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1 Aula 3 (22/09/16) Noções gerais do que seria a fenomenologia enquanto filosofia da consciência (parte II) (Sartre e Merleau-Ponty) Ronaldo Manzi Pensando a partir da consciência o entusiasmo de Sartre É interessante lembrar do entusiasmo com que foi recebida a fenomenologia na França na década de 1930. Basta recordar o texto Uma ideia fundamental da fenomenologia de Husserl: a intencionalidade (1939) de Jean-Paul Sartre. O texto revela certo “espírito de época” – um descontentamento com os modelos filosóficos franceses. Husserl foi recebido como uma saída do academicismo de Léon Brunschvicg, André Lalande e Émile Meyerson, por exemplo um academicismo que era visto como um “Espírito-aranha” nas palavras de Sartre, ou seja, uma forma de pensar em que a consciência “lança” para fora de si uma teia para trazer o mundo para dentro de si e digeri-lo, reduzindo-o à sua própria substância. Enfim, “contra a filosofia digestiva do criticismo empirista, do neo-kantismo, contra todo ‘psicologismo’, Husserl não deixa de afirmar que não podemos dissolver as coisas na consciência” (SARTRE, 1940, p. 32) 1 . O que impressionou Sartre na filosofia husserliana foi a possibilidade de pensar a existência da consciência enquanto consciência de outra coisa; ou seja, a possibilidade de se pensar a intencionalidade: toda consciência é consciência de algo (que não ela mesma). Husserl teria logrado “reinstaurar o horror e o charme nas coisas” (SARTRE, 1940, p. 34). De fato, ao ver um projeto que perpassa toda a obra de Husserl seria possível compreender como pode a consciência ter acesso a algo que não ela mesma. Sua questão central seria reduzida a estas palavras: como todo e qualquer conhecimento é possível? Entretanto, como observa Carlos Alberto Ribeiro de Moura, esse entusiasmo de Sartre não se dá devido à própria letra de Husserl e sim, muito mais, pelo modo que Sartre interpretou a fenomenologia: 1 Um exemplo que pode ter inspirado Sartre: “certamente, a ‘construção do conceito’ e, da mesma maneira, a livre ficção se efetuam espontaneamente, e aquilo que é gerado espontaneamente é, sem dúvida, um produto do espírito. No que concerne, porém, ao centauro tocando flauta, ele é representação no sentido de que se chama o representado de representação, mas não no sentido de que representação é o nome de um vivido psíquico. O centauro mesmo não é, naturalmente, nada de psíquico, não existe, nem na alma, nem na consciência, nem onde quer que seja, ele não é ‘nada’, é única e exclusivamente ‘imaginação’; dito com mais precisão: o vivido-de-imaginação é vivido de um centauro” (HUSSERL, 2006, p. 68).

Aula 3 (22/09/16) Noções gerais do que seria a fenomenologia

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Aula 3 (22/09/16)

Noções gerais do que seria a fenomenologia enquanto filosofia da

consciência (parte II) (Sartre e Merleau-Ponty)

Ronaldo Manzi

Pensando a partir da consciência – o entusiasmo de Sartre

É interessante lembrar do entusiasmo com que foi recebida a fenomenologia na

França na década de 1930. Basta recordar o texto Uma ideia fundamental da

fenomenologia de Husserl: a intencionalidade (1939) de Jean-Paul Sartre. O texto

revela certo “espírito de época” – um descontentamento com os modelos filosóficos

franceses. Husserl foi recebido como uma saída do academicismo de Léon Brunschvicg,

André Lalande e Émile Meyerson, por exemplo – um academicismo que era visto como

um “Espírito-aranha” nas palavras de Sartre, ou seja, uma forma de pensar em que a

consciência “lança” para fora de si uma teia para trazer o mundo para dentro de si e

digeri-lo, reduzindo-o à sua própria substância. Enfim, “contra a filosofia digestiva do

criticismo empirista, do neo-kantismo, contra todo ‘psicologismo’, Husserl não deixa de

afirmar que não podemos dissolver as coisas na consciência” (SARTRE, 1940, p. 32)1.

