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1 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS CIDH 165º PERÍODO ORDINÁRIO DE SESSÕES AUDIÊNCIA PÚBLICA: A SITUAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL 23 DE OUTUBRO DE 2017 INFORME DOS SOLICITANTES MONTEVIDÉU URUGUAI

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COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS – CIDH

165º PERÍODO ORDINÁRIO DE SESSÕES

AUDIÊNCIA PÚBLICA:

A SITUAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL

23 DE OUTUBRO DE 2017

INFORME DOS SOLICITANTES

MONTEVIDÉU – URUGUAI

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Sumário

01- INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 3

1.1 Situações de violação apresentado em audiências anteriores ............................ 4

1.2 - Compromissos assumidos em audiências anteriores e não cumpridos pelo Estado Brasileiro ........................................................................................................ 6

02- A SITUAÇÃO DOS GUARANI E KAIOWÁ NO MATO GROSSO DO SUL: VIOLAÇÕES CONTRA O

DIREITO À VIDA E A TERRA................................................................................................ 7

2.1- Dos agravos decorrentes desse cenário de indiferença hostil .......................... 10

2.2 A violência em números e estatísticas. .............................................................. 10

2.3 Povos Indígenas no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos – PPDDH ................................................................................................. 12

2.5 O Massacre de Caarapó .................................................................................... 14

2.6 - Violências doméstica, sexual e outras decorrentes da situação de confinamento humano. ............................................................................................ 16

2.7 Índices crescentes de adolescentes em unidades de internação ...................... 17

2.8 - Os Suicídios entre os Guarani e Kaiowá. Consequência dos traumas sociais e da negligencia do Estado. ........................................................................................ 21

2.9 - Iguais mazelas decorrentes de um igual colonialismo ..................................... 23

03- OS ATAQUES AO POVO AKROÁ GAMELLA EM 2017 – MARANHÃO ............................... 26

04- A SITUAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS EM ISOLAMENTO VOLUNTÁRIO OU DE RECENTE

CONTATO. ..................................................................................................................... 31

4.1- O massacre no rio Jandiatuba, região da Terra Indígena Vale do Javari: ........ 34

4.2- O marco jurídico e os povos indígenas isolados............................................... 35

05- O DIREITO DOS POVOS INDÍGENAS DE ACESSO À JUSTIÇA: ........................................... 41

5.1- O direito de ser parte nos processos afetos aos seus interesses e o dever de serem chamados, nestes processos: ....................................................................... 41

5.2- A lentidão dos processos de demarcação de terras ......................................... 43

5.3- As falácias internacionais brasileira, quando o assunto é Terras Indígenas. ... 46

5.4 A judicialização dos procedimentos e a demora injustificada ............................ 47

5.5- A tese ruralista do marco temporal e tradicional ............................................... 48

5.6- A criminalização dos movimentos indígenas e organizações correlatas .......... 53

06- POVOS INDÍGENAS BRASILEIROS: VIOLAÇÕES MACIÇAS E A NECESSIDADE DE APLICAÇÃO

DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS ..................................................... 56

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01- INTRODUÇÃO

Antes de tratar dos acontecimentos mais recentes, os solicitantes da presente audiência temática acreditam ser pertinente retomar-se a memória das duas últimas audiências nas quais o tema proposto foi apresentado – notadamente durante o 149º e 156ª período de sessões, respectivamente tratando de defensoras e defensores de direito humanos, em 2013, e, violência contra os povos indígenas, em 2015. Durante essas, uma série de fatos foram relatados à Comissão e ao Estado brasileiro que, inclusive, se comprometeu com uma série de medidas. Neste sentido, parece adequado elencar brevemente quais fatos e situações foram apresentados, verificando a resposta dado pelo Estado nestes últimos 4 (quatro) ou 2 (dois) anos, e em que medida as soluções prometidas pelo Brasil foram implementadas.

Seguindo os temas das audiências passadas, há dois principais grupos de questões: a situação das defensoras e defensores de direitos humanos e seu programa de proteção; e os atentados, ataques e demais violências contra os povos indígenas. Quanto ao primeiro ponto, havia sido relatada a falta de estrutura do programa de proteção organizado pelo Estado. Em 2013, esteve presente o defensor de direitos humanos dos povos indígenas no Brasil Genito Gomes, filho de Nísio Gomes, assassinado em 2011. O sr. Genito havia informado estar formalmente inscrito no programa, mas que, na prática, nenhuma medida concreta existiria para garantir sua proteção e continuidade de seu trabalho na defesa dos direitos de seu povo.

O programa resumir-se-ia à proteção policial e, mesmo esta, não seria a regra. Em muitos casos, como o relatado por Genito, a proteção seria apenas a entrega de um telefone celular para a defensora ou defensor contatar o programa quando necessário.

Passados 4 (quatro) anos deste este relato, a situação parece ter se deteriorado. A liderança indígena Otoniel Ricardo, ex-vereador e inscrito no programa de proteção do governo federal, cuja situação já foi apresentada por escrito a esta Comissão, teria sido torturada no dia 29 de maio de 2017 na cela de uma delegacia, após ter sido detido por suposta dívida civil alimentícia.

Apesar destes relatos, já durante o 149º Período de Sessões, o Estado brasileiro havia declarado expressamente que o Programa de Proteção atuaria também na prevenção, buscando atacar os motivos subjacentes às ameaças. Naquela ocasião, os então solicitantes haviam destacado a necessidade de medidas estruturais no combate à violência contra as defensoras e defensores. Entretanto, os solicitantes não foram capazes de identificar tais medidas. Cabe lembrar que o Estado brasileiro reconheceu, no 149º Período de Sessões, que as lideranças indígenas sofrem preconceito de forma a dificultar sua atuação na defesa dos direitos de seus povos. Seria importante entender quais medidas preventivas o Programa de Proteção estaria tomando para tratar deste ponto, considerando que este também seria objeto de sua atuação.

O segundo grande tema tratado fora a violência contra os povos indígenas no Brasil. Neste ponto, os então solicitantes haviam destacado duas macrossituações. Primeiramente, a situação dos Guarani e Kaiowá no Estado do Mato Grosso do Sul. Foram apresentados dados sobre o grande número de assassinatos e suicídios contra estes povos e o Estado brasileiro, durante as sessões de 2015, reconheceu que o grande número de suicídio de jovens seria decorrente do conflito pela terra.

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Ademais, o próprio Estado reconheceu, em 2013 e novamente em 2015, que a violência contra os povos indígenas seria decorrente do conflito fundiário, no que poderíamos retomar o questionamento sobre as medidas preventivas que estariam sendo tomadas pelo Programa de Proteção para possibilitar a demarcação das terras em disputa.

Ainda sobre a violência em geral, a própria Comissão Interamericana, durante o 156º Período de Sessões, na pessoa da então relatora para os povos indígenas, declarou haver um desbalanço nas investigações. Segundo a então relatora, quando a violência é perpetrada contra um indígena, incluindo os casos de assassinato, a investigação é lenta e ineficiente. Entretanto, quando se trata de acusar um indígena por um ato de violência, os órgãos do sistema acusatório apresentam uma celeridade e eficiência que não aparecem na outra situação. Enquanto que as polícias seriam ágeis para cumprir reintegrações de posse, seriam lentas para identificar os autores de atentados contra lideranças e comunidades.

Esta colocação, feita pela Comissão Interamericana em 2015, parece continuar atual, considerando o caso do massacre de Caarapó, já comunicado a esta Comissão. Após uma denúncia apresentada contra 5 (cinco) fazendeiros locais, as forças de segurança do governo estadual realizaram uma operação no dia 25 de abril de 2017 para o cumprimento de mandados de busca e apreensão em face de integrantes dos povos Guarani Kaiowá. A operação contou com um helicóptero e aproximadamente 200 (duzentos) agentes estatais fortemente armados, que teriam entradas nas residências do tekoha Ñandeva de forma indiscriminada. Enquanto isso, o governo estadual alega não ter recursos para prestar serviços de segurança ou apurar denúncias de violência contra os integrantes dos povos indígenas. O Estado do Mato Grosso do Sul teria gasto mais de R$ 50 mil (cinquenta mil reais) em apenas um dia de operação.1

1.1 Situações de violação apresentado em audiências anteriores

Ainda sobre o tema da violência, é relevante destacar quais casos concretos

haviam sido denunciados e qual tem sido o andamento até o momento. Nas audiências de 2013 e 2015, os então solicitantes haviam apresentado as seguintes situações:

Povos indígenas no Maranhão e ataques cometidos por madeireiros;

Povo Pataxó na Bahia e conflitos em torno da demarcação de suas terras;

Morte de crianças Kaingang;

Comunidades Guaiviry, do povo Guarani Kaiowá, no Estado do Mato Grosso do Sul;

Ataque ao tekoha Nhanderu Marangatu e morte de Simeão Vinhalva

Assassinato da liderança Nísio Gomes

1 http://www.mpf.mp.br/ms/sala-de-imprensa/noticias-ms/mpf-ms-quer-que-justica-federal-conduza-feitos-da-operacao-caarapo-i

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Em relação aos povos indígenas no Maranhão, a situação do povo Gamella já foi apresentada a esta Comissão em informe enviado no dia 15 de maio, relatando o ataque de 30 de abril de 2017, no qual um grande grupo de homens armados atacou membros do povo Gamella no município de Viana, no Maranhão. O ataque inclui cortes de facão das mãos e pés com aparente intenção de decepá-los.

Quanto ao povo Pataxó, no Estado da Bahia, em janeiro de 2016 a aldeia Cahy foi alvo de uma reintegração de posse violenta, incluindo o uso de uma retroescavadeira, demolindo 75 (setenta e cinco) moradias, um posto de saúde e parte da escola. Muitos não teriam podido retirar seus pertences de suas casas antes da ação.2 A ação ocorreu após a publicação de relatório de identificação, no bojo do processo demarcatório. No mesmo ano, agora no dia 22 de agosto, a mesma aldeia foi novamente alvo, agora por homens não identificados. Os homens atearam fogo na ponte que atua como única forma de entrar e sair da comunidade além de terem efetuado disparos de arma de fogo contra os indígenas.3

Quanto aos Kaingang, ainda que fatos tão graves quanto os anteriormente relatados não tenham se repetido com a mesma frequência, se deve chamar a atenção para uma investigação iniciada pela Polícia Federal da cidade de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, contra dez defensores de direitos humanos que haviam denunciado irregularidades em uma megaoperação da Polícia Federal e da Brigada Militar realizada em novembro de 2016 contra indígenas Kaingang. A investigação foi iniciada em resposta a uma notícia de fato enviada ao Ministério Público Federal que fora apresentada pela Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo, o Conselho Indigenista Missionário e outros defensores de direitos humanos.4

Quanto aos tekoha Guaiviry, de forma exemplificativa, pode-se destacar, respectivamente, disparos de arma de fogo contra a comunidade em fevereiro de 20165. Quanto ao ataque a Nhanderu Marangatu e a morte de Simeão Vilhalva, até o momento nenhum fazendeiro foi responsabilizado, por organizar e atacar a comunidade. Por outro lado, o irmão de Simeão, foi denunciado por homicídio culposo por ter sido, supostamente, quem disparou o tiro acidentalmente. E, por último, em relação ao assassinato de Nísio Gomes, todos os acusados respondem em liberdade e o processo segue sem movimentação.6

Em suma, em nenhum dos casos relatados houve melhora na situação apresentada e, em alguns casos, houve inclusive deterioração na proteção e garantia dos direitos humanos dos povos indígenas em situação de risco.

Além da atualização dos casos tratados, parece adequado retomar quais foram as questões levantas pela Comissão Interamericana que o Estado brasileiro teria se comprometido a responder posteriormente, assim como os compromissos assumidos diretamente e voluntariamente pelo Estado.

2 Confira: https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/o-que-esta-acontecendo-com-os-pataxo-no-sul-da-bahia 3 Confira: http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=8889&action=read 4 Confira: https://www.sul21.com.br/jornal/pf-investiga-defensores-de-direitos-humanos-que-denunciaram-abuso-de-autoridade-policial/ 5 Confira: http://cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=8578&action=read 6 Listagem, segundo os Guarani e Kaiowá, de lideranças assassinadas na luta pela Terra, ou que possuíam grande importância para o povo e morreram de forma misteriosa: Marçal de Souza; Samuel Martins; Adriano Pires; Marcos Veron; Dorvalino Rocha; Dorival Benites; Churite Lopes; Ortiz Lopes, Osvaldo Lopes; Rolindo Vera; Genivaldo Vera; Teodoro Ricardi; Nizio Gomes; Adelio Rodrigues; José Barbosa – Zezinho; Amilton Lopes; Denilson Barbosa; Simião Vilharva; Clodiodi de Souza.

Boa parte destes casos, há inquérito policial aberto, porém sem denunciados.

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Durante o 149º Período de Sessões, a Comissão Interamericana havia indagado qual poderia e deveria ser o papel do poder Executivo na investigação dos atentados contra os povos indígenas, sendo necessário ter mais claro precisamente de que forma esse poderia contribuir para garantir uma resposta célere e eficiente. Também, a Comissão Interamericana declarara que vem ouvindo os mesmos problemas dos povos indígenas no Brasil há 30 (trinta) anos, indagando como seria possível que os ataques parecem continuar, com ênfase em uma possível relação entre projetos de desenvolvimento econômico e direitos dos povos indígenas. Nesse ponto, poder-se-ia reiterar que as áreas de maior conflito, como o caso do Estado do Mato Grosso do Sul, são precisamente áreas com forte presença de produção agropecuária em grande escala, o que parece indicar uma correlação entre um projeto econômico pautado pela produção de commodities e a violação dos direitos dos povos indígenas.

Durante o 156º Período de Sessões, a Comissão Interamericana, além de reiterar o ponto de como o Estado poderia fortalecer a investigação dos assassinatos de membros dos povos indígenas, interpelou o Estado brasileiro quanto à falta de informação e produção de dados em torno das mortes dos indígenas no Brasil. O Estado havia afirmado não saber precisar o motivo do grande número de mortes, pois não teria dados para realizar esta análise. Na ocasião, a Comissão Interamericana indagou se, já que não há dados, haveria ao menos um plano para passar a coletá-los.

1.2 - Compromissos assumidos em audiências anteriores e não cumpridos pelo Estado Brasileiro

Por último, cabe destacar quais foram os compromissos assumidos expressamente, durante os dois períodos de sessões aqui tratados, pelo Estado brasileiro. De forma geral, o Estado se comprometeu a enfrentar as fontes das ameaças aos povos indígenas – o que significaria a demarcação dos territórios, já que o próprio Estado havia admitido a relação. Em relação a pontos específicos, o Estado havia apresentado apenas três medidas concretas:

Criação, em 2013, de um núcleo de inteligência para atuar junto aos programas de proteção;

Criação de uma ampla campanha para atacar o preconceito sofrido pelos povos indígenas, dando visibilidade e fortalecendo a luta de quem atua na causa indígena;

Por último, para evitar a contestação da demarcação nos tribunais, o Ministério da Justiça já teria criado um grupo de trabalho para analisar o problema e propor soluções. Até o final de 2015, este grupo teria apresentado seu relatório final.

Ainda que as medidas prometidas sejam insuficientes para solucionar os

problemas apresentados, seria importante que o Estado informasse:

Como tem sido a atuação deste núcleo de inteligência nestes últimos 4 (quatro) anos em relação à proteção dos povos e lideranças indígenas no Brasil, especialmente se o núcleo tem

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trabalhado junto aos próprios indígenas para identificar e analisar os riscos estruturais e conjunturais, de forma a possibilitar que aqueles continuem atuando na defesa de seus direitos humanos;

Apresentar quais medidas foram tomados pela campanha realizada e quais indicadores o Estado brasileiro utilizou para medir seu impacto efetivo;

Se possível, divulgar o relatório final do grupo de trabalho ou, ao menos, indicar quais soluções foram propostas e como estas tem sido implementadas.

02- A situação dos Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul: violações

contra o direito à Vida e a Terra.

A expansão do agronegócio no Centro-Oeste brasileiro, entre os anos 1950 e 1970, ocorreu através da expulsão dos povos indígenas Guarani e Kaiowá de suas terras tradicionais, e contou com o apoio e incentivo governamental, caracterizados pela autorização da emissão de títulos de propriedade para terceiros, pela impunidade dos crimes cometidos contra os povos indígenas do estado e pela ausência de políticas públicas adequadas, notadamente nas áreas de saúde, segurança, educação e alimentação.

A violação dos direitos territoriais indígenas perpetua-se até os dias atuais a partir da justificativa do Estado brasileiro de não concluir a demarcação das terras indígenas em razão do direito à propriedade privada, o que se supõe ser a consumação de interpretações jurídicas parciais em prol dos interesses econômicos locais.

As áreas de retomada/acampamentos indígenas apresentam o pior quadro de vulnerabilidade social. De acordo com dados disponibilizados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde, há uma média anual de 250 crianças indígenas menores de cinco anos com déficit nutricional (baixo peso e muito baixo peso) de um total de 6.194 crianças indígenas avaliadas em 2015 (97% de cobertura) nos Polos-Base do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) do Cone Sul do Mato Grosso do Sul, onde existem acampamentos indígenas com prevalência da etnia Guarani e Kaiowá.

A violência também integra o conjunto de violações de direitos desses povos. O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, constituiu uma força tarefa, chamada Avá Guarani, em setembro de 2015, para investigar casos de violência contra indígenas no Mato Grosso do Sul, especialmente em razão da falta de solução dos casos anteriores, da impunidade e do aumento da violência. Entretanto, este quadro está cada vez pior. Apenas entre os períodos de agosto de 2015 e junho de 2016, houve, pelo menos, 30 ataques às comunidades indígenas Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul, devidamente registrados.7

Cabe salientar que o governo brasileiro não cumpriu nenhum dos compromissos protetivos e preventivos assumidos em 20 de outubro de 2015, durante o 156º período de sessões, em Washington 8 onde se abordou a situação dos

7 Confira ANEXO 01 –Breve registro de ataques as comunidades Indígenas Guarani e Kaiowá no MS. 8 http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2015-10/violencia-contra-povos-indigenas-no-brasil-e-tema-de-audiencia-na

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homicídios de indígenas e a omissão do Estado Brasileiro frente à escalada da violência contra estas comunidades: a) a atuação das forças policiais não evitou novos ataques, ainda quando informados da sua iminência; b) o programa de proteção de defensores de direitos humanos não é efetivo e permitiu a prática de violências contra lideranças indígenas protegidas; c) a progressiva demarcação de terras indígenas pendentes, apontada como solução para os conflitos fundiários, não ocorreu nas áreas mais violentas. Considerando a sobredita falta de avanço na proteção destes povos, bem como a adoção de medidas administrativas que promovem a sua desproteção, como a recente edição do parecer jurídico que inviabiliza a continuidade dos processos de demarcação a partir de teses jurídicas restritivas.9

A expansão do agronegócio, com um alto nível de degradação ambiental e contaminação por agrotóxicos do solo e dos mananciais e o verdadeiro confinamento a que estão submetidos esses povos estão a exigir dos poderes públicos o enfrentamento da raiz dos problemas com a resposta da demarcação e titulação de terra, e o acesso a políticas públicas, em conformidade com as cláusulas de nossa Constituição cidadã.

É possível constatar-se, nessas áreas, violações ao Direito Humano à vida, à liberdade e à segurança, à saúde, ao reconhecimento perante a Lei como sujeito de direitos, ao tratamento igual perante a Lei, à proteção contra a discriminação, à audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, à liberdade de locomoção e residência, de acesso aos serviços públicos, ao padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e serviços sociais indispensáveis, a cuidados e assistência especiais para infância e maternidade e à educação na forma que determina a Constituição Federal do Brasil.

Verifica-se, portanto, que a política adotada pela UNIÃO destruiu territorialidades históricas e culturalmente diferenciadas dando causa a sérios conflitos internos dentro da área demarcada. Esse fato somado à indiferença hostil demonstrada pelo Estado para com a população da Reserva Indígena de Dourados acarreta um dos maiores índices de criminalidade do Brasil.

Considerando os índices de criminalidade alarmantes e crescentes – enquanto os índices de violência para a cidade de Dourados mostravam-se decrescentes – e esgotadas as tentativas de composição extrajudicial, no ano de 2011 foi proposta pelo Ministério Público Federal a Ação Civil Pública n. 0001049-10.2011.4.03.6002 em face da UNIÃO FEDERAL, FUNAI e ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL tendo por objeto a realização de policiamento ostensivo/preventivo no interior das Comunidades Indígenas de Dourados e Caarapó.

