O R E M É T O D O 143

V e j a m o s c o m o esses processos se r e a l i z a m n o t r a b a l h o de G . A . Tov ­s tonógov . E l e escreve n o seu l i v r o :

" E s t á v a m o s ensa iando no Grande T e a t r o Dramát i co a ú lt ima cena de " O I d i o t a " , a c ompl i cad í ss ima cena trágica da l o u c u r a de M i c h k i n , que se passa l ogo d e p o i s d o assassinato de Nastássia Fi l ípovna p o r Rogóg in . C o m o p o d e r í a m o s l evar os atores à encarnação da cena?

Pode r-se-ia f a l a r l ongamente sobre as p a r t i c u l a r i d a d e s d a doença de M i c h k i n , sobre o es tado ps íquico de u m h o m e m t i r a d o d o seu equi l íbr io m e n t a l pelos a c o n t e c i m e n t o s tão trágicos.

Nós esco lhemos c a m i n h o d i f e r e n t e . Depois de levar a cena à tempera­tura limite de emoções, eu propus aos atores : agora representem como se o caso fosse dos mais banais, cotidianos; c o n s u l t e m u m ao o u t r o — "será que alguém pode e n t r a r aqu i ? O que é que devemos fazer nesse caso? " etc .

N o c o n t e x t o g e r a l da obra essa conversa s imples s e m p r e causava u m a impressão t e r r íve l " .

Mas eu m e p e r g u n t e i a m i m m e s m o : E sem usar p r e v i a m e n t e a " t e m p e ­r a t u r a l i m i t e das e m o ç õ e s " , aprove i tando apenas o c o n t e x t o geral da obra , ter ia a cena causado a mesma impressão terrível? C l a r o q u e n ã o ! E la ter ia causado o m e s m o e f e i t o daqueles espetáculos, c i tados p e l o a u t o r d o l i v r o , que " f o r a m f e i t o s c o m coração f r i o " e que " n ã o a g i t a m e n ã o e m p o l g a m n inguém" , o u seja, nos quais não há c o m u n i c a ç ã o e m o c i o n a l .

Que fez o d i r e t o r para evitar essa fa lha de m u i t o s teatros?

1) Sabemos q u e ele levou os seus atores , — e v i d e n t e m e n t e já " i n s t a ­l a d o s " c o m o personagens , — Ã " Incandescênc ia das e m o ç õ e s " , t e r m o este que co r responde p e r f e i t a m e n t e ao t e r m o da r e f l e x o l o g i a , — exc i ta ção e x t r a ­l i m i t e , s u p r a m a x i m a l , que chega a ameaçar a i n t e g r i d a d e p s í q u i c a da pessoa e que , e x a t a m e n t e p o r isso, torna-se insuportável.

2) Sabemos q u e , q u a n d o os atores se e n c o n t r a v a m n o estado de e x c i ­tação e x t r a l i m i t e (incandescência emocional), o d i r e t o r sugeriu- lhes u m a situação d i a m e t r a l m e n t e oposta, u m caso bana l de precisar v e r i f i c a r o que se passa atrás da p o r t a . Essa sugestão, feita pelo diretor propositalmente, f a c i l i t o u a in ib i ção d o foco exc i tado e o consequente e s q u e c i m e n t o . Os atores a c e i t a r a m a sugestão p r o n t a m e n t e c o m o saída de uma situação insuportável.

Mas o a t o r p o d e r i a executar t o d o esse processo t a m b é m soz inho . Depois de chegar , através de u m a improvisação adequada , ao estado de " incandescênc ia e m o c i o n a l " , ele poderia usar uma auto-sugestão (monólogo interior), idênt ica à sugestão fe i ta pe lo d i r e t o r , que t a m b é m f a c i l i t a r i a a inibição do f o c o e x c i t a d o e o consequente e squec imento .

Eis c o m o foi encontrada a resposta, — ao menos t e o r i c a m e n t e , — ao p r o b l e m a de como executar conscientemente o processo de inibição para

144 E U G Ê N I O K U S N E T

poder agir sob a influência subconsc iente de u m t r a u m a causado pela e x c i ­tação s u p r a m a x i m a l (incandescência emocional).

Mas, a par t i r daí, a inda f a l t a ta lvez o mais i m p o r t a n t e — e x p e r i m e n t a r na prática o mecanismo dessa h i p ó t e s e , e m b o r a ela já t e n h a s ido v e r i f i c a d a na prática alheia.