O que impressionou Sartre na filosofia husserliana foi a possibilidade de pensar

a existência da consciência enquanto consciência de outra coisa; ou seja, a possibilidade

de se pensar a intencionalidade: toda consciência é consciência de algo (que não ela

mesma). Husserl teria logrado “reinstaurar o horror e o charme nas coisas” (SARTRE,

1940, p. 34). De fato, ao ver um projeto que perpassa toda a obra de Husserl seria

possível compreender como pode a consciência ter acesso a algo que não ela mesma.

Sua questão central seria reduzida a estas palavras: como todo e qualquer conhecimento

é possível?

Entretanto, como observa Carlos Alberto Ribeiro de Moura, esse entusiasmo de

Sartre não se dá devido à própria letra de Husserl e sim, muito mais, pelo modo que

Sartre interpretou a fenomenologia:

1 Um exemplo que pode ter inspirado Sartre: “certamente, a ‘construção do conceito’ e, da mesma

maneira, a livre ficção se efetuam espontaneamente, e aquilo que é gerado espontaneamente é, sem

dúvida, um produto do espírito. No que concerne, porém, ao centauro tocando flauta, ele é representação

no sentido de que se chama o representado de representação, mas não no sentido de que representação é o

nome de um vivido psíquico. O centauro mesmo não é, naturalmente, nada de psíquico, não existe, nem

na alma, nem na consciência, nem onde quer que seja, ele não é ‘nada’, é única e exclusivamente

‘imaginação’; dito com mais precisão: o vivido-de-imaginação é vivido de um centauro” (HUSSERL,

2006, p. 68).

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a fenomenologia seria um método ‘descritivo’ que se encarregaria de

fornecer as ‘verdades’ que a ciência nos omite, mas no mesmo sentido em

que a ciência as diz: ela seria um saber sobre o ‘mundo existente’, sobre o

mundo ‘concreto’, como já foi de bom tom se referir àquela parcela da

realidade que se furtava à ‘abstração’ científica, ou que era pura e

simplesmente desconsiderada pela ciência, sempre siderada apenas pelas ‘leis

gerais’. Foi assim que nos anos 1950 se fez fenomenologia de tudo, mais ou

menos como nos anos 1970 se iria fazer ‘semiologia’ de tudo, ou, logo

depois, análise ‘estrutural’ de tudo. Sartre não disfarça a forte impressão que

lhe causou o relato de Raymond Aron, contando-lhe que na Alemanha

fenomenológica de então, se podia fazer a ‘descrição’ de um copo em uma

mesa de bar, – e que isso era... ‘filosofia’! Assim como a literatura da época

não nos poupou de páginas infindáveis e aborrecidas, que ‘descreviam’ com

todos os seus detalhes, presumivelmente infinitos, uma maçaneta de porta

‘concreta’. Mas o que Husserl teria a ver com tudo isso? Rigorosamente nada

(MOURA in HUSSERL, 2006, pp. 17-18).

Apesar do mau humor de Moura com maçanetas, as descrições de Sartre parecem

centrais para pensar o que é uma filosofia da consciência. Sartre talvez seja o exemplo

mais claro desse “acontecimento”.

Terei oportunidade de voltar ao pensamento de Sartre em vários momentos desta

pesquisa. Mas, seria interessante destacar, em primeiro lugar, um tema fundamental

aqui: o sonho – tema ligado à questão da consciência em Sartre.

Em 1940, em O imaginário – psicologia fenomenológica do imaginário, Sartre

retoma uma passagem da primeira meditação de Descartes:

contudo, devo aqui ponderar que sou homem, e, consequentemente, que

tenho o hábito de dormir e de representar, em meus sonhos, as mesmas

coisas, ou algumas vezes menos prováveis, que esses dementes despertos.

Quantas vezes me aconteceu sonhar, durante a noite, que me encontrava

neste lugar, vestido e próximo do fogo, apesar de me achar totalmente nu em

minha cama? Afigura-se-me agora que não é com olhos adormecidos que

olho para este papel; que esta cabeça que eu movo não se encontra

adormecida; que é com intento deliberado que estendo esta mão e que a sinto:

o que sucede no sono não parece ser tão claro nem tão inconfundível quanto

tudo isso. Porém, meditando diligentemente sobre isso, recordo-me de haver

sido muitas vezes enganado, quando dormia, por ilusões análogas. E,

persistindo nesta meditação, percebo tão claramente que não existem

quaisquer indícios categóricos, nem sinais bastante seguros por meio dos

quais se possa fazer uma nítida distinção entre a vigília e o sono, que me

sinto completamente assombrado: e meu assombro é tanto que quase me

convence de que estou dormindo (DESCARTES, 1999b, p. 251).

