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AUTARQUIA EDUCACIONAL DO VALE DO SÃO FRANCISCO FACULDADE DE CIÊNCIAS APLICADAS E SOCIAIS DE PETROLINA CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO TARCIZIO AUGUSTO CAMPÊLO DEUSDARÁ A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO EM DEFESA DOS INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS PETROLINA 2014

Atuação do MP em defesa dos interesses transindividuais

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Monografia que trata acerca do acesso à justiça promovido pelo Ministério Público através da defesa dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos

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Page 1: Atuação do MP em defesa dos interesses transindividuais

AUTARQUIA EDUCACIONAL DO VALE DO SÃO FRANCISCO

FACULDADE DE CIÊNCIAS APLICADAS E SOCIAIS DE PETROLINA

CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO

TARCIZIO AUGUSTO CAMPÊLO DEUSDARÁ

A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO EM DEFESA DOS

INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS

PETROLINA

2014

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TARCIZIO AUGUSTO CAMPÊLO DEUSDARÁ

A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO EM DEFESA DOS

INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS

Monografia apresentada como exigência parcial do

grau de bacharelando em Direito à comissão

julgadora da Autarquia Educacional do Vale do

São Francisco pelo Prof. Pedro Henrique Matos

Souza de Santana.

PETROLINA

2014

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TARCIZIO AUGUSTO CAMPÊLO DEUSDARÁ

A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO EM DEFESA DOS INTERESSES

TRANSINDIVIDUAIS

Defesa em __/__/__ Nota: _____

Banca examinadora:

____________________________________

Pedro Henrique Matos de Souza Santana (Orientador)

____________________________________

Bárbara Alves de Amorim (Especialista)

____________________________________

Catarine Marcelino (Especialista)

PETROLINA

2014

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RESUMO

O Ministério Público é órgão incumbido da defesa e preservação dos interesses dapopulação, desde os referentes ao estado da pessoa até a guarda do patrimôniopúblico, histórico e cultural. A presente obra visa discutir a atuação do Parquet emdefesa dos interesses transindividuais, quais sejam, interesses difusos, coletivosstricto sensu e individuais homogêneos, que refletem situações onde se atingem osdireitos de uma pluralidade de indivíduos, estejam estes ligados por uma situaçãofática ou uma situação jurídica. Para isso, fazendo-se uso do arcabouço legal eacadêmico do Direito, mostrar-se-á quais são as ferramentas utilizadas peloMinistério Público, enfatizando a atuação judicial através da Ação Civil Pública,instrumento mais largamente utilizado na defesa dos interesses em questão.Ademais, serão demonstradas soluções alternativas que igualmente alcancem o fimalmejado, que é a promoção do acesso à justiça para as pessoas que não possuemcondições de provocar o Poder Judiciário por si próprias – ou quando as demandasindividuais são insuficientes para a solução dos conflitos.

Palavras-chave: Ministério Público. Acesso à justiça. Interesses Transindividuais.

Ação Civil Pública. Processo Coletivo.

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ABSTRACT

The Public Ministry is an state institution responsible for protecting and preservatingpeople's interests, from individual's condition to public, historic and cultural patrimony.This work claims to discuss the Parquet performance in defense of transindividualinterests, namely diffuse interests, collective stricttly and homogeneous individual,which reflect situations that reach a plurarity of individuals, who are connected by afatual situation or a legal situation. For this, making use of Law legal and academicalframework, it will be shown what are the tools used by Prosecutors, emphasizing thejudicial activity by the Public Civil Action, which is the most widely used instrument indefense of these rights. Futhermore, it will be demonstrated how alternative solutionscan also reach its goal, which is to promote access to justice for people who do nothave conditions to cause Justice themselves – or when individual actions areinsufficient to solve those conflicts.

Keywords: Public Ministry. Access to justice. Transindividual interests. Public Civil

Action. Collective Process.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..............................................................................................................6DIREITOS E INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS.......................................................8

Os interesses transindividuais em meio ao interesse estatal....................................8Direitos e interesses: divergência..............................................................................9Conceituação de direitos transindividuais................................................................11Direitos difusos.........................................................................................................13Direitos coletivos (stricto sensu)..............................................................................15Direitos individuais homogêneos.............................................................................16Questões complementares sobre os interesses transindividuais............................17

ASPECTOS PROCESSUAIS DA ATUAÇÃO MINISTERIAL – LEGITIMIDADE, PRINCIPIOS E AÇÃO CIVIL PÚBLICA.....................................................................20

Legitimidade na defesa dos direitos transindividuais e o acesso à justiça pela atuação do Ministério Público..................................................................................20Princípios atinentes à tutela de interesses transindividuais....................................22Procedimento investigatório: o inquérito civil e as peças de informação................24Observações processuais acerca da Ação Civil Pública.........................................27

ALTERNATIVAS À AÇÃO CIVIL PÚBLICA, DEFESA PENAL DOS INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS E PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE E ÀS MINORIAS........30

Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta e transação judicial.............30A intervenção por meio da Ação Popular.................................................................31O Ministério Público como impetrante do Mandado de Segurança Coletivo..........33A tutela penal dos interesses transindividuais.........................................................34Defesa do meio ambiente e dos grupos sociais diversificados...............................36

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................39REFERÊNCIAS ..........................................................................................................41

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INTRODUÇÃO

O acesso à justiça é um princípio constitucional que, em simples

palavras, objetiva promover ao cidadão o direito de dirigir-se aos órgãos do Poder

Judiciário em busca da solução de determinado conflito, conferindo-lhe a

preservação de suas prerrogativas e o restabelecimento da sua dignidade enquanto

ser humano.

Numa sociedade como é a brasileira, onde a quantidade de demandas

judiciais provoca o emperramento da “máquina”, o acesso à justiça enfrenta

obstáculos que limitam o cidadão na sua militância em reaver o direito violado,

necessitando, assim, de amparo por meio de uma instituição que disponha de

melhor aparelhamento e organização. Contudo, não se fala apenas em demandas

individuais – este contra aquele, mas também em demandas coletivas, que

envolvem grupos e, muitas vezes, multidões transtornadas.

Seja por questões relativas à proteção do meio ambiente, do direito do

consumidor ou do acesso à saúde, um único fato pode gerar a necessidade da tutela

de interesses de dezenas, centenas ou milhares de pessoas, culminando em direitos

transindividuais de ordem difusa, coletiva ou individual homogênea. O presente

trabalho se encarregará de discriminar essas espécies de direitos coletivos (em

sentido amplo), argumentando acerca da importância do processo coletivo enquanto

propulsor de uma litigância mais célere e benéfica. Para tanto, é necessário não só

que a Justiça esteja apta a julgar essas demandas, como que igualmente exista um

denominador comum – um agente – capaz de catalisar tais interesses e reivindicá-

los através de um só instrumento.

Conforme será analisado nesta obra, o Ministério Público – ou Parquet,

denominação sinônima que será amplamente aproveitada – é um dos órgãos

legitimados a agir em prol dos interesses transindividuais, por meio, principalmente,

da Ação Civil Pública, sendo este um caminho de suma importância para tentar

dirimir litígios que vão além da dicotomia entre Direito Público e Direito Privado, uma

vez que revestidos por interesse eminentemente social. Discutir-se-á a natureza de

tal legitimidade em consonância com os princípios que regem as tutelas coletivas.

As ações coletivas têm, em geral, duas justificativas atuais de ordemsociológica e política: a primeira, mais abrangente, revela-se no princípio doacesso à Justiça; a segunda, de política judiciária, no princípio da economia

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processual. (DIDIER JR.; ZANETI JR., 2012, p. 35)

Resta saber, contudo, se a atuação do Ministério Público é eficiente na

solução dos conflitos supramencionados e se propicia o devido acesso à justiça

daqueles que necessitam de amparo jurisdicional, desafogando, ao mesmo tempo, o

volume de trabalho nos Tribunais. Com esta finalidade é que serão avaliados os

mecanismos do referido órgão, tais como a já citada Ação Civil Pública, além do

inquérito civil (instrumento de atividade investigatória) e os Ajustamentos de

Conduta.

A relevância deste estudo mostra-se comprovada através da nuance

metamórfica do direito, que não mais retrata somente a busca por interesses

individuais particulares, mas também aqueles tidos como difusos e transgressores.

Como experiência pessoal, traz-se o período de estágio na 5ª Promotoria de Justiça

de Juazeiro/BA, responsável, à época, por lidar com direitos difusos, enriquecendo o

conhecimento através do contato com o tema em apreço.

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DIREITOS E INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS

Os interesses transindividuais em meio ao interesse estatal

Já foi superada a ideia de que o direito serve para tratar somente de

meras questões de interesse individual, numa posição entre credor e devedor. Cada

vez mais se atenta para situações onde o bem-estar social é a causa de uma lide,

levando para o polo ativo da demanda uma quantidade indeterminável de pessoas.

De início, é o Estado que deve prover, através de sua política, o bem-

estar mencionado. Melhorias na educação, conservação do patrimônio público,

promoção de segurança, lazer, dentre outros fatores que compõem relevância

social. Há momentos em que a população é indagada a se manifestar, como nos

casos de referendos e plebiscitos, entretanto, com pouca assiduidade.

Por conseguinte, nem sempre os interesses do Estado se refletem no

anseio da população, quando ambos deveriam caminhar em consonância. Assim,

existe uma divisão conceitual entre interesse público (eminentemente estatal) e

interesse social (o bem geral da sociedade). Para Adriano Andrade, Landolfo

Andrade e Masson (2011, p. 16-17), há o interesse público primário, onde se

comportam os apelos populares em unanimidade social ou conflituosidade mínima, e

o interesse público secundário, transmitido através dos atos da Administração

Pública.

De modo mais crítico, pode-se conceber o interesse público, como um

todo, nas razões de agir do Estado pela esfera administrativa. É a forma estatal de

se portar diante do que julga necessário em relação a melhorias e manutenções das

mais diversas ordens. Paralelamente, o interesse social é o povo dando ênfase ao

que preceitua como fundamental ao progresso, tanto de forma imediata

(pavimentação de ruas, remoção de lixo) quanto de forma mediata (maior

investimento em saúde e educação). Infelizmente, não é raro haver conflituosidade

entre esses distintos posicionamentos.

Para melhor esclarecer a respeito de tal dicotomia, não há exemplo

mais palpável do que os dois eventos esportivos mais aguardados e celebrados a

nível mundial, que, oportunamente, acontecerão no Brasil: a Copa do Mundo de

2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Estado e população convergem no sentido de

que esses espetáculos serão memoráveis e trarão lazer singular ao país, além de

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impulso extraordinário ao turismo, disso não há dúvida. Porém, cabe indagar,

afastando-se do frisson causado pelo clima de festejo, se há homogeneidade entre

interesse público e interesse social no que concerne aos jogos que se aproximam.