Essa preocupação tornou-se bás ica d u r a n t e os t raba lhos q u e t ive a o p o r ­tunidade de fazer c o m u m grupo de a tores .

C o m e ç a m o s por procurar t e m a s que pudessem ser t r a n s f o r m a d o s e m mater ia l capaz de satisfazer certas exigências de nossas pesquisas. Esses temas dev iam possuir as seguintes características:

1) O passado do personagem dev ia conter a contec imentos de g rande violência, capazes de excitar a imaginação do ator ao e x t r e m o , para que ele pudesse chegar mais fac i lmente à " incandescênc ia e m o c i o n a l " .

2 ) O presente do personagem devia cond i c i onar , p o r sua n a t u r e z a , a obr igator iedade do esquecimento d o passado.

Concordamos que essas duas características p o d e r i a m ser e n c o n t r a d a s em neuróticos ou psicopatas, p o r q u e :

1) É fácil imaginar que os i n c i d e n t e s na vida de u m ind iv íduo , que o levam à neurose ou à psicose, d e v e m ser de ex t rema violência ;

2) Q u a n t o mais grave f o r o i n c i d e n t e , t a n t o mais rigorosa será a i n i b i ­ção que levará o indivíduo ao e s q u e c i m e n t o do passado. Os l oucos n u n c a se l e m b r a m das causas de sua d o e n ç a (se é que têm noção dela).

T o d a a ação se passava d e n t r o de u m manicômio . Do i s o u três atores assumiam papéis de médico e de e n f e r m e i r o s .

O p lano preestabelecido para esse t r a b a l h o f o i o segu inte : Os atores deviam começar p o r e laborar , em p r i m e i r o lugar , as " c i r c u n s ­

tâncias propostas " referentes à a ção cénica no m a n i c ô m i o , o u seja, começar pelo presente do personagem. Eles d e v i a m preestabelecer várias p a r t i c u l a r i ­dades da ação cénica.

— Sintomas de sua doença , i s t o é, o papel que o personagem assumia na loucura .

— Sua at i tude frente ao a m b i e n t e c i r cundante . C o m o ele c o n c e b i a a realidade objet iva do m a n i c ô m i o ?

— Suas relações c o m o u t r o s personagens: médicos , e n f e r m e i r o s , p a c i e n ­tes, visitas, etc.

— Suas relações c w n a g c r . s inexistentes , imaginários, p r o d u t o s de seu delírio.

— Era i m p o r t a n t e estabelecer o que aconteceu no p e r í o d o e n t r e o p r i ­me i ro dia da doença e o dia de sua internação no h o s p i t a l . C o m o o personagem se c ompor tava nesse per íodo e m casa, na rua , no serviço, n o c i n e m a , etc .

A T O R E M É T O D O 145

U m a vez estabelec idos esses detalhes, i s t o é, e laborados os e lementos para a próx ima " i n s t a l a ç ã o " , os atores c o m e ç a v a m a i m p r o v i s a r l i v r e m e n t e cenas d o m a n i c ô m i o , e m c o n j u n t o .

O r e s u l t a d o das improvisações dependia , c o m o sempre , de vários f a t o ­res: d o t e m p e r a m e n t o d o a t o r , de sua espontaneidade i n a t a e, p r i n c i p a l ­m e n t e , de sua capac idade de i m p r o v i s a r , o que i n f e l i z m e n t e era bastante raro naque la época .

C o m o r e s u l t a d o q u e p o d i a ser cons iderado satisfatório era a espontane i ­dade c o m que m u i t o s atores agiam d e n t r o das situações absurdas de sua " l o u c u r a " o que , e v i d e n t e m e n t e , era consequênc ia de u m a " i n s t a l a ç ã o " ade­quada . Se u m a m u l h e r cu idava c o m m u i t o c a r i n h o e p r e o c u p a ç ã o dos seus " m i l f i l h o s " , o u u m m ú s i c o regia " u m a orques t ra d e n u v e n s " e dialogava c o m elas, o espectador c o m p r e e n d i a que se t ra tava de personagens loucos graças à n a t u r a l i d a d e e lógica c o m que os intérpretes ag iam d e n t r o das circunstâncias absurdas. Nós v íamos personagens reais, — u m a mãe fel iz e p reocupada , u m regente a t e n t o à execução de sua música, — u m deus bene­vo lente c o m seus fiéis, u m Napoleão o n i p o t e n t e , — e acredi távamos na sua real idade , mas não sentíamos a sua loucura, c o m p r e e n d í a m o s , mas não a sent íamos : os atores nos c o n v e n c i a m r a c i o n a l m e n t e e não e m o c i o n a l m e n t e .