Interessa esse assombro de Descartes: é bem possível que se possa estar

sonhando... Este é um dos passos da dúvida hiperbólica: o caso da ilusão e da

possibilidade de nos enganarmos. Por mais extravagante que seja o exemplo do sonho,

há sim, para Descartes, uma possibilidade de confundir o sonho com algo real, como

testemunha nesta carta: “depois de o sono ter-me, por muito tempo, feito o pensamento

percorrer bosques, jardins e palácios encantados – onde se experimentam todos os

prazeres imaginados nas Fábulas –, misturo insensivelmente meus devaneios diurnos

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aos da noite; e quando percebo estar acordado, é tão-somente para que meu

contentamento seja mais perfeito” (DESCARTES apud MATOS, 1997, p. 109).

Quando Descartes diz que não percebe algum indício seguro que possa fazer

uma nítida distinção entre a vigília e o sono, ele diz, ao mesmo tempo, que há um grão

de verdade no sonho. Nada é tão absurdo no sonho que não possamos reconhecer algum

traço de verdade. Eis como Descartes faz tal afirmação ao seguir a dúvida hiperbólica

do sonho:

presumamos, então, que nos encontramos dormindo e que todas essas

particularidades, ou seja, que abrimos os olhos, que movemos a cabeça, que

estendemos as mãos, e coisas análogas, não passam de ilusões; e

consideremos que talvez nossas mãos, assim como todo o nosso corpo, não

são como os vemos. Contudo, é necessário ao menos confessar que as coisas

que nos são apresentadas durante o sono são como quadros e pinturas, que só

podem ser formados à semelhança de alguma coisa real e verdadeira; e que,

ao menos desta maneira, essas coisas gerais, isto é, olhos, cabeça, mãos e

todo o resto do corpo, não são coisas imaginárias, e sim verdadeiras e

existentes (DESCARTES, 1999b, p. 251).

Segue-se um caminho que não exclui as possibilidades de erro, ilusão (tal como o

sonho) e loucura.

Descartes parte da constatação de que os sentidos, algumas vezes, enganam.

Segue mostrando que a loucura é possível, mas afirma que não seria o caso, uma vez

que se trataria de algo extraordinário. E, antes de colocar a possibilidade da existência

de um Gênio Maligno (possibilidade mais extrema de Descartes para duvidar de tudo),

afirma que é quase impossível saber se estamos ou não sonhando, pois sonhamos coisas

que reconhecemos ter alguma relação com a realidade. Descartes estabelece um

“crescente”: da dúvida dos sentidos até o Gênio Maligno. Não por acaso Derrida vê

nisso não só uma continuidade, mas também uma forma de deixar mais “plausível”,

mais “natural”, o raciocínio de Descartes: parece exagerado e extraordinário pensar que

sou louco, “então vamos pensar um argumento mais profundo e, ao mesmo tempo, mais

próximo”: o do sonho – algo que ninguém pode negar que já vivenciou (mesmo porque

seria difícil acompanhar o argumento da loucura, uma vez que a pessoa mesmo diz que

pode estar louca!, não oferecendo qualquer motivo para acompanhar seu raciocínio).

Assim, “ele [o exemplo do sonho] constitui, na ordem metódica que é aqui a nossa, a

exasperação hiperbólica da hipótese da loucura” (DERRIDA, 1967a, p. 79). Por que

isso interessa aqui?

Interessa porque mostra o tipo de argumento que se faz com algo que a

psicanálise trataria como uma questão inconsciente. Para Sartre, ao contrário, estamos

em pleno território da consciência.

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No trecho citado de Descartes, Sartre pensa que o argumento do sonho não

poderia ter validade na dúvida hiperbólica. Sartre segue aqui a fenomenologia

husserliana tentando mostrar como o mundo do sonho não se passa como o mundo real,

impossibilitando duvidar se estamos ou não sonhando. Na verdade, Sartre busca mostrar

que o mundo dos sonhos participa do mundo imaginário. Ao que isto nos leva?

A imaginação teria como função transcender ou aniquilar a realidade do mundo

percebido, devido a uma intencionalidade que teria a capacidade de aniquilar o mundo.