Não há.

Como leciona Mazzilli (2013, p. 49):

Ao tomar decisões na suposta defesa do interesse público, nem sempre osgovernantes fazem o melhor para a coletividade: políticas econômicas esociais ruinosas, guerras, desastres fiscais, decisões equivocadas,malbaratamento dos recursos públicos e outras tantas ações daninhas nãoraro contrapõem governantes e governados, Estado e indivíduos.

Assim, ainda que a vinda da Copa e das Olimpíadas tenha agradado

muitas pessoas, diante do mau uso do dinheiro público para a realização das obras

necessárias e dos casos de corrupção, resta claro que o interesse social teria

preferido que os esforços do governo estivessem voltados a outras ações, como a

utilização da verba para o aperfeiçoamento da saúde, tema recorrente em se

tratando de interesses transindividuais, como será posteriormente explanado. Logo

se observa que, mesmo trazendo pontos positivos, os esforços do interesse público

podem não ser suficientes para satisfazer o interesse social.

Não se pode, todavia, antagonizar completamente o interesse estatal.

Por vezes, a população anseia por medidas que são idealizadas mediante forte

impulso emocional, como o clamor pela redução da maioridade penal e a instituição

da pena de morte (além da situação prevista na Constituição Federal [BRASIL,

1988] para os casos de guerra declarada, em seu artigo 5º, inciso XLVII, alínea a).

Particularmente, entende-se que a melhoria do sistema prisional como um todo seria

suficiente para afastar tais reclames.

Finalmente, com o progressivo distanciamento entre o que o Estado

promove e o que a nação deseja, os direitos transindividuais têm o escopo de

buscar a satisfação de interesses que atinjam diretamente o bem-estar social, uma

vez que, por mais que se manifeste e se pronuncie o propósito almejado, o povo

nem sempre é atendido pelo governo. Ao menos pacificamente.

Direitos e interesses: divergência

Primeiramente, cumpre destacar a diferença (se existe) entre direitos e

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interesses, já que ambas as denominações são utilizadas corriqueiramente em

caráter sinônimo.

Para Didier Jr. e Zaneti Jr. (2012, p. 88-94), a expressão “interesses” é

equivocada, pois se trata da defesa de “direitos” transindividuais, não meros

interesses. Justificam que o uso contíguo dos dois termos veio por transposição do

direito italiano, onde direitos subjetivos (caráter particular) são julgados pela justiça

civil e interesses legítimos (relacionados ao interesse social, onde há relação entre

particulares e administração pública) são analisados por órgãos da justiça

administrativa, no que se entende por dualidade da jurisdição. Na Itália, ambos são

tidos como direitos, ao passo que no Brasil, como prevalece a unidade da jurisdição,

a distinção entre interesses e direitos não faria sentido. Eis que concluem, em

esclarecedora citação:

“Os termos 'interesses' e 'direitos' foram utilizados como sinônimos, certo éque, a partir do momento em que passam a ser amparados pelo direito, os'interesses' assumem o mesmo status de 'direitos', desaparecendo qualquerrazão prática, e mesmo teórica, para a busca de uma diferenciaçãoontológica entre eles.” (WATANABE apud DIDIER JR. e ZANETI JR., 2012,pg. 94).

De forma mais objetiva, Mazzilli (2013, p. 62) fala de interesses

enquanto gênero, sendo direito subjetivo o interesse tutelado pelo ordenamento

jurídico. Uma vez que “nem toda pretensão à tutela judicial é procedente, temos que

o que está em jogo nas ações civis públicas ou coletivas é a tutela de interesses,

nem sempre direitos” (MAZZILLI, 2012, p. 62). Terminou, ainda, por entender que o

interesse não precisa estar tutelado pelo ordenamento, diferentemente do que se

interpreta quanto ao direito. É o que se depreende do que foi dito em tópico anterior,

com relação ao clamor da população pela instituição da pena de morte em casos

que vão além da situação de guerra declarada.

Parece mais acertada e didática, contudo, a posição de Adriano

Andrade, Landolfo Andrade e Masson (2011, p. 14-15), ao conceituarem “interesse”

como toda e qualquer pretensão que pode ou não encontrar respaldo no

ordenamento jurídico. O direito seria, por conseguinte, o interesse garantidamente

tutelado pela jurisdição em provento de uma pessoa, um ente ou a coletividade.

Alertam, ainda, que tanto a Constituição (BRASIL, 1988) quando o Código de

Defesa do Consumidor (BRASIL, Lei nº 8.078/90) consideram os dois termos de

forma indistinta, com os mesmos propósitos.

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Diante das correntes expostas, entende-se mais plausível, para os fins

que esta obra visa, relacionar interesses transindividuais e direitos transindividuais

como sinônimos, posto que prevalece no Brasil a unidade da jurisdição (não existe

uma justiça eminentemente administrativa, para questões entre particulares e o

Estado) e que toda situação suplicante por uma demanda judicial ainda não é um

direito garantido (já que ainda não houve sentença e posterior trânsito em julgado),

necessitando haver instrução, com a devida obediência aos princípios do

contraditório e da ampla defesa. Sendo a pretensão tida como improcedente, não há

que se falar em interesse, muito menos em direito. A razão é simples: se não é

tutelado pelo ordenamento jurídico, não é direito, já que se configura como inerente

ao direito a sua possibilidade (ou mesmo obrigatoriedade) de tutela; tampouco é

interesse, visto que não há objeto a ser tutelado. Ademais, dado o fato que a CF/88

(BRASIL, 1988) e o CDC (BRASIL, Lei nº 8.078/90) não se preocuparam em

diferenciar tais institutos, depreende-se que a pormenorização não se faz

necessária.

Conceituação de direitos transindividuais

O público enquanto aparente e visível a todos, instrumento para a

posteridade, basilar à permanência do mundo como é conhecido para aqueles que

ainda nascerão. O privado como o íntimo, não divulgado, oriundo da própria

privação da relação com os outros. Na obra A Condição Humana, Hannah Arendt

(2007) discutiu uma bipolarização que até hoje não se tornou terreno pacífico nas

divagações do mundo jurídico.

No Brasil, durante muito tempo, o direito foi dividido simplesmente

entre Direito Público e Direito Privado. Não que estivesse errada, mas essa

dicotomia não mais prospera diante do crescimento de demandas que não

conseguem se encaixar numa definição tão simples.

Com os conflitos sociais gerados diante da Revolução Francesa e da

Revolução Industrial (ANDRADE, A.; ANDRADE, L.; MASSON, 2011, p. 2-3),

acentuados devido a um modelo jurídico insuficiente para satisfazer os interesses de

todos, houve a formação de agrupamentos organizados para conseguir a atenção do

Estado. Os chamados “corpos intermediários” defendiam interesses que nem tinham

íntima conexão com o Estado e tampouco compunham relações meramente

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individuais, se fixando numa linha centralizada.

Como resposta aos clamores desses corpos intermediários, os Estadosforam sendo gradualmente forçados a reconhecer direitos econômicos,culturais e sociais (direito à proteção contra o desemprego e condiçõesmínimas de trabalho, direito à educação básica, direito à assistência nainvalidez e na velhice etc.), que ficaram conhecidos como “direitos deigualdade” ou liberdades reais, concretas, materiais (por visarem à reduçãodas desigualdades materiais que então se disseminavam), ou públicaspositivas (pois implicavam prestações positivas do Estado para redução dasdesigualdades. (ANDRADE, A.; ANDRADE, L.; MASSON, 2011, p. 3).

Assim foram criados os chamados Direitos Humanos de Segunda

Dimensão, capazes de tutelar interesses de uma classe ou grupo de pessoas,

alheios à bifurcação do Direito Público e Direito Privado. A partir desse ponto houve

um aprofundamento da referida tutela coletiva, culminando na proteção de direitos

da humanidade como um todo, independentemente de uma classe de indivíduos

determinados (Direitos Humanos de Terceira Geração). Por exemplo, fala-se do

direito de proteção ao meio ambiente equilibrado e à saúde, que são direitos

pertinentes a qualquer pessoa, sem distinções.

A bem da verdade, cada vez mais o meio social rejeita a distinção

entre o público e o privado. Tratar do privado não é mais falar de uma vontade

absoluta da parte hipersuficiente, eis que há normas de interesse geral a serem

consideradas, não sendo característica exclusiva do ramo público. Da mesma forma,

costumes do âmbito privado influenciam a flexibilidade do âmbito público, tendo-se

como exemplo a adequação das relações homoafetivas ao direito de família,

transformando o antigo conceito do seio familiar que abrangia necessariamente pelo

menos um homem e uma mulher. O crescimento da preocupação para com os

direitos fundamentais (desde a Constituição de 1988 [BRASIL]) mostra que, antes de

tudo, deve-se atentar para a dignidade e a liberdade do ser humano (MIGUEL;

SANTOS, p. 7).

Superada a discussão entre Direito Público e Privado, cumpre

conceituar os interesses transindividuais. Durante muito tempo se deu um sentido

homogêneo também às denominações de direitos transindividuais e direitos

coletivos, não havendo um certo parâmetro para a diferenciação de ambos, sendo

hoje entendido que direitos transindividuais (ou metaindividuais, supraindividuais)

são, simplesmente, direitos coletivos lato sensu. Ou seja, são direitos que atingem

uma amplitude de indivíduos, seja por uma relação fática, seja por uma relação

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jurídica.

Tratam-se, por sua vez, do gênero, da reunião de direitos que vão além

do interesse individual. São espécies desse gênero os direitos difusos, os direitos

coletivos stricto sensu e os direitos individuais homogêneos. Cada espécie possui

uma finalidade distinta, mas todas promovem a tutela de direitos que extrapolam a

mera relação entre credores e devedores particulares. São situações onde uma

única ação (não uma ação judicial, mas uma ação gerada de um fato ou norma

jurídica) confere direitos, divisíveis ou não, a uma pluralidade de indivíduos.

Foi o CDC (BRASIL, Lei nº 8.078/90) que trouxe, de forma clara e

objetiva, a definição das espécies de direitos transindividuais. Embora trazidos em

legislação tão específica, os conceitos das espécies de direitos metaindividuais

também devem ser aceitos em relação a tutelas que não abordem necessariamente

questões de consumo:

Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimaspoderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.

Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:

I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos destecódigo, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titularespessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;

II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos destecódigo, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo,categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária poruma relação jurídica base;

III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos osdecorrentes de origem comum. (BRASIL, Lei nº 8.078/90)

Os pontos principais para a diferenciação das espécies de direitos

supraindividuais são: a possibilidade de identificar os seus sujeitos, bem como de

dividir o objeto tutelado; o fator que agrega os sujeitos – fático ou jurídico

(ANDRADE, A.; ANDRADE, L.; MASSON, 2011, p. 20).