Como resultado, UNIÃO FEDERAL e ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL firmaram Acordo de Cooperação Técnica publicado no Diário Oficial da União aos 05 de março de 2012. No entanto, o referido ajuste nunca foi executado. Três anos

9http://www.conjur.com.br/2017-jul-20/decisao-raposa-serra-sol-vale-toda-administracao; http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/07/1902688-temer-assina-parecer-que-pode-parar-demarcacao-de-terras-indigenas.shtml; http://epoca.globo.com/ciencia-e-meio-ambiente/blog-do-planeta/noticia/2017/07/parecer-assinado-por-temer-pode-acirrar-violencia-contra-indigenas.html; https://brasil.elpais.com/brasil/2017/07/21/politica/1500589783_221019.html; http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/governo-temer-nao-demarca-nao-reconhece-e-nao-protege-terras-indigenas-diz-procuradoria/.

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depois um novo Acordo de Cooperação foi firmado entre órgãos federais e estaduais de segurança pública com vigência de 01 (um) ano – até junho de 2016.

Paralelamente a essas tratativas, com os índices de criminalidade em disparada, o Ministério Público Federal propôs a ação civil pública n. 0001889-83.2012.4.03.6002 em razão de o ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL ter editado um Parecer, com caráter vinculante, impedindo as forças policiais estaduais de procederem a qualquer atendimento nos limites de terras indígenas quando contatadas por intermédio do telefone 190. Aos 09 de novembro de 2012 restou deferido o pedido liminar.

Presentes os mesmos pressupostos fáticos, ação análoga foi ajuizada perante a 6ª Subseção Judiciária do Estado de Mato Grosso do Sul - Naviraí (0001641-08.2012.4.03.6006), restando também deferida a liminar em desfavor do ente estadual, cassando, igualmente, o parecer da Procuradoria-Geral do Estado.

Intimada das decisões judiciais, a Secretaria de Segurança Pública editou a Resolução SEJUSP /MS/Nº 638, de 26 de dezembro de 2012, determinando que fossem efetuados o atendimento emergencial e apuração e repressão de delitos no interior das reservas indígenas em todo o Estado de Mato Grosso do Sul, nos termos das citadas decisões judiciais, enquanto estas perdurarem.

Desta feita, enquanto os órgãos incumbidos constitucionalmente da prestação do serviço essencial de segurança pública se negam a fazer tais atendimentos, a Reserva Indígena de Dourados se torna um espaço imune à ação estatal e livre para a entrada e circulação de toda a sorte de ilícitos, especialmente o ingresso de entorpecentes e, por consequência, um espaço permissivo para os mais graves atos de violência.

Para além do direito fundamental à segurança pública, o panorama fático demonstra que os serviços mais básicos não são prestados e, para garantir o mínimo existencial aos quase 14.000 (catorze mil) indígenas que residem naquela Terra Indígena de Dourados/MS, resta aos órgãos constitucionalmente destinados a tanto ajuizar diversas ações na busca incessante por uma dignidade mínima para esses povos, exemplificativamente:

0003543-76.2010.4.03.6002 – Execução de TAC firmado com a FUNAI para garantia do direito à terra (art. 231 da Constituição Federal);

0001048-25.2011.4.03.6002 – Ação Civil Pública para garantia do direito à água potável;

0001049-10.2011.4.03.6002 – Ação Civil Pública para garantia do direito à integridade física (segurança pública - policiamento ostensivo);

0001889-83.2012.4.03.6002 – Ação Civil Pública para garantir que os indígenas fossem atendidos pelo telefone 190 (emergência);

0001650-79.2012.4.03.6002 – Ação Civil Pública para garantia da execução de medidas mitigadoras e compensatórias devidas em razão da duplicação de uma rodovia estadual que corta a Aldeia de Dourados, diante da recalcitrância do poder público;

0002958-82.2014.4.03.6002 – Ação Civil Pública para garantia do direito à educação – em Dourados, aproximadamente 600 (seiscentas) crianças Guarani-Kaiowá se encontravam fora das salas de aula por ausência de vagas;

0003953-95.2014.4.03.6002 – Ação Civil Pública para garantia do direito de ir e vir – recuperação das estradas da Aldeia, o que impossibilitada o tráfego dos ônibus escolares, ambulâncias, viaturas policiais e o acesso, pelos indígenas, ao núcleo urbano.

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2.1- Dos agravos decorrentes desse cenário de indiferença hostil

O Estado de Mato Grosso do Sul possui 79 (setenta e nove) municípios e,

conforme estimativa populacional – IBGE/julho de 201710, 2.713.147 (dois milhões, setecentos e treze mil e cento e quarenta e sete) habitantes.

Por sua vez, o município de Dourados conta com uma população de 218.06911 (duzentos e dezoito mil e sessenta e nove) habitantes, destes, 13.578 (treze mil quinhentos e setenta e oito) são indígenas e 12.880 (doze mil, oitocentos e oitenta) índios residem na Reserva Indígena de Dourados 12.

Apesar do quantitativo populacional superar 12 mil habitantes, a Reserva Indígena de Dourados não possui Posto Policial em seu interior, não conta com Centro de Educação Infantil – CEIM – e também não possui unidade integrante da Rede de Saúde Mental.

2.2 A violência em números e estatísticas.

Segundo o Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da

Saúde, entre os anos de 2005 e 2015 foi registrada uma média anual de 53.507 (cinquenta e três mil, quinhentos e sete) homicídios – o que equivale a uma taxa média nacional de 30,4 homicídios por 100 mil habitantes13.

A seu turno, o Estado de Mato Grosso do Sul, entre os anos de 2005 e 2015, registrou uma média anual de aproximadamente 675 (seiscentos e setenta e cinco) homicídios e uma taxa média de 27,71 homicídios a cada grupo de 100 mil habitantes – valor bem abaixo da média nacional14.

Além disso, o Estado de Mato Grosso do Sul registra índices decrescentes de homicídios. Entre os anos de 2005 e 2015 a variação foi de –14,2% enquanto que no Brasil, no mesmo período, a variação foi crescente de 10,6%.

O mesmo panorama não foi verificado com relação aos indígenas residentes no Estado de Mato Grosso do Sul. Para eles, entre os anos de 2003 e 2016 registrou-se, pelo menos, 444 homicídios, uma média anual de aproximadamente 31,71, o que corresponde a uma taxa 43,26 homicídios por 100 mil habitantes.

Os Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul somam cerca de 46 mil pessoas e mais de 80% desta população sobrevive em 8 pequenas reservas. Considerando a tabela acima, e em que pese, 90% dos homicídios ocorreram junto a este povo, contabilizando pelo menos, 401 mortes nos últimos 14 anos, é possível estimar uma taxa de homicídio de 62,26 por 100 mil pessoas. Honduras, país classificado pela Organização Mundial da Saúde15 com a maior taxa de homicídio do mundo, possuí 85,7 por 100 mil, seguido por El Salvador (63,2) e Venezuela (51,7), já o Brasil

10 Disponível em <ftp://ftp.ibge.gov.br/Estimativas_de_Populacao/Estimativas_2017/estimativa_dou_2017.pdf> Acessado em 21.08.2017. 11 Disponível em <ftp://ftp.ibge.gov.br/Estimativas_de_Populacao/Estimativas_2017/estimativa_dou_2017.pdf> Acessado aos 21.08.2017. 12Dados SESAI para o ano de 2017 – Anexo. E dados SIASI disponíveis em <http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/principal/leia-mais-o-ministerio/70-sesai/9518-siasi> Acessado aos 21.08.2017. 13 “Atlas da Violência 2017”. Média calculada a partir dos dados constantes das páginas 12-13. http://www.ipea.gov.br/portal/images/170602_atlas_da_violencia_2017.pdf 14“ Idem, página 13. 15 World health statistics 2017: monitoring health for the SDGs, Sustainable Development Goals http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/255336/1/9789241565486-eng.pdf?ua=1

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ocupa a nona posição com 30,4 mortes por 100 mil. Em outras palavras, se o povo Guarani e Kaiowá representassem um país, estariam em 2º colocado em quantidade de homicídios no mundo e ainda, o dobro das atuais taxas brasileiras.

Considerando somente o Polo Base de Dourados – que compreende os municípios de Dourados, Maracaju, Douradina e Rio Brilhante – entre os anos de 2012 e 2016 foi registrada uma média anual de 13 homicídios, o que corresponde a uma taxa média de 87,69 homicídios a cada grupo de 100 mil habitantes.16 Comparando os dados disponíveis referentes a um mesmo período (2012 a 2014), temos o seguinte quadro:17

16Considerou-se o quantitativo de 14.824 indígenas no Polo-Base de Dourados – dado retratado no SIASI 2013 – disponível em <http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/principal/leia-mais-o-ministerio/70-sesai/9518-siasi>. Acessado aos 1º.09.2017. 17Foram consultadas as mesmas fontes antes citadas e considerado o quantitativo de 73.295 indígenas no Estado de Mato Grosso do Sul (IBGE/2010) e 14.824 indígenas no Polo Base de Dourados (SIASI/2013).

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2.3 Povos Indígenas no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos – PPDDH

Dados obtidos pela Pública18, demonstram que em 2016 havia ao todo 133

índios acolhidos pelo programa entre 2009-2016. Para a agência, esta situação de insegurança corrobora os relatórios de violência contra os povos indígenas elaborado desde 199319 pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Somente em 2014, 138 indígenas foram assassinados no país, ano que duplicou a quantidade e o mais alto da história do relatório. A média anual é de 68 assassinatos.

Comparando os dois gráficos nesta página, destacamos a correlação entre o aumento dos assassinatos 2014-2016 e a inclusão de pessoas indígenas no programa de proteção no mesmo período.

18 Confira: https://apublica.org/2016/06/sem-presenca-da-funai-indios-assumem-protecao-das-terras/. Acessado em 10 de outubro de 2017. 19 Para acessar todos os Relatórios de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil - 1993-2016, confira: http://caci.cimi.org.br/#!/p/942/?loc=-13.068776734357694,-63.94042968749999,4. Acessado em 10 de outubro de 2017.

42 3743

58

92

60 60 6051

6053

138 137

118

13 1628 28

5342

33 34 32 37 3341 36

1829

2115

3039

1827 26

19 23 20

97 101 100

0

20

40

60

80

100

120

140

160

2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016

Assassinatos de Indígenas no Brasil e MS2003 - 2016

Total no Brasil Nº absoluto MS Nº absoluto restante do País

Fonte: Cimi; Dsei/MS; Sesai

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Taxa média de homicídios entre os anos de 2012 e 2014

(por 100 mil habitantes)

Brasil 29,2

Estado de Mato Grosso do Sul 26,1

Indígenas do Estado de Mato Grosso do Sul

55,9

Indígenas do Polo-Base de Dourados 101,18

É alarmante que os indígenas do Estado de Mato Grosso do Sul morrem por homicídio a uma taxa média 100% superior aos não indígenas Sul Mato-Grossenses. E os indígenas da região de Dourados morrem por homicídio a uma taxa quase 400% superior aos não indígenas do Estado de Mato Grosso do Sul.

2.4 Cartografia de Ataques Contra Pessoas Indígenas20

20 Confira: http://caci.cimi.org.br/#!/

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2.5 O Massacre de Caarapó21

De forma exemplificativa, em relação ao ano de 2016, cabe destacar o caso

que ficou conhecido como o Massacre de Caarapó, cidade do interior do Mato Grosso do Sul, marcada também pelas reiteradas violências contra os povos indígenas.22

Em 12 de junho, cerca de 300 indígenas Guarani e Kaiowá retomaram parte de seu território originário no estado do Mato Grosso do Sul, correspondente à parte da fazenda Yvu, no já mencionado município de Caarapó. Em resposta, os proprietários da fazenda teriam ido ao local e arregimentado outros produtores rurais para a retirada dos indígenas do local.23

As forças policiais não atuaram de forma adequada para a proteção da comunidade, conforme compromisso assumido pelo Estado brasileiro na audiência supracitada desta Comissão Interamericana durante o seu 156º período de sessões. No dia 13 de junho de 2016, quatro viaturas policiais compareceram ao local e verificaram a presença de diversos produtores rurais com ânimos exaltados. Nenhuma medida protetiva foi adotada. No dia 14 de junho, em torno de 70 fazendeiros, acompanhados de pistoleiros, atacaram o acampamento de retomada. O indígena Clodiodi Aquileu de Sousa morreu e diversos outros ficaram feridos 24.

A dimensão desse ataque sofrido pelos Guarani e Kaiowá chama a atenção em comparação com casos anteriores. Estima-se a participação, conforme dito acima, do representativo número de 70 fazendeiros, em cerca de 60 caminhonetes, acompanhados de pistoleiros armados. Há ainda o registro de que teria sido fornecido ao grupo que atacou os indígenas refeições para 140 pessoas, dando a dimensão do grande número de pessoas envolvidas no incidente. Em clara demonstração da incapacidade do Estado de proteger os Povos Indígenas, o ataque foi realizado em plena luz do dia, e não durante a madrugada, como efetuado em outras ocorrências. No mesmo sentido da desproteção, ainda no mês de junho, um dos sobreviventes sofreu uma emboscada em sua casa e sobreviveu apenas porque conseguiu se esconder dos agressores.

Sobre as formas e métodos de ataque utilizados, é importante observar que muitas pessoas indígenas foram feridas pelas costas e em locais de letalidade, como peito, pescoço e cabeça. Há sobreviventes com projéteis próximos ao coração, o que impossibilita sua remoção cirúrgica. Além disso, indígenas denunciaram por diversas vezes a presença de aviões de pulverização de agrotóxicos que realizaram rasantes sobre a comunidades despejando veneno, conforme o vídeo25.

O ataque de 14 de junho foi condenado por esta Honorável Comissão, notando que “existen indicios de que este asesinato se dio en represalia a los reclamos territoriales de integrantes de la comunidad de Dourados-Amambai Pegua I, y que fue presuntamente el resultado del actuar de grupos paramilitares contratados

21 Dossiê Massacre de Caarapó - http://cimi.org.br/massacredecaarapo/ 22 14 A linha do tempo do caso e um grande volume de informações pode ser acessado através do hotsite Dossiê Massacre de Caarapó em http://cimi.org.br/massacredecaarapo/ 23 https://www.noticiasagricolas.com.br/noticias/questoes-indigenas/174915-questao-indigena-nota-oficial-do-sindicato-rural-caarapo-ms.html#.V3IQKJMrKRs%22 24 <http://cimi.org.br/massacredecaarapo/2016/06/14/em-massacre-guarani-kaiowa-e-assassinado-e-cinco-indigenas-adultos-e-uma-crianca-estao-hospitalizados-em-estado-grave/> 25 Avião pulveriza veneno sobre a comunidade de Tey Jusu em Caarapó - https://www.youtube.com/watch?v=k9KuFHwUFmA

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por propietarios terratenientes”26. Na nota de imprensa, esta Comissão reiterou a obrigação do Estado brasileiro de investigar e sancionar os responsáveis.

A Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados também dedicou especial atenção para o caso, tendo realizado uma ida ao local, em 15 e 16 de junho de 2016, e tendo publicado relatório sobre a situação do conflito no qual lista uma série de encaminhamentos que deveriam ser tomados para a resolução do caso, como a atuação direta e positiva do Ministério da Justiça para solucionar as demandas dos Guarani e Kaiowá27.

Entretanto, o Estado brasileiro não apresenta uma atuação coerente e condizente com a proteção dos direitos dos indígenas atacados, desrespeitando, dentre outros instrumentos internacionais, a Convenção Americana de Direitos Humanos28, que garante o direito de acesso à justiça e à proteção judicial (artigos 8 e 25), o direito à vida (artigo 4) e integridade pessoal (artigo 5), e estipula ainda o dever dos Estados de investigar e punir responsáveis por violações de direitos humanos, adotando medidas de direito interno para tornar efetivos os direitos da Convenção (artigos 1 e 2).

Além disso, no tocante à Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, o andamento do caso revela ainda desconsideração pelo direito dos povos indígenas ao reconhecimento legal e proteção jurídica das suas terras tradicionais, preconizado no artigo XXV dessa importante normativa internacional 2930 e também garantido pelo artigo 21 da própria Convenção Americana de Direitos Humanos (direito à propriedade coletiva).

Ainda que no dia 05 de julho de 2016 o Poder Judiciário tenha determinado a prisão preventiva de 05 (cinco) pessoas envolvidas no ataque, no dia 08 de julho de 2016 ordenou a reintegração de posse liminar da área, ou seja, o despejo dos indígenas remanescentes no local. Passado mais de um ano após os ataques, a demarcação do território sofreu um grande revés. Em fevereiro de 2017, o Poder Judiciário suspendeu a demarcação da terra indígena que incluía a área de Caarapó, anulando, temporariamente, com base na tese do Marco Temporal, o relatório de identificação publicado em 2016 que reconhecia o direito ao território tradicional31.

Mais recentemente, verifica-se que o processo criminal anda a passos lentos. Embora tenham sido ouvidas mais de 100 (cem) pessoas, dentre vítimas e testemunhas, até agora somente foi possível denunciar 05 (cinco) indivíduos, o que se deve à deficiência da estrutura investigativa. Exemplificativamente, aponte-se que apenas 1 delegado da Polícia Federal conduz o caso, do que resulta remota a chance

26 http://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2016/089.asp 27https://www.socioambiental.org/sites/blog.socioambiental.org/files/nsa/arquivos/relatorio_cdhm.pdf 28 Convenção Americana de Direitos Humanos. Disponível em: http://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.Convencao_Americana.htm. 29 AG/RES. 2888 (XLVI-O/16). DECLARACIÓN AMERICANA SOBRE LOS DERECHOS DE LOS PUEBLOS INDÍGENAS. Disponível em: <http://www.oas.org/es/sadye/documentos/res-2888-16-es.pdf> 30 Outrossim, reputa-se importante mencionar o desrespeito à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, especialmente o art. 7º, assim como, à Declaração da Organização das Nações Unidas sobre os direitos dos povos Indígenas, pontuando o art. 26, ambos referindo-se ao direito dos povos indígenas às suas terras tradicionalmente ocupadas. No mesmo sentido, frisa-se a própria Constituição Federal Brasileira de 1988 (arts. 231 e 232), que reconhece os direitos indígenas quanto à identidade cultural e à terra, indissociáveis para os fins de interpretação e aplicação da norma jurídica, todavia, também desconsiderados conforme se demonstra no caso em questão. 31 http://www.caaraponews.com.br/noticia/80456/juiz-acolhe-liminar-e-suspende-demarcacao-de-terras-indigenas-em-caarapo-e-regiao.

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de identificar todos os envolvidos no ataque. Como exposto há informações de que aproximadamente 60 caminhonetes teriam participado do atentado e que os produtores rurais teriam providenciado a alimentação de 140 pessoas, mas até agora os indícios de autoria ainda são parcos. A denúncia foi finalmente ofertada em 28 de outubro de 2016, mas a audiência não foi marcada até a presente data.

Se, de um lado, tem-se a morosa apuração dos crimes cometidos contra essas comunidades tradicionais e a reiterada e sistemática negativa de prestação do serviço de segurança pública no interior das Terras Indígenas, por outro lado, há operações policiais repressivas como aquela denominada de “Caarapó I”, coordenada pelo governo estadual no dia 25 de abril de 2017, não muito tempo depois da denúncia contra os 05 (cinco) fazendeiros locais. A operação visaria o cumprimento de diversos mandados de prisão e de busca e apreensão em face de integrantes dos Povos Kaiowá e Guarani. O aparato policial contou com o apoio de um helicóptero e de 200 (duzentos) agentes do Estado, fortemente armados, que adentraram indiscriminadamente em todas as residências localizadas no Tekoha Ñandeva, no município de Caarapó.

O mesmo Estado que alega a ausência de recursos públicos para prestar o serviço de segurança pública ou para apurar os graves fatos perpetrados contra os indígenas implementa vultosas operações repressivas e direcionadas a todo o grupo. O Estado de Mato Grosso do Sul informou que, na ocasião, foram gastos R$ 60.868,35 (sessenta mil, oitocentos e sessenta e oito reais e trinta e cinco centavos) em 01 (um) dia da malfadada “Operação Caarapó I”32.

Ao longo desse processo, há ainda o agravante de perseguição aos defensores de direitos humanos dos indígenas. Em 29 de maio de 2017, Otoniel Ricardo, liderança dos Guaranis e Kaiowás, ex-vereador de Caarapó e defensor incluído no Programa de Proteção do Governo Federal, foi torturado na cadeia da Delegacia, quando preso por não pagamento de pensão alimentícia. Esta situação decorre da conformação de um ambiente de ódio contra os indígenas em Caarapó, após as ações de autodemarcação promovidas pelas comunidades. Até o momento, Otoniel sequer foi ouvido em depoimento. Ele e sua família foram obrigados a se refugiarem em outra reserva, abandonando sua casa.

2.6 - Violências doméstica, sexual e outras decorrentes da situação de confinamento humano.