No olhar fenomenológico, “o real e o imaginário, por essência, não podem coexistir.

Trata-se de dois tipos de objetos, de sentimentos e de condutas inteiramente

irredutíveis” (SARTRE, 1940, p. 188). Ora, seguindo Husserl, somente a consciência

perceptiva teria um contato direto com o mundo. Isto porque somente na percepção o

objeto estaria em proximidade, presente “em carne e osso” – qualquer outro modo nos

levaria a um objeto não-presente, como é o caso da imaginação:

evidência significa, como os desenvolvimentos acima já mostra claramente, a

efetuação intencional da doação de coisas elas mesmas. Para dizer mais

precisamente, a evidência é a forma geral, por excelência, da

‘intencionalidade’, da ‘consciência de algo’, forma na qual o objeto do qual

se tem consciência é apresentado à consciência sob o modo do apreender ‘ele

mesmo’, do visto ‘ele mesmo’, do ser-próximo-desse-objeto-ele-mesmo de

um modo consciente. Podemos dizer também que é a consciência original: é

‘tal coisa ela mesma’ que apreendo, originalmente, em contraste, por

exemplo, com a apreensão pela imagem ou com toda outra pré-opinião,

intuitiva ou vazia. Entretanto, deve-se indicar aqui, imediatamente, que a

evidência tem diversos modos de originalidade. O modo primitivo da doação

de coisas elas mesmas é a percepção. O ‘ser-em-presença-de’ é, sob forma

consciente, para mim enquanto ser que percebe, meu ‘ser-em-presença-de-

atualmente’: eu mesmo em presença do percebido ele mesmo (HUSSERL,

1996b, pp. 214-215). Desde 1936 (em A imaginação), em sua primeira obra, o objetivo de Sartre era

mostrar como “a imagem é um certo tipo de consciência. A imagem é um ato e não uma

coisa. A imagem é consciência de alguma coisa” (SARTRE, 1989, p. 120). Para chegar

a esta conclusão, Sartre foi crítico com os sistemas metafísicos e psicológicos de sua

época. Ele mostrou como continuava vivo o associacionismo e como a fenomenologia

era, principalmente aquela apresentada em Ideias..., era totalmente distinta das ciências

psicológicas, mas sobretudo mostrou como a fenomenologia apontava para um novo

modo de pensar: ela exigia que se expulsasse todos os “habitantes” da consciência,

“libertando o mundo psíquico de um grande peso” (SARTRE, 1989, p. 110). Neste

caminho, Sartre pretendia buscar um novo sentido de imagem que não fosse comparável

à percepção (como uma percepção fraca, por exemplo).

Já em 1940, Sartre é mais direto e descreve a imagem sob quatro características:

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1. Como uma consciência: imaginar é ter um certo tipo de consciência2;

2. Como um fenômeno de “quase-observação”: há um saber imediato da imagem,

pois como ela se dá como um todo, como aquilo que tenho consciência, eu sei o

que imagino sem apreender nada dela (porque eu a constituo). Por isso uma

quase-observação: uma observação que não apreende nada;

3. Algo em que a consciência imaginativa põe seu objeto como um nada: a imagem

se põe como um certo nada, porque o objeto intencional imaginado tem uma

posição de ausência, de inexistente: “o ato negativo é constitutivo da imagem”

(SARTRE, 1940, p. 232);

4. Como espontaneidade: porque a consciência imaginativa produz e conserva seu

objeto em imagem.

Importante destacar como o problema da imaginação nos leva a pensar uma relação

diferente com o mundo. Como se pode perceber, a consciência imaginativa, descrita por

Sartre leva a uma certa negação do mundo percebido, pois “a propriedade da imagem é

precisamente a irrealidade”, o que jamais permitiria confundi-la com o mundo da

percepção:

(...) a consciência, para produzir o objeto em imagem, ‘Carlos VIII’, deve

poder negar a realidade do quadro e só poderá negá-lo tomando um recuo em

relação à realidade vista na sua totalidade. Pôr uma imagem é constituir um

objeto à margem da totalidade do real, é, portanto, manter o real à distância,

liberar-se dele, numa palavra, negá-lo. (...) A condição para que uma

consciência possa imaginar é então dupla: é preciso, ao mesmo tempo, que

ela possa colocar o mundo na sua totalidade sintética e, ao mesmo tempo, que

ela possa colocar o objeto imaginado como fora de alcance em relação a esse

conjunto sintético, quer dizer, colocar o mundo como um nada em relação à

imagem (SARTRE, 1940, p. 233).