Direitos difusos

Foi lecionado pelo CDC (BRASIL, Lei nº 8.078/90) o interesse difuso

como sendo aquele que se presta à tutela de quantidade indeterminada ou

indeterminável de pessoas, gerada por uma relação fática de natureza indivisível.

Evidencia-se a amplitude deste direito quando se fala que ele tutela

uma quantidade indeterminada de pessoas. É o que ocorre, num exemplo clássico,

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quando se veicula na televisão uma propaganda enganosa. Impossível saber

quantas pessoas estavam assistindo à TV enquanto a propaganda ia ao ar, mas

todas as que foram atingidas ganharam o mesmo respaldo para desejarem que o

comercial não mais seja transmitido, assim como as que poderiam ter assistido. Ou

seja, não se considera somente a exposição efetiva, mas igualmente a potencial.

Quando se abre um buraco numa rua movimentada, o dano não é atinente

exclusivamente às pessoas que moram nas proximidades, mas também aos

indivíduos que pela rua passam habitualmente ao se deslocarem ao trabalho, ou

mesmo a quem eventualmente por ela transita num passeio.

Todos estão necessariamente interligados. Existem interesses tão

abrangentes que podem corresponder até mesmo ao próprio interesse público,

como a preservação do meio ambiente como um todo. Outros interesses, embora

partilhados por certa coletividade, não transmitem o interesse geral da sociedade,

como a conservação das ruas do município de Petrolina, em Pernambuco. Contudo,

também há determinados interesses que representam parcela incerta, quando não

minoritária da população, como o apoio à legalização da maconha.

Por “circunstâncias de fato” entende-se que são casos onde não se

exige um vínculo jurídico prévio. É fato que todos têm direito à saúde, ainda que não

contribuam com a Previdência Social (INSS), ainda que não estejam protegidos por

Planos de Saúde ou que não tenham celebrado qualquer contrato. O direito difuso à

saúde nasce com o próprio ser humano, amparado pelo princípio da dignidade da

pessoa humana. A chuva forte que causa a derrubada de árvores, que, por sua vez,

danificam os postes de eletricidade, também se traduz em “mero” fato, enquanto

acontecimento da natureza. Capaz, todavia, de gerar direitos que interessam a uma

quantidade enorme de pessoas, como verdadeiramente gera. Nasce, então, uma

pretensão jurídica oriunda de uma relação fática. Acerta Mazzilli (2013, p. 53) ao

dizer que “no caso dos interesses difusos, a lesão ao grupo não decorrerá

diretamente da relação jurídica em si, mas sim da situação fática resultante”. A tutela

jurídica é consequência óbvia do fato.

Por “natureza indivisível”, quer-se dizer que “a coisa julgada que advier

das sentenças de procedência será erga omnes (para todos), ou seja, irá atingir a

todos de maneira igual” (DIDIER JR.; ZANETI JR.; 2012, p. 76). Ora, se o fato ligou

os indivíduos de maneira homogênea, igualmente necessitará haver homogeneidade

nas decisões judiciais. Quando a sentença determina que o buraco na rua deverá

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ser tapado pela Prefeitura, tal provimento atinge toda a coletividade, pois satisfaz os

moradores da rua onde se localiza a ruptura, bem como quem eventualmente passa

por aquele trecho, ou poderia passar. Não se ignora que podem ter havido outros

danos, em nuance particular, como na situação de alguém que assiste à propaganda

enganosa e compra o produto, que não atende às necessidades como foi

demonstrado. Nesse caso, há o interesse particular, e o indivíduo lesado obterá a

prestação jurisdicional em seara eminentemente privada.

Para eliminar qualquer dúvida acerca do caráter indivisível dos

interesses difusos: imagine-se outro exemplo no qual uma fábrica emita poluentes,

colocando em risco a saúde dos habitantes de uma determinada região. O interesse

discutido é indivisível porque não há como proteger apenas uma das pessoas

expostas ao perigo sem preservar as demais. Se for determinado o fechamento da

fábrica ou a implantação de dispositivos de purificação do ar, todos serão

beneficiados.

Direitos coletivos stricto sensu

Em sentido estrito, direitos coletivos são, assim como os difusos,

indivisíveis, entretanto, tutelam uma categoria, classe ou grupo de pessoas

interligadas por uma relação jurídica base.

Ao se falar em categoria, classe ou grupo de pessoas, entende-se que

são indivíduos determinados ou determináveis. O que os identifica, portanto, é a

relação jurídica vinculante. Há diversos grupos onde as pessoas estão inseridas:

consorciados, condôminos, associados da Ordem dos Advogados do Brasil,

contratantes de uma empresa promotora de eventos, contribuintes do Imposto sobre

Produtos Industrializados, dentre inúmeros outros casos. A relação jurídica é o

vínculo dotado de poder normativo: contratos, leis, estatutos e outras fontes. São

situações que preveem direitos e deveres em âmbito delimitado, somente para

aqueles que integram certa categoria.

Exemplo exaustivamente utilizado pela doutrina ao tratar de interesse

coletivo em sentido estrito é o da cláusula abusiva em contrato de adesão. Tal

cláusula gera dano aos celebrantes do contrato, implicando direito coletivo à sua

eliminação ou modificação. Sendo o objetivo alcançado através de provimento

judicial, será obtido efeito ultra partes, quer dizer, perante todos aqueles que

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celebraram o contrato de adesão. Não há que se falar em efeito erga omnes, pois

interfere apenas naquela classe devidamente identificada. Em suma, “não por outro

motivo a coisa julgada será 'ultra partes' [...], ou seja, 'para além das partes', mas

limitada ao grupo, categoria ou classe” (DIDIER JR.; ZANETI JR., 2012, p. 77).

Direitos individuais homogêneos

O CDC (BRASIL, Lei nº 8.078/90) foi menos claro ao tratar desta

espécie de interesse metaindividual, definindo-a meramente como direito coletivo de

interesse comum. Através desse conceito não se pode extrair de forma satisfatória o

significado dos direitos individuais homogêneos. Já a Lei do Mandado de Segurança

(BRASIL, Lei nº 12.016/09) define como interesse decorrente de origem comum e da

atividade ou situação específica que interliga os impetrantes deste remédio

constitucional.

Com o auxílio da doutrina, tem-se que os interesses individuais

homogêneos caracterizam-se por serem divisíveis, terem por titular pessoas

determinadas ou determináveis e uma origem comum, de natureza fática. Diferem

dos interesses difusos porque têm sujeitos determinados ou determináveis, e seu

objeto é divisível (MAZZILLI, 2013, p. 60).

Dessa forma, assim como no interesse coletivo em sentido estrito, os

sujeitos são delimitados. A diferença é que o direito em comento surge através de

uma circunstância de fato.

Relembrando o exemplo do buraco na rua movimentada: aqueles que

sofrerem danos devidos à irregularidade – como tropeços que implicam fraturas ou

um acidente automobilístico – terão interesse individual homogêneo na reparação de

seus respectivos danos. Daí se extrai a divisibilidade do objeto, uma vez que a

jurisdição, embora necessitando apenas de uma ação judicial, deverá dar

provimentos específicos a todos os envolvidos (a indenização para quem torceu o pé

não é a mesma da de quem teve a sua motocicleta destruída após ir de encontro a

uma parede de concreto). Com relação ao contrato de adesão que possui cláusula

abusiva, suponha-se que o contrato tenha como objeto a prestação de serviços de

telefonia móvel e que nele conste cláusula prevendo à empresa contratada o direito

de interromper a prestação do serviço total ou parcialmente em decorrência de

razões técnicas. É comumente sabido que, a depender das circunstâncias, numa

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mesma cidade, determinadas pessoas poderão estar com o serviço funcionando

corretamente, enquanto outras terão a prestação interrompida por determinado

tempo e mais alguns sofrerão restrição por um período ainda maior. Assim,

logicamente, embora uma só ação possa tutelar esses direitos, cada indivíduo

lesado será indenizado de acordo com a extensão do seu dano.

Como se pode observar, ainda que o direito individual homogêneo

surja através de circunstâncias de fato, a origem dessas circunstâncias poderá ser

tanto uma relação fática (um buraco em via pública) como uma relação jurídica

(cláusula abusiva em contrato de adesão).

É preciso se atentar, todavia, que o direito pode ser meramente

individual, sem ser homogêneo. Quando um produto produzido em larga escala

apresenta defeito e é vendido a um consumidor, este possui direito individual de

indenização, simplesmente. Por sua vez, quando toda a série de produtos está

prejudicada, aqueles que os comprarem terão interesses individuais homogêneos

(MAZZILLI, 2013, p. 58).

Questões complementares sobre os interesses transindividuais

Embora analisados separadamente e devidamente discriminados,

nada impede que uma só tutela possua mais de um interesse transindividual

presente. Quando proposta ação civil pública (instituto que será melhor estudado

adiante) para declarar a nulidade de cláusula abusiva em contrato de adesão, a

referida nulidade será almejada tanto em favor daqueles que fazem parte da relação

contratual quanto em proveito dos que poderão celebrar o negócio jurídico no futuro.

Assim, simultaneamente, estão sendo defendidos interesses coletivos e difusos.

Num consórcio onde há aumento ilegal das prestações, os

consorciados possuem direito coletivo, pois trata-se de um grupo lesado através de

uma relação jurídica. Porém, quanto à restituição do que foi pago, existe interesse

individual homogêneo, pois o valor depende das cotas de cada consorciado,

necessitando de uma decisão judicial divisível.

“Numa única ação civil pública ou coletiva, é possível combater os

aumentos ilegais de mensalidades escolares já aplicados aos alunos atuais, buscar

a repetição do indébito e, ainda, pedir a proibição de aumentos futuros” (MAZZILLI,

2013, p. 59). Ou seja, todos os interesses transindividuais serão defendidos,

Page 19: Atuação do MP em defesa dos interesses transindividuais

18

respectivamente: coletivos, individuais homogêneos e difusos. É errado dizer,

contudo, que um só interesse pode ser caracterizado por mais de um direito

metaindividual. O que pode acontecer é o caso onde existem vários interesses a

serem tutelados, mas cada um corresponde a um direito específico.