Por fim, tal fato se repete com relação a outros crimes, a exemplo da violência doméstica, sexual e outras. O portal eletrônico SAGE – Sala de Apoio à Gestão Estratégica – do Ministério da Saúde, apontou que enquanto todos os índices decrescem, aqueles relativos à população indígena aumentam

32 http://www.mpf.mp.br/ms/sala-de-imprensa/noticias-ms/mpf-ms-quer-que-justica-federal-conduza-feitos-da-operacao-caarapo-i .

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Índices - Violências Domésticas, Sexual e Outras - segundo raça/cor – Município de Dourados/MS:33

Apesar de o “mapa da violência” retratar esse cenário, as políticas de

segurança pública não têm se voltado para a diminuição desses índices. Ao contrário, os órgãos estatais participam de verdadeira disputa judicial para verem suas responsabilidades excluídas.

Quanto à alegação de que atendem igualmente tanto a indígenas quanto à população em geral, tem-se a mais clara ocorrência da denominada “teoria do impacto desproporcional”,34 uma vez que sem maiores esforços vislumbra-se a necessidade de um incremento na atuação estatal destinada a essa específica população/localidade que – por culpa exclusiva do Estado – padece com índices alarmantes de violência sobremaneira superiores àqueles encontrados na população envolvente.

2.7 Índices crescentes de adolescentes em unidades de internação

Indagada por intermédio do Ofício n. 577/2017/MADA/PRM-DRS/MS/MPF, a

Unidade Educacional de Internação Masculina Laranja Doce informou (OF/UNEI-LD/SEJUSP/MS/Nº 842/2017)35 que “dos 56 (cinquenta e seis) adolescentes que cumprem medida socioeducativa de internação nesta Unidade, 11 (onze) são indígenas. Destes, 04 (quatro) cometeram o ato infracional de Homicídio, 05 (cinco) cometeram o ato infracional de Roubo, 01 (um) cometeu o ato infracional de Latrocínio e 01 (um) cometeu o ato infracional de Tráfico de Drogas.”

É preciso observar esse índice levando em consideração que as Unidades Educacionais de Internação Laranja Doce (masculina) e Esperança (feminina), atendem toda a Região da Grande Dourados (Angélica, Batayporã, Caarapó, Deodápolis, Douradina, Dourados, Fátima do Sul, Glória de Dourados, Guia Lopes da Laguna, Itaporã, Ivinhema, Jardim, Jateí, Juti, Maracaju, Nioaque, Nova Alvorada do Sul, Nova Andradina, Novo Horizonte do Sul, Rio Brilhante, Taquarussu e Vicentina), conforme informação prestada através do OF/UNEI-LD/SAS/SEJUSP/MS/Nº

33Disponível em <http://sage.saude.gov.br/#> Filtro: Dourados/MS. Acessado aos 15.08.2017. 34O resta claro quando da comparação do impacto dessa política “igualitária” em relação à população indígena e à população não-índia. 35 Confira ANEXO 02 - OF/UNEI-LD/SEJUSP/MS/Nº 842/2017.

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872/2017 36. Nesse viés, temos que:

Município População Total População Indígena

Angélica 10.485

Batayporã 11.248

Deodápolis 12.773

Caarapó 29.292 6.15037

Juti 6.553

Douradina 5.827

14.82438

Dourados 218.069

Itaporã 23.539

Maracaju 44.994

Rio Brilhante 36.144

Fátima do Sul 19.181

Glória de Dourados 9.960

Guia Lopes da Laguna

9.991 15339

Ivinhema 23.021

Jardim 25.758

Jateí 4.025

Nioaque 14.092

Nova Alvorada do Sul

20.772

Nova Andradina 52.625

Novo Horizonte do Sul

4.041

Taquarussu 3.570

Vicentina 6.041

TOTAL: 592.001 (96,55%) 21.127 (3,44%)

Ou seja, apesar de a população indígena na Região da Grande Dourados

representar apenas 3,44% da população total assistida pelas unidades de internação em comento, aproximadamente 20% dos adolescentes internados são indígenas – média que se mantém desde o ano de 2002 40.

36Confira ANEXO 03 - OF/UNEI-LD/SAS/SEJUSP/MS/Nº 872/2017 37Polo-Base de Caarapó. 38Polo-Base de Dourados. Tecnicamente, o município de Itaporã não integra o Polo-Base de Dourados. No entanto, parte da Reserva Indígena de Dourados encontra-se naquele município e, por essa razão estão contabilizados integralmente no Polo-Base de Dourados. 39População referente à Comunidade Indígena de Cerroi'y, localizada na divisa entre os municípios de Guia Lopes da Laguna e Maracaju. 40Anexo - “Informamos ainda que, do ano de 2002 até o presente momento, esta UNEI possui uma média anual

de 20% de adolescentes indígenas internados para cumprimento de medidas socioeducativas (...)” - OF/UNEI-LD/SAS/SEJUSP/MS/Nº 872/2017.

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A seu turno, a Unidade Educacional de Internação Feminina Esperança, através dos Ofícios (OF/UNEI-E/SAS/SEJUSP/MS/Nº 39/17 e OF/UNEI-E/SAS/SEJUSP/MS/Nº 41/17)41 informou que, “atualmente, estamos com o efetivo de 10 adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação, sendo que 3 são indígenas”.

Outro fator que merece destaque é a gravidade dos atos infracionais praticados pelos adolescentes indígenas. No Brasil, o percentual de homicídios fica abaixo dos 10% e o de latrocínios, abaixo de 3%, vejamos:42

Esse panorama se repete na Unidade Educacional de Internação Masculina Laranja Doce, conforme o quanto contido no OF/UNEI-LD/SAS/SEJUSP/MS/Nº 872/2017,43 cujos dados partem do ano de 2002 até o ano de 2017.

Porém, segmentando os dados, nota-se que com relação aos adolescentes indígenas internados na cidade de Dourados 80% das causas de internação de meninos deve-se a atos infracionais análogos aos crimes de homicídio e latrocínio e 100% das causas de internação de meninas deve-se a atos infracionais análogos ao crime de homicídio (consumado e tentado).

A preponderância dos crimes contra a vida é sobremaneira preocupante.

41 Confira: ANEXO 05 - OF_UNEI-E 041_17 42“Nota Técnica: O adolescente em Conflito com a Lei e o Debate sobre a Redução da Maioridade Penal: esclarecimento necessários”. IPEA, junho de 2015. p. 25. Disponível em <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/notatecnica_maioridade_penal> Acessado aos 04.09.2017. 43ANEXO 03 - OF/UNEI-LD/SAS/SEJUSP/MS/Nº 872/2017

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Vejamos o exposto pelas Unidades:44

UNEI Masculina:

“Informamos que do ano de 2002 até o presente momento, esta UNEI possui uma média anual de 20% de adolescentes indígenas internados para cumprimento de medidas socioeducativas, que decorrem pelo cometimento de Homicídio (75%), Latrocínio (5%), Roubo (10%), Tráfico (5%) e Estupro (5%).”

UNEI Feminina:

“Em resposta ao Ofício n. 578/2017/MADA/PRM-DRS/MS/MPF, informo que atualmente encontra-se em cumprimento de medida socioeducativa de internação três adolescentes indígenas, por tentativa de homicídio e homicídio e nos últimos 10 anos tivemos em cumprimento de internação oito adolescentes indígenas, todas pelos mesmos atos infracionais”.

Considerando todos esses fatores – percentual populacional e percentual de internação – conclui-se que os adolescentes indígenas do sexo masculino são internados a um percentual 700% superior se comparados aos adolescentes não indígenas.

44ANEXO 03 - OF/UNEI-LD/SAS/SEJUSP/MS/Nº 872/2017 e ANEXO 04 - OFUNEI-ESASSEJUSPMSN 39/2017. 4545 adolescentes do sexo masculino e 07 adolescentes do sexo feminino. 4611 adolescentes do sexo masculino e 03 adolescentes do sexo feminino.

Quantitativo/Percentu

al Populacional

Quantidade de Adolescentes internos em setembro de 2017

Taxa média de adolescentes internos

(por 100 mil habitantes)

População Total 592.001 (96,55%) 5245 8,78

População Indígena

21.127 (3,44%) 1446 66,26

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2.8 - Os Suicídios entre os Guarani e Kaiowá. Consequência dos traumas sociais e da negligencia do Estado.

Índices de suicídios 09 vezes superior à média nacional e 05 vezes superior à média de casos registrados na Índia

Segundo a Organização Mundial da

Saúde, 47 804 mil pessoas cometem suicídio todos os anos, representando uma morte a cada 40 segundos e uma média mundial de 11,4 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes.

No Brasil – que é o 8º país com mais mortes por suicídio – a média registrada no ano de 2012 foi de 6,0 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes 48.

Restringindo ainda mais o foco, releva apontar que segundo a SESAI49 o Cone Sul do Estado de Mato Grosso do Sul – municípios de Amambai, Antônio João, Caarapó, Dourados, Iguatemi, Paranhos e Tacuru – conta com 48.932 mil indígenas.

Somente considerando essa população, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (DIASI/DSEI-MS) informou que entre os anos de 2007 e 2016 foram registradas 457 mortes por suicídio. Esse número alarmante representa uma média anual de 45,7 mortes.

Considerando o mesmo parâmetro adotado pela Organização Mundial de Saúde (mortes por 100 mil habitantes), concluiu-se que entre os Guarani-Kaiowá do Cone Sul do Estado de Mato Grosso do Sul, entre os anos de 2007 e 2016, foi registrada a média anual de 93,39 mortes por 100 mil habitantes.

47 Disponível em <https://nacoesunidas.org/oms-suicidio-e-responsavel-por-uma-morte-a-cada-40-segundos-no-mundo/> Acessado aos 25.08.2017. 48 “Prevención de la conducta suicida”, OMS 2016 – Disponível em <http://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5222:opas-lanca-nova-publicacao-com-estrategias-das-americas-para-a-prevencao-do-suicidio&Itemid=839> Acessado aos 25.08.2017. 49 Dados retratado no SIASI 2013 – disponível em <http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/principal/leia-mais-o-ministerio/70-sesai/9518-siasi>. Acessado aos 11.09.2017.

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O quantitativo é alarmante, porém, silenciosamente verídico. Analisando apenas os dados referentes ao ano de 2012:50

Região População (Ano 2012)

Número de Suicídios (Ano 2012)

Taxa de suicídios (por 100 mil habitantes)

Mundial 7.075.000.000 806.000 11,4

Brasil 193.946.886 11.821 6,0

Índia 1.263.000.000 258.000 20,42

China 1.351.000.000 120.700 8,93

Estados Unidos 314.000.000 43.000 13,69

Rússia 143.200.000 31.000 21,64

Japão 127.000.000 29.000 22,83

Coreia do Sul 50.200.000 17.000 33,86

Paquistão 177.900.000 13.000 7,30

Guarani-Kaiowá51 48.932 56 114,44

Analisando apenas os dados referentes ao ano de 2015:52

Região Taxa de suicídios

(por 100 mil habitantes)

Brasil 9,6

Índia 17,9

China 7,7

Estados Unidos 19,5

Rússia 32,2

Japão 21,7

Coreia do Sul 36,1

Paquistão 2,5

Guarani-Kaiowá53 89,92

Em 2013 registrou-se a maior quantidade de suicídios Guarani e Kaiowá na

história, ao todo foram 73 casos.

50 Dados disponíveis em <http://www.who.int/gho/mental_health/en/> Acessado aos 25.08.2017. Os dados foram amplamente veiculados pela mídia nacional <http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2014/09/brasil-e-o-8-pais-com-mais-suicidios-no-mundo-aponta-relatorio-da-oms.html> Acessado aos 25.08.2017. 51Predominância étnica Guarani-Kaiowá. 52Dados disponíveis em <http://www.who.int/gho/mental_health/suicide_rates/en/> Acessado aos 25.08.2017. 53Predominância étnica Guarani-Kaiowá.

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2.9 - Iguais mazelas decorrentes de um igual colonialismo

Observadores dos povos indígenas de diferentes regiões do planeta acenam

para a repetição do mesmo cenário como decorrência de um igual modelo de colonialismo baseado na destruição da população indígena enquanto povo.

Analisando populações indígenas da Austrália e do Canadá, o perito canadense Jonathan Rudin salientou que as estatísticas são quase sempre idênticas porque “o colonialismo dos colonos ingleses funciona da mesma maneira em diferentes lugares”:54

“A desvantagem dos indígenas no Canadá reflete a dos povos indígenas na Austrália porque ambos são sobreviventes do colonialismo, disse um importante advogado canadense.

Os povos indígenas no Canadá estavam lidando com o número recorde de seus filhos sendo colocados no sistema de bem-estar da criança e uma enorme sobre-representação no sistema de justiça criminal - as mesmas questões que enfrentaram a Austrália, disse Jonathan Rudin, chefe dos Serviços legais aborígenes do Canadá.

(…)

As estatísticas eram quase idênticas. Os povos indígenas representam 4% da população canadense e 25% da população prisional. Na Austrália, os 3% da população que se identificam como Aborígenes ou Insulares do Estreito de Torres representam 27% dos que estão presos.

No sistema de bem-estar infantil, que Rudin disse ser a preocupação mais significativa para a maioria dos povos indígenas, quase 50% das crianças eram indígenas. A taxa australiana é de 51%.”55

Nota-se que o cenário é de todo coincidente com o verificado na Reserva Indígena de Dourados. Conforme exposto, atualmente, cerca de 80% das crianças acolhidas são indígenas, apesar de a população indígena representar apenas 6,79% do total da população local.

Ainda, balanceando fatores como percentual populacional e percentual de internação, tem-se que os adolescentes indígenas do sexo masculino da Região da Grande Dourados são internados por atos infracionais análogos a crimes a um percentual 07 (sete) vezes superior quando comparados aos adolescentes não indígenas da mesma região.

54 Disponível em <https://www.theguardian.com/world/2016/feb/25/indigenous-australians-and-canadians-destroyed-by-same-colonialism> Acessado aos 12.09.2017. Tradução livre. 55Ibidem.

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A problemática dos índios canadenses também foi retratada no Relatório da Comissão da Verdade Canadense.56 Destacou-se que os povos originários foram 06 (seis) vezes mais propensos a sofrer mortes relacionadas ao álcool se comparados à população em geral e 03 (três) vezes com mais probabilidades de sofrer mortes induzidas por drogas.

Frisou ainda que “a taxa geral de suicídio entre as comunidades originárias é cerca de 02 (duas) vezes maior que a população canadense total.” E que “a juventude indígena com idades compreendidas entre os 10 (dez) e os 29 (vinte e nove) anos que vivem em reservas têm de 05 (cinco) a 06 (seis) vezes mais probabilidades de morrer por suicídio do que os jovens não-indígenas”.

A situação se repete na Reserva Indígena de Dourados, só que com uma gravidade sobremaneira superior. Conforme exposto, considerando o quantitativo de mortes por suicídio registrado no ano de 2015, os indígenas do Cone Sul do Estado de Mato Grosso do Sul morrem por essa causa a uma taxa 09 (nove) vezes superior à média nacional.

Outro ponto de extrema importância externado no sobredito Relatório 57 relaciona o excessivo acolhimento das crianças à futura excessiva representação de jovens indígenas e consequente custódia em unidades de detenção.

Ou seja, infere-se que as crianças hoje acolhidas inflam os números dos jovens amanhã acautelados:

“(...)

A grande vulnerabilidade e desvantagem experimentada por tantos jovens indígenas, sem dúvida, contribuem para a sua excessiva representação, um fator intimamente ligado ao legado das escolas-residenciais. Muitas das crianças e jovens indígenas de hoje vivem com o legado de escolas residenciais todos os dias, enquanto lutam para lidar com altas taxas de vícios, transtorno de álcool fetal, problemas de saúde mental, violência familiar, encarceramento de pais e a intrusão das autoridades no bem-estar infantil. Todos esses fatores os colocam em maior risco de envolvimento com o crime.

A crescente sobre-representação dos jovens indígenas sob custódia espelha e é provavelmente relacionado com o drama ainda maior da sobre-representação das crianças indígenas sob os cuidados de agências de bem-estar infantil. Pesquisas na Colúmbia Britânica descobriram que 35,5% dos jovens acolhidos também estão envolvidos no sistema de justiça juvenil, em comparação com apenas 4,4% dos jovens que não estão sob cuidados.

A Comissão acredita que existem maneiras de reduzir a crescente sobre-representação dos jovens

56Disponível em <http://www.trc.ca/websites/trcinstitution/File/2015/Findings/Exec_Summary_2015_05_31_web_o.pdf> Acessado aos 12.09.2017. 57 Disponível em <http://www.trc.ca/websites/trcinstitution/File/2015/Findings/Exec_Summary_2015_05_31_web_o.pdf> Tópico 158 e seguintes. Acessado aos 12.09.2017.

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indígenas, mas que eles serão encontrados principalmente fora do sistema de justiça. Existe uma necessidade urgente de apoiar as famílias indígenas e aliviar a pobreza vivida por muitas comunidades indígenas. O governo federal deve assumir a liderança ao comprometer os recursos necessários para eliminar a crescente sobre-representação de crianças e jovens indígenas sob cuidados. Parte desse compromisso deve incluir a coleta e publicação de melhores dados para medir o progresso.

(...)”

O entendimento é de todo coincidente com aquele manifestado pelo perito canadense Jonathan Rudin:58

“'A crise não é os indígenas cometerem crime',

disse ele. 'A crise é que a resposta aos povos indígenas que cometem crime é prisão. E isso não é culpa deles'.”

58 Disponível em <https://www.theguardian.com/world/2016/feb/25/indigenous-australians-and-canadians-destroyed-by-same-colonialism> Acessado aos 12.09.2017. Tradução livre.

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03- OS ATAQUES AO POVO AKROÁ GAMELLA EM 2017 – MARANHÃO

Um dos casos mais graves de violências contra os povos indígenas em 2017,

ocorreu em 30 de abril de 2017, quando cerca de 250 pessoas à etnia Akroá Gamella,

foram brutalmente atacados por fazendeiros locais. 59 O caso mostra a total

inoperância do Estado diante de uma tentativa de genocídio premeditada por parte de

fazendeiros, políticos e de grupos evangélicos. A organização desse ataque já era

denunciada pelo povo indígena com mais de três anos de antecedência, sem que o

estado adotasse medidas em nenhum grau para proteger os indígenas.

Em meados de 2013, a etnia, considerada extinta, Akroá-Gamella, insurgiu e

passou a empreender retomadas de terras. Desde o final de 2014, os indígenas deste

povo já estavam se reunindo com órgãos brasileiros, como FUNAI e governo do

Estado do Maranhão, para requerer a demarcação da terra, denunciar a invasão do

seu território tradicional por fazendeiros e pedir providências quanto às ameaças que

estavam sofrendo. Em dezembro de 2015, em visita ao território, o Secretário de

Estado de Direitos Humanos do Maranhão testemunhou a ameaça contra os Gamella

por parte de um dos fazendeiros. Em fevereiro de 2016, em reunião com a cúpula da

Secretaria de Estado do Maranhão, foram entregues áudios e vídeos das ameaças,

tiros disparados contra aldeias e declarações de incitação à violência por parte de

fazendeiros, inclusive com imagens e sérios indícios de que a polícia local estava

atuando como milícia armada, juntamente com outros pistoleiros contratados.

Episódios de invasão às aldeias gamella por homens armados e de disparo

de tiros contra os indígenas tornavam-se corriqueiros e foram amplamente

denunciados. Em dezembro de 2015, já havia ocorrido um ataque envolvendo

disparos de arma de fogo contra os Gamella.60 Em agosto de 2016, três homens

armados, afirmando serem policiais, invadiram uma área de retomada Gamella e, em

outra ocasião, homens armados, em duas motos, dispararam contra os indígenas. 61

O povo denunciava ao Estado brasileiro que os fazendeiros estavam organizando um

grande massacre indígena. Contudo, o Estado não investigou de maneira apropriada

nenhum desses incidentes anteriores de violência, o que contribuiu para a

perpetuação do quadro de tensões.

Dois dias antes do mais violento ataque, em 30 de abril de 2017, as

lideranças do povo indígena Gamella souberam que fazendeiros, políticos, pistoleiros

da região e de regiões adjacentes estavam fazendo reuniões de premeditação de um

massacre contra eles. Os fazendeiros e políticos anunciavam que estavam se

articulando para retirar os indígenas à força do território e convocavam publicamente

59 Confira: “Foi um linchamento e a intenção era nos matar”. http://amazoniareal.com.br/foi-um-linchamento-e-intencao-era-nos-matar-diz-indio-gamela-atacado-no-maranhao/ 60 Confira: Indígenas Gamela sofrem ataque a tiros em retomada. http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&action=read&id=8510 61 Confira: Homens armados invadem retomada em carro de empresa de segurança, atiram e ameaçam indígenas Gamelahttp://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&action=read&id=8893

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os moradores locais a ajuda-los. O apoio à articulação do ataque aos Akroá Gamella

era designado como “reunião da paz”, a qual era anunciada como evento por carros

de som, redes sociais, cultos em algumas igrejas evangélicas e rádio. Junto com as

articulações para “a reunião”, eram proferidos discursos públicos de incitação ao

racismo e à prática de violência contra os indígenas. Em um programa na estação

local de rádio houve a participação de grupos evangélicos, fazendeiros e do deputado

federal Aloísio Mendes. Preocupados, as lideranças do povo Gamella voltaram a pedir

o socorro do Estado. Em 28.04.2017, lideranças gamella foram à Brasília pedir

providência às instituições do governo federal e Judiciário. Também denunciaram o

risco ao governo do estado do Maranhão e à polícia local, mas nenhuma providência

foi tomada por parte do Estado para proteger suas aldeias.