D u r a n t e os c o m e n t á r i o s sobre os resultados das cenas i m p r o v i s a d a s , eu a f i rmava que a l o u c u r a n e m sempre é percebida apenas pe lo c o m p o r t a m e n t o absurdo do l o u c o . .Vós a sentimos mesmo na absoluta i n a t i v i d a d e d o demen­te, ela aparece nos seus olhos, nos quais nós vemos a presença de suas paixões .

Por isso, e x p l i c a v a e u , a elaboração e a improvisação das "c ircunstâncias p r o p o s t a s " d o presente d o personagem l o u c o , era apenas a fase preparatória para nossas experiências c o m a " incandescência e m o c i o n a l " .

Para essas experiências os atores r e c o r r i a m ao passado do personagem, a n t e r i o r à sua e n f e r m i d a d e , i n c l u i n d o nele principalmente os t r a u m a s que t e r i a m causado a d o e n ç a .

N a e laboração das "c ircunstâncias p r o p o s t a s " re ferentes ao passado do personagem havia u m p o n t o m u i t o i m p o r t a n t e . E o que nós chamávamos de " c o m p e n s a ç ã o da n a t u r e z a " .

C o m o já sabemos, o processo inibitório e l i m i n a , e m certas circunstân­cias, a re cordação d o passado do indiv íduo . Mas novas e x c i t a ç õ e s provo ­cadas p o r est ímulos i n t e r n o s (pensamentos verbalizados) e e x t e r n o s (fatos objetivos) c r i a m novas c o n e x õ e s temporárias e c o m elas n o v a realidade sub je t iva , d i a m e t r a l m e n t e oposta à real idade do passado.

Podemos dizer q u e a real idade da l o u c u r a compensa os s o f r i m e n t o s da real idade d o passado.

A s s i m , por e x e m p l o , u m h o m e m que enlouquece e m consequênc ia de várias desgraças m a t e r i a i s , de e x t r e m a pobreza , de f o m e , etc . na l oucura

146 E U G Ê N I O K U S N E T

torna-se rniiionário; u m o u t r o q u e , d e v i d o à sua abso luta impotênc ia e f r a g i ­l i d a d e , sofre de constantes humi lhações e privações de l i b e r d a d e , na l o u c u r a a d q u i r e u m poder sem l i m i t e ; e m e s m o nas manifestações pato lóg icas de m e d o , chamadas ant igamente de m a n i a de perseguição, há u m a c e r t a c o m ­pensação em f o r n i a de autof lagelação. P o r e x e m p l o , a pessoa c o m e t e u m a o que ela própria considera c r i m i n o s o , m a s , e m b o r a passe p o r intoleráveis s o f r i m e n t o s de remorsos, não confessa o c r i m e . Se o t r a u m a causado pelos s o f r i m e n t o s a leva, f i n a l m e n t e , à l o u c u r a , esta se revela e m f o r m a de a u t o -punição através de imagens de e t e r n a a m e a ç a de perseguições.

E m u i t o i m p o r t a n t e levar e m cons ideração esse f a t o r ao e laborar as "circunstâncias p ropos tas " re ferentes ao passado do personagem. A o estabe­lecer u m a c o n t e c i m e n t o , u m i n c i d e n t e q u e pudesse ser l evado pe l o a t o r às ultimas consequências para q u e servisse de t r a u m a causador de distúrbios menta is do personagem, o a t o r deve e l a b o r a r , s i m u l t a n e a m e n t e , u m a espécie de " a n t í d o t o " , c o n f o r m e e x p u s e m o s a c i m a . Esse " a n t í d o t o " constituirá a u t o m a t i c a m e n t e os s intomas da d o e n ç a , o u seja, traços característ icos da nova personal idade do ind iv íduo , q u e d e v e m ser incluídas nas " c i r cunstân ­cias p r o p o s t a s " da ação no m a n i c ô m i o .

C o m o vê o l e i t o r , até aí estávamos p r o c u r a n d o organizar , c o m a m a i o r lógica possível, os e lementos da ação q u e pudessem levar-nos à " i n c a n d e s ­cência e m o c i o n a l " e à consequente c o m u n i c a ç ã o e m o c i o n a l .

Para m a i o r clareza, d o u a b a i x o descr i ção d o t r a b a l h o de u m dos atores que , acred i to , aproximou-se mais q u e os o u t r o s dos nossos o b j e t i v o s .