Quanto aos direitos difusos e individuais homogêneos, que se originam

de um fato, não se nega que haja uma relação jurídica igualmente presente,

enquanto na hipótese de interesses coletivos também existe uma circunstância de

fato interligando todo o contexto do elemento jurídico. Consequentemente, as

particularidades sobre a situação que origina o direito, a determinabilidade dos

sujeitos e possibilidade de uma jurisdição divisível são apenas um guia para a

identificação do interesse que vem a surgir. É por essa orientação, por exemplo, que

se aponta quando a defesa de idosos, deficientes ou crianças será a tutela de um

direito difuso, coletivo ou individual homogêneo.

Existe uma divergência doutrinária no que concerne à separação entre

direitos difusos e coletivos e direitos individuais homogêneos. Certo posicionamento

afirma que interesses individuais homogêneos não podem ser considerados

interesses transindividuais, por serem materialmente divisíveis e possuírem sujeitos

determinados, possibilitando que um dos lesados busque a tutela apenas do seu

direito particular (ZAVASCKI, apud ANDRADE, A.; ANDRADE, L.; MASSON, 2011, p.

31). Reforçando esta tese, diz-se que o direito difuso ou coletivo de apenas uma

pessoa pode ser tutelado por ação civil pública, mas não um só direito individual

homogêneo.

Posicionamento contrário parte da premissa de que, se um direito pode

ser defendido coletivamente, então é uma espécie de interesse transindividual

(MAZZILLI, apud ANDRADE, A.; ANDRADE, L.; MASSON, 2011, p. 31-32). O que se

entende é que os posicionamentos expostos se baseiam, respectivamente, no

caráter material e no caráter processual dos interesses transindividuais. Para esta

obra, considera-se o direito individual homogêneo como legítimo direito

transindividual, por envolver uma pluralidade de pessoas em meio a uma

circunstância de fato e possibilitar a tutela desses interesses mediante ação civil

pública ou coletiva.

Apesar disso, há diferenças entre as já amplamente analisadas

espécies de direitos transindividuais que as põem em uma bifurcação à parte,

segundo parcela da doutrina: interesses essencialmente coletivos e interesses

Page 20: Atuação do MP em defesa dos interesses transindividuais

19

acidentalmente coletivos (sentido amplo da noção de direito coletivos).

Por tutelarem interesses indivisíveis e, ao menos inicialmente, de

pessoas indeterminadas (embora seja possível a determinação em caso de direito

coletivo em sentido estrito), direitos difusos e coletivos stricto sensu são

classificados como os essencialmente coletivos. Os interesses individuais

homogêneos seriam acidentalmente coletivos pela determinabilidade dos titulares e

a divisibilidade de sujeitos. Ambos os lados, entretanto, se juntariam em razão da

possibilidade de tutela através de ação coletiva ou ação civil pública (ANDRADE, A.;

ANDRADE, L.; MASSON, 2011, p. 32-33).

Tal divisão não prospera no entendimento de Didier Jr. e Zaneti Jr.

(2012, p. 83), que dizem, a respeito dos interesses individuais homogêneos, que “ao

contrário do que se afirma com foros de obviedade não se trata de direitos

acidentalmente coletivos, mas de direitos coletivizados pelo ordenamento”, com o

fito de se obter a tutela jurisdicional. Particularmente prefere-se que não haja

enfoque no que tange a mais essa dicotomia, por não agregar importância ao

presente tema. Essencialmente ou acidentalmente, são direitos coletivos em sentido

amplo, abarcados pelo ordenamento como interesses que rompem com os simples

conceitos de Direito Privado e Direito Público.

Page 21: Atuação do MP em defesa dos interesses transindividuais

20

ASPECTOS PROCESSUAIS DA ATUAÇÃO MINISTERIAL – LEGITIMIDADE,

PRINCÍPIOS E AÇÃO CIVIL PÚBLICA

Legitimidade na defesa dos direitos transindividuais e o acesso à justiça pela

atuação do Ministério Público

A discussão sobre a legitimidade visa esclarecer quem são os entes ou

pessoas aptos a defenderem os interesses próprios ou alheios em juízo. Quando o

próprio lesado ajuíza uma ação para defender o seu direito prejudicado, tem-se a

legitimidade em caráter ordinário. É a situação, por exemplo, do casal que impetra

ação de divórcio consensual para dissolverem o casamento. Trata-se da regra no

processo civil tradicional, onde o titular do direito e o legitimado se confundem

(MANCUSO, 2007, p. 53).

Nem sempre é assim, entretanto. Na legitimação extraordinária, que

deve estar prevista em lei, a titularidade do direito material não necessariamente

configura a legitimidade para atuar em juízo. Dessa forma, ao ferir-se o direito de um

determinado grupo, pode ser dada legitimidade a um só indivíduo que venha a

defender o interesse solidário dos envolvidos. Outro modo se dá pela legitimidade

extraordinária através da substituição processual, onde um ente, em nome próprio,

vai a juízo defender o interesse alheio, quadro que, em tese, engloba o Ministério

Público na defesa dos interesses transindividuais.

Em tese porque, mais uma vez, a doutrina não é pacífica, pois há

parcela que entende que o Ministério Público, por ser naturalmente um defensor do

meio ambiente, do consumidor e de demais relações que envolvam direitos de

vários indivíduos, possui legitimidade ordinária na propositura da Ação Civil Pública

(MAZZILLI, 2013, p. 65). Não se entende tal posicionamento como o mais acertado,

por uma razão simples: quando uma escola aumenta o preço da mensalidade a um

valor completamente abusivo, determinados pais de alunos já matriculados podem

buscar a justiça, por conta própria, com o fito de obterem a anulação do dano.

Assim, nada impede que, mesmo com a legitimação do Ministério Público, um

indivíduo possa buscar a defesa do seu direito de forma individual. Ademais, caso o

dano seja revertido, ocorrerá o aproveitamento para todos os alunos da instituição,

mesmo para aqueles cujos pais permaneceram inertes.

Não é o que acontece, porém, quando um determinado consumidor, ao

Page 22: Atuação do MP em defesa dos interesses transindividuais

21

ter comprado cinco caixas de leite oriundas de um lote estragado, pleiteia

indenização em juízo. A princípio, o cidadão que comprou uma caixa, constatou a

falta de qualidade do produto e a jogou fora, dispensando a provocação jurisdicional,

não irá ser beneficiado em nada. O maior trunfo da legitimação do Ministério Público

na defesa dos interesses transindividuais é possibilitar a tutela dos direitos de todas

as pessoas envolvidas na situação fática ou jurídica que gerou o caso concreto.

Neste último exemplo, portanto, por se tratar de direito individual homogêneo, onde

o caráter é divisível, a Ação Civil Pública seria apta a pleitear a justa indenização

àqueles que compraram o produto viciado, na medida da proporção dos seus danos.

Ampliando-se os pedidos, também poderia ser requerida a retirada de todas as

caixas de leite que continuam em estoque, com o fito de evitar novos prejuízos,

havendo uma defesa difusa de direitos.

Entretanto, vale salientar o terreno pantanoso que é o tema, havendo

uma terceira corrente igualmente relevante, defendida por Nelson Nery Jr., que fala

em uma legitimação autônoma, onde não se confunde o indivíduo que teve o seu

bem material lesado com o ente legitimado legalmente a atuar na esfera processual

(DIDIER JR.; ZANETI JR., 2012, p. 200-201). Ou seja, a atuação ministerial

independe da participação dos indivíduos que sofreram o dano.

Exemplifica-se com a sua concepção acerca de ação de mandado desegurança coletivo, que, para o autor, serve para reparar ou prevenir atoilegal ou abuso de poder. Assim, a norma é processual no inc. LXX ematerial no inc. LXIX e atinge, portanto, direito individual, coletivo ou difuso.Nesse sentido, seria forçoso concluir que “o conceito de mandado desegurança coletivo prende-se, à atribuição de legitimidade ativa 'ad causam'para a impetração da ação de segurança, e não ao direito material que porintermédio dele se defende (DIDIER JR.; ZANETI JR., 2012, p. 200-201).

Todavia, sabe-se que, antes da proposição de Ação Civil Pública, é

plenamente possível que várias pessoas já tenham ajuizado ações em interesse

próprio para uma tutela que, em verdade, é difusa. De toda sorte, agindo em

substituição processual àqueles que tiveram efetivamente um direito lesado, ou

defendendo situações de potencial lesão ao consumidor, o Ministério Público

possibilita um acesso à justiça integral, proporcional e igualitário, motivo pelo qual

acredita-se, na presente obra, que a legitimidade do referido Órgão seja

extraordinária, posição mais aceita.

A importância da discussão acerca da legitimidade possui um propósito

principal: possibilitar o acesso à justiça de todos os indivíduos lesados, que terão

Page 23: Atuação do MP em defesa dos interesses transindividuais

22

seus direitos reivindicados pelo Ministério Público e levados a juízo sob a redoma do

devido processo legal. Assim, procura-se relativizar a ideia de que “o direito não

socorre aqueles que dormem”, uma vez que boa parte da população –

coincidentemente as pessoas mais carentes financeiramente – ainda vê a Justiça

como algo distante, segregador, que ampara somente seres privilegiados. É

importante desenvolver o pensamento de que o acesso à justiça é democrático e,

principalmente, gratuito, incentivando todas as classes sociais a buscarem a defesa

de seus interesses, quando não individualmente, através de órgãos legitimados.

Princípios atinentes à tutela de interesses transindividuais

Tal como na discussão acerca da legitimidade, há que se estabelecer a

peculiaridade dos princípios que traduzem o norte da tutela coletiva, já que,

naturalmente, os mecanismos processuais utilizados numa demanda pluralística não

são exatamente os mesmos que se encaixam na lide individual. Por conseguinte, até

mesmo o devido processo legal urge por uma adaptação ao se falar em tutela

coletiva.

De acordo com Didier Jr. e Zaneti Jr. (2012, p. 113-114), a própria

legitimação, tópico debatido anteriormente nesta obra, é intrínseco ao devido

processo legal coletivo, eis que a tutela jurisdicional demanda por um ente capaz de

corresponder à natureza ampla da lide que se discute, seja ela difusa, coletiva ou

individual homogênea. Como já se concluiu no subcapítulo passado, o Ministério

Público é um órgão que possui legitimidade para a defesa dos interesses

transindividuais em juízo, pois a sua atuação é capaz de dar acesso à justiça às

pessoas lesadas e lhes proporcionar um processo adequado e munido de

ferramentas aptas ao alcance da jurisdição.

Nota-se a clara influência sofrida pelas ações coletivas brasileiras

diante das class actions americanas, demandas coletivas oriundas da common law

dos Estados Unidos que precisam preencher diversos pressupostos para serem

efetivamente consideradas como tal (ANDRADE, A.; ANDRADE, L.; MASSON, 2011,

p. 45). Dentre esses requisitos, está a verificação da existência de questões de fato

ou de direito que corroborem para justificar a tutela transindividual. Trocando em

miúdos, cumpre observar se há circunstâncias em comum que uniram uma

pluralidade de pessoas para que haja a representação judicial através de um ente

Page 24: Atuação do MP em defesa dos interesses transindividuais

23

legitimado, algo facilmente detectado logo quando são conceituadas as espécies de

direitos metaindividuais, porque sempre haverá uma situação fática ou jurídica que

unem os indivíduos nesta seara.