Mais à frente acrescenta: “pois uma imagem não é o mundo-negado, puramente

e simplesmente, ela é sempre o mundo negado de um certo ponto de vista, precisamente

aquele que permite colocar a ausência ou a inexistência de tal objeto que

presentificamos ‘em imagem’” (SARTRE, 1940, p. 234).

Em Descartes há uma confusão entre a imaginação e a percepção, porque na

filosofia moderna a questão da representação (seja de uma imagem, seja de algo

percebido) é tomada enquanto um “habitante” da consciência: nos dois casos temos uma

representação na consciência. Com Husserl, mais especificamente com a

fenomenologia, há um “esvaziamento” da consciência. Por exemplo: na percepção a

2 Como explicita Carlos Alberto Ribeiro de Moura: “se todos os atos têm relação a um objeto, essa

relação é diferente de um tipo de ato a outro e identifica-se à natureza da intenção. É o caráter da intenção

que é distinto na percepção, na representação por imagens ou na representação por signos” (MOURA,

1989, p. 79).

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coisa está na minha frente e não na minha consciência. Na imaginação o que há é uma

negação do mundo. Assim, dificilmente um e outro poderiam ser confundidos3.

Husserl destaca que toda consciência é consciência de algo – a consciência está

sempre voltada a algo (que não está necessariamente à nossa frente). Com isso, Husserl

nega que o domínio da fenomenologia seja da imanência dos objetos à consciência. A

fenomenologia pretende ser o estudo dos fenômenos, quer dizer, do que aparece à

consciência. Isso faz com que Husserl rompa com um princípio de imanência – um

pressuposto que comanda a filosofia clássica, que tem como premissa que tudo aquilo

de que somos conscientes (o mundo da representação) está na consciência.

Para ficar mais claro, lembro que, em uma análise real do vivido, Husserl

denomina noese todo componente próprio do vivido intencional; e noema seu correlato

intencional. Assim,

em tudo é preciso tomar o correlato noemático, que aqui se chama ‘sentido’

(em significação bem ampliada), exatamente assim como ele está contido de

maneira ‘imanente’ no vivido de percepção, de julgamento, de prazer, etc.,

isto é, tal como nos é oferecido por ele, se interrogarmos puramente esse

vivido mesmo (HUSSERL, 2006, p. 204)4.

Com esse correlato, não se trata mais de um mundo representado para a consciência (um

exterior que poderia ser representado) enquanto conteúdo mental, mas de algo vivido

enquanto sentido (imanente à consciência).

Com a redução fenomenológica proposta por Husserl, não se coloca em questão

a existência da coisa percebida, mas o que é vivido pela consciência como dado eidético

– o sentido essencial do vivido daquilo que aparece enquanto tal, sem precisar buscar

qualquer tipo de adequação entre um conteúdo mental e a coisa natural. O exemplo da

árvore é clássico em Husserl:

a árvore pura e simples, a coisa na natureza, é tudo menos esse percebido de

árvore como tal, que, como sentido perceptivo, pertence inseparavelmente à

percepção. A árvore pura e simples pode pegar fogo, pode ser dissolvida em

seus elementos químicos etc. Mas o sentido – o sentido desta percepção, que

é algo necessariamente inerente à essência dela – não pode pegar fogo, não

3 “Este ‘na-consciência’ é um ‘estar-em’ de um tipo completamente peculiar, a saber, um ‘estar-em’ não

como elemento integrante real, mas antes como elemento intencional, enquanto ‘estar-idealmente-em’ ou,

coisa que quer dizer o mesmo, como um ‘estar-na-consciência’ enquanto seu sentido objetivo imanente”

(HUSSERL, 2013b, p. 80). 4 Carlos Alberto Ribeiro de Moura descreve desse modo: “o noema, não sendo ‘parte real’ da consciência,

não terá mais nada a ver com o ‘psíquico’ da psicologia tradicional. Husserl lhe dará o estatuto das

significações em nossa linguagem: o noema é o meio ideal pelo qual a realidade se oferece a uma

consciência. e isso também torna melhor delineada a própria noção de fenômeno ou modo subjetivo de

doação. Um modo de doação de objetos não é dito subjetivo por ser um habitante da interioridade do

sujeito psicológico. Um fenômeno é subjetivo por ser uma doação de determinado objeto sempre

reportada a um ‘ponto de vista’, por princípio unilateral e variável. E o ‘subjetivo’ assim compreendido

está presente seja na nossa vida perceptiva, seja em nossa linguagem” (MOURA in HUSSERL, 2006, pp.