Ele escolheu para o seu t t a b a l h o de elaboração do passado d o perso ­nagem o seguinte t e m a :

U m rapaz, filho de u m a famí l ia m u i t o modesta , quase p o b r e , c o m e ç o u sua v ida de a d u l t o c o m o " o f f i c e - b o y " n u m banco . E m b o r a trabalhasse m u i t o , ele c o n t i n u o u o b s t i n a d a m e n t e a estudar . Passando p o r várias etapas de serviço, conseguiu o lugar de c o n t a d o r , depois gerente de u m a filial e finalmente, d i r e t o r do banco . Ele e n r i q u e c e u , c o m e ç o u a especular c o m as ações na bolsa, tornou-se mi l i onár io , p a i de u m a família fe l iz e t o d o s os o u t r o s a t r i b u t o s do que nós c h a m a m o s " u m filme m e x i c a n o " . N o auge d o seu bem-estar, de repente t o r n o u - s e " v í t i m a dos v í c i o s " , c o m e ç o u a j o g a r cartas, fazer farras, teve m u i t a s a m a n t e s e, q u a n d o c o m e ç a r a m a f a l t a r me ios mater ia is , ele se a t i r o u nas o p e r a ç õ e s de bo lsa arriscadas, que p o u c o a p o u c o o l evaram à falência e à ruína t o t a l . E l e perdeu a família e a única pessoa amiga que lhe restou , a sua ú l t ima a m a n t e , adoece de câncer . A últ ima esperança de salvá-la era u m a o p e r a ç ã o , mas ele já estava na miséria t o t a l e " a bem-amada morre nos seus b r a ç o s " . A m o r t e dela leva o personagem à l o u c u r a .

A T O R E M É T O D O 147

O p r i m i t i v i s m o d o e n r e d o não nos preocupava , bastava-nos q u e o t e m a fosse capaz de e x c i t a r a imaginação d o a tor a p o n t o de p o d e r levá- lo à " incandescênc ia e m o c i o n a l " .

T e n d o pres tabe lec ido q u e a causa da l o u c u r a d o personagem seria a penúria t o t a L o a t o r a c h o u q u e o " a n t í d o t o " dos seus s o f r i m e n t o s seria o poder i l i m i t a d o do d i n h e i r o — o seu personagem se t r a n s f o r m a v a e m a r q u i -mil ionário que c o m o seu d i n h e i r o resolvia t o d o s os p r o b l e m a s d o s seus p r ó x i m o s , salvando-os de situações desesperadoras.

I n f e l i z m e n t e , n a q u e l a é p o c a , devido a certas circunstâncias n ã o p u d e organizar improvisações co le t ivas sobre os temas do passado dos p e r s o n a ­gens. T o d o s os atores f a z i a m seus " l a b o r a t ó r i o s " m e n t a l m e n t e , o q u e . é c laro , d i f i c u l t a v a o t r a b a l h o e se ref let ia no r esu l tado final.

Q u a n d o o a t o r e m questão sentia, d u r a n t e o seu" " l a b o r a t ó r i o " , que estava chegando ao l i m i t e m á x i m o das sensações que se t o r n a v a m i n s u p o r ­táveis, ele faz ia o que n ó s chamávamos de " c l i c " , i s t o é, c o m u t a v a a ação preparatória para a d o l o u c o .

C o m o já sabemos, n ã o se deve temer d i f i cu ldades e m rea l i zar essa c o m u ­tação. Se o a tor r e a l m e n t e consegue levar suas sensações às ú l t imas conse­quências, ele passa ao " c l i c " c o m sensação de alívio e, p o r t a n t o , c o m fac i ­l i dade .

Nesse m o m e n t o , g e r a l m e n t e , o ator c omeçava a s o r r i r o l h a n d o p a r a u m dos personagens, p e n s a n d o e m c o m o poder ia ser-lhe útil c o m os seus m i ­lhões , pois a p a r t i r d a q u e l e m o m e n t o , j á era u m arquimi l ionár io . O seu banco inesgotável era u m v e l h o j o r n a l que sempre segurava e m b a i x o d o braço e d o q u a l a r rancava pedaços , entregando-os aos o u t r o s c o m o cheques no va lor de milhões de c r u z e i r o s .