Um ponto, entretanto, ainda não expressamente delineado em nosso

ordenamento, é o princípio da adequada certificação da ação coletiva, mediante o

qual se avalia a justa causa da elaboração de uma demanda eminentemente plural

em juízo.

“Como bem observado por Wouter de Vos, pela perspectiva do réu, queestá sendo acionado em juízo pelo grupo, podendo ser responsabilizado apagar ou despender uma grande quantia, é importante que sejaestabelecida a certeza, em uma fase inicial do procedimento, de que setrata mesmo de uma ação coletiva legítima. De outra forma, seria possívelameaçar o réu por um longo período com uma ação coletiva incabível, como objetivo de forçá-lo a entrar em um acordo ou simplesmente prejudicá-lo.Em face da importância dos interesses em jogo, trata-se de uma incertezaintolerável. É surpreendente, portanto, que o direito brasileiro não disponhaexpressamente de uma fase formal em que o juiz determine se a ação podeou não prosseguir na forma coletiva. Todavia, há dispositivos no direitoindividual que podem superar essa lacuna. Pode-se equiparar a fase decertificação da ação coletiva americana com o “saneamento do processo”no direito brasileiro”. (GIDI apud DIDIER JR.; ZANETI JR., 2012, p. 115)

Imagine-se a seguinte problematização: uma escola, em determinada

época, aumenta absurdamente o valor da mensalidade de todos os alunos em

decorrência de uma reforma no refeitório. O Ministério Público ajuíza a Ação Civil

Pública, porém, “oportunamente”, inclui na demanda, quando da exposição dos fatos

e nos pedidos, a indenização por danos morais em favor de duas alunas que, em

data próxima, sofreram bullying no referido colégio por parte dos próprios

funcionários, por razões distintas. Ora, no que tange ao aumento das mensalidades

de modo irresponsável, tem-se o cabimento da Ação Civil Pública em decorrência de

um direito coletivo evidentemente maculado. Por sua vez, a situação das alunas que

sofreram preconceito destoa do âmbito coletivo da demanda, sendo imperiosa a

retirada da citada ocorrência, a qual deverá ser abordada em processos individuais,

prosseguindo a ação transindividual somente no que concerne ao aumento indevido

das mensalidades.

Note-se que essa certificação ainda não está positivada no direito

brasileiro, sendo objeto de discussão para implantação no Código de Processo Civil

Coletivo (ainda em forma de projeto), como apontam Didier Jr. e Zaneti Jr. (2012, p.

112). Isso porque, a bem da verdade, o próprio CPC (BRASIL, Lei nº 5.869/73) é

Page 25: Atuação do MP em defesa dos interesses transindividuais

24

eminentemente voltado para as lides individuais, aspecto que influi quando da

própria aplicação das leis processuais civis, que deve ser feita subsidiariamente,

como expõe o princípio do macrossistema. Assim, “o Código de Processo Civil […]

somente será aplicado nos diplomas de caráter coletivo de forma residual, ou seja,

se houver omissão específica a determina norma”, como explica Mazzei (apud

DIDIER JR.; ZANETI JR., 2012, p. 125).

Outro princípio fundamental é o da reparação integral do dano, pelo

qual conclui-se que todos aqueles que tiveram seus interesses tutelados em uma

demanda coletiva deverão, em caso de decisão favorável, ter o prejuízo reparado e

indenizado. Exemplificando-se, uma Ação Civil Pública que objetiva a retirada de

animais soltos em via pública para reconduzi-los a ambiente adequado traduz uma

tutela de direitos difusos que serão plenamente atendidos quando a decisão for

cumprida. Em se tratando de Ação Civil Pública fundada em interesses individuais

homogêneos, o princípio será respeitado se todos os representados (determinados

ou determináveis) obtiverem indenização correspondente ao dano sofrido – como

seria o caso de um profissional contratado pela Prefeitura para podar as árvores de

determinado bairro e que, ao fazê-lo, danifica os automóveis de diversos indivíduos,

no momento da derrubada dos galhos. É notório que os prejuízos serão fracionados

de acordo com quem sofreu qual dano, e todos precisarão ser recompensados.

Por fim, um último princípio que merece ser mencionado é o da

atipicidade, pois a própria conceituação dos interesses transindividuais como é

conhecida hoje pode sofrer alterações futuras, tanto legislativamente quanto

doutrinariamente. Assim, “quaisquer formas de tutela serão admitidas para a

efetividade desses direitos, nos termos do que prevê o art. 83 do CDC” (DIDIER JR.;

ZANETI JR., 2012, p. 126).

Procedimento investigatório: o inquérito civil e as peças de informação

Em linhas gerais, inquérito civil é o “procedimento destinado à colheita

dos elementos probatórios necessários ao ajuizamento da ação civil pública”

(GARCIA, 2005, p. 295). Por conseguinte, é afeto ao processo coletivo.

Assim como na esfera criminal, o Ministério Público, antes de intentar a

sua demanda, pode fazer um levantamento de pontos a serem apurados, com o fim

de verificar a amplitude, eficácia, ou mesmo necessidade de levar determinada lide à

Page 26: Atuação do MP em defesa dos interesses transindividuais

25

Justiça. Ainda mantém similaridade com o inquérito policial por ser um procedimento

geralmente inquisitivo – eventualmente contraditório, de natureza principalmente

instrutiva, não sendo imperiosa a sua utilização para a propositura de ação

transindividual (ou seja, o Ministério Público pode dispensar o uso do inquérito civil).

Quer esteja o inquérito civil arquivado ou em andamento, isso em nadainterfere com a possibilidade de que os colegitimados ajuízem diretamente,a qualquer momento, a ação civil pública ou coletiva. Muito menos suainstauração ou seu arquivamento impedem ou condicionam o ajuizamentode ações individuais. (MAZZILLI, 2013, p. 496)

A instauração do inquérito civil independe da provocação de terceiros,

significando dizer que o Parquet pode instaurá-lo simplesmente ao tomar

conhecimento de um fato que gerou dano de natureza transindividual. Munido das

informações colhidas inicialmente, pode o Ministério Público, desde já, ajuizar a

ação. Não havendo elementos suficientes para tanto, será admitida a realização de

diligências, com o fito de colher provas complementares. Aqui, os meios serão

variados: do convite a testemunhas para prestarem declarações a ofícios a órgãos

públicos, para que forneçam informações e/ou documentos. Vale frisar que essas

diligências são meras solicitações, em virtude do caráter também informal do

inquérito civil (MAZZILLI, 2013, p. 496). Assim, não há sanção a quem se recusar a

ser testemunha no procedimento investigatório, tampouco incorrerá no crime de

desobediência o servidor de determinado órgão público que se negar a fornecer

dados sigilosos.

Também é dada a oportunidade para que se chegue a um acordo

extrajudicial, por meio dos chamados compromissos de ajustamento de conduta,

assim como se pode estabelecer a realização de audiências públicas e o

acatamento de algumas recomendações (MAZZILLI apud DIDIER JR.; ZANETI JR.,

2012, p. 230). Isso porque nem sempre é proveitoso movimentar a máquina

judiciária para que se obtenha a tutela dos interesses transindividuais.

O inquérito civil é procedimento realizado exclusivamente pelo

Ministério Público, constitucionalmente garantido (ANDRADE, A.; ANDRADE, L.;

MASSON, 2011, p. 152), pelo meio do qual o órgão realiza atividades investigativas,

enquanto o inquérito policial, como é notório, ampara-se na atuação policial, com a

supervisão do Delegado de Polícia.

No inquérito policial, verificando-se a insuficiência de elementos

Page 27: Atuação do MP em defesa dos interesses transindividuais

26

formadores da opinio delicti (possibilidade de se obter um juízo de valor acerca dos

fatos), o Ministério Público requererá o arquivamento da peça inquisitória, a ser

conferido pelo juiz, da forma que preceitua a lei processual penal (DIDIER JR.;

ZANETI JR., 2012, p. 231). Em se tratando do inquérito civil, o Ministério Público tem

autonomia para, desde logo, arquivá-lo. Contudo, exige-se a remessa dos autos ao

Conselho Superior do Ministério Público, para uma revisão obrigatória (MAZZILLI,

2013, p. 496-497). Também arquiva-se o inquérito civil quando, em vez da Ação Civil

Pública, o Ministério Público firma compromisso de ajustamento de conduta. Nesse

caso, o arquivamento deverá ser homologado pelo CSMP.

Outra distinção ocorre no sentido que o inquérito civil não é um

procedimento sigiloso, como é o policial. Para Mazzilli (apud DIDIER JR.; ZANETI

JR., 2012, p. 238), a publicidade será mitigada quando integrem os autos informação

sigilosa ou quando a própria investigação deva ser secreta, sob pena de prejudicar a

atividade coletora de informações.

Por fim, urge salientar o que difere o inquérito civil das peças de

informação. Enquanto aquele é um procedimento investigatório instaurado pelo

Ministério Público através de portaria, dentro do qual estarão concentradas os

resultados da investigação feita – secretamente ou não, as peças de informação são

documentos de conteúdo diverso sobre os quais o Parquet possa se basear para a

eventual proposição de Ação Civil Pública.

Diferentemente das ações coletivas impetradas com base em provas

colhidas em sede de inquérito civil, o Ministério Público também poderá acionar o

Poder Judiciário através de dossiês, denúncias fundamentadas, fotografias, vídeos,

cartas anônimas e outros meios, bastando que sejam lícitos e aptos a demonstrarem

a veracidade e os indícios de autoria dos fatos comunicados. Uma desvantagem,

porém, diz respeito ao prazo decadencial para reclamação dos vícios constatados, a

exemplo do CDC (BRASIL, Lei nº 8.078/90), obstado quando da instauração do

inquérito civil, o que não ocorre com as peças de informação (MAZZILLI, 2013, p.

497). Dessa forma, o inquérito civil proporciona maior estabilidade no

prosseguimento das investigações, podendo abarcar até mesmo as provas obtidas

com as referidas peças de informação que, ainda assim, poderão ser arquivadas e

deverão ser remetidas ao CSMP para averiguação obrigatória.