20-21).

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possui elementos químicos, nem forças, nem qualidades reais (HUSSERL,

2006, p. 206)5.

O problema pode ser colocado em termos ainda mais claros: “enquanto os

vividos forem tratados como ‘conteúdos’ ou como ‘elementos’ psíquicos (...) não se

poderá avançar um só passo” (HUSSERL, 2006, pp. 247-248). Sendo assim, o exemplo

da cera que derrete em Descartes não muda em nada o sentido da cera...

Em Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica,

Husserl diz que deve haver uma diferença entre a analogia estrutural do significado e da

percepção. No caso da intenção significante o veículo é arbitrário, convencional – um

complexo sonoro gráfico, por exemplo. Já na intenção perceptiva o veículo é um

conjunto de sensações em que há um elo intrínseco (entre este conjunto de sensações e o

objeto constituído). A intenção significativa exige, portanto, uma doação prévia da

consciência à palavra física que é seu veículo – um signo físico dado e uma significação

que eu viso. Já na intenção perceptiva, há apenas um objeto.

Este ponto é importante para a crítica da representação clássica, pois na

percepção só há um objeto, diferentemente do sujeito cartesiano em que haviam dois (a

ideia imagem e o objeto do qual tal ideia se reportava). Ora, Husserl diz aqui que, na

percepção, não há mediação de uma imagem – há uma relação direta com o objeto que é

transcendente. Neste momento, Husserl rompe com o princípio de imanência que

comandava a filosofia clássica enquanto tal. Ou seja, ele rompe com aquele princípio

que diz que tudo aquilo que se toma consciência está no seu interior.

Nas Investigações lógicas a interioridade é a implosão deste princípio, para o

“júbilo” de Sartre, que vê nesta tese o achado fundamental da intencionalidade

husserliana. Husserl, segundo Sartre, nos ensina que não se pode dissolver as coisas no

espírito, porque elas não são da mesma natureza que a coisa. Com a intencionalidade, a

própria noção de consciência se ilumina: ela não é uma interioridade; não há nada nela

salve um deslizamento para fora de si. Não há um dentro; ela é apenas o fora dela

mesma e é esta fuga que a constitui como consciência. Eis como Sartre caminha para

realizar sua filosofia da existência. Primeiro, contra uma filosofia da imanência, pois

não há coincidência de si consigo; segundo, a intencionalidade necessita de uma

5 “O psicologismo, partindo da fórmula ambígua, ‘o mundo é nossa representação’, faz com que se

desvaneça a árvore que percebo em uma miríade de sensações, de impressões coloridas, táteis, térmicas

etc., que são ‘representações’. De sorte que, finalmente, a árvore aparece como uma soma de conteúdos

subjetivos e é ela própria um fenômeno subjetivo. Ao contrário, Husserl começa por colocar a árvore fora

de nós” (SARTRE, 1989, p. 108).

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consciência de existir como alguma coisa que não ela mesma, nos livrando de uma

interioridade.

Se nos libertarmos deste vício cartesiano, poderíamos verificar que a redução

fenomenológica husserliana não será uma limitação à esfera da imanência real da

consciência, não será uma limitação da cogitatio, mas daquilo que é dado em pessoa à

consciência. Por exemplo: na percepção, percebo alguns lados de um objeto; os lados

não vistos são transcendentais e os vistos, imanentes. Com esta nova formulação,

Husserl dá início ao que será a imanência transcendental (algo que inclui em si seus

objetos – uma objetividade sem exterior a ela). Comenta Carlos Alberto Ribeira de

Moura:

desde então, se a subjetividade fenomenológica não tem mais um exterior a

si, ela não é mais um ego cartesiano, não é uma parcela do mundo, não é

mais uma região, já que o domínio dos vividos transcendentais é em si

mesmo fechado e sem limites ‘que pudessem separá-lo de outras regiões’. E

será no interior dessa subjetividade alargada, que compreende em si seus

objetos, que o fenomenólogo investigará a correlação da consciência à

transcendência, dando como certo que a formulação radical do problema do

conhecimento se encontra menos nas Meditações de Descartes e mais no

Tratado de Hume [cf. HUSSERL, 1970, pp. 248-260]: explicitar, não a

passagem de uma ‘imanência fictícia’ a uma ‘transcendência fictícia’, mas

sim investigar como uma multiplicidade de fenômenos pode ser a

apresentação de um objeto idêntico no fluxo da experiência (MOURA, 2001,

pp. 169-170)6.