N o in í c i o dos t r a b a l h o s , quando ele a inda não conseguia a " i n c a n d e s ­c ê n c i a " , c onvenc ia os nossos espectadores pela e x t r e m a n a t u r a l i d a d e c o m que encaminhava u m d i á l o g o i m p r o v i s a d o , q u a n d o p o r e x e m p l o , d i z i a ao m é d i c o que o V i a d u t o d o Chá era dele, o u perguntava se o m é d i c o q u e r i a c o m p r a r o seu C i t y B a n k , e p r i n c i p a l m e n t e nos m o m e n t o s q u a n d o entregava os " c h e q u e s " .

A té a í o seu T r a b a l h o era u m b o m e x e m p l o de improv isação d e n t r o do processo de " A n á l i s e A t i v a " de u m a cena. Mas o seu personagem era mais d i v e r t i d o d o que p e r t u r b a d o r . Havia ação de u m l o u c o , mas não h a v i a l o u c o . Estava f a l t a n d o e x a t a m e n t e a comunicação e m o c i o n a l .

U m d ia , essa m i n h a impressão f o i casualmente c o n f i r m a d a p e l o nosso amigo , o grande p s i q u i a t r a bras i le i ro , d o u t o r Bernardo B l a y q u e , às vezes, aparecia às nossas aulas p o r curiosidade (Dr. Bla\, além de cientista, é um grande conhecedor de teatro). Depois da aula ele c o m e n t o u o r e s u l t a d o do t r a b a l h o daquele a t o r : " N o seu personagem não senti o p s i c o p a t a . E r a uma

148 EUGÊNIO K U S N E T

pessoa n o r m a l que, talvez p o r b r i n c a d e i r a , adotasse at i tudes e c o m p o r t a ­m e n t o u m t a n t o es tranhos" .

Mas em cada novo " l a b o r a t ó r i o " i n d i v i d u a l o a tor acrescentava novos detalhes do seu " m o n ó l o g o i n t e r i o r " e das "v i sua l i zações " cada vez mais exc i tantes . N o silêncio da sala nós c h e g á v a m o s a ouv i r o ranger de seus dentes. E q u a n t o mais exc i tado ele f i cava , t a n t o mais conv incente tornava-se e m o c i o n a l m e n t e durante a cena d o m a n i c ô m i o . N o seu r o s t o l u z i a u m a fe l ic idade i l i m i t a d a . N e n h u m mi l ionár io , m e n t a l m e n t e são, p o d e r i a s e n t i r a milésima parte daquela fe l i c idade , p o r q u e sua riqueza real n u n c a d e i x a r i a de lhe causar preocupações e m e d o de perdê- la . A s fo tograf ias desse a t o r , b e m c o m o as dos outros que também c o n s e g u i r a m chegar à " incandescênc ia e m o c i o n a l " , c o n f i r m a r a m a nossa impressão .

E preciso no tar que n o r m a l m e n t e , apesar da imensa exc i tação e tensão nervosa durante o " l a b o r a t ó r i o " , o a t o r e n q u a n t o fazia as suas cenas n o mani cômio , não perdia a n o ç ã o da r e a l i d a d e o b j e t i v a : — d u r a n t e nossos comentários sobre os trabalhos rea l izados ele se l embrava de cer tos detalhes da reação da plateia , das risadas, das e x c l a m a ç õ e s inesperadas, etc . P o r t a n t o , a " d u a l i d a d e do a t o r " estava presente nele . I s t o só pode ser e x p l i c a d o pe la existência da " p r i m e i r a instalação" , ( " insta lação p r o f i s s i o n a l " ) , c u j o e f e i t o sobre o a tor é sempre a p e r m a n e n t e sensação d o prazer de representar , comunicando-se c o m o espectador.

C o m o já sabemos, o equi l íbr io e n t r e a rea l idade ob je t iva (eu — o ator, os meus colegas, os espectadores, o palco, etc.) e a subjet iva (eu — o perso­nagem) é m a n t i d o por me io da " p r i m e i r a ins ta lação " .

Mas esse equilíbrio pode ser r o m p i d o se o a t o r , p o r u m a o u o u t r a razão, perde o c o n t a t o c o m a " p r i m e i r a ins ta lação " . Por e x e m p l o , m a r a v i l h a d o pelo grande poder da " incandescência e m o c i o n a l " , o a t o r ehtrega-se — " s ó pra e x p e r i m e n t a r ! " — aos seus " l a b o r a t ó r i o s " ' integralmente, c o m o o f a z e m os part i c ipantes das sessões de m a c u m b a . E le passa a acredi tar na rea l idade do imaginário, ele não mais exerce a sua ar te — ele se t r a n s f o r m a e m perso ­nagem, fica c omple tamente fora da rea l idade o b j e t i v a .