Page 28: Atuação do MP em defesa dos interesses transindividuais

27

Observações processuais acerca da Ação Civil Pública

A Ação Civil Pública é, por excelência, a ação competente para a

defesa dos interesses transindividuais. Embora o CDC (BRASIL, Lei nº 8.078/90)

utilize a nomenclatura “Ação Coletiva”, prefere-se adotá-la como gênero, do qual são

espécies o mandado de segurança coletivo, a ação popular e, naturalmente, a Ação

Civil Pública.

Havendo lesão a interesse transindividual, o Ministério Público não tem

direito, mas sim o dever de agir. “A atuação do Ministério Público em prol dos

interesses que a Constituição e a lei lhe determinam proteger é, portanto, regida

pelo princípio da obrigatoriedade” (ANDRADE, A.; ANDRADE, L.; MASSON, 2011, p.

65). É compreensível atribuir essa obrigatoriedade em razão da natureza dos

interesses transindividuais, pois se atua em defesa de inúmeras pessoas, muitas

das quais vivem sob condições de extrema pobreza, dificultando não só o acesso à

justiça, mas o próprio conhecimento dela. Assim, garante-se que todos os lesados –

ou potencialmente lesados – estejam amparados pelo devido processo legal, com

contraditório e ampla defesa, sob igualdade de condições. O princípio também é

aplicável quando o Parquet vislumbrar, após a sentença, fundamentos que ensejem

a impetração de recurso. Só haverá mitigação dessa obrigatoriedade quando a

própria lei estabelecer hipóteses em que seja permitido o juízo de conveniência pelo

Órgão Ministerial, como frisa Mazzilli (2013, p. 95), desta vez em respeito ao

princípio da discricionariedade controlada.

Logicamente, devem ser observados os casos em que, realizada

instrução pré-processual, não se verificou lesão ou ameaça a direito metaindividual,

ou quando soluções alternativas são mais eficazes, quais sejam, os firmamentos de

compromissos de ajustamento de conduta e as realizações de audiências públicas,

tal como debatido no subcapítulo anterior.

A ACP deverá ser proposta no juízo do local onde ocorreram os danos

(ou onde há risco de que ocorram), através de uma competência funcional, como

depreende Mancuso (2007, p. 67) da leitura da LACP (BRASIL, Lei nº 7.347/85). Isto

posto, quer-se dizer que o juízo competente para julgar a ação é aquele que se

encontra mais próximo de onde ocorreram os fatos, no intuito de facilitar a obtenção

de lastro probatório. Trata-se de exceção à regra geral de competência territorial,

que costuma ser o domicílio do réu. Caso se trate de situação em que o dano,

Page 29: Atuação do MP em defesa dos interesses transindividuais

28

consumado ou iminente, assuma caráter regional, ou mesmo nacional, o CDC

(BRASIL, Lei nº 8.078/90) afirma que, nas ações que envolvam direito individual

homogêneo, a ACP será proposta na capital do Estado ou no Distrito Federal. Não

há previsão normativa no que tange aos interesses difusos e coletivos, mas

entende-se que deverá ser adotado o mesmo critério, ainda que não haja relação de

consumo (MAZZILLI, 2013, p. 292, 293).

Existe a possibilidade de que diversas pessoas, individualmente,

provoquem o judiciário para a obtenção de suas respectivas tutelas. Essas

diferentes ações podem conter similaridades no que concerne à sua causa de pedir

(o mau serviço de uma empresa de telefonia móvel, por exemplo) ou ao pedido

(indenizações devidas em virtude de cobranças abusivas por determinado banco),

ou até ambos podem ser iguais. Assim, sempre que possível, o magistrado deverá

reunir as causas semelhantes, através do critério conceituado como prevenção

(DIDIER JR.; ZANETI JR., 2012, p. 167). Utiliza-se tal artifício para processar as

demandas simultaneamente, gerando maior economia processual. Entretanto,

mesmo havendo conexão (objeto ou causa de pedir semelhantes) ou continência

(demandas semelhantes, onde o objeto de uma abrange a outra, por ser mais

ampla), existirão casos em que a melhor opção provavelmente seja manter as ações

correndo separadamente, em respeito à celeridade processual e até ao devido

processo legal – imagine-se reunir mais de vinte demandas originárias de mais de

vinte indivíduos separadamente, em busca de indenizações pela queda de energia

em determinada cidade.

Dito isso, não é difícil crer na possibilidade de existência de conexão

ou continência entre uma ACP e ações individuais, já que uma demanda coletiva

pode, de uma só vez, discutir as três espécies de interesses transindividuais –

difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos, estes últimos sendo o alvo

constante das similaridades petitórias. Do exposto, bem-vinda será a reunião destas

ações, salvo hipóteses que acarretem prorrogação de competência absoluta (reunir

ação oriunda de Justiça Estadual com ação de competência da Justiça Federal),

dificuldade do acesso à justiça (reunir a uma ACP proposta em Salvador a ação

individual de um morador do estado do Acre), união de processos em estágios

muitos distantes ou que impliquem a junção de um número absurdo de litigantes,

como lecionam Adriano Andrade, Landolfo Andrade e Masson (2011, p. 146-147).

De acordo com Mazzilli (2013, p. 282-284), as ações individuais

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29

impetradas após ACP que esteja em andamento, em se tratando de interesses

individuais homogêneos, poderão ser suspensas ou até extintas, de acordo com a

vontade dos respectivos autores, para que possam se beneficiar da coisa julgada na

demanda coletiva. Entretanto, nada impede que continuem e esperem pelo

provimento de suas próprias ações individuais, sempre respeitando o acesso à

justiça.

Após estas considerações, cumpre ressaltar o cabimento de

litisconsórcio e intervenção de terceiros na tutela transindividual, sendo plenamente

possível a atuação conjunta dos Ministérios Públicos de outros Estados, incluindo o

Ministério Público da União, além da colaboração dos demais entes legitimados à

proposição da ACP, bem como os próprios indivíduos que tiveram seu direito lesado,

hipótese já exposta. Sendo assim, são bem-aceitos institutos como denunciação à

lide, chamamento ao processo e nomeação à autoria (ANDRADE, A.; ANDRADE, L.;

MASSON, 2011, p. 126-138).

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30

ALTERNATIVAS À AÇÃO CIVIL PÚBLICA, DEFESA PENAL DOS INTERESSES

TRANSINDIVIDUAIS E PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE E ÀS MINORIAS

Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta e transação judicial

Como já exposto anteriormente, é possível que a defesa dos

interesses transindividuais alcance o seu objetivo sem a necessidade da propositura

de uma ação judicial. Isso se dá, pois, através de um acordo firmado entre o

Ministério Público e o causador do dano em questão, o qual se compromete em

reparar os prejuízos causados, obedecendo às determinações legais.

O Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta possui natureza

jurídica de título executivo extrajudicial, realizado de forma bilateral e consensual,

embora não seja uma espécie de contrato. Diz-se isso pois o objeto da transação

não é mero patrimônio passível de ser negociado (MAZZILLI, 2013, p. 451), mas,

sim, o próprio ajuste de conduta. Ademais, a bilateralidade indicada não representa

qualquer concessão a ser feita pelo órgão público, devendo o responsável pela

lesão arcar com todos os procedimentos necessários à reparação da malfeitoria

(LEONEL apud MANCUSO, 2007, p. 246). Se as exigências não forem cumpridas

totalmente, mesmo que tenham sido adimplidas em sua maior parte, o Parquet

poderá ingressar em juízo para garantir a plenitude do ressarcimento do dano. Em

havendo cumprimento integral, ocorrerá o encerramento da investigação (FARIAS;

PINHO).

A bem da verdade, o Ministério Público não é o único legitimado a

propor esse tipo de acordo, sendo uma faculdade disponível igualmente às pessoas

jurídicas de direito público, relacionadas com a administração pública direta e

indireta, ou mesmo às pessoas jurídicas de direito privado que exerçam serviços

públicos (PEDRO, 2013). Sendo assim, empresas de saneamento e esgoto, por

exemplo, podem propor a realização de TCAC para a preservação de determinada

área de um Município. Todavia, em se tratando das situações de largo espectro, que

atingem parcela considerável da população, entende-se ser mais adequada a

atuação ministerial, em virtude dos mecanismos de fiscalização de que dispõe.

A título de exemplo, o Ministério Público pode propor TCAC ao

proprietário de cavalos que deixa os animais soltos na cidade. Trata-se de um ato

prejudicial a quantidade indeterminada da população, uma vez que os cavalos

Page 32: Atuação do MP em defesa dos interesses transindividuais

31

podem obstruir o trânsito ou mesmo atacar os transeuntes. Contudo, como a via

judicial poderia ser um meio desproporcional para a solução do conflito, o ajuste de

condutas surge como uma alternativa suficientemente pacificadora. No termo, será

estipulado o prazo para a retirada dos cavalos da via pública, sob pena de multa

pecuniária e, fatalmente, a propositura da Ação Civil Pública.

Superada a discussão acerca da transação extrajudicial, insta

comentar sobre a composição judicial envolvendo direitos metaindividuais, que

também é possível. Ela ocorrerá em juízo seguindo moldes semelhantes ao do

TCAC, com algumas sensíveis diferenças. A primeira é a de que, havendo transação

numa Ação Civil Pública, o título executivo será judicial, e não extrajudicial

(MAZZILLI, 2013, p. 458-459). A segunda trata da legitimação em firmar o acordo,

eis que

Nos ajustamentos de conduta, que se dão extrajudicialmente, não haveriaquem pudesse impedir que associações privadas, eventualmente, fizessemconcessões indevidas sobre o direito material. Já em juízo esse risco éafastado, visto que em toda ação coletiva o Ministério Público atual comofiscal da lei, e, uma vez que não concorde com eventual acordo judicial,poderá contra ele se insurgir, inclusive, se for o caso, apelando contra ahomologação indevida. (ANDRADE, A.; ANDRADE, L.; MASSON, 2011, p.206)

Em contrapartida, ambos os segmentos são impedidos de implicar

renúncia do direito material em baila (MAZZILLI, 2013, p. 458-459), pois o ajuste

presta-se tão somente a determinar como o direito transindividual ferido ou

ameaçado será preservado. Dito isso, depreende-se que tanto o TCAC quanto a

composição judicial visam estabelecer condições para que, retornando ao exemplo

dos cavalos soltos em via pública, sejam estes animais recolhidos e alocados em

ambiente próprio, livrando a população de eventuais transtornos. A transação é

amistosa, mas deve solucionar o problema completamente.

Intervenção por meio da Ação Popular

A Ação Popular é instrumento para defesa dos interesses da

coletividade com previsão constitucional e lei própria. Como dispõe a Carta Magna

(BRASIL, 1988), no artigo 5º, inciso LXXIII, é o cidadão parte legítima para propor a

AP com o objetivo de anular ato pernicioso ao patrimônio público.