Na data do massacre e no local da “reunião da paz”, em 30.04, instala-se um

palanque ocupado por fazendeiros e políticos, acompanhado por homens armados.

Nos discursos, solicitava-se às pessoas da cidade que não aceitassem a existência

de índios gamella, pois essa seria uma “provocação” feita por “pessoas que tentam se

passar por índios”. Minutos antes do ataque, o deputado federal Aluísio Mendes

anunciou: “ [...] gente ordeira e gente que trabalha há mais de 90 anos e nunca viu um

índio aqui. Agora, ninguém tem sangue de barata. Ninguém vai aceitar mais essa

provocação”.

Informado de que o ataque realmente ocorreria, e diante da inoperância do

Estado, o povo indígena Gamella tentou desviar o foco e resguardar suas aldeias

mais antigas e populosas, incluindo mulheres grávidas, crianças e idosos. Para isso,

uma parte do povo indígena deslocou-se de uma das primeiras aldeias retomadas e

seguiu para fazer nova retomada de outra área do seu território tradicional – a qual

estava invadida e de onde os Gamella já tinham sido esbulhados e expulsos. Diante

da aproximação e do cerco por aproximadamente, 250 pessoas que portavam armas,

facões, paus e pedras, os indígenas, por prudência, tentaram se retirar desta

retomada, mas foram impedidos. Pessoas enfileiraram-se no entorno da estrada

enquanto executavam a tentativa de linchamento contra os indígenas. No ataque, 22

(vinte e dois indígenas) foram brutalmente feridos. Dois indígenas levaram tiros e

outros dois, além dos tiros, tiveram membros decepados: um teve as mãos cortadas a

golpes de facão, na altura do punho; outro, além das mãos, teve os joelhos cortados.

Não bastasse isso, os participantes do ataque impediram a passagem do povo Akroá

Gamella para receber socorro. Mesmo sangrando muito e mutilados, os indígenas

tiveram que se esconder na mata.

Segundo os indígenas, a Polícia Militar teria estado presente durante o

ataque, mas não teria tomado nenhuma ação para impedir a violência. Nas palavras

do bispo do município, dom Sebastião Lima Duarte: “A polícia desarmou os indígenas

e em seguida permitiu o ataque dos fazendeiros e jagunços”.62

62 Confira: http://outraspalavras.net/maurolopes/2017/05/01/cnbb-denuncia-pm-desarmou-indigenas-gamela-e-em-seguidapermitiu-ataque-dos-fazendeiros-e-jaguncos/

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Segundo informações coletadas por uma das organizações que apresenta

esta solicitação de audiência, a polícia teria afirmado que sua intervenção “seria

impossível devido ao seu baixo efetivo de policiais”, em contraste com o grande

número de pessoas envolvidas no ataque. Considerando que as autoridades sabiam

da situação de tensão e que as chamadas públicas convocando para a retirada

forçada dos indígenas deixavam clara a intenção dos fazendeiros, não parece

razoável que o Estado possa alegar que não havia contingente suficiente, já que teria

tido tempo suficiente para organizar a proteção da comunidade Gamella.

Após o massacre, três indígenas foram internados na capital São Luís, dois

em estado grave, com cortes profundos nas mãos e joelhos.63 Em ambos os casos de

mutilação foi possível reconstruir os membros, porém há indícios de que ambos os

indígenas perderão os movimentos de uma das mãos. Os indígenas feridos ainda são

alvos dos fazendeiros e políticos e se encontram ainda mais ameaçados. Embora já

tenham voltado à convivência com suas famílias, após 5 meses de internação médica,

eles ainda necessitam de assistência e acompanhamento permanente à saúde, o qual

ainda não foi garantido pelo Estado. Padecem com a falta de atendimento médico

público e/ou com o atendimento precário à saúde, com a falta de medicações, com o

trauma psicológico e com a falta de assistência social para as suas famílias.

Além do fato de o ataque ter sido anunciado, premeditado e incitado

publicamente, causa espanto e repúdio o formato da violência, principalmente diante

das mutilações, armas usadas e tipo de golpes.

O delegado que atendeu a ocorrência teria duvidado tratar-se de uma etnia

indígena. O próprio Ministério da Justiça64 apresentou uma versão ambígua dos fatos

em sua nota de imprensa, trocando a expressão “ocorrido envolvendo pequenos

agricultores e supostos indígenas” por “conflito agrário”, em uma segunda versão da

nota.

Segundo informações obtidas por uma das organizações solicitantes junto

aos indígenas Gamella, em recente oitiva dos indígenas perante a autoridade policial

federal, houve resistência para o registro de depoimentos que mencionavam

expressamente as pessoas envolvidas no massacre. Em sua maioria, as questões da

investigação apresentadas pelo delegado federal visavam averiguar “se os Gamella

eram ou não índios” (sic) e poucos quesitos diziam respeito ao massacre e sua

premeditação, numa tentativa de se criminalizar as vítimas.

Após o massacre do dia 30, o governo do estado ofertou recursos para

ajudar na regularização da demarcação territorial. O Estado anunciou publicamente o

interesse em contribuir com o custeio dos estudos necessários à regularização

fundiária do território tradicional Gamella e, para tanto, declarou oficialmente que tem

interesse em celebrar um Termo de Cooperação com a União (FUNAI). No entanto,

63 Confira: http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/ataque-a-tiros-e-facadas-fere-cerca-de-uma-dezena-de-indigenasgamela-e-deixa-tres-baleados-no-maranhao/ 64 Confira: Ataque a tiros e facadas fere cerca de uma dezena de indígenas Gamela e deixa três baleados; não há confirmação de mortes http://cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=9249&action=read

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mesmo contanto com os recursos financeiros já disponibilizados pelo governo do

Estado, a FUNAI vem procrastinando as providências para a formalização da parceria

e, consequentemente, para a execução da demarcação da terra indígena. Vale frisar:

não se trata de uma questão de ausência de recurso, pois este já está garantido, mas

de uma negativa injustificada para se viabilizar a demarcação territorial e se declarar

direitos ao povo indígena Gamella. Sobre essa questão, tramita uma ação civil pública

demarcatória65 na FUNAI deveria ter cumprido o prazo de apresentação dos custos

para a criação do GT para a demarcação. Porém, mesmo com o compromisso

assumido em audiência, há meses vem ignorando e tentando prorrogar os prazos.

Enquanto isso, a FUNAI não responde às petições e aos pleitos administrativos

apresentados pelo povo Gamella e nega apoio às políticas públicas específicas ao

povo.

Enquanto isso, os riscos contra o povo Gamella se acentuam e há indícios da

organização de um novo ataque contra a etnia. Os indígenas relataram que as

comunidades Gamella têm sido alvo de disparos de arma de fogo como forma de

pressão. Em frente às aldeias, à noite, motoqueiros passam gritando ameaças e

pessoas estranhas tentam invadir o território. Mesmo denunciadas as ameaças, há

um desprezo de atendimento por parte do estado que não as considera grave por não

terem mortos e feridos.

O povo possui várias peculiaridades que acentuam sua insegurança e

vulnerabilidade: a geográfica, pelo fato de as aldeias serem entrecortadas por várias

estradas e vias de acesso, a insegurança pela atuação da polícia local, a instigação

publica ao racismo e à prática da violência contra os indígenas e hostilidade

generalizada em locais públicos da cidade. Os indígenas dizem que não podem nem

dormir por pânico de serem atacados na madrugada, a qualquer momento, por

pessoas que passam alcoolizadas das festas locais.

Há denúncias recentes de que, em um dos povoados da cidade, os mesmos

fazendeiros e políticos – que já deveriam ter sido, no mínimo indiciadas pela

participação no massacre do dia 30.04 –estão se articulando para nova tentativa de

genocídio, desta vez com a contratação de pistoleiros dos municípios locais e com um

treinamento armado de outras pessoas da cidade para atacarem o povo indígena

Akroá Gamella. Não bastasse isso, o “ódio em relação aos índios” continua sendo

propagado na cidade, inclusive por meio do referido programa de rádio. Na escola

local, as crianças do povo Gamella são ameaçadas por outras crianças da cidade:

“Você é índio? Papai disse que vai matar vocês tudinho”. Essa estrutura de

insegurança é reforçada pela ausência de políticas públicas específicas. As ameaças

e a incitação pública à violência são tão fortes que não há sequer local ou condições

seguras para se registrar as ocorrências ou para o atendimento local à saúde dos

gamella.

65 Ação Civil Pública, autos nº 33975-44.2016.4.01.3700, em trâmite na 13ª Vara da Justiça Federal de São Luís.

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No Maranhão, o Conselho Deliberativo do Programa de Proteção à Vítimas e

Testemunhas Ameaçadas do Estado do Maranhão – Provita/MA, 66 apesar de ter

deliberado pela adoção de medidas que garantam a segurança e assistência ao povo

indígena Akroá-Gamella, ainda não deu cumprimento integral e execução a nenhuma

das medidas. Ressalte-se que o CONDEL exara decisões administrativas, sendo um

colegiado com poder deliberativo, vinculando o Estado às obrigações assumidas. O

ingresso do povo Gamella ao programa ocorreu, em 05.julho.207, em reunião

extraordinária deste conselho. No entanto, o Estado brasileiro, principalmente as

polícias estadual e federal, alegam não terem recursos humanos e financeiros para

dar segurança aos Gamella e insistem em apresentar um plano de segurança a ser

executado pela polícia militar local, equipe contra a qual pairam receios e suspeitas

fundamentadas.

Houve uma articulação forte do povo e de organizações para que a

investigação fosse feita pela Polícia Federal, o que aconteceu somente no começo

deste mês de julho. Até o momento, foram ouvidos alguns dos indígenas presentes no

local durante o ataque, mas ainda não terminaram as oitivas nem mesmo dos que

foram gravemente feridos.

66 Órgão de deliberação colegiado, de caráter permanente, autônomo, não jurisdicional, deliberação sobre ingresso ou exclusão de pessoas no Programa

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04- A SITUAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS EM ISOLAMENTO VOLUNTÁRIO OU DE RECENTE

CONTATO.

No Brasil, existem atualmente 113 referências sobre povos em isolamento,

das quais por volta de 26 já foram confirmadas pela FUNAI, sendo a grande maioria encontrada na Amazônia. Os povos isolados ou de recente contato podem ser encontrados em distintas situações: habitando áreas desprotegidas, terras indígenas exclusivas, terras indígenas compartilhadas por povos contatados, unidades de conservação (parques nacionais, estaduais, reservas biológicas).

Quanto à população, não há uma estimativa segura diante da enorme

quantidade de povos e realidades onde estão inseridos: no estado do Acre existe um povo em isolamento no rio Humaitá cuja população está estimada em 250 pessoas. Há outras realidades onde os povos em isolamento ou contato inicial são reduzidos a um pequeno grupo de indivíduos ou então a um único indivíduo, como é o caso do chamado “índio do buraco”, único remanescente do massacre do seu povo e que habita buracos como forma de se defender do mundo exterior.

O início do ano de 2016 foi marcado por um acontecimento emblemático que revela toda a complexidade que envolve a questão dos povos indígenas em situação de isolamento. O povo indígena Matis, que começou uma relação mais sistemática com a sociedade brasileira na década de 1970, ocupou a sede da Funai em Atalaia

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do Norte/AM, revoltado com o tratamento recebido pela agência estatal e reivindicando participação nas decisões em relação ao povo Kurubo isolado com o qual entrara em conflito violento no final de 2014, com mortes em ambos os lados. A Funai inexplicavelmente havia entrado em atrito com o povo Matis rompendo o diálogo, único caminho possível para encontrar uma solução para o conflito entre os dois povos indígenas. A mobilização do povo Matis forçou a ida do Presidente da Funai a Atalaia do Norte, para criar um ambiente para o entendimento. O acontecimento levantou questionamentos sobre a postura autossuficiente do órgão indigenista, especificamente da CGIIRC (Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato) na gestão da política de proteção dos povos isolados, que no caso se revelou completamente ineficiente.

No Acre, o movimento de aproximação de um grupo de isolados da aldeia Simpatia, do povo Ashaninka, no rio Xinane, 2014, em busca de proteção, fugindo de madeireiros e narcotraficantes da fronteira Peru – Brasil, levou a Funai a estabelecer uma relação permanente com esses grupo. Sem uma estrutura apropriada e, sem suficientes recursos humanos, existe o risco da reprodução de antigas práticas geradoras de dependência e dominação.67

No alto rio Iaco/AC, perto da fronteira com o Peru, região de presença de povos indígenas isolados, os Jaminawa e Manchineri através da “Declaração da Terra Indígena Mamoadate”, de 26 de setembro de 2016, manifestaram grande preocupação com o projeto de construção de um ramal madeireiro entre a cidade de Assis Brasil e a região do alto Iaco e com o projeto no lado peruano de uma estrada de Puerto Esperanza e Iñapari, que irão favorecer o escoamento ilegal da madeira, o narcotráfico, a caça e pesca ilegais e os garimpos de ouro nessa região fronteiriça. “A estrada atravessará áreas naturais protegidas e territórios indígenas garantidos por leis, em uma das regiões de floresta mais conservada do mundo, impactando o Parque Nacional Alto Purús, a Reserva Comunal Purús e a Comunidade Nativa Bélgica, no Peru; além da Terra Indígena Cabeceira do Rio Acre (e a TI Mamoadate), a Estação Ecológica do Rio Acre e o Parque Estadual Chandless, no Brasil. Os diversos grupos de índios isolados, entre eles os Mashco-Piro que vivem das atividades de caça e coleta entre os territórios peruano e brasileiro, também serão afetados de forma grave e irreversível”.68

Muitos povos indígenas isolados vivem em terras indígenas demarcadas, habitadas também por outros povos indígenas, mas nem por isso estão livres da ameaça de invasores. Na terra indígena Yanomami durante um sobrevoo realizado em setembro de 2016 a Funai confirmou a existência de diversas pistas de pouso clandestinas, acampamentos e balsas para extração de ouro que atestam a presença garimpeira numa região onde se localiza um grupo indígena isolado. Apesar de operações de combate ao garimpo ilegal com a participação da Funai, Ibama e Polícia Federal a presença garimpeira se mantem na região.

A situação é parecida em Rondônia onde a invasão garimpeira ameaça a vida dos indígena isolados na região da Serra da Cutia, dentro da terra indígena Uru Eu Eau Wau.

67 Confira: Uma onda de tribos isoladas da Amazônia sai em busca de socorro https://brasil.elpais.com/brasil/2015/06/04/ciencia/1433440315_187131.html 68 DECLARAÇÃO DA TERRA INDÍGENA MAMOADATE. Confira em: http://www.aidesep.org.pe/wp-content/uploads/2016/12/Declara%C3%A7%C3%A3o-Mamoadate-2.pdf

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A invasão de terras indígenas demarcadas com presença de indígenas isolados também continua no Maranhão, onde persiste ação ilegal das madeireiras, colocando permanentemente em risco os Awá. A situação se tornou ainda mais dramática para os Awá isolados da TI Arariboia com os incêndios possivelmente criminosos provocados por madeireiros, que queimaram enormes extensões de mata nativa nos anos 2015 e 2016 (o fogo destruiu 50% das matas do território indígena em 2015 e 20% em 2016). Em agosto de 2016, três indígenas isolados do povo Awá Guajá foram vistos fugindo durante o combate ao incêndio florestal. Os incêndios diminuem drasticamente as fontes de alimentos utilizadas por estes indígenas.

Da mesma forma o grupo indígena isolado, localizado na chamada Mata do Mamão, na terra indígena demarcada da Ilha do Bananal/TO, continua ameaçado pelas invasões de pescadores e caçadores, sobretudo no período da seca e por projetos de construção de estradas.

A situação de vulnerabilidade e de risco ainda é muito maior para os aproximadamente 40 povos isolados que se encontram fora de terras indígenas demarcadas ou com Portaria de restrição de uso, sem a presença das frentes de proteção etnoambiental da Funai, ameaçados pelo avanço do desmatamento (aumento de 30% entre agosto de 2015 e julho de 2016, período em que foram derrubados quase 8 mil quilômetros quadrados de florestas, de acordo com os dados oficiais) e exploração madeireira, sobretudo nas regiões de Rondônia, norte de Mato Grosso, e no sul dos estados do Pará e Amazonas; pelos garimpos ilegais nas regiões dos rios Abacaxis/AM, Tapajós/PA, Sucunduri/AM/MT; pelo narcotráfico nas regiões fronteiriças do Acre e Rondônia; e por projetos de hidrelétricas nos rios Xingu, Tapajós e afluentes e Madeira; e pela construção de estradas em Rondônia, Amazonas e na fronteira do Acre com o Peru.

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Mesmo com a repercussão da violação dos direitos dos povos indígenas isolados em importantes espaços internacionais como a OEA/CIDH e a ONU/ACNUDH, sua existência continua sendo ignorada pelas políticas macroeconômicas direcionadas para a superexploração das riquezas naturais, pensadas fora da Amazônia, para atender os interesses do mercado externo.

Tanto o CIMI quanto a Funai constatam que o número de referências sobre a existência dos povos isolados vem aumentando. O CIMI em 2011 publicou uma relação de 90 referências. Hoje esta lista já saltou para 113 referências. É evidente que esses dados remetem a novas demandas de investigação sobre a existência desses povos, sobre a abrangência do uso que fazem de seus territórios, sobre o contexto de ameaça em que estão vivendo e, sobretudo, de ações preventivas de proteção por parte do Estado. No entanto, a ação do governo Temer, ao cortar recursos, vai no sentido oposto, ao fragilizar ainda mais a já insuficiente estrutura da Funai para assegurar a vida e o futuro dos povos indígenas isolados através da Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC) com suas Frentes de Proteção Etnoambiental.

O cenário de crescimento do desmatamento, de avanço do agronegócio, da exploração madeireira, mineral e petrolífera e dos megaprojetos de infraestrutura, da desconstrução dos direitos indígenas e do aumento das invasões dos territórios dos povos isolados, aponta para o extermínio destes povos e traz grandes incertezas sobre o futuro da Amazônia.

Em 2017, o quadro se acirra com o crescente número de avistamentos de indígenas em isolamento, como por exemplo o ocorrido na Ilha do Bananal, onde foram vistos fugindo de um incêndio florestal.

4.1- O massacre no rio Jandiatuba, região da Terra Indígena Vale do Javari:

O Presidente da Funai Franklinberg Ribeiro de Freitas passou no dia 27 de

outubro por Manaus e em reunião com parlamentares na Assembleia Legislativa do Amazonas foi inquirido sobre o andamento das investigações sobre o possível massacre, com características de genocídio, de indígenas isolados ocorrido no mês de agosto, no rio Jandiatuba, no interior da terra indígena do Vale do Javari. Suas explicações, sobre um sobrevoo realizado pela Funai com apoio da Polícia Federal e do Exército onde os indígenas isolados teriam sido avistados numa aldeia em clima de normalidade, sem dar outros detalhes da investigação, trazem enormes preocupações e interrogações sobre o futuro dos povos indígenas isolados no vale do Javari.

Tudo indica que o Presidente da Funai estava se referindo a um sobrevoo realizado no alto rio Jutai onde existem informações sobre um massacre que teria ocorrido em 2014. Transcorridos 3 anos, não é de estranhar que num sobrevoo se constatasse aparente normalidade na aldeia dos indígenas isolados dessa região.

É impensável que as investigações no rio Jandiatuba sobre o massacre de agosto/2017 se limitem a sobrevoos e que até esse momento nenhuma investigação tenha sido feita pelo rio e por terra, sobretudo quando se sabe que a operação de combate ao garimpo ilegal, no final do mês agosto, só se deu no baixo curso deste

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rio, distante da área habitada pelos indígenas isolados da terra indígena do Vale do Javari. “A gente conseguiu chegar em cinco dragas, saindo do Solimões. Fechamos a foz do Jandiatuba com embarcação do Exército, ninguém entrava e ninguém saia. E fomos subindo. Andamos dois dias de viagens. O rio Jandiatuba tem muita curva, não conseguimos chegar nas outras dragas, que estavam muito para dentro do rio”, disse Loss, que também é chefe da Divisão Técnica da Superintendência do Ibama no Amazonas.69

Esta operação identificou 16 dragas de extração de ouro no rio Jandiatuba. Significa que 09 não foram alcançadas, justamente aquelas que se localizam no alto Jandiatuba, nas proximidades da ocorrência de povos indígenas isolados. Por isso permanecem todas as condições para que novos massacres possam ocorrer.