I s t o aconteceu, u m dia , c o m o m e s m o a t o r . N u m a das aulas, q u a n d o ele ofereceu u m " cheque no va lor de três b i lhões de c r u z e i r o s " a u m o u t r o " l o u c o " , este o recusou e c o n t i n u o u r e c u s a n d o , o que levou o " m i l i o n á r i o " ao estado de e x t r e m a cólera. Ele c o m e ç o u a perseguir o o u t r o p o r t o d o s os cantos do manicômio , e x i g i n d o que aceitasse o " c h e q u e " . Os dois ,pál idos e ofegantes, estavam pu lando p o r c i m a dos móve is e, n u m dado m o m e n t o , encontraram-se l u t a n d o e m c i m a de u m a mesa encostada a u m a grande jane la , quebraram os v idros e p o r p o u c o não caíram do q u a r t o andar para a rua.

Apesar de u m susto geral, a m a i o r i a dos presentes achou a cena " i m p r e s ­s ionante ! . . . " Mas houve também q u e m l o g o visse " o o u t r o l a d o da m e d a -

A T O R E MÉTODO 1 4 9

l h a " : t e r i a s ido r e a l m e n t e t e a t r o o que acabávamos de ver? Não t e r i a s i d o u m a l o u c u r a quase autênt ica? Nessas condições , p o d e r i a u m a t o r r e p r e s e n ­tar d e n t r o das "c i rcunstânc ias p r o p o s t a s " concretas de u m a peça? E c l a r o que n ã o ! E le n e m seria capaz d e , s implesmente , dizer u m t e x t o f i x o .

Para c o m p r o v a r isso, p r o p u s u m a experiência. N a cena d o m a n i c ô m i o , que, até aí , sempre se faz ia t o t a l m e n t e improv i sada , i n t r o d u z i m o s u m c u r t o diálogo obr igatór io e n t r e o " m é d i c o " e os " l o u c o s " . O t e x t o do d i á l o g o consistia e m três o u q u a t r o frases , e p o r t a n t o era fácil de se decorar . N o meio d o diálogo geral i m p r o v i s a d o , quando o " m é d i c o " dava u m a d e t e r m i ­nada d e i x a , o " d o e n t e " dev ia d i z e r a sua p r i m e i r a fala e depois c o n t i n u a r esse pequeno diálogo até o fim.

Q u a l não f o i a surpresa g e r a l quando, alguns atores, e m b o r a t e n h a m decorado o t e x t o c o m a b s o l u t a precisão, não consegu iam lembrar-se d e nada, e d u r a n t e o d iá logo c o m o " m é d i c o " gaguejavam, c o n f u n d i a m as frases, r e s p o n d e n d o sem a m í n i m a lógica; u m deles s implesmente não conse ­guiu p r o n u n c i a r u m a pa lavra sequer . E f o r a m exatamente os maiores en tus ias ­tas da " incandescênc ia e m o c i o n a l " , os que mais f a c i l m e n t e c o n s e g u i a m alcançá-la!

Mas t e n h o que d i zer a v e r d a d e : a cu lpa não era u n i c a m e n t e dos a t o r e s , era e m grande par te m i n h a .

O p r i n c i p a l o b j e t i v o dos nossos trabalhos era ver i f i car na prática a p o s s i ­b i l idade de se usar a " i n c a n d e s c ê n c i a e m o c i o n a l " c o m o m e i o de alcançar a verdadeira c o m u n i c a ç ã o e m o c i o n a l . Por isso, não se prestava a dev ida a t e n ­ção à e laboração e à i m p r o v i s a ç ã o mais detalhada das cenas n o m a n i c ô m i o . Nessas cenas, apenas de l ineadas e a inda não assimiladas pelos atores, estáva­mos e x p e r i m e n t a n d o e m o ç õ e s t ã o agudas, tão extraordinárias! Não era d e estranhar que os a tores , nessas c o n d i ç õ e s , p e r d i a m a segurança e o e q u i l í ­b r i o .

Mas esses revezes nos l e v a r a m a u m a conc lusão m u i t o i m p o r t a n t e . Se , em vez de estar f a z e n d o exper iênc ias , decidíssemos usar a " i n c a n d e s c ê n c i a e m o c i o n a l " e m t e a t r o , c o m u m d e t e r m i n a d o m a t e r i a l dramatúrgico , nunca poderíamos começar a elaboração do estado de "incandescência"antes que concluíssemos trabalhos com os outros elementos do "Método". Usa i í a m o s a "Anál ise A t i v a " e m sua p l e n i t u d e e só depois de c o m p l e t a r t o d o o t r a ­balho n o r m a l recorrer íamos à " incandescênc ia " para levar ao m á x i m o a capacidade dos atores se c o m u n i c a r e m e m o c i o n a l m e n t e c o m a p la te ia .