Page 33: Atuação do MP em defesa dos interesses transindividuais

32

No caso da ação popular, a cidadania deve ser comprovada por meio daapresentação do título de eleitor, ou documento que a ele corresponda (art.1º, § 3º, da Lei 4.717, de 29.6.65, denominada de Lei da Ação Popular).Assim, para aquilo que à ação popular interessa, o reconhecimento dalegitimidade ativa dependerá da demonstração da cidadania ativa, que setraduz no direito de votar. (NETO)

Dois pontos devem ser estabelecidos: em primeiro lugar, como ao ato

impugnado é imprescindível a lesão ao patrimônio público, ou seja, possui escala

abrangente, a AP não é apta a defender interesses individuais homogêneos, mas

figura como importante instrumento para tutelar direitos difusos. Em segundo lugar, a

legitimidade, ao menos em regra, para a propositura da AP, é do cidadão, não do

Parquet.

Voltando-se para o Ministério Público, este atua, normalmente, como

um fiscal da lei, acompanhando todos os atos da ação e tomando as providências

que julgar necessárias (pedidos de diligências, por exemplo). Existe divergência

doutrinária acerca da possibilidade de arguir irregularidades durante o processo,

mas prevalece o entendimento positivo de que, enquanto custos legis, o Ministério

Público deve zelar pela legalidade e pela vontade estatal que seja benéfica à

sociedade, obrigando-se a opinar, ainda que contra o demandante (CAMPELO,

2010).

Também é possível agir em auxílio ao autor popular na produção de

provas. No exemplo utilizado por Adriano Andrade, Landolfo Andrade e Masson

(2011, p. 303), tem-se que o cidadão acionante, na intenção de solicitar a oitiva de

uma testemunha, pode encontrar dificuldades em obter o seu endereço. O Ministério

Público, contudo, ao dispor de acesso a dados cadastrais, como os da Receita

Federal, facilita essa busca, instruindo o processo de maneira eficiente e ágil.

Ademais, é possível utilizar diferentes meios na instrução probatória, como a

apresentação de documentos e a requisição de perícia.

Embora a lei não lhe confira a legitimidade para propor AP, o Ministério

Público poderá suceder o autor demandante, de acordo com previsão na própria

LAP (BRASIL, Lei nº 4.717/65), quando aquele desistir da ação ou der causa à sua

extinção (inércia, que é o caso mais comum). Fazendo valer esta faculdade, uma

vez que, em tese, não é obrigado, o Ministério Público dispõe desta que pode ser

chamada de legitimidade ativa ad causam superveniente (CAMPELO, 2010). Há de

se comentar que, em uma situação como esta, ter-se-ia, na verdade, Ação Civil

Page 34: Atuação do MP em defesa dos interesses transindividuais

33

Pública sob o manto de Ação Popular, sem grandes modificações.

Igualmente é possível a sucessão ministerial quando o demandante

deixa de promover a execução da sentença condenatória proferida em até sessenta

dias. Neste caso, trata-se de uma obrigação do Parquet, pois a sua inércia

configurará falta grave (ANDRADE, A.; ANDRADE, L.; MASSON, 2011, p. 305).

O Ministério Público como impetrante de Mandado de Segurança Coletivo

O mandado de segurança é uma ação constitucional de natureza cível e ritosumário, voltada à proteção de direitos líquidos e certos, não tuteláveis porhabeas data ou habeas corpus, contra atos ofensivos de agentes públicosou privados no exercício de funções públicas. (ANDRADE, A.; ANDRADE,L.; MASSON, 2011, p. 317)

A forma coletiva do writ está prevista na Constituição Federal (BRASIL,

1988), em seu artigo 5º, inciso LXX, assim como encontra amparo em maior

amplitude através da Lei do Mandado de Segurança (BRASIL, Lei nº 12.016/09).

Trata-se de instrumento de uso restrito, pois somente está prevista a sua impetração

por partido político com representação no Congresso Nacional e por organização

sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída há pelo menos um

ano, situação em que os interesses a serem tutelados devem estar intimamente

ligados aos seus associados.

Deve-se frisar que a taxatividade acerca da impetração do MSC não é

absolutamente aceita, sendo muitos os que defendem a legitimidade ativa do

Ministério Público, havendo argumentos para ambos os lados, formando, assim, as

chamadas posições restritivas e ampliativas (FONSECA, 2011). A corrente restritiva

aponta que a própria Carta Magna (BRASIL, 1988) propôs essa taxatividade, ao

apresentar em seu texto somente os partidos políticos com representação no

Congresso e as entidades de classe. É um argumento que ganha força em virtude

do Código de Processo Civil (BRASIL, Lei nº 5.869/73), o qual, no artigo 6º, observa

que só será possível a propositura de ação em nome próprio, para defesa de

interesse alheio, quando a lei assim o permitir. Ademais, como o Ministério Público

tem si para o poder de ajuizar a Ação Civil Pública, em que são possíveis os mais

diversos tipos de pedidos, a necessidade de utilização do MSC seria inócua.

Ainda de acordo com Fonseca (2011), aqueles que adotam a posição

ampliativa argumentam que a Constituição, ao expor a legitimidade

supramencionada, apenas a fez de forma exemplificativa, não gerando

Page 35: Atuação do MP em defesa dos interesses transindividuais

34

exclusividade. Ademais, por ter natureza jurídica de ação coletiva, não há instituição

mais adequada que o Ministério Público a propô-la, uma vez que foi

constitucionalmente incumbido da tarefa de zelar pelos interesses transindividuais.

A jurisprudência já se tem mostrado favorável à atuação ministerial

através do MSC, conforme a decisão a seguir, onde se discutiu o dever do Estado

do Paraná de fornecer medicamentos a uma paciente:

O Ministério Público tem legitimidade ativa para propor mandado desegurança a fim de proteger interesses difusos e coletivos, bem comointeresses individuais, indisponíveis e homogêneos. Desta feita, constituifunção institucional do Ministério Público buscar a entrega da prestaçãojurisdicional para obrigar o Estado do Paraná a custear o medicamentoessencial à saúde de pessoa hipossuficiente economicamente. (PARANÁ,Tribunal de Justiça, Ap. 1212006-8, Relator: Des. Luiz Mateus de Lima,2014)

Para solucionar de vez esta controvérsia, tramita no Congresso

Nacional a Proposta de Emenda Constitucional nº 74/07, da autoria do ex-senador

Demóstenes Torres, que pretende a legitimação ministerial à propositura do MSC,

emendando o inciso LXX do art. 5º da Constituição (BRASIL, 1988). A PEC obteve

parecer favorável pela Comissão de Constituição e Justiça e atualmente aguarda a

sua colocação em pauta no Senado (BRASIL. Senado Federal, Projetos e Matérias

Legislativas).

Em face dos argumentos exposados, crê-se que o Ministério Público

deve, sim, estar legitimado à propositura do writ coletivo. O Parquet, como defensor

do bem-estar social, precisa ter à sua disposição todos os elementos processuais

cabíveis a uma atuação plena, que defenda os interesses transindividuais. Assim, o

MSC, em função de sua natureza mais célere, já que dispensa dilação probatória e é

impetrado junto a prova pré-constituída (fala-se em direito líquido e certo), constitui

ferramenta de utilização também possível pelo Ministério Público, ainda que não

encontre previsão taxativa na Carta Política (BRASIL, 1988).

A tutela penal dos interesses transindividuais

É comum visualizar a esfera penal no âmbito da individualidade, onde

o agressor, por ter lesado a vítima (pense-se no crime de homicídio, por exemplo),

será julgado e condenado pelo Estado, que o encaminha ao encarceramento.

Analisando o quadro por este viés, crê-se árdua a tarefa de imaginar o Direito Penal

Page 36: Atuação do MP em defesa dos interesses transindividuais

35

incidir sobre um bem jurídico (patrimônio, honra, liberdade etc.) mais amplo, coletivo

ou até difuso.

Todavia, cresce em nosso ordenamento a aceitação de que existem

bens jurídicos transindividuais a serem tutelados. Primeiramente, deve-se entender

que, assim como na esfera cível, os interesses transindividuais penais jamais podem

ser confundidos com interesses transindividuais civis, uma vez que o direito de punir

o delito é inerente ao Estado, no exercício da sua soberania (MAZZILLI, 2013, p.

269).

Outrossim, é controversa a classificação dos direitos metaindividuais

quando se fala em direito penal. É comum utilizar a subdivisão tradicional, já

abordada nesta obra e partilhada por doutrinadores como o próprio Mazzilli (2013).

Entretanto, Smanio (2004) propõe a existência de uma classificação diferenciada,

apontando que

quando a doutrina penal cita bens jurídicos coletivos, está fazendoreferência ao interesse público, ou seja, àqueles bens que decorrem de umconsenso coletivo, em que há unanimidade social de proteção e forma deproteção. Os conflitos que podem gerar, portanto, ocorrem entre o indivíduoque pratica o crime e a autoridade do Estado efetuando a punição. Emrelação aos bens jurídicos difusos, a conflituosidade de massa estápresente em suas manifestações, contrastando interesses entre grupossociais na sua realização. Dessa forma, o Estado realiza muitas vezes umaintermediação, ou melhor, dispõe uma diretriz para as condutas socialmenteconsideradas, ao tipificar tais condutas como crime, ou não tipificá-las,deixando outros ramos do Direito realizarem a solução. (SMANIO, 2004)

Portanto, tem-se que, com relação aos bens jurídicos coletivos, a

conduta criminosa interfere de modo homogêneo sobre a sociedade, lesionando a

todos. Tome-se como exemplo o crime de ato obsceno, previso no artigo 233 do

Código Penal Brasileiro (BRASIL, Decreto-Lei nº 2.848/40), onde o autor pratica o

ato em local público, exposto aos olhares de mulheres, idosos, crianças e enfermos.

Esta conduta fere a coletividade como um todo, exigindo uma resposta única do

Estado. Já no que tange aos bens jurídicos difusos, pressupõe-se conflito dentro da

própria coletividade, onde há interesses contrapostos, nem sempre abarcados pelo

supracitado Código Penal (BRASIL, Decreto-Lei nº 2.848/40), como no caso do meio

ambiente, o qual gera divergências entre os que sugerem melhor aproveitamento

econômico e os que prezam pela preservação da natureza.

Nesta obra, a fim de um melhor entendimento acerca do tema, prefere-

se utilizar a sistemática tradicional, que diferencia interesses coletivos e difusos

Page 37: Atuação do MP em defesa dos interesses transindividuais

36

quanto à origem (relação jurídica e relação fática, respectivamente) e grau de

abrangência (sujeitos determinados ou determináveis e sujeitos indeterminados ou

indetermináveis). Contudo, qualquer que seja a posição adotada, consolida-se a

existência da tutela penal de interesses transindividuais, a qual também é

promovida, neste caso com maior intensidade, pelo Ministério Público, através da

ação penal pública.