Já passou da hora das autoridades virem a público explicar o que efetivamente está sendo feito para apurar a denúncia sobre o massacre do mês de agosto e que medidas de proteção aos povos indígenas isolados do Vale do Javari estão sendo tomadas, particularmente no rio Jandiatuba e no rio Jutaí que são as vias de acesso para a região onde existe o maior número destes povos.

4.2- O marco jurídico e os povos indígenas isolados

“Esses grupos indígenas, classificados como isolados, [...] Seu modo de ser só se explica pela contingência de uma vida de fugas, correrias e lutas que lhes foi imposta e que afetou profundamente sua forma de vida e o funcionamento de suas

instituições.” (DARCY RIBEIRO, 1996, p. 268).

A Constituição Federal de 1988 inaugurou um novo tempo de direitos para os povos indígenas brasileiros, com um capítulo especial que se traduz nos artigos 231 e 232. Passa-se, então, ao reconhecimento dos direitos consuetudinários dos povos tradicionais, especialmente da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e dos direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas, competindo à União promover as demarcações, proteger e fazer respeitas todos os bens indígenas. No mesmo artigo 231 foi reconhecido o usufruto exclusivo aos povos sobre as terras tradicionais, determinando que estas terras são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas imprescritíveis. Na sequência, foi reconhecida a nulidade e extinção, não produzindo efeitos jurídicos, dos atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras indígenas.

No atual arcabouço constitucional estão protegidos, da mesma forma, todo o modo de vida, cultura e os territórios tradicionais dos povos isolados e suas especificidades.

Complementarmente, no ordenamento jurídico interno, o art. 7º do Decreto 1.775, de 8 de janeiro de 1996, prevê o poder de polícia para o órgão indigenista “disciplinar o ingresso e trânsito de terceiros em áreas em que se constate a presença de índios isolados”. Já o Decreto nº 9.010, de 23 de março de 2017, assegura que a FUNAI deve garantir aos povos indígenas isolados “o exercício de sua liberdade”.

69 Disponível em: http://amazoniareal.com.br/operacao-destroi-garimpo-de-ouro-em-terras-indigenas-no-rio-jandiatuba-no-amazonas/.

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Somado ao sistema jurídico interno de proteção aos povos indígenas, o Brasil promulgou a Convenção 169 da OIT, através do Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004. A Convenção 169, no art. 2º, ‘b’, prevê que os governos deverão promover “a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais desses povos, respeitando a sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, e as suas instituições”.

Entretanto, o Brasil não chegou a concluir o sistema jurídico de proteção às populações indígenas, nos termos da Carta Política de 1988, a exemplo da inexistência de atualização do Estatuto do Índio, Lei 6.001/73, em parte revogada pela Constituição Federal. Para além da omissão em reajustar a velha legislação infraconstitucional indígena, as forças políticas, ao contrário, já começaram uma ofensiva para desconstituir as conquistas da Constituição de 1988.

Nesse sentido, no ano de 1996 o Senador Romero Jucá (PFL/RR) apresentou o PL 1610, que “Dispõe sobre a exploração e o aproveitamento de recursos minerais em terras indígenas” e, no ano 2000 o deputado Almir Sá (PPB/RR) apresentou a PEC 215, para “incluir dentre as competências exclusivas do Congresso Nacional a aprovação de demarcação de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e a ratificação as demarcações já homologadas”.

Convém ressaltar que, atualmente, tramitam no Congresso Nacional brasileiro, quase uma centena de iniciativas ou projetos de leis 70 visando modificar e restringir os direitos constitucionais dos povos indígenas, conquistados depois de quase 5 séculos de resistência, exploração, escravidão e mortes sofridas, dentre as quais a PEC 215/00 e o PL 1610/96, estes em estágio avançado. Tais proposições tramitam sem nenhum processo de consulta aos povos indígenas.

É sabido ainda que no campo da mineração o conflito tem se intensificado em áreas de índios isolados. A exemplo dessa realidade de conflito entre garimpeiros e indígenas, há recentes notícias de chacina de povos em situação de isolamento, o que se encontra ainda em estado de investigação mais detalhada71.

70 Confira: ANEXO 06 - Proposições legislativas brasileiras Antindigena. Cimi 2017. 71 http://www.huffpostbrasil.com/2017/09/13/garimpeiros-gravaram-audios-se-gabando-das-mortes-diz-ong-sobre-denuncia-massacre-de-indios-isolados_a_23206468/.

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Segundo informações da FUNAI, atualmente, no Brasil existem cerca de 113 registros da presença de índios isolados em toda a Amazônia Legal. Na fronteira do Brasil com o Peru, o Vale do Javari abriga sete povos contatados e cerca de sete grupos de índios isolados, uma das maiores concentrações de povos isolados no Brasil.

Historicamente, a Região Amazônica é marcada pela presença de grandes empresas, grupos econômicos e empreendimentos, caracterizando um cenário de desrespeito a direitos e garantias, como o meio ambiente ecologicamente equilibrado, a proteção do território e dos modos de criar, fazer e viver de povos originários.

A Terra Indígena Yanomami, localizada entre os estados do Amazonas e Roraima, é sistematicamente invadida por garimpeiros. Tida como o “el dorado”, chegou a ter 40.000 garimpeiros ilegais na década de 1980. Vinte por cento dos Yanomami morreram em apenas sete anos. Um estudo recente conduzido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) mostra que a contínua invasão ilegal de garimpeiros em seu território tem trazido graves consequências: algumas aldeias chegam a ter 92% das pessoas examinadas contaminadas por mercúrio72.

A situação mostra a omissão do Estado não só frente à proteção da integridade física e cultural dos povos indígenas em isolamento autônomo como a ausência de proteção e fiscalização dos territórios indígenas no país, principalmente na região amazônica onde a expansão das fronteiras agrícolas e a exploração dos recursos naturais está invadindo terras indígenas e unidades de conservação.

Um levantamento do CIMI em nível nacional constatou que das 1.296 terras reivindicadas por povos indígenas no Brasil, apenas 401 terras, o que representa 30,9%

72 https://portal.fiocruz.br/pt-br/content/pesquisa-da-fiocruz-revela-alto-indice-de-contaminacao-por-mercurio-em-reserva-yanomami

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do total, tinham seus processos administrativos finalizados, ou seja, já foram registradas pela União. Um resumo da situação geral das terras indígenas no Brasil pode ser verificado no quadro abaixo.

Os dados apresentados neste relatório, atualizados em 19 de setembro de 2017, apontam a preocupante existência de 836 terras indígenas, o que corresponde a 64,5% do total, com alguma providência a ser tomada pelo Estado brasileiro. Ou seja, com exceção das terras registradas, das reservadas e das dominiais, 836 terras apresentam pendências administrativas para terem seus procedimentos demarcatórios finalizados.

Destas 836, um total de 530 terras, o equivalente a 63,3%, não teve quaisquer providências administrativas tomadas pelos órgãos do Estado brasileiro. Apenas no estado do Amazonas 199 terras estão nesta situação. Em seguida, vem o Mato Grosso do Sul (74), Rio Grande do Sul (37), Pará (29) e Rondônia (24). A tabela na página 46 apresenta as 836 terras indígenas com pendências administrativas, divididas por estado e de acordo com a situação de cada uma delas no procedimento demarcatório.73

O Poder Executivo também tem sofrido com a crescente pressão conservadora no Congresso Nacional e as demarcações de terras indígenas foram sendo paralisadas gradativamente. No atual contexto político brasileiro, no dia 20 de julho de 2017, foi publicado no Diário Oficial da União o Parecer nº 001/2017/GAB/CGU/AGU que obriga a Administração Pública Federal a aplicar as 19 condicionantes estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da Petição n. 3.388/RR, que tratou da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol. Além disso, o Parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) visa institucionalizar a tese do “marco temporal”, segundo a qual os povos indígenas somente teriam o direito às terras em que estavam ocupando na data de 05 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição Federal.

O parecer da AGU tem como significado a expressão das forças políticas conservadoras que ascenderam exponencialmente no Brasil, pois expressa justamente a defesa das teses ligadas ao agronegócio e grupos ruralistas com forte presença no Congresso Nacional. Estas forças conservadoras chegaram a criar duas CPIs na Câmara dos Deputados (CPI DA FUNAI/INCRA), visando justamente atacar as políticas públicas voltadas para as populações indígenas e beneficiários de políticas de reforma agrária. Neste contexto, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), órgão oficial do governo brasileiro responsável pelas políticas voltadas aos povos indígenas, especialmente nos processos demarcatórios de terras, foi sendo enfraquecida através da redução exponencial do orçamento, da falta de profissionais concursados e atualmente está sendo loteada para partidos políticos da base do atual governo.

O parecer da AGU também viola a autonomia técnica dos agentes públicos que participam do processo de demarcação de terra indígenas, inclusive dos membros da Advocacia-Geral da União, configurando ato administrativo viciado por excesso de poder, além de afrontar diretamente a Constituição Federal de 1988.

O Parecer também cria imbróglio na política indigenista relacionado aos povos isolados, pois defende que o Instituto Chico Mendes de Conversação da

73 Confira: Relatório de Violência contra os Povos Indígenas no Brasil, Dados 2016. Cimi. http://www.cimi.org.br/pub/Relatorio2016/relatorio2016.pdf

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Biodiversidade (ICMBio) responde pela administração de áreas das unidades de conservação também afetadas pelas terras indígenas. Considerando que nas áreas de conservação residem inúmeros povos isolados e o Instituto Chico Mendes não tem especialidade com estes povos, o Parecer cria um conflito entre órgãos governamentais de forma desarrazoada e sem justificativa plausível. Neste aspecto, indispensável dizer que os povos indígenas, por tradição e consciência, preservam suas terras tradicionais.

Cumpre observar que no julgamento sobre a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol (Petição 3.388/RR), ocorrido no ano de 2009, estava em debate a validade do processo administrativo demarcatório e se a demarcação deveria ser realizada em ilhas ou de forma contínua. Na decisão, os Ministros da Suprema Corte asseguraram a legalidade do processo demarcatório do Poder Executivo, a demarcação contínua de todo o território tradicional e a demarcação das terras indígenas como capítulo avançado do constitucionalismo fraternal. Porém, no julgado, estabeleceram 19 condicionantes para a execução daquela decisão e inseriram a discussão sobre a tese do marco temporal.

No ano de 2013, o STF voltou a debater o julgado, nos Embargos de Declaração apostos pelas partes, entre os quais o recurso do Ministério Público Federal (MPF) que questionava as condicionantes e o debate sobre a tese do marco temporal, que não eram objetos do processo. No julgamento dos Embargos, os Ministros reafirmaram que as “chamadas condições ou condicionantes foram consideradas pressupostos para o reconhecimento da validade da demarcação efetuada” e que a “decisão proferida em ação popular é desprovida de força vinculante”.

Em linhas gerais, a decisão do STF continuou gerando controvérsias e dezenas de processos administrativos foram suspensos pelo Poder Judiciário, em todas as instâncias. No ano de 2014, por exemplo, a 2ª Turma do STF anulou o processo administrativo de demarcação da terra indígena Guyraroká, do povo Guarani Kaiowá (Mandado de Segurança nº 29.087) e a demarcação da terra indígena Limão Verde, do povo Terena (ARE 803462). Em ambos os processos, as Comunidades indígenas não foram chamadas para fazer parte da disputa e nem consultadas. E quando peticionaram questionando os julgados, tiveram seus pedidos de integrar a lide negados, com base em argumentos da tutela indígena, superados no ordenamento jurídico atual. O primeiro processo transitou em julgado e o segundo ainda aguarda apreciação de recurso do MPF. Nestes casos, assim como em quase todos os processos judiciais que tramitam no Brasil, os povos não tiveram e não têm tido o acesso à Justiça.

Ainda no âmbito do Poder Judiciário, o debate sobre os direitos indígenas foi retomado no dia 16 de agosto de 2017, quando foram julgadas as Ações Civis Originárias – ACO 366 e ACO 362, de relatoria do Ministro Marco Aurélio Mello e que diziam respeito a pretensão do Estado de Mato Grosso de receber indenização correspondente ao valor de terras que alegava serem devolutas, às quais, atualmente, integram as Terras Indígenas do Parque do Xingu, Nambikwara, Paresi, Utiariti, Tirecatinga e Enawenê-Nawê. Nestes julgados, os Ministros do STF asseguraram a validade dos processos demarcatórios, negando a pretensão do Estado de Mato Grosso. Desta vez, não foram estabelecidas condições e limitações aos direitos dos povos indígenas, o que pode ser considerado um sinal de esperança.

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Importante destacar que um terceiro processo, a ACO de nº 469, de autoria da FUNAI, envolvendo a demarcação da terra Indígena Ventarra, contra o Estado do Rio Grande do Sul, foi retirada de pauta às vésperas do julgamento.

Segundo consta da inicial da ação movida pela FUNAI, a expropriação das terras indígenas de Ventarra, praticadas pelo Estado do Rio Grande do Sul, vale dizer, teve início em passado recente, no limiar da década de 1960, conforme se constata na farta documentação que instrui a ACO nº 469.

Entendia o Estado do Rio Grande do Sul, na época, que as terras ocupadas pelos indígenas eram devolutas, e, portanto, poderia fazer concessões dessas terras a particulares. Conforme documentos dos autos, a expulsão dos índios do referido 'Toldo Ventarra’ se deu de forma violenta, através de Portarias emitidas pelo Sr. Governador do Rio Grande do Sul.

Neste processo, estava em discussão o debate sobre a tese do marco temporal. Ocorre que, às vésperas do julgamento, o Estado do Rio Grande do Sul peticionou para retirar de pauta o processo, alegando perda de objeto e assim o debate sobre a tese do marco temporal deve continuar no âmbito do Poder Judiciário.

Registre-se que ainda tramitam no Supremo Tribunal Federal mais de 50 processos envolvendo disputa sobre terras indígenas, em sua maioria, questionando trabalhos científicos elaborados pela FUNAI, os quais demoraram décadas para serem concluídos. Enquanto isso, nas diferentes instâncias do Poder Judiciário brasileiro, prevalecem decisões, especialmente liminares, suspendendo demarcações promovidas pela FUNAI, enquanto os povos aguardam uma definição.

Frisa-se que os retrocessos nos três Poderes da República do Brasil afetam diretamente os povos isolados, especialmente quanto aos retrocessos do Poder Executivo. Os cortes acelerados do orçamento destinados a FUNAI e a falta de profissionais disponíveis no órgão têm resultado em invasões sequenciais dos territórios indígenas em todas as regiões do Brasil, inclusive em áreas já demarcadas e de indígenas isolados. Mas, neste aspecto, os reflexos negativos sobre os povos isolados são maiores, na medida em que a falta de recursos e pessoal impossibilita a fiscalização de áreas ainda preservadas, especialmente aquelas situadas na região amazônica. Deste modo, constata-se um avanço acelerado dos madeireiros e grileiros sobre as terras indígenas e também nos locais onde vivem os povos isolados.

À luz das informações contidas sobre os avanços e retrocessos para a proteção dos direitos indígenas, incluindo os povos isolados, pode-se concluir que o Brasil teve avanços significativos e sua expressão máxima está contida na promulgação da Constituição de 1988 e na internalização da Convenção 169 da OIT. No entanto, a pressão de setores ligados ao agronegócio, associada aos grupos políticos conservadores com forte presença no Congresso Nacional, aliado ao modelo de desenvolvimento adotado pelo Brasil, vem fragilizando e ameaça todo o sistema de proteção jurídico-político direcionado aos povos indígenas, construído ao longo das últimas três décadas.

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05- O DIREITO DOS POVOS INDÍGENAS DE ACESSO À JUSTIÇA:

5.1- O direito de ser parte nos processos afetos aos seus interesses e o dever de serem chamados, nestes processos:

Os conflitos atuais envolvendo a terra e o território de povos indígenas no

Brasil são, em grande parte, judicializados. Tais conflitos estão diretamente relacionados com fatos ocorridos no século passado, tempo em que as comunidades indígenas enfrentaram violências física, psíquica e cultural, seguidas de um ardiloso processo de espoliação do seu patrimônio e de suas terras, promovido sob a tutela estatal. Dois documentos oficiais: o capítulo sobre Violações de Direitos Humanos dos Povos Indígenas da Comissão Nacional da Verdade (CNV)74 e o chamado Relatório Figueiredo 75 mostram bem as violações sofridas pelos povos indígenas, particularmente, no período da ditadura civil-militar.

Até a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, em outubro de 1988, os povos indígenas eram tutelados. Em outras palavras, os indígenas foram impedidos de registrar seu patrimônio ou mesmo de ingressar em juízo para resguardá-lo até a citada data, pois não eram considerados sujeitos de pleno direito. Dessa forma, mediante diversos processos, o patrimônio indígena foi dilapidado e suas terras distribuídas a terceiros em processos irregulares.

Seguindo tais processos, os índios foram retirados de suas aldeias, confinados em reservas artificiais, transformados em pedintes e chamados de “preguiçosos”. Junto à crescente discriminação racial percebida na sociedade brasileira, foi-se consolidando dentro do Estado Brasileiro o assim chamado “racismo institucional”, em que o próprio Estado e seus agentes tratam de forma discriminatória povos e comunidades tradicionais, dentre eles os indígenas. Por meio desses processos, povos milenares, produtivos, foram subjugados ou simplesmente eliminados.

Inicialmente, os indígenas estavam sujeitos ao chamado regime tutelar, nos termos do revogado artigo 6º, inciso IV, do Código Civil, de 1916: “Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, e que cessará à medida de sua adaptação”. Vivíamos sob a égide do paradigma da integração, da assimilação, que encontrava respaldo nas Constituições brasileiras (CF de 1934, artigo 5º, XIX, ‘m’; CF de 1946, artigo 5.º, XV, ‘r’, CF de 1967, artigo 8.º, XVII, ‘o’). Mas a Constituição da República de 1988 colocou fim ao regime integracionista ao estabelecer no artigo 231 que “[...] são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Inicia-se, assim, o tempo do direito à diferença e às especificidades culturais de cada etnia indígena. O Estado

74 Disponível em: http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/Volume%202%20-%20Texto%205.pdf. Acessado em: 4 de agosto de 2016. 75 O Relatório Figueiredo foi encontrado em agosto de 2012 no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, após 45 anos desaparecido. Ele é composto por aproximadamente 7 mil páginas preservadas, contendo 29 dos 30 tomos originais. Disponível em: http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=DocIndio&PagFis=0&Pesq=. Acessado em: 4 de agosto de 2016.

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brasileiro deve respeitar e garantir o direito às especificidades, diversidades e concepções de mundo – mundividências, ou cosmovisões.

Os povos indígenas têm o direito a participar diretamente dos processos que versam sobre seus direitos. Neste patamar, dispõe o artigo 232 da Constituição: “os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”. Participar dos processos que lhe dizem respeito é um direito humano dos povos indígenas, vinculado a outros direitos, como o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório.

Os povos indígenas têm capacidade para estar em juízo. No ordenamento jurídico atual, os indígenas são sujeitos coletivos de direitos, através do reconhecimento de suas organizações sociais, deixando para trás a discriminatória tutela e permitindo, assim, o acesso à Justiça, sem, por isso, deixarem de ser indígenas. É o que explica o jurista Carlos Marés:76

“A Constituição de 1988 reconhece aos índios o direito de ser índio, de manter-se como índio, com sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Além disso, reconhece o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Esta concepção é nova, e juridicamente revolucionária, porque rompe com a repetida visão integracionista.”

Os específicos modos de ser e viver dos indígenas, portanto, dependem de um espaço territorial no qual se desenvolvem a cultura, as crenças e tradições. Por esses motivos é que a terra, para eles, tornou-se o tema central de suas reivindicações.

Nessa esteira, a nova realidade dos povos indígenas desafia o Poder Judiciário Brasileiro, de certa forma, a superar o seu formalismo desmesurado e nem sempre eficaz.

Posteriormente, em 2004, houve a promulgação da Convenção 169/OIT, através do decreto nº 5.051/04, que impõe aos Estados a obrigação de proteção contra a violação de seus direitos, estabelecendo que os povos indígenas podem mover ações legais, individualmente ou por meio de seus órgãos representativos, para garantir a proteção efetiva de tais direitos.

Ao Poder Judiciário cabe não dar andamento a qualquer processo que tenha possibilidade de atingir a esfera de direitos dos índios, de qualquer natureza, sem que a eles seja possibilitado dele participarem. Eles podem demandar em juízo, por si, e não serem necessariamente representados por quaisquer órgãos, como FUNAI, União, ou mesmo pelo Ministério Público Federal.