R e d u z i n d o ao essencial t o d a a matéria deste cap í tu lo , podemos d i z e r que:

1) A c o m u n i c a ç ã o e m o c i o n a l e m seu estado p u r o existe na v ida r e a l .

2) I g u a l m e n t e ela ex is te e m t e a t r o . Ela se real iza pelos atores de g r a n d e ta lento s u b c o n s c i e n t e m e n t e .

150 EUGÊNIO K U S N E T

3) É necessário descobrir processos consc ientes que possam levar o a t o r a agir em cena sob a influência d o seu s u b c o n s c i e n t e , i s t o é, sob a influência de acontec imentos e s e n t i m e n t o s esquecidos (recalcados).

4) A re f lexologia nos e x p l i c a a mecânica desses processos na v ida r e a l : o esquecimento do passado (o recalque) se rea l i za através da inibição a u t o ­mática do foco at ing ido p o r u m a exc i tação e x t r a l i m i t e .

5 ) Esse processo pode ser rea l izado pe l o a t o r de l iberadamente . Para isso ele se submete à exc i tação e x t r a l i m i t e ( " incandescênc ia e m o c i o n a l " ) e, por me io de u m a auto-sugestão ( " m o n ó l o g o i n t e r i o r " ) , consegue a inibição (esquecimento do passado).

6 ) C o n t a n t o que o a t o r esteja sempre s e n t i n d o o prazer de c o m u n i -car-se c o m o espectador ( " a d u a l i d a d e d o a t o r " consequente da " p r i m e i r a instalação") , ele não deve t e m e r e fe i tos noc ivos da exc i tação excessiva.

7) A " incandescência e m o c i o n a l " só p o d e ser u t i l i z a d a em teatro c o m o o p o n t o c u l m i n a n t e de t o d o o t r a b a l h o preparatór io , p r i n c i p a l m e n t e a "Análise A t i v a " .

8) Há necessidade de p e r m a n e n t e s experiências c o m esse m é t o d o , para evidenciá-lo e i n c u t i - l o na m e n t e de t o d a nossa g e n t e de t ea t ro .

I n f e l i z m e n t e , no Brasi l n u n c a t i v e m o s a o p o r t u n i d a d e de c o n f i r m a r esse m é t o d o no trabalho c o t i d i a n o de nosso t e a t r o . C o n f o r m e já c o m e n t a m o s , os nossos melhores d i re tores , sempre d ispostos a fazer novas experiências, desist iram, por força de certas circunstâncias, até da própria "Anál i se A t i v a " . O u t r o s diretores u s a m a " incandescênc ia e m o c i o n a l " , talvez sob u m t e r m o d i ferente , — c o m o es t ímulo para a exc i tação g r a t u i t a da imaginação, que f r e q u e n t e m e n t e nada t e m a ver c o m os prob lemas das "circunstâncias p ropos tas " da peça . O r e s u l t a d o disso, n a t u r a l m e n t e , é idêntico ao que e x e m p l i f i c a m o s a c i m a , i s to é, a p e r d a da n o ç ã o da r e a l i ­dade ob jet iva , o que leva o a t o r a u m a espécie de de l í r io .

A metodo log ia certa n o uso da " i n c a n d e s c ê n c i a e m o c i o n a l " que deve levar o a tor ao máximo da c o m u n i c a ç ã o e m o c i o n a l , deve ser p r o c u r a d a e encontrada por cada d i r e t o r nos t raba lhos prát icos c o m o seu e lenco , bastando para isso que os seus atores t e n h a m prática em improvisações.

O ob je t ivo deste l i v r o é m u i t o menos ensinar a arte dramática d o que despertar o interesse geral pelo p r o b l e m a da atualização do t e a t r o b r a ­si le iro . Se o meu l i v r o conseguir despertar esse interesse no m e i o de nossos atores, diretores e professores de ar te dramática , t enho certeza de que as consequentes experiências levarão o nosso t e a t r o a u m grande progresso.

" P a r a poder sempre c o n f e r i r as leis objetivos da cr ia t iv idade artística! devemos m a n t e r i n i n t e r r u p t o o d e s e n v o l v i m e n t o da nossa própria expe­riência subjetiva".