A consciência não é, portanto, uma espécie de “caixa de Pandora” cheia de

conteúdos mentais em que alguns desses conteúdos poderiam ser guardados ou não. É

esta teoria que entusiasmou Jean-Paul Sartre: “toda consciência, Husserl a mostrou, é

consciência de algo. Isso significa que não há consciência que não seja posição de um

objeto transcendente ou, se se preferir, que a consciência não tem ‘conteúdo’”

(SARTRE, 2006, p. 17)7. Tendo isso em vista, para Sartre, Descartes realiza uma

espécie de sofisma... Por quê?

6 Por isso discordo profundamente dessa questão conclusiva da tese de livre-docência de Fausto Castilho

sobre Husserl: “buscamos verdades de ciência sobre ‘o ser verdadeiro’; assim procedendo, não entramos,

por acaso, no ‘caminho perigoso’ da ‘dupla verdade’ (subjetiva e objetiva)?” (CASTILHO, 2015, p. 226). 7 Vale citar toda passagem: “uma mesa não está na consciência, mesmo a título de representação. Uma

mesa está no espaço, ao lado da janela, etc. A existência da mesa, com efeito, é um centro de opacidade

para a consciência; seria preciso um processo infinito para inventariar o conteúdo total de uma coisa.

Introduzir essa opacidade na consciência, isso seria reenviar ao infinito o inventário que ela pode

endereçar a ela mesma, fazer da consciência uma coisa e recusar o cogito. O primeiro passo de uma

filosofia deve ser para expulsar as coisas da consciência e para reestabelecer a verdadeira relação dessa

com o mundo, a saber, que a consciência é consciência posicional do mundo. Toda consciência é

posicional naquilo que ela se transcende para esperar um objeto, e ela se esgota nessa posição mesma:

tudo aquilo que há de intenção na minha consciência atual é dirigida ao exterior, em direção à mesa; todas

as minhas atividades judicativas ou práticas, toda minha afetividade do momento se transcende, visam a

mesa e se absorvem. Toda consciência não é conhecimento (há consciências afetivas, por exemplo), mas

toda consciência que conhece não pode ser conhecimento senão de seu objeto” (SARTRE, 2006, p. 18).

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O que acontece com uma consciência que sonha? Para Sartre, ela não teria

nenhuma relação com a realidade, com a presença das coisas. O sonho seria a realização

de um imaginário “fechado”, como se o sonho fosse um mundo possessivo (meu mundo

imaginário, meu mundo próprio, com uma estória própria e que, por isso, não tem

nenhuma relação com a existência das coisas).

Entretanto, quando sonhamos, no momento em que sonhamos, é certo que não

poderíamos saber se estamos ou não sonhando. Sim, é verdade que é possível que no

sonho eu possa me imaginar percebendo as coisas. Contudo, Sartre afirma: é impossível

duvidar que eu estou percebendo algo quando estou desperto. Posso até fingir que sim,

mas se trataria de um fingimento: finjo ser possível que neste momento não estou

percebendo o mundo etc., mas o próprio sujeito saberia ser absurda tal suposição.

Sartre acredita que essa suposição seria tão absurda quanto a proposição que

Descartes nega logo de cara: imaginemos que eu não existisse etc. Ora, essa é a primeira

certeza para Descartes: a certeza da sua existência (eu penso, logo existo). Ou seja, a

reflexão de que se está pensando é suficiente para deixar de duvidar que se existe.

Afinal, “(...) podemos falar sem saber que falamos, respirar sem saber que respiramos.