Uma das condutas rotineiras do Estado Brasileiro/Judiciário que implica em violação de direitos humanos consiste em que, na maioria dos processos, os povos indígenas sequer são chamados para os integrar e apresentar defesa ou manifestação. O Poder Judiciário brasileiro não ouve os povos indígenas.

A título de exemplo, destacamos um dos casos mais emblemáticos de violação do direito ao acesso à Justiça. Trata-se do processo da Terra Indígena Guyraroká, do povo Guarani e Kaiowá, no Estado do Mato Grosso do Sul, comunidade que em 2015 foi surpreendida com uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que suspendeu os atos do Ministério da Justiça que, através da

76 SOUZA FILHO, Carlos Federico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. 1a Ed. (ano 1998, 5ª reimpr. Curitiba: Juruá, 2008.

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Portaria nº 3.219, de 7 de outubro de 2009, declarou de posse permanente do grupo indígena Guarani Kaiowá a Terra Guyraroká, com superfície aproximada de 11.401 hectares. Esta comunidade buscou o apoio de advogados especializados no direito indígena e requereu a nulidade de todos os atos processuais por não ter sido chamada a integrar a disputa. A comunidade fora, portanto, impedida de realizar a sua defesa, considerando que, até a decisão, os indígenas sequer haviam tomado conhecimento da ação judicial. Em resposta, o recurso da comunidade indígena foi negado com o argumento de que “a Funai é o órgão federal do Estado brasileiro responsável pela proteção dos índios e seus bens, ao qual cabem todos os estudos e levantamentos que precedem a demarcação, nos termos do art. 231 da Constituição Federal, bem como da Lei 5.371, de 5.12.1967”77.

Esta decisão de uma das turmas do STF contraria o ordenamento jurídico atual concernente aos povos indígenas, considerando que a Constituição de 1988 não recepcionou a malfadada tutela.

É imperioso que o Estado Brasileiro/Judiciário passe a incorporar em cada um dos processos judiciais os direitos humanos dos povos indígenas, permitindo e, mais especialmente, possibilitando sua participação nos processos que veiculam bens da vida que lhe tocam, mediante admissão formal e efetiva escuta ativa, além da informação do trâmite processual. Tratando-se de violação de direito humano, apresentando-se como nulidade passível de ser reconhecida de ofício, de modo que é recomendável que o Estado Brasileiro verifique se, nos processos que tangenciem os interesses dos povos indígenas, de qualquer natureza, estes foram chamados à manifestação; em caso negativo, pode-se chegar à anulação dos respectivos atos processuais.

5.2- A lentidão dos processos de demarcação de terras

Diversas organizações criaram a campanha “Eu Apoio a Causa Indígena”,78

em dezembro de 2012, que culminou com mais de 20 mil assinaturas colhidas em curto espaço temporal, subscrita por professores, entidades indígenas e indigenistas, intelectuais e artistas. Indicaram no referido documento que foi dirigido ao Estado Brasileiro, por seus três poderes: executivo, judiciário e legislativo, que: “as terras não são demarcadas com a presteza fincada na CF; obras públicas são realizadas sem qualquer diálogo com as comunidades afetadas, descumprindo a necessidade de consulta e participação; órgãos oficiais permanecem vulneráveis às pressões dos poderes econômicos e políticos locais e/ou com estrutura precária. Assim temos o extermínio, a desintegração social, opressão, mortes, ameaças, marginalização, exclusão, fome, miséria e toda espécie de violência física e psicológica, agravada, especialmente, entre as crianças e jovens indígenas”.

A normativa nacional (artigo 5º, inciso LXXVIII da Constituição), com o respaldo nos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, exige que os processos tenham tramitação em prazo razoável. A CF estabelece que o prazo para

77 Mandado de Segurança 29.087 - STF. Inteiro Teor do Acórdão - Página 7. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6937880. Acessado em: 15 de agosto de 2016. 78 Confira: http://www.ajd.org.br/documentos_ver.php?idConteudo=114

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a conclusão das demarcações das terras indígenas (artigo 67 das Disposições Constitucionais Transitórias) é de cinco anos.

O processo de demarcação de terras indígenas é de responsabilidade do Estado/Executivo, que não cumpre o seu papel, pois não dá andamento aos procedimentos necessários.

Situação das TIs no Brasil79 No TIs Extensão (hectares)

Em Identificação / Com restrição de uso a não índios* 110 1.083.844

Identificada 42 (5,95%) 4.324.294 (3,68%)

Declarada 74 (10,48%) 5.140.683 (4,38%)

Reservada / Homologada 480 106.831.308

Total Geral 706 (100%) 117.380.129 (100%)

79Fonte: ISA - Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/c/0/1/2/situacao-juridica-das-tis-hoje. Acesso em 3 out. 2017. Atualizada em 3/10/17.

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Demarcações de Terras Indígenas por Governos - Brasil

TIs Declaradas TIs Homologadas*

Presidente [período] Nº** Extensão

(Ha)** Nº**

Extensão (Ha)**

Michel Temer [mai 2016 a set 2017] 2 1.213.449

Dilma Rousseff [jan 2015 a mai 2016]

15 932.665 10 1.243.549

Dilma Rousseff [jan 2011 a dez 2014]

11 1.096.007 11 2.025.406

Luiz Inácio Lula da Silva [jan 2007 a dez 2010]

51 3.008.845 21 7.726.053

Luiz Inácio Lula da Silva [jan 2003 a dez 2006]

30 10.282.816 66 11.059.713

Fernando Henrique Cardoso [jan 1999 a dez 2002]

60 9.033.678 31 9.699.936

Fernando Henrique Cardoso [jan 1995 a dez 1998]

58 26.922.172 114 31.526.966

Itamar Franco [out 92 | dez 94] 39 7.241.711 16 5.432.437

Fernando Collor [mar 90 | set 92] 58 25.794.263 112 26.405.219

José Sarney [abr 85 | mar 90] 39 9.786.170 67 14.370.486

Fonte: ISA80

80 Última atualização em 11 de Setembro de 2017. Desde então não houve novos decretos e portarias. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/c/0/1/2/demarcacoes-nos-ultimos-governos. Acesso em 3 out. 2017.

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5.3- As falácias internacionais brasileira, quando o assunto é Terras Indígenas.

O Brasil, por diversas vezes, em comunicados internacionais, afirma que

possui a maior quantidade de Terras Indígenas demarcada do Mundo. Comparando inclusive, com o tamanho de alguns Países. Trata-se de uma verdade importante, afinal o país possui uma das maiores diversidades Étnica Cultural do Planeta, com 305 povos indígenas, falantes de 274 línguas diferentes.

Por outro lado, o Brasil não explica para a sociedade internacional que a maior parte destas Terras Indígenas se concentram na região da Amazônia Legal: são 419 áreas, 115.342.101 hectares, representando 23% do território amazônico e 98.33% da extensão de todas as TIs do país. E cumprindo um papel importante de proteção destas áreas, uma vez que pesquisas recentes comprovaram que os Povos Indígenas preservam até 11 vezes mais que qualquer outro sistema de proteção de áreas florestais. E que sem elas, o desmatamento da Amazônia brasileira poderia ser 22 vezes maior que o atual.81

O restante das Terras Indígenas, 1.67%, espalha-se pelas regiões Nordeste, Sudeste, Sul e estados de Mato Grosso do Sul e Goiás.82

Em 2010 o IBGE, apontava que 45% da população indígena brasileira, vivem

fora da Amazônia Legal. Assim, os Povos Indígenas que vivem nesta região estão confinados em 1,67% da extensão das Terras Indígenas Brasileiras.

81 Confira: Povos indígenas protegem florestas e clima, aponta estudohttps://exame.abril.com.br/mundo/terras-indigenas-protegem-floresta-e-clima-aponta-estudo/ 82 Confira em: https://pib.socioambiental.org/pt/c/terras-indigenas/demarcacoes/localizacao-e-extensao-das-tis. Caessado em 10/10/2017.

98,33%

1,67%

Extensão das Terras Indigenas no Brasil

AmazoniaLegal

Fonte: ISA

55%45%

População Indígena no Brasil

Amazonia Legal

Demais regiões

Fonte: IBGE 2010

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A situação de demarcação das Terras Indígenas no Mato Grosso do Sul e na Região Sul do País (RS, PR, SC) é dramática, causando não só um ambiente de extrema violência, com consequências irreversíveis, no modo de vida desta população.

Fonte: Funai

5.4 A judicialização dos procedimentos e a demora injustificada

Registre-se que os processos demarcatórios de terras indígenas acabam por

ser jurisdicionalizados. No que se refere ao Poder Judiciário, é inegável que a demora no julgamento dos processos, em todas as instâncias, relativos à demarcação de terras indígenas tem sido problema a ser combatido e que agrava ainda mais a notória situação de violência pela qual passam os povos indígenas.

Nos casos de demarcação das terras indígenas, a razoabilidade do trâmite processual deve encontrar os seus limites nos parâmetros fixados para a União. A demora do Judiciário, nessa matéria, rompe com o trato dos direitos humanos, agrava a situação das comunidades indígenas, especialmente em razão da violação dos direitos consagrados no artigo 231 da Constituição, que reconhece aos povos indígenas o respeito à sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.

Urge a agilização do processamento e julgamento dos mencionados processos e que seja determinada a prioridade absoluta para o Poder Judiciário de todo o Brasil, que poderá assim fazer através do Conselho Nacional de Justiça, órgão da estrutura do Poder Judiciário, que tem fixado metas de cumprimento a todos os tribunais do país, em temas e recortes variados.

Também é fundamental que esse mesmo órgão proceda à coleta de dados, de todo o Brasil, como tem feito em diversas matérias, para que se alcance o mapeamento minucioso de todos os processos em trâmite, andamento e seu respectivo resultado. O CNJ tem ferramentas próprias para que a alimentação desses dados seja feita em âmbito nacional.

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5.5- A tese ruralista do marco temporal e tradicional

O Poder Judiciário Brasileiro tem impactado direitos alcançados e positivados na Constituição de 1988, de modo a diminuir o seu conteúdo de garantia. Nesse sentido, a chamada “teoria do marco temporal e tradicional” tem sido apontada como uma grande ameaça aos direitos humanos dos povos indígenas.

O STF, em sua composição plenária, até hoje83 rechaçou a aplicação da tese do marco temporal por ter reconhecido situação de esbulho renitente nos dois conflitos fundiários que julgou. Tanto no famoso caso Raposa-Serra do Sol, quanto no protagonizado pelos Pataxó Hã Hãe Hãe, o STF entendeu que a única resposta constitucionalmente adequada consistia na demarcação da terra indígena, porquanto a diminuta ou nenhuma presença de indígenas em suas terras na data da promulgação da Constituição decorria de “recorrentes situações em que os indígenas foram expulsos de suas terras pelos não índios, e a elas foram impedidos de regressar, ainda que com a terra guardassem as condições necessárias – materiais e imateriais – para a configuração da ocupação tradicional.”84

No caso “Raposa Serra do Sol” (julgado em 2009, Roraima), entendeu-se, para fundamentar a decisão de demarcar de forma contínua essa TI, que “(...) A

83 Em 16/8/17, foram pautados processos para julgamento pelo TP-STF nos quais se alegava a tese do marco temporal e, assim, criou-se grande expectativa acerca da possibilidade de o Pleno vir a se posicionar definitivamente sobre a questão, mas os únicos processos que foram efetivamente julgados (ACOs 362 e 366) nessa data versavam sobre demarcações de TI ocorridas anteriormente à CR/88, de modo que a tese não foi tematizada. SUPREMO Tribunal Federal. Questões ambientais, indígenas e quilombolas estão na pauta do STF desta quarta-feira (16). Notícias STF, 15 ago. 2017. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=352471. Acesso em: 22 ago. 2017. SUPREMO Tribunal Federal. STF decide que Mato Grosso não tem direito a indenização por demarcação de terras indígenas. Notícias STF, 16 ago. 2017. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=352624. Acesso em: 22 ago. 2017. Os processos que não foram julgados e que exigem o posicionamento do STF acerca da tese do marco temporal são os referentes à TI Ventarra (ACO 469, povo indígena Kaingang, RS) e a ADI 3239 (Decreto 4887/13, que regulamenta as demarcações das terras quilombola). Apesar de não ter sido objeto de votação, alguns ministros anteciparam seu entendimento sobre a tese do marco temporal. O Ministro Lewandowski rechaçou a adoção da

tese do marco temporal, como já fizera em outros julgamentos, afirmando que o STF deverá apreciá-la oportunamente, à luz da Convenção 169 da OIT, dentre outros instrumentos de proteção dos direitos humanos dos povos indígenas. RAMOS, Beatriz Drague; LIMA, José Antonio. Por que o debate do marco temporal é tão importante para os indígenas. Carta Capital, 16 ago. 2017. Disponível em:

https://www.cartacapital.com.br/sociedade/por-que-debate-do-marco-temporal-e-tao-importante-para-os-indigenas. Acesso em: 22 ago. 2017. O Ministro Barroso manifestou seu entendimento, segundo o qual as condicionantes

do caso Raposa-Serra do Sol só valem para esse julgamento, de modo que os indígenas que não estivessem em suas terras em 1988 por terem sido expulsos titularizam o direito à demarcação, tendo sido essa sua posição como relator nos embargos de declaração da PET 3388: “[Há] possibilidade de reconhecimento de terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, ainda que algumas comunidades indígenas nelas não estejam circunstancialmente por terem sido retiradas à força (...). Não deixaram suas terras voluntariamente e não retornaram a elas porque estavam impedidas de fazê-lo”. RAMOS, Beatriz Drague; LIMA, José Antonio. Por que o debate do marco temporal é tão importante para os indígenas. Carta Capital, 16 ago. 2017. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/por-que-debate-do-marco-temporal-e-tao-importante-para-os-indigenas. Acesso em: 22 ago. 2017. O Ministro Barroso afirmou, ainda, que “somente será descaracterizada a ocupação tradicional indígena caso demonstrado que os índios deixaram voluntariamente os territórios que possuam ou desde que se verifique que os laços culturais que os uniam a tal área se desfizeram”. CONSELHO Indigenista Missionário (CIMI). Após vitória, indígenas exigem que Temer respeite decisões do STF e revogue parecer sobre demarcações. Disponível em: http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=9436&action=read. Acesso em: 22 ago. 2017. O Ministro Gilmar Mendes, por sua vez, manifestou-se claramente favorável à adoção

da tese do marco temporal para todas as TI do Brasil. RAMOS, Beatriz Drague; LIMA, José Antonio. Por que o debate do marco temporal é tão importante para os indígenas. Carta Capital, 16 ago. 2017. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/por-que-debate-do-marco-temporal-e-tao-importante-para-os-indigenas. Acesso em: 22 ago. 2017. 84 PEGORARI, A tese do “marco temporal da ocupação” (...), op. cit., p. 249.

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tradicionalidade da posse nativa (...) não se perde onde”, em 1988, “a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios, como no “Caso das "fazendas" situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja ocupação não arrefeceu nos índios sua capacidade de resistência e de afirmação da sua peculiar presença em” toda a área.85

No julgado em que o STF concluiu pela demarcação da terra indígena dos Pataxó Hã Hãe Hãe (em 2012, Bahia), entendeu que:

(...) A baixa demografia indígena na região em conflito em determinados momentos históricos, principalmente quando decorrente de esbulhos perpetrados por forasteiros, não consubstancia óbice ao reconhecimento do caráter permanente da posse dos silvícolas (sic). A remoção dos índios de suas terras por atos de violência não tem o condão de afastar-lhes o reconhecimento da tradicionalidade de sua posse. (...) A posse obtida por meio violento ou clandestino não pode opor-se à posse justa e constitucionalmente consagrada.86

Nesses dois conflitos fundiários, portanto, o Tribunal Pleno do STF reconheceu a situação de esbulho renitente e negou a aplicação da tese do marco temporal. Em ambos, os efeitos da decisão se restringiram apenas às partes processuais daquele caso concreto de demarcação daquela TI, mas, por razões bem distintas e distantes dos fundamentos jurídicos que conduziram o julgamento da Raposa-Serra do Sol, esse julgado acabou sendo o impulso inicial da tese jurídica do marco temporal da ocupação. Por mais claro que se tenha que o STF, em sua composição plenária, não adotou a tese do marco temporal em nenhum desses casos, tanto se repetiu essa inverdade e tão veementemente foi defendida pela frente parlamentar do agronegócio, que a tese acabou sendo adotada em casos julgados pela 2ª Turma do STF e, a partir daí, repetida à exaustão, de forma acrítica e abstrata, divorciadamente da complexidade dos conflitos reais, em inúmeras decisões das juízas e juízes federais e dos Tribunais Regionais Federais.

Diferentemente do que foi decidido no Pleno, a 2ª Turma do STF aplicou a tese do marco temporal desconsiderando a realidade do esbulho renitente em 3 conflitos fundiários levados a julgamento no segundo semestre de 2014.87

No primeiro desses julgamentos (RO-MS 29087), a 2ª Turma declarou a nulidade do processo administrativo de demarcação da TI Guyraroká (MS) e da respectiva Portaria declaratória (n. 3.219/09, do Ministro de Estado da Justiça) por entender que o processo demarcatório não observou o marco temporal, sendo nulo

85 Referir ementa da PET 3388. 86 ACO 312, Rel. Min. Eros Grau, Rel. p/ Acórdão: Min. Luiz Fux, TP, j. 02/05/2012. Nesse julgamento, o Pleno permitiu, inclusive, a ampliação da demarcação originária em respeito à tradicionalidade da ocupação indígena. Lê-se na ementa do julgado que (...) o respeito às comunidades indígenas e à sua cultura implica reste preservada a possibilidade de superveniente inclusão, pela união, através de demarcação administrativa ou mesmo judicial, de novas áreas na reserva indígena Caramuru-Catarina-Paraguaçu além da já reconhecida nestes autos. 87 São eles: - RMS 29087, julgado em 16/09/2014, TI Guyraroka, Guarani Kaiowá, MS; votação majoritária, voto vencedor do Senhor Ministro Gilmar Mendes, vencido o Senhor Ministro Relator Ricardo Lewandowski; - ARE-AgR 803462, julgado em 09/12/2014, TI Limão Verde, Terena, MS; - RMS 29542, julgado em 30/09/2014, TI Porquinhos, Canela, MA.

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por inexistir efetiva e formal ocupação fundiária pelos índios na área contestada na data da promulgação da CR 88.

No segundo caso (ARE-AgR 803462), relativo à TI Limão Verde (MS), o órgão fracionário retrocedeu ainda mais na compreensão dos direitos dos povos indígenas, ao afirmar, restritivamente, que o esbulho renitente (...) não pode ser confundido com ocupação passada ou com desocupação forçada, ocorrida no passado. Para sua configuração, é necessário efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até 1988, conflito que se materializa por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada.

Nesses julgados, o STF ignorou sem nenhuma solenidade as décadas do sangrento conflito fundiário notoriamente conhecido no MS. Negar o direito à demarcação em situação na qual os indígenas não ocupavam efetivamente a terra ancestral porque delas expulsos e à força delas mantidos afastados equivale a chancelar toda a história de assassinatos e jagunçagem que envergonha a Colônia, o Império e a República brasileira; significa premiar quem enriqueceu à custa do esbulho das terras indígenas e tripudiar sobre o cheiro do sangue derramado que fertiliza o agronegócio na resistência secular ao etnogenocídio tentado ou consumado por particulares e também pelo Estado brasileiro.

No terceiro julgamento de 2014 (RMS 29542), a 2ª Turma retrocedeu no que diz respeito à ampliação de demarcação de TI. Nesse julgamento, invalidou a Portaria declaratória (n. 3.508/09, do Ministério da Justiça) que corrigiu os limites originariamente estabelecidos para a TI Porquinhos, dos Canela-Apãnjekra, no MA, em procedimento viciado por ausência de qualquer fundamentação antropológica e por ter sido norteado pelos interesses econômicos regionais, resultando na supressão de parte das terras de ocupação tradicional desse povo.