Embora argumente que a tutela penal dos direitos metaindividuais só

ocorra indiretamente, como reflexo da proteção destes direitos na esfera cível,

Mazzilli (2013, p. 269-276) aponta exemplos para situações de interferência que

podem haver entre a ação penal perante a ação civil e vice-versa: se um juiz civil

decreta a nulidade de um casamento, esta decisão afeta o julgamento do juiz penal

acerca do eventual cometimento do crime de bigamia; em via reversa, se o juiz

penal, munido de provas bastantes, inocenta o réu em um processo que julga a

autoria em um roubo, também haverá interferência na ação civil que o mesmo

demandado responde pelo dano patrimonial da coisa subtraída.

De todo modo, resta que o Ministério Público é o detentor privativo do

dever de promover a ação penal pública, incumbência dada pela Constituição

Federal (BRASIL, 1988), no artigo 129, inciso I. Isso quer dizer que, havendo

qualquer crime, de amplitude coletiva ou não, interferindo ou não na sociedade como

um todo, o Ministério Público é quem deverá intentar a ação penal pública para a

defesa desses interesses em juízo. A única ressalva a ser feita, logicamente, se dá

com relação aos delitos que são processados através de ação penal privada, a qual

deverá ser intentada pela própria vítima.

Defesa do meio ambiente e dos grupos sociais diversificados

Em tempos de escassez de recursos naturais e má administração das

riquezas ecológicas no país, faz-se indispensável a defesa desses valores por meio

de mecanismos de fato eficazes, contando, para isso, com uma legislação

especializada e um órgão dotado de legitimação para atuação processual.

O Brasil, tendo em vista que porção considerável de sua sociedade aindanão dispõe de condições para defesa individual dos direitos asseguradospela Constituição – dentre os quais os relativos à preservação ambiental –atribui o encargo da tutela destes direitos, perante a Justiça, ao MinistérioPúblico, instituição independente dos três outros poderes, que age em nome

Page 38: Atuação do MP em defesa dos interesses transindividuais

37

do povo e do interesse público. (GRECO, O MINISTÉRIO PÚBLICO E ADEFESA...)

A primeira contribuição do Ministério Público data, ao que se tem

notícia, de 1983, em São Paulo, quando o órgão propôs uma ação ambiental com

pedido de cautelar em face do Ministério da Agricultura, que pretendia realizar uma

pulverização aérea no referido estado para combater uma praga nas regiões onde

se cultivava algodão (MAZZILLI, 2013, p. 165). Desde então, novos mecanismos

surgiram no auxílio do combate ao meio ambiente, como a própria LACP (BRASIL,

Lei nº 7.347/85), que expressa a sua preocupação para com a defesa da natureza

logo em seu primeiro artigo, inciso I.

Atualmente, o “Ministério Público ocupa o papel de maior destaque no

cenário jurídico nacional na defesa dos interesses supraindividuais, sendo o

responsável pelo ajuizamento de mais de 90% das ações civis públicas na defesa do

meio ambiente” (CAPPELLI, O MINISTÉRIO PÚBLICO E OS INSTRUMENTOS...),

sendo mais ativo que as próprias associações de defesa ambiental. Isso quer dizer

que, sem a atuação ministerial, a maioria das lesões à fauna e à flora – seja

patrimonial ou criminal – estaria impune, pois não há outro órgão com tamanho

aparato para a apuração dessas infrações e tampouco poder para a atividade

judicial e extrajudicial.

Ao se falar em atividade extrajudicial (ou administrativa), têm-se os

mesmos mecanismos observados anteriormente: inquérito civil, recomendações,

ajustamento de conduta e eventual arquivamento. A diferença é que o Ministério

Público, ao proteger administrativamente os interesses transindividuais relativos ao

meio ambiente, age em conjunto com órgãos ambientais como o CONAMA

(Conselho Nacional do Meio Ambiente), IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio

Ambiente) e a Polícia Militar Ambiental (VASCONCELLOS, O MINISTÉRIO

PÚBLICO NA TUTELA...), que reforçam na apuração e prevenção de danos

ambientais.

Finalmente, com relação aos grupos sociais diversificados, denota-se

que este conceito, criado para explanação na presente obra, abrange tanto os

segmentos da sociedade que gozam de maior proteção legislativa – interesses

relativos à proteção das mulheres, crianças, idosos, deficientes físicos e negros –

quanto às efetivas minorias, que sofrem preconceitos e abusos em decorrência de

religião, etnia, posição política ou orientação sexual.

Page 39: Atuação do MP em defesa dos interesses transindividuais

38

Muitos avanços ocorreram na proteção aos direitos da mulher, como se

observa através da Lei Maria da Penha (BRASIL, Lei nº 11.340/06), a qual coíbe as

agressões físicas e psicológicas ao gênero feminino no seio familiar; o mesmo

aconteceu com as pessoas com mais de sessenta anos, que possuem diploma legal

próprio regulador de seus interesses (Lei nº 10.741/03, o Estatuto do Idoso),

atribuindo-lhes, por exemplo, prioridade no atendimento junto aos órgãos públicos e

privados prestadores de serviços públicos; e os menores de idade, que desde 1990

contam com o amparo do Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA (Lei nº

8.069/80). Nestes casos, a legislação pátria é generosa, fazendo com que a atuação

judicial e extrajudicial possa angariar resultados positivos à população.

Em contrapartida, grupos sociais como o dos homossexuais não

encontram (ainda) uma legislação que os abarque de modo específico, sendo

imperioso que se retorne à Carta Política (BRASIL, 1988) em busca dos direitos e

garantias fundamentais do ser humano. De qualquer forma, com relação à sua

defesa em juízo, sempre poderá (e o fará) o Ministério Público a sua proteção

através da ACP e demais mecanismos de que dispõe, pois o processo coletivo é o

instrumento mais poderoso na tutela dos interesses transindividuais, quaisquer que

sejam (MAZZILLI, 2013, p. 780-781).

Page 40: Atuação do MP em defesa dos interesses transindividuais

39

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As mudanças na sociedade afetaram diretamente o Direito, tanto com

relação às demandas a serem pretendidas quanto com relação às partes

componentes do processo. Observou-se que, progressivamente, o Estado foi se

tornando incapaz de prover à sua população a jurisdição que lhe bastasse

individualmente.

Isto posto, o interesse estatal tornou-se diverso do interesse social,

causando a insatisfação deste (MAZZILLI, 2013, p. 49). Somando-se o fato de que

as relações privadas também passaram a gerar controvérsias de âmbito pluralístico,

irrompeu a figura dos interesses transindividuais, tutelados tanto no âmbito do

Direito Público quanto no âmbito do Direito Privado, demonstrando que tal dicotomia

é regra ultrapassada perante o acesso à justiça.

Os interesses – ou direitos – transindividuais tiveram o seu embrião

formado a partir da Revolução Francesa e da Revolução Industrial, que forçaram os

Estados a “reconhecer direitos econômicos, culturais e sociais” (ANDRADE, A.;

ANDRADE, L.; MASSON, 2011, p. 3), os quais evoluíram para direitos mais amplos,

que conferem ao ser humano a dignidade de que este necessita para viver.

Subdivididos em direitos difusos, direitos coletivos em sentido estrito e direitos

individuais homogêneos, os direitos supraindividuais possibilitam, numa ação judicial

concentrada, discutir os interesses violados das pessoas que não obteriam o mesmo

sucesso em demandas individuais, em função de não disporem de mecanismos de

apuração adequados.

Ciente de tal limitação, o Estado incumbiu o Ministério Público do dever

de amparo aos interesses transindividuais. Judicialmente, o Parquet realiza esta

proteção, em sua maior parte, através da Ação Civil Pública, obtendo diversas

decisões em favor da população. Subsidiariamente, o Ministério Público também

pode atuar junto ao cidadão na Ação Popular, auxiliando na produção de provas e

até sucedendo processualmente o demandante. Outrossim, em casos onde a

dilação probatória seja dispensável, começa-se a admitir a impetração de Mandado

de Segurança Coletivo pelo Órgão Ministerial, já havendo projeto de emenda

constitucional nesse sentido (BRASIL. Senado Federal, Projetos e Matérias

Legislativas).

No campo extrajudicial, tem-se como ferramenta os Compromissos de

Page 41: Atuação do MP em defesa dos interesses transindividuais

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Ajustamento de Conduta, acordos firmados entre o causador do transtorno e o

Parquet, estabelecendo as condições para o cumprimento da transação,

dispensando a propositura de uma demanda judicial. Entretanto, não sendo

satisfatória a tentativa de conciliação, desde logo o Ministério Público é autorizado

para intentar a ação cabível à proteção dos interesses transindividuais.

Proposta a discussão acerca da tutela penal dos interesses

transindividuais, observou-se que é plausível a lesão a esses interesses na esfera

penal, ao menos indiretamente, considerando que determinados crimes, como o de

ato obsceno, praticado em público, ferem bens jurídicos de uma coletividade,

implicando um gravame social. Por sua vez, o Estado, detentor do direito de punir,

atribuiu ao Ministério Público o dever de promover a ação penal pública,

resguardando o acesso à justiça das vítimas de tais delitos.

Finalmente, buscou-se mostrar a importância da atuação ministerial em

defesa do meio ambiente e dos grupos sociais minoritários, dada a preocupação

com a sustentabilidade dos recursos naturais no mundo contemporâneo e com a

intolerância perante parte da população que apresenta particularidades acerca de

sua etnia, religião, posição política e/ou orientação sexual. Assim, enquanto pela

defesa do meio ambiente existem leis protetivas e órgãos próprios que auxiliam o

trabalho do Parquet, a defesa dos interesses transindividuais inerentes às minorias

ainda constitui tarefa árdua, em virtude da falta de legislação específica. Contudo,

isso não impede que o Ministério Público aja em amparo a toda população, por meio

da ACP e dos demais mecanismos explicitados.

Por tudo aquilo que foi exposto, conclui-se que o Ministério Público é

uma instituição de fundamental importância na defesa dos interesses

transindividuais, sem o qual o acesso à justiça de inúmeras pessoas estaria

maculado em maiores proporções. Dito isso, deve-se promover cada vez mais a

informação e a educação, a fim de que todos aqueles que venham a ser lesados –

qualquer que seja a origem ou o grau dessa lesão, saibam da existência de órgãos

capazes de defenderem os seus interesses, em juízo ou fora dele.

Page 42: Atuação do MP em defesa dos interesses transindividuais

41

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