Essas palavras de K . S. S t a n i s l a v s k i são rea lmente a base de progresso na nossa ar te .

ÍNDICE

N o t a d o A u t o r O A t o r e a Verdade Cénica o u Estar A r d e n d o , p a r a I n f l a m a r Introdução

PRIMEIRA PARTE - Iniciação à A r t e Dramática

1. ° Capí tu lo Pág. T r a b a l h o de teatro é t r a b a l h o de e q u i p e — V e r d a d e s da Ciência — Verdades da A r t e — A t o r , e l e m e n t o indispensável ao t e a t r o — T e a t r o , capac idade de re­presentar a vida do Espír ito H u m a n o — Fé Cénica — Obtenção da Fé Cénica.

2. ° Capítulo Pág. Objet ivos do Personagem — O b j e t i v o s d o A t o r — Lógica da Ação — A ç ã o C o n t í n u a e I n i n t e r r u p t a — A ç ã o E x t e r i o r e A ç ã o I n t e r i o r — N ã o ex is te A ç ã o sem ob je t ivo .

3. ° Capítulo Pág. Circunstâncias Propostas — O mág i co SE F O S S E — Visualização.

4. ° Capítulo Pág. Meios de C o n t a t o e C o m u n i c a ç ã o : F ís i cos e M e n t a i s — Atenção cénica — Círculos de A t e n ç ã o — A ç ã o Insta ladora — D u a l i d a d e do A t o r .

5. ° Capítulo Pág. Visualização das Falas — O r i g e m da l i n g u a g e m h u m a n a — O sent ido e o v a l o r s o n o r o das palavras — Inflexão e ênfase nas palavras — L e i t u r a l óg i ca .

6. ° Capítulo Pág. M o n ó l o g o I n t e r i o r e S u b - t e x t o — O r a c i o c í n i o e ação do Personagem — Improvisação e E s p o n t a n e i ­dade do A t o r — Falas I n t e r n a s — T e m p e r a m e n t o e E s t r u t u r a Psíquica do A t o r .

13

3 5

4 8

6 2

7 1

mmm

SECUNDA PARTE - Meios de C o m u n i c a ç ã o E m o c i o n a l

7. ° Cap í tu lo Pág. 83 T e m p o - R i t m o — E f e i t o e m o c i o n a l d o T e m p o - R i t m o — T e m p o - R i t m o Simples — T e m p o - R i t m o Compos­t o — T e m p o - R i t m o E x t e r i o r — T e m p o - R i t m o I n t e ­rior.

8. ° Cap í tu lo Pág. 97 Análise A t i v a — Improvisação O b j e t i v a d a — Recept iv i ­dade do A t o r para t r a b a l h o de e q u i p e — R o t e i r o dos acontec imentos — " f a t o r e s a t i v a n t e s " — C o m o de­senvolver a "Anál ise A t i v a " n u m a peça — D i r e t o r e Elenco — A Imaginação e Espontane idade , faculda­des exercitáveis — C o m o f i x a r resultados obt idos nos " l a b o r a t ó r i o s " — Análise f r i a da Improvisação — Improvisação d e n t r o das Circunstâncias Propostas — Seleção dos E lementos da A ç ã o — Assimilação gra­dativa do t e x t o t e a t r a l : c o - a u t o r i a do t e x t o — B o m senso e Prática do D i r e t o r para a escolha das etapas da "Análise A t i v a " .

9. ° Cap í tu lo P á g 118 Escrever cartas : preparação m e n t a l e física para ação cénica (concentração) — Improvisação l ivre dentro das "Circunstâncias P r o p o s t a s " — M e i o de f ixar m a ­ter ia lmente os pensamentos do a t o r para racional iza­ção e seleção dos resultados o b t i d o s espontanea­mente .

10 . ° Capítulo Pág. 133 Comunicação Essencia lmente E m o c i o n a l — Meios do A t o r a m p l i a r o c o n t a t o c o m o subconsciente — Psicologia Re f l exo lóg i ca esclarece e c o n f i r m a esse método de t r a b a l h o n o T e a t r o - T e m p e r a t u r a L i m i ­te das E m o ç õ e s : Processo de Exc i tação e Inibição conscientes — " L a b o r a t ó r i o s " : Equi l íbr io entre Rea­lidade O b j e t i v a e Real idade S u b j e t i v a — Necessidade de constantes experiências para resultar concreta­mente o t r a b a l h o e m T e a t r o .