Para tanto, entendeu o órgão fracionário que a tese do marco temporal veda a ampliação de terra indígena demarcada antes ou depois da promulgação da CR88, em contrariedade ao entendimento mais atual do Pleno do STF, que no julgamento da ACO 312, dos Pataxó, na Bahia, mencionada acima, permitiu a ampliação da demarcação originária em respeito à tradicionalidade da ocupação indígena. Lê-se na ementa do julgado que (...) o respeito às comunidades indígenas e à sua cultura implica reste preservada a possibilidade de superveniente inclusão (...) de novas áreas na reserva indígena Caramuru-Catarina-Paraguaçu além da já reconhecida nestes autos.88

O entendimento da 2ª Turma do STF é indefensável: ao magistrado não é permitido ignorar o contexto fático que envolve os conflitos fundiários em julgamento. Às juízas e juízes brasileiros não é permitido desconhecer que atestados de inexistência de índios eram negociados pelo órgão indigenista desde a década de 50 para facilitar a venda patrimonialista de terras indígenas ou demarcar porções diminutas dessas terras, muito menores do que as de ocupação tradicional e ancestral.89

O esbulho das terras indígenas pelo agronegócio era e continua sendo condição de possibilidade de expansão da fronteira agrícola brasileira na Amazônia legal. Essa circunstância histórica vem sendo ignorada pelo Poder Judiciário em

88 ACO 312, Rel. Min. Eros Grau, Rel. p/ Acórdão: Min. Luiz Fux, TP, j. 02/05/2012. 89 Cf. VALENTE, Rubens. Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

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julgamentos de conflitos fundiários, o que é coerente com a cultura jurídica dominante no Brasil, na qual a técnica jurídica media relações abstratas entre normas, e não relações concretas entre pessoas tendo as normas como referência. Sendo assim, é possível abstrair completamente uma decisão do conflito concreto nela deduzido, por ser esse conflito irrelevante para tal aferição. Juízas e juízes atuam em um mundo jurídico que se apresenta como um universo paralelo desconectado da complexidade do real onde são travados os conflitos fundiários. Nesse mundo, bastaria haver normas enunciando direitos e, assim, suas previsões abstratas tornariam despiciendas as lutas por sua realização. É como se a concretização de direitos não dissesse respeito ao julgador nesse dispositivo de redução do mundo real e dos conflitos e segregações concretas a um jogo lógico formal de imputações.90

Dito isso, cumpre sistematizar as inconstitucionalidades em que incorre a tese do marco temporal da ocupação.91

Em primeiro lugar, a tese se apresenta como uma interpretação restritiva do direito fundamental previsto no art. 231 da CR88, que define terras indígenas como sendo as “habitadas pelos índios em caráter permanente, mas não exige que eles a estivessem ocupando, necessariamente, na data da promulgação da Constituição, justamente pelos critérios trazidos pelo marco da tradicionalidade”.92

A segunda crítica diz respeito à desatenção ao problema do “esbulho renitente”, porquanto inúmeros povos indígenas não estavam ocupando suas terras no dia em que a constituição foi promulgada por essa razão.93

O terceiro ponto de crítica reside na arbitrariedade na escolha do marco temporal. Os julgados da 2ª Turma do STF restringiram o direito originário à terra adotando “um marco temporal irrefletido que não guarda qualquer vínculo racional com a situação jurídica analisada”94 e que foi estabelecido arbitrariamente, ignorando o caráter originário dos direitos territoriais dos povos indígenas e a sangrenta história das graves violações dos direitos humanos desses povos.95

Assim agindo, o STF deixou de ser o guardião dos direitos territoriais dos povos indígenas, pois “falhou em garantir o direito dessa minoria em situação de extrema vulnerabilidade ao deixar de exercer seu poder contramajoritário em face de outros poderes do Estado e dos particulares detentores do poder econômico. Assim, resta a pergunta: o que fazer quando o último mecanismo de proteção a direitos fundamentais do Estado sucumbe?”96

Tal julgamento abriu precedente que põe em risco o direito originário dos povos indígenas. Apesar de o STF ter frisado que as terras que não estavam

90 O argumento desenvolvido nesse parágrafo foi exposto pelo juiz federal José Carlos Garcia, da SJRJ, em diálogo travado com juíza(e)s federais, dentre a(o)s quais estava a autora. Ao concluir, afirmou: “ou seja, coisa de idiotas”. Ver Márcia Tiburi, sobre os idiotas. 91 Cf. PEGORARI, A tese do “marco temporal da ocupação” (...), op. cit., p. 248-249. 92 PEGORARI, A tese do “marco temporal da ocupação” (...), op. cit., p. 249. 93 PEGORARI, A tese do “marco temporal da ocupação” (...), op. cit., p. 249. 94 PEGORARI, A tese do “marco temporal da ocupação” (...), op. cit., p. 249. 95 Para Bruno Pegorari, a motivação da adoção desse marco temporal é, simplesmente, a vontade de não mais demarcar nenhuma terra indígena, pois dos votos sobressai “o discreto alívio de se pôr um ponto final no já tão prolongado debate”, eis que constante dos fundamentos de decidir a preocupação de “jogar uma pá de cal” que findasse as discussões sobre a matéria, nas próprias palavras do Relator Ministro Carlos Britto. Para o pesquisador, a arbitrariedade do marco temporal na data da promulgação da Constituição pareceu “mais uma afobação em resolver o já prolongado debate, que, de fato, um anseio em dar-lhe uma mais apropriada solução.” PEGORARI, A tese do “marco temporal da ocupação” (...), op. cit., p. 249. 96 PEGORARI, A tese do “marco temporal da ocupação” (...), op. cit., p. 253.

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ocupadas em 1988, não perdem a tradicionalidade em razão de atos de não índios, outros tribunais e alguns ministros do STF, especificamente os da 2ª turma, vêm oferecendo uma interpretação a esta teoria que desconsidera o violento processo que levou várias comunidades indígenas para longe de suas terras, ao arrepio das constituições anteriormente válidas no Brasil.

A tese ruralista do marco temporal e tradicional tem levado o Poder Judiciário a desconsiderar as gravíssimas violações de direitos ocorridas em pleno período de ditadura militar, que fizeram com que indígenas não pudessem estar em seu território no ano de 1988.

Importantes doutrinadores do direito nacional têm indicado a ilegitimidade de muitas das condicionantes do julgamento da Ação relativa à Terra Indígena Raposa Serra do Sol. José Afonso da Silva, por exemplo, indica a arbitrariedade da data estipulada como marco temporal pelo citado julgamento: 05 de Outubro de 1988, data da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil97. O autor também elenca uma série de argumentos valiosos contra a tese ruralista do marco temporal, como, por exemplo, o fato de que a Constituição simplesmente reconheceu o direito dos povos indígenas ao seu território tradicional. Em outras palavras, tal direito já existia anteriormente à Constituição de 1988, não fazendo sentido lógico que ele passasse a valer somente com a promulgação desta98.

Outro fator fundamental de inconstitucionalidade da tese ruralista do marco temporal se refere ao chamado esbulho renitente: segundo a construção do STF, haveria uma exceção ao marco temporal nos casos em que a comunidade indígena não estivesse no território exigido devido à ação persistente de terceiros (esbulho). Contudo, a definição da exceção do esbulho renitente só veio a ser melhor delineada pelo STF posteriormente ao julgamento da Ação nº 3.388, com o ARE 803.462-AgR/MS, incluindo somente efetivo conflito possessório que se manteve no tempo até 5 de outubro de 1988. Sendo assim, caso a comunidade indígena já tivesse sido completamente expulsa de seu território antes de tal data, não se configuraria a exceção.99

A tese ruralista do marco temporal, principalmente quando considerado o histórico de atrocidades e violações de direitos envolvendo tais povos antes da promulgação da Constituição de 1988, que se pode observar, em parte, nos dois documentos acima referidos, viola os direitos dos povos indígenas de terem acesso às suas terras, se delas foram à força retirados antes de 1988.

Em julho de 2017, houve a ratificação presidencial do Parecer nº 001/2017/GAB/CGU/AGU, de 18 de julho de 2017, que restringe ilegal, inconstitucional e inconvencionalmente ações de proteção aos direitos de povos indígenas à terra, particularmente em casos nos quais essas populações foram retiradas de seus territórios. Esse Parecer também limita a proteção ao direito de consulta livre, prévia e informada, aplicando condicionantes do caso da Raposa Serra do Sol como regra geral às terras indígenas no país. Tais medidas violam os direitos originários dos povos indígenas a suas terras tradicionais, exatamente porque sua implementação implica na negação do acesso à Justiça e à reparação dos direitos violados. Ao assinar tal Parecer, o governo aumenta a pressão para restringir a ação

97 SILVA, José Afonso da. Parecer sobre a Tese Jurídica do Marco Temporal e Tradicional, p. 8. S.d. 98 Ibid., p. 8. 99 Ibid., p. 11.

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da Funai e da AGU, impedindo o pleno cumprimento de suas responsabilidades de acordo com a Constituição.

O Parecer adota e, assim, torna obrigatória no âmbito do governo federal, a tese ruralista do marco temporal, a qual acarreta, como visto, a perda dos direitos territoriais por parte dos povos indígenas que não estavam em suas terras em 5 de outubro de 1988; além disso, se tivessem sido retirados de suas terras durante o regime assimilacionista, perderiam o direito à revisão da demarcação com objetivo de proteção do território, deixando de lado qualquer possibilidade de reparação e reconhecimento dos direitos dos povos indígenas; por fim, de acordo com o Parecer, bases militares e projetos de desenvolvimento seriam implementados hoje sem nenhuma consulta prévia aos povos indígenas, que perderiam o direito de manejo e uso das próprias terras, quando houvesse sobreposição com unidades de conservação, entre outras.

Trata-se de medida administrativa que reduz direitos constitucionais dos povos indígenas com valor equiparado a um ato legislativo, porém aprovado sem nenhum tipo de diálogo ou transparência, sem a garantia do direito à consulta livre, prévia e informada. Além disso, essa medida fortalece uma plataforma anti-indígena, de parlamentares que frequentemente incitam a violência contra os povos indígenas. O ato presidencial já está impactando as vidas de indígenas em todo o país, particularmente no Sul e nos Estados do Nordeste do Brasil.

Por essas razões, pugna-se pela revogação imediata de tal Parecer.

5.6- A criminalização dos movimentos indígenas e organizações correlatas

A criminalização direcionada pelo Estado Brasileiro e por outros atores sociais

contra os povos indígenas vem se acentuando nos últimos anos, também como resultado de diversos processos sociais e políticos anti-indígenas.

Nos últimos anos, os parlamentares representantes do agronegócio (os chamados ruralistas) se movimentaram a fim de retomar a tramitação de instrumentos danosos aos povos no âmbito do Congresso Nacional, como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/00, aprovada por Comissão Especial em outubro de 2015, que inviabiliza novas demarcações de terras indígenas e titulações de terras quilombolas e legaliza a invasão e a exploração das terras indígenas já demarcadas, que estão na posse e sendo preservadas pelos povos.

Na esteira da tramitação da PEC 215/00 e de outras proposições legislativas anti-indígenas, parlamentares da bancada ruralista, dirigentes de sindicatos rurais patronais e associações de produtores de commodities agrícolas espalham o ódio e o terror contra os povos e suas comunidades. Discursos de incitação ao ódio e à violência multiplicaram-se ao longo de 2014 e 2015. Os resultados desse processo foram colhidos, principalmente, na forma de assassinatos de lideranças indígenas que lutavam pela demarcação 100 e na proteção de suas terras tradicionais 101 e de sistemáticos ataques paramilitares contra comunidades indígenas ao redor do Brasil.

100 http://cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=8294&action=read 101 http://www.ihu.unisinos.br/noticias/542263-na-onu-secretario-do-cimi-denuncia-assassinato-de-indigena-kaaapor-no-maranhaoe http://www.cimi.org.br/File/ONUCleberPortugues.pdf

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Neste sentido, a situação vivida pelos Guarani e Kaiowá, no estado do Mato Grosso do Sul, é emblemática. Em 2015, foram registrados mais de uma dezena de ataques paramilitares contra várias comunidades deste povo. Tais ataques, desferidos por milícias comandadas por fazendeiros, resultaram em liderança assassinada e dezenas de indígenas, inclusive crianças e idosos, feridos.

O ataque paramilitar desferido contra o Tekoha Nhanderú Marangatú é exemplar. A ação foi precedida por uma onda de mentiras espalhadas por alguns fazendeiros com o intuito de criar um clima de terror e animosidade da população regional contra os indígenas, numa tentativa pré-concebida de legitimar o ataque que estava sendo perpetrado.102

Segundo dados do CIMI, da SESAI e do Dsei-MS, entre 2003 e 2015 um total de 891 indígenas foram assassinados no Brasil; cerca de metade deles (426, oun 47%) somente no estado do Mato Grosso do Sul. 103 Isto representa, em outras palavras, 426 (quatrocentos e vinte e seis) indígenas mortos nos últimos anos somente em um dos estados da federação brasileira.

Pode-se concluir, pois, que se vivencia no Brasil atualmente um processo de genocídio dos povos indígenas.

A tentativa de criminalizar lideranças indígenas, profissionais de antropologia, organizações e pessoas da sociedade civil que atuam em defesa dos projetos de vida dos povos indígenas no Brasil também foi intensificada pelos ruralistas nos últimos quatro anos. Neste sentido, duas Comissões Parlamentares de Inquéritos (CPI) foram criadas e postas em funcionamento sob o controle de deputados representantes do agronegócio. Uma na Assembleia Legislativa do estado do Mato Grosso do Sul, denominada CPI do Cimi,104 e outra na Câmara dos Deputados, denominada CPI da Funai/Incra.105 O relatório final desta última CPI foi apresentado em maio de 2017, recomendando, sem qualquer base jurídica, o indiciamento de cerca de 100 pessoas, acusando-os de práticas de atos ilícitos em processos de demarcação de terras indígenas e quilombolas e em projetos de assentamento rural. Dentre as pessoas mencionadas, encontram-se lideranças de comunidades, inclusive caciques, bem como militantes de instituições e organizações não-governamentais que se mobilizam para que o Estado brasileiro cumpra suas promessas normativas em relação a povos indígenas e quilombolas; membros do Ministério Público Federal que, no âmbito de sua independência funcional, demandam por uma leitura emancipatória dos direitos originários; procuradores federais, gestores e servidores da administração pública direta e indireta que atuam para cumprir seu dever de efetivar os mesmos direitos; antropólogas que estudam e denunciam as violações históricas contra povos indígenas e quilombolas por parte dos sistemas político e econômico. Todos os acusados têm em comum o fato de estarem sendo criminalizados por, em sua militância ou em sua atuação funcional, defenderem os direitos originários de indígenas e quilombolas, previstos na Constituição e em tratados internacionais subscritos pelo Brasil. A mobilização social, cumprimento de deveres por agentes estatais e a construção do saber científico, em um Estado Democrático de Direito, não podem ser criminalizados.

102 https://www.diplomatique.org.br/print.php?tipo=ac&id=3141 103 CIMI, op. cit., p. 79. 104 http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&action=read&id=8354 105 http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITO-E-JUSTICA/499549-CAMARA-CRIA-CPI-PARA-INVESTIGAR-ATUACAO-DA-FUNAI-E-DO-INCRA.html

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As invasões possessórias para exploração ilegal de bens naturais de terras indígenas, de modo especial a madeira, foram agravadas, em 2015, pela prática macabra de atear fogo intencionalmente no interior dessas terras. Essa ação criminosa foi posta em prática por madeireiros como uma represália ao fato dos próprios indígenas fazerem a proteção territorial.106 A ação dos madeireiros resultou na ampliação em larga escala das queimadas e consequente destruição generalizada da fauna e da flora no interior de terras indígenas e ameaça grave a famílias inteiras de indígenas com a queima de suas casas. No caso da Terra Indígena Arariboia, do povo Guajajara, no Estado do Maranhão, as queimadas atingiram cerca de 50% dos 413 mil hectares da área demarcada. 107 Povos isolados sofreram permanentemente com as invasões e destruição dessas terras.108

Na mesma trilha de crimes, madeireiros passaram a ameaçar de morte e eliminar lideranças indígenas que se opõe à exploração de suas terras e que se organizam para evitar que isso ocorra.109 O caso do assassinato do líder Eusébio Ka’apor, também no estado no Maranhão, se localiza neste contexto.

Nesses casos, a omissão do Estado brasileiro é verificada desde a falta de ações preventivas e efetivas na proteção das terras indígenas até a impunidade dos assassinos das lideranças indígenas.

Dentre outras situações, o governo brasileiro manteve-se omisso no que diz respeito a sua responsabilidade de demarcar as terras indígenas e de promover a atenção adequada à saúde dos povos originários. Com isso, a demanda dos povos pela demarcação de suas terras continuou se acumulando, juntamente com o elevado e inaceitável número de óbitos indígenas, de modo especial na infância.

Setores do Poder Judiciário mantiveram decisões que restringem violentamente os direitos indígenas. Para além da tese ruralista do marco temporal indicada anteriormente, anulações de atos administrativos de demarcação das terras indígenas Guyraroká, do povo Guarani Kaiowá, Limão Verde, do povo Terena, e Porquinhos, do Povo Canela-Apanhekra, foram mantidas nos últimos anos.

A própria tese ruralista do marco temporal pode ser elencada como modo de criminalização dos povos indígenas, dado que ela legitima e legaliza as expulsões e as demais violações e violências cometidas contra os povos indígenas no Brasil, inclusive no passado recente. Serve de combustível que potencializa a violência contra os povos em seus territórios, uma vez que sinaliza, para os históricos e novos invasores de terras indígenas, que o mecanismo da violência, dos assassinatos seletivos de lideranças e do uso de aparatos paramilitares para expulsar os povos das suas terras seria legítimo, conveniente e até vantajoso para os seus intentos de continuarem se apossando e explorando essas terras.

Os povos, por sua vez, diante desses ataques e tentativas de criminalização, não demonstraram intimidação e mantiveram-se coesos em ações sistemáticas de resistência e insurgência na defesa e pela efetivação de seus direitos e de seus

106 http://www.greenpeace.org/brasil/pt/Noticias/Fogo-terras-indigenas-no-Maranhao-voltam-a-sofrer-ataques-/ 107 http://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2015/10/28/incendio-em-terra-indigena-no-maranhao-esta-controlado-diz-ibama.htm 108 http://g1.globo.com/fantastico/videos/t/edicoes/v/madeireiros-ameacam-tribo-indigena-na-amazonia/4037147/ 109 http://www.ihu.unisinos.br/noticias/532903-madeireiros-ameacam-indios-na-amazonia

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projetos de vida. Nas retomadas,110 nas autodemarcações,111 na proteção de seus territórios,112 na incidência política junto a diferentes instâncias dos três poderes do Estado brasileiro113 e junto a organismos multilaterais,114 demonstraram a disposição e organização necessárias para vencer os projetos de morte e a própria morte que o Estado e outros atores sociais lhes imputam.

06- POVOS INDÍGENAS BRASILEIROS: VIOLAÇÕES MACIÇAS E A NECESSIDADE DE

APLICAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

Os povos indígenas brasileiros contam, atualmente, com um amplo e protetivo

marco jurídico nacional e internacional. Além de serem sujeitos, enquanto indivíduos ou grupos minoritários, a todos os direitos humanos reconhecidos nacional e internacionalmente sem qualquer discriminação, os povos indígenas são titulares de certos direitos coletivos e diferenciados baseados no direito de conservar e manter sua própria cultura, hábitos, tradições e costumes. Dentre esses direitos, destacam-se as terras que tradicionalmente ocupam 115 , autodeterminação 116 , e consulta 117 ou consentimento livre, prévio e informado acerca de medidas que possam afetar seus bens e/ou seu modo de vida118.

Existe uma relação intrínseca entre a garantia dos territórios indígenas e o gozo efetivo de direitos humanos, individuais ou coletivos, dos povos indígenas, uma vez que os primeiros se constituem como espaços indispensáveis à preservação e à reprodução das condições identitárias e culturais desses grupos étnicos. No “Relatório sobre os Direitos dos povos indígenas e tribais sobre suas terras ancestrais e recursos naturais”, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos explica detalhadamente a conexão particular entre as comunidades indígenas, suas terras e recursos e a existência mesma destes povos:

Dicha relación especial es fundamental tanto para la subsistencia material como para la integridad cultural de los pueblos indígenas y tribales. La CIDH ha sido enfática en explicar, en este sentido, que “la sociedad indígena se estructura en base a su relación profunda con la tierra”; que “la tierra constituye para los pueblos indígenas una condición de la seguridad individual y del enlace del grupo”; y que “la recuperación, reconocimiento, demarcación y registro de las tierras

110 http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=8235&action=read 111 https://www.youtube.com/watch?v=o8uUa1kqlOM 112 http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2015/05/indios-ka2019apor-arriscam-a-vida-para-expulsar-madeireiros-de-sua-terra-6620.html 113 http://www.cptnacional.org.br/index.php/publicacoes/noticias/acoes-dos-movimentos/3025-em-brasilia-indigenas-manifestam-se-contra-matopiba-usinas-hidreletricas-e-a-pec-215e http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2015/04/indigenas-fecham-esplanada-e-fazem-ato-em-frente-ao-planalto.html 114 http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/10/151020_brasil_violencia_indios_jf_ccehttp://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&action=read&id=8084 115 Art. 231, caput e § 1º, da Constituição Brasileira de 1988 (CF/88), art. 26 da Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, art. 13 e 14 da Convenção nº 169 da OIT e art. XXV, 2, da Declaração Americana dos Direitos dos Povos Indígenas. 116 Art. 3º, da Declaração da ONU e art. III e XXI da Declaração Americana. 117 Art. 6º da Convenção 169 e § 3º do art. 231 da CF/88. 118 Art. 6,2, da Convenção 169, art. 19 e 32,2 da Declaração da ONU e art. XXIII, 2, XXVIII, 3 e XXIX, 4 da Declaração Americana.

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significan derechos esenciales para la supervivencia cultural y para mantener la integridad comunitaria”. En la misma línea, la Corte Interamericana ha señalado que “para las comunidades indígenas la relación con la tierra no es meramente una cuestión de posesión y producción sino un elemento material y espiritual del que deben gozar plenamente, inclusive para preservar su legado cultural y transmitirlo a las generaciones futuras”; que “la cultura de los miembros de las comunidades indígenas corresponde a una forma de vida particular de ser, ver y actuar en el mundo, constituido a partir de su estrecha relación con sus territorios tradicionales y los recursos que allí se encuentran, no sólo por ser éstos su principal medio de subsistencia, sino además porque constituyen un elemento integrante de su cosmovisión, religiosidad y, por ende, de su identidad cultural”; y que “la garantía del derecho a la propiedad comunitaria de los pueblos indígenas debe tomar en cuenta que la tierra está estrechamente relacionada con sus tradiciones y expresiones orales, sus costumbres y lenguas, sus artes y rituales, sus conocimientos y usos relacionados con la naturaleza, sus artes culinarias, el derecho consuetudinario, su vestimenta, filosofía y valores. En función de su entorno, su integración con la naturaleza y su historia, los miembros de las comunidades indígenas transmiten de generación en generación este patrimonio cultural inmaterial, que es recreado constantemente por los miembros de las comunidades y grupos indígenas”119.

Assim, no âmbito do sistema interamericano de direitos humanos, a Comissão e Corte Interamericanas de Direitos Humanos têm sido especialmente ativas na defesa dos direitos territoriais dos povos indígenas, frisando a necessidade de que o direito coletivo à propriedade das terras tradicionais seja assegurado para garantir a sobrevivência física e transmissão das práticas e da identidade cultural dos povos indígenas. Desse modo, a Corte Interamericana, em particular, tem ordenado medidas de reparação bastante específicas, como a demarcação das terras indígenas, implementação de políticas públicas focalizadas, criação de fundos financeiros de desenvolvimento para as comunidades e pagamento de indenizações pecuniárias.

Em várias decisões envolvendo o tema dos direitos territoriais dos povos indígenas, a CIDH e Corte IDH já afirmaram que a falta de demarcação de terras pelos Estados, tal como se observa nos casos aqui relatados sobre o Brasil, implica a violação do direito à vida, integridade pessoal, propriedade coletiva, às garantias judiciais e à proteção judicial estabelecidos, respectivamente, nos artigos 4, 5, 21, 8.1 e 25.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos, o que contraria, por sua vez, as obrigações estabelecidas nos artigos 1.1 (Obrigação de Respeitar os Direitos) e 2 (Dever de Adotar Disposições de Direito Interno) do referido tratado. Nesse sentido, a jurisprudência consolidada do sistema interamericano de direitos humanos reconhece o direito de propriedade dos povos indígenas sobre seus territórios ancestrais,

119 COMISSIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS (CIDH). Derechos de los pueblos indígenas y tribales sobre sus tierras ancestrales y recursos naturales: normas y jurisprudencia del sistema interamericano

de derechos humanos. OEA/Ser.L/V/II. Doc. 56/09. 2010. Disponível em: <http://www.oas.org/es/cidh/indigenas/docs/pdf/Tierras-Ancestrales.ESP.pdf>. Acesso em: 06 jul. 2016.

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assinalando que a propriedade territorial indígena não depende do reconhecimento oficial pelos Estados, pois o seu fundamento se assenta em formas de uso e posse tradicionais, calcadas nas culturas jurídicas indígenas e nos seus costumes e sistemas tradicionais de manejo e propriedade da terra, de modo que os territórios dos povos indígenas “pertencem a eles pelo seu uso ou ocupação ancestral”120.

Desse modo, a Corte Interamericana frisa que “entre os indígenas existe uma tradição comunitária sobre uma forma comunal da propriedade coletiva da terra, no sentido de que o pertencimento desta não se centra em um indivíduo, mas no grupo e sua comunidade”121. Ademais do caráter coletivo da propriedade, CIDH e Corte IDH ressaltam a relação especial, única e particular de conexão entre as comunidades indígenas e suas terras, a qual é indispensável para que esses povos possam exercer seus direitos humanos e sua identidade cultural, o que justifica a concessão de proteção jurídica internacional e de medidas especiais de proteção. Ademais, a denegação pelos Estados desse direito à terra aos povos indígenas impede tais comunidades de acessar seus meios tradicionais de subsistência, impossibilitando-as de serem autossuficientes, o que aumenta sua vulnerabilidade social e resulta em violações ao direito a uma vida digna.

Assim, a Corte Interamericana estabeleceu as seguintes observações sobre o direito de propriedade dos povos indígenas:

Utilizando os critérios indicados, este Tribunal considerou que a estreita vinculação dos integrantes dos povos indígenas com suas terras tradicionais e os recursos naturais ligados à sua cultura que aí se encontrem, assim como os elementos incorpóreos que se desprendam deles devem ser protegidos pelo artigo 21 da Convenção Americana. A cultura dos membros das comunidades indígenas corresponde a uma forma de vida particular de ser, ver e agir no mundo, constituída a partir de sua estreita relação com suas terras tradicionais e recursos naturais, não somente por serem estes seu principal meio de subsistência, mas também porque constituem um elemento integrante de sua cosmovisão, religiosidade e, deste modo, de sua identidade cultural.122

120 CIDH, ACESSO À JUSTIÇA E INCLUSÃO SOCIAL: O CAMINHO PARA O FORTALECIMENTO DA DEMOCRACIA NA BOLÍVIA. Doc. OEA/Ser.L/V/II, Doc. 34, 28 de junio de 2007, para. 231. 121 Corte I.D.H. Caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicarágua. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 31 de agosto de 2001. Série C No. 79. para. 149; Caso da Comunidade Indígena Yakye Axa Vs. Paraguai. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 17 de junho de 2005. Série C No. 125, para. 131; Caso da Comunidade Indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguai. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 29 de março de 2006. Série C No. 146, para. 118; Caso da Comunidade Indígena Xákmok Kásek. Vs. Paraguai. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 24 de agosto de 2010 Série C No. 214, paras. 85-87; Caso do Povo Saramaka. Vs. Suriname. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 28 de novembro de 2007. Série C No. 172, para. 85; Caso Povo Indígena Kichwa de Sarayaku Vs. Equador. Mérito e reparações. Sentença de 27 de junho de 2012. Série C No. 245, para. 145. 122 Corte I.D.H. Caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicarágua. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 31 de agosto de 2001. Série C No. 79. para. 149; Caso da Comunidade Indígena Yakye Axa Vs. Paraguai. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 17 de junho de 2005. Série C No. 125, para. 137; Caso da Comunidade Indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguai. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 29 de março de 2006. Série C No. 146, para. 118.

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Diante de tais parâmetros normativos e jurisprudenciais do sistema interamericano, observa-se que o Estado brasileiro não garante o direito de propriedade coletiva dos povos e comunidades indígenas, tal como fica claro nos casos emblemáticos relatados a respeito dos povos Kaiowá e Guarani e Gamella, cujas demandas por demarcação de seus territórios ancestrais não foram resolvidas satisfatoriamente. Esse quadro que aflige tantos outros povos indígenas no Brasil produz consequências negativas diretas sobre o direito a uma vida digna e à integridade pessoal dessas comunidades e de seus membros. Sem acesso à propriedade e à posse de seus territórios, tais povos indígenas ficam sujeitos a um estado permanente de vulnerabilidade social, alimentar, médica e sanitária, o que ameaça de forma contínua a sobrevivência dos membros dessas comunidades e a integridade das mesmas. Como já bem destacou a Corte Interamericana, o direito à vida “compreende não apenas o direito de todo ser humano de não ser privado da vida arbitrariamente, mas também o direito de que não sejam criadas condições que lhe impeçam ou dificultem o acesso a uma existência digna”123.

Além dessas condições precárias e da falta de oferta, pelo Estado, de serviços e bens básicos de subsistência, os povos indígenas no Brasil ainda estão expostos a ataques violentos e ameaças que reforçam as violações contra o direito à vida e integridade pessoal em razão de fenômenos como a expansão agropecuária, a concentração fundiária, desmatamento, expulsão de terras ancestrais, pressão de atividades de extrativismo mineral, mega-empreendimentos e discriminação racial. As demarcações de terras têm-se tornado cada vez mais escassas no Brasil e os conflitos sobre/em terras indígenas apresentam uma escalada de violência à medida que interesses econômicos e políticos se opõem às demandas das comunidades, avançando sobre seus territórios tradicionais. Os conflitos se acirram pelo fato de que grande parte das terras reivindicadas encontra-se hoje nas mãos de produtores rurais ou porque as terras indígenas abrigam importantes recursos naturais e minerais. Mesmo que a posse ou os títulos que os ocupantes não-indígenas possuem não tenham validade ante à evidência da ocupação tradicional dos territórios indígenas, fato é que o interesse econômico - junto de suas ramificações pelo aparato judicial e político-institucional do Estado - tem prevalecido sobre qualquer marco legal de proteção. Nesse sentido, o padrão de violência contra os povos indígenas no Brasil tem envolvido a atuação de milícias rurais ou outros agentes privados armados que, aproveitando-se da omissão das forças de segurança do Estado, equivalem a verdadeiros grupos paramilitares, tal como esta Honorável Comissão reconheceu em nota contra o massacre de Caarapó. Diante da iminência dos conflitos, ataques e massacres, os aparatos policiais têm se mostrado negligentes, mesmo quando avisados com antecedência sobre os riscos de confrontos, de modo que a negativa de prestação do serviço de segurança pública pelo Estado brasileiro acaba gerando uma atmosfera política e social que favorece a violência, brutalidade e ocorrência de inúmeros assassinatos. Para piorar, os programas de proteção de defensores indígenas de direitos humanos não se mostram eficazes, impedindo a ocorrência de novos atentados contra lideranças, e os vultosos cortes do orçamento da FUNAI diminuem a rede de proteção social dos indígenas. Dessa forma, a falta de garantia

123 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso da Comunidade Indígena Yakye Axa Vs. Paraguai. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 17 de junho de 2005. Série C No. 125, para. 161.

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do direito à propriedade comunitária da terra no Brasil faz com que os povos indígenas vivam constantemente com medo e preocupação. Esta situação os deixa vulneráveis às ameaças, perseguições e ataques por parte de terceiros, o que, somado à falta de proteção estatal, provoca sentimentos de angústia e de impotência.

Desse modo, ao não proteger os povos indígenas contra a violência de atores privados armados, o Estado brasileiro novamente incorre em violação do direito à vida e integridade pessoal dos membros dos povos indígenas. A esse respeito, a Comissão Interamericana reafirmou em diversas oportunidades que “los pueblos indígenas y tribales tienen derecho a que se prevenga la ocurrencia de conflictos con terceros por causa de la propiedad de la tierra, en particular en los casos en que retrasos en la demarcación, o la falta de demarcación, tienen el potencial de generar conflictos”124. Em outro documento, a CIDH é ainda mais enfática sobre esse assunto, ao fixar que

“los Estados están obligados a adoptar medidas para asegurar el control efectivo de sus territorios y proteger a los pueblos indígenas de actos de violencias u hostigamiento. en este mismo sentido, los pueblos indígenas y tribales tienen derecho a que se prevenga la ocurrencia de conflictos con terceros por causa de la propiedad de la tierra, en particular en los casos en que el retardo en la demarcación, o la falta de demarcación, tengan el potencial de generar conflictos”125.

Em decisão que concedeu medidas provisórias ao povo indígena Kankuamo frente ao Estado colombiano, em 2004, a Corte Interamericana também estabeleceu que

“el Estado Parte tiene la obligación, erga omnes, de proteger a todas las personas que se encuentren bajo su jurisdicción. Esto significa, como lo ha dicho la Corte, que tal obligación general se impone no sólo en relación con el poder del Estado sino también en relación con actuaciones de terceros particulares, inclusive grupos armados irregulares de cualquier naturaleza”126.

Por fim, a omissão governamental que causa todas essas violações contra os direitos dos povos indígenas é composta ainda pela deficiência das estruturas investigativas do Estado e pela dificuldade e lentidão dos processos criminais no tocante à averiguação dos assassinatos dos indígenas, o que gera um contexto de impunidade que retroalimenta novos ataques cada vez mais brutais e violentos. No plano do sistema judicial, cresce também a resistência política e jurisprudencial frente ao processo demarcatório, constituindo assim outra fonte violatória dos direitos à vida, integridade pessoal, garantias judiciais e proteção judicial dos povos indígenas. As decisões denegatórias dos direitos indígenas se baseiam em uma leitura sumarizada da decisão sobre o denominado “Marco Temporal” proferida pelo STF em 2009 (Pet. 3388). Apesar do seu caráter não-vinculante expresso pelo próprio tribunal, a decisão

124 Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Comunicado de Prensa. “CIDH condena asesinato de líder indígena Guarani-Kaiowá en Brasil”. 27 de junio de 2016. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2016/089.asp. Acesso: 30 ago. 2017. 125 Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Informe sobre la situación de los Derechos Humanos en Colombia. Doc.OEA/Ser.L/V/II.102. Doc.9 rev.1, 26 de febrero de 1999, párrs. 21-29. 126 Corte Interamericana de Derechos Humanos. Resolución de la Corte Interamericana de Derechos Humanos de 5 de julio de 2004. Medidas Provisionales solicitadas por la Comisión Interamericana de Derechos Humanos respecto de la República de Colombia. Caso Pueblo Indígena Kankuamo.

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vem seguidamente sendo replicada, em fundamentos fáticos que se distanciam do acórdão-paradigma para justificar a anulação de demarcação de terras, sob o argumento da inexistência de presença indígena nas áreas reivindicadas em 5 de outubro de 1988.

Como resultado dos fatos expostos, o Estado brasileiro não garante aos povos indígenas e a seus membros um recurso efetivo que os proteja de atos que violem seus direitos, nem um procedimento adequado que solucione suas reivindicações de terras ancestrais. Consequentemente, para além das violações cometidas contra os artigos 4, 8, 21 e 25 da Convenção Americana, fica patente que o Estado brasileiro não garante, em condições de igualdade, o pleno exercício e gozo dos direitos dos membros das comunidades indígenas que estão sujeitas à sua jurisdição, violando assim também os artigos 24 (Igualdade perante a Lei) e 1.1 (Obrigação de Respeitar os Direitos).

Ademais, ao não adotar medidas destinadas a investigar e punir as graves violações de direitos humanos perpetradas contra os povos indígenas, o Brasil desrespeita o dever dos Estados de prevenir, investigar, processar e punir os abusos aos direitos humanos reconhecidos pela Convenção Americana de Direitos Humanos, deixando também de cumprir a obrigação de reparar os familiares das vítimas e de revelar a verdade em torno das circunstâncias dos abusos 127 . Ao interpretar o parágrafo 1º do artigo 1º da Convenção, concernente à obrigação dos Estados de respeitar os direitos nela previstos, garantindo o seu livre e pleno exercício, a Corte Interamericana reiteradamente afirma que a impunidade fere as garantias judiciais das vítimas e familiares bem como seu direito de acesso à justiça e proteção judicial, previstos nos artigos 8º. e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos128.

Outrossim, para além de sua função reparatória e de sua contribuição para a consecução da verdade, tanto a Comissão quanto a Corte Interamericana fixaram o entendimento de que o dever de investigar, processar e punir desrespeitado pelo Brasil é também uma importante ferramenta de prevenção contra a repetição de novas violações e abusos. Desse modo, para pôr fim aos constantes atos de violência e ameaças contra os povos indígenas por parte de grupos armados à margem da lei, é fundamental que haja um combate à impunidade dos crimes cometidos não apenas por eventuais agentes estatais, mas também por atores privados. Em decisão de concessão de medidas provisórias para as Comunidades do Jiguamiandó e do Curbaradó em contexto análogo ao dos ataques sofridos pelas comunidades indígenas no Brasil por grupos privados, o então juiz Antônio Augusto Cançado Trindade esclareceu que, frente a atos de violência perpetrados por atores armados irregulares,

127 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras. Mérito. Sentença de 29 julho de 1988, série C, n.4, parágrafo 166. 128 Há vasta jurisprudência da Corte Interamericana contrária à impunidade, firmando o dever dos Estados de investigar, processar e punir criminalmente graves violações de direitos humanos. Exemplos emblemáticos envolvem: caso Barrios Altos, contra o Peru (2001); caso Moiwana, contra o Suriname (2005); caso Almonacid Arellano, contra o Chile (2006); caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia), contra o Brasil (2010); e caso Gelman (2011), contra o Uruguai. Além desses litígios, outros casos com contextos análogos de impunidade também podem ser citados, quais sejam Goiburú contra Paraguai, de 2006, e Massacre de la Rochela, contra a Colômbia, de 2007. Por fim, a CoIDH reforçou sua posição em vários outros casos – caso del Caracazo (2002), Trujillo Oroza (2002), Myrna Mack Chang (2003), Masacre Plan de Sánchez (2004), Carpio Nicolle y otros (2004), Tibi (2004), Hermanos Gómez Paquiyauri (2004), 19 Comerciantes (2004), Molina Theissen (2004), Hermanas Serrano Cruz (2005), Masacre de las Dos Erres (2007), Ticona Estrada (2008), Anzualdo Castro (2009), Contreras y otros (2011).

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"la protección de los derechos humanos determinada por la Convención Americana, de ser eficaz, abarca no sólo las relaciones entre los individuos y el poder público, sino también sus relaciones con terceros (grupos clandestinos, paramilitares, u otros grupos de particulares). Ésto revela las nuevas dimensiones de la protección internacional de los derechos humanos, así como el gran potencial de los mecanismos de protección existentes, - como el de la Convención Americana, - accionados para proteger colectivamente los miembros de toda una comunidad”129.

Finalmente, as obrigações do Estado brasileiro de identificar e julgar os responsáveis pelas violências, de assegurar condições de segurança para os povos indígenas e de proteger a vida e integridade pessoal dos membros dessas comunidades, respeitando suas identidades culturais e a relação especial que possuem com seus territórios tradicionais, encontram-se também codificadas em outros instrumentos normativos internacionais e até mesmo na legislação interna brasileira. No tocante à Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, além da violação dos direitos a recursos judiciais efetivos e expeditos (artigo XXXIII) e à paz, segurança e proteção (artigo XXX), a situação dos povos indígenas no Brasil revela a desconsideração pelo direito ao reconhecimento legal e proteção jurídica das suas terras tradicionais, preconizado no artigo XXV dessa importante normativa internacional130.

Ademais, reputa-se importante mencionar o desrespeito à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, especialmente os arts. 7º (direito ao desenvolvimento autônomo), 12 (direito a proteção efetiva contra violação de direitos), 14, 16 e 18 (direito às terras tradicionalmente ocupadas e a garantias contra retiradas e usos não autorizados desses territórios), assim como à Declaração da Organização das Nações Unidas sobre os direitos dos povos Indígenas, pontuando os arts. 7 (direito à vida, integridade física, paz e segurança), 8, 10 e 26 (direito às suas terras), 21 (direito à melhoria de suas condições de vida), 28 (direito à reparação) e 40 (direito a procedimentos eficazes e justos contra violações de seus direitos individuais e coletivos). No mesmo sentido, frisa-se a própria Constituição Federal Brasileira de 1988 (arts. 231 e 232), que reconhece os direitos indígenas quanto à identidade cultural e à terra, indissociáveis para os fins de interpretação e aplicação da norma jurídica, todavia, também desconsiderados conforme se demonstra nos casos em questão.

129 Corte Interamericana de Derechos Humanos. Resolución de la Corte Interamericana de Derechos Humanos de 15 de marzo de 2005. Medidas provisionales respecto de la República de Colombia. Caso de las Comunidades del Jiguamiandó y del Curbaradó. Voto concurrente del juez A.A. Cançado Trindade, pár. 4. 130 AG/RES. 2888 (XLVI-O/16). DECLARACIÓN AMERICANA SOBRE LOS DERECHOS DE LOS PUEBLOS INDÍGENAS. Disponível em: <http://www.oas.org/es/sadye/documentos/res-2888-16-es.pdf>

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Assinam: Defensoria Pública da União (DPU)

Universidade Federal da Grande Dourados - Faculdade de Direito e Relações

Internacionais (UFGD-FADIR)

Conselho Indigenista Missionário (CIMI)

Associação Juízes para a Democracia (AJD)

Aty Guasu Guarani e Kaiowá

Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)

Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB)

Conselho Continental da Nação Guarani – (CCNAGUA)

Comissão de Direitos Humanos da OAB/MA

Comissão Pastoral da Terra (CPT/MA)