Mas eu não posso pensar que eu falo sem saber que eu penso que eu falo” (SARTRE,

1940, p. 195). Franklin Leopoldo e Silva comenta esta passagem:

penso que respiro, logo existo é rigorosamente equivalente a penso, logo

existo. E isso vale para todos os argumentos semelhantes [em Descartes! –

sejamos específicos], o que indica que pensamento e existência do

pensamento são indissociáveis. É isso o que significa a descoberta de si

mesmo como ser pensante (LEOPOLDO E SILVA, 1993, p. 54).

É verdade que posso até duvidar que o objeto que percebo seja ou não real, mas

não posso duvidar que estou percebendo algo. Segundo Sartre, o próprio Descartes toma

como verdadeiro que o homem que percebe está consciente de que percebe:

“simplesmente é preciso notar que o homem que sonha, por seu lado, tem uma certeza

análoga [da consciência de estar percebendo]. Sem dúvida há uma fórmula familiar: ‘me

belisco para saber se não estou sonhando’, mas trata-se unicamente de uma metáfora

que não corresponde a nada concreto no espírito (...)” (SARTRE, 1940, p. 207).

Essa conclusão de Sartre vem de sua concepção da consciência enquanto

reflexiva e pré-reflexiva. Sartre diz que, quando se sonha, não há uma consciência

reflexiva (que possa refletir sobre si mesma, tal como dizer: “eu estou sonhando”). Ora,

a seu ver, no momento em que a consciência é reflexiva (momento em que se poderia

dizer reflexivamente “eu estou sonhando”), o sujeito está desperto e, por isso, ele está,

de fato, consciente de estar percebendo o mundo: “simplesmente, basta – para que eu

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10

passe da atitude do sonho para aquela do desperto – basta que eu apreenda como algo

existente” (SARTRE, 1940, p. 212).

No mundo dos sonhos viveríamos, portanto, em uma consciência primitiva e

irrefletida. Contudo, quando eu digo “eu sonho”, eu pronuncio algo a partir da

consciência reflexiva. O sofisma de Descartes estaria exatamente no questionamento

reflexivo sobre se se está sonhando ou não. Isso seria impossível para a consciência no

momento em que está dormindo. Na verdade, o que Sartre propõe é que é absurda a

afirmação no presente do indicativo do verbo sonhar... jamais posso dizer “eu sonho”,

pois pressuporia que a consciência esteja desperta e, por isso, não estar sonhando... O

que poderíamos dizer é: “eu sonhei” – o sonho é sempre descrito pela memória (ou

projetivamente, tal como: “eu desejo sonhar hoje à noite”; “eu sonharei”). Sendo assim,

o fato de saber estar sonhando é reflexivo, uma espécie de conclusão: “então aquilo que

vivenciei era um sonho”..., pois a consciência precisa voltar a si mesma para anunciar o

que vivenciou de forma irrefletida. Eis a conclusão de Sartre sobre aquela passagem de

Descartes: “eu percebo, é negar que eu sonho, ou se se quiser, é uma motivação

suficiente e necessária para eu afirmar que eu não sonho” (SARTRE, 1940, p. 209); ou

ainda: “diríamos que o mundo do sonho não se explica senão se admitirmos que a

consciência que sonha é privada por essência da faculdade de perceber” (SARTRE,

1940, p. 212).

Temos, assim, uma diferença de presença entre a percepção e o sonho. Não

posso duvidar que estou percebendo, ou não, porque a coisa está presente na minha

frente em carne e osso (o que percebo é uma evidência – o que é presente e se apresenta

para mim sem qualquer possibilidade de se estar sonhando ou não). O sonho tem outro

estatuto: o que se passa no sonho é uma crença. Mas de onde vem essa crença na

realidade da imagem no sonho?

Surge aqui uma aparente dificuldade. Posso até crer em algo que não tenho

certeza. Por exemplo, posso crer na existência de um amor sem saber se ele é real ou

não. Mas, de qualquer modo, nessa crença, tenho consciência de crer em algo mesmo

que eu não possa prová-lo. Ter uma crença não significa partilhar uma indistinção com

o sonho, pois no momento em que creio em algo “duvidoso”, tenho certeza que creio

(há o pensamento de crença, tal como a certeza da existência de si: se penso é porque

existo de fato; se creio é porque existo de fato, porque é inegável que haja um

pensamento de crença). Ou seja, há uma reflexibilidade na crença de algo duvidoso. A

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diferença com o sonho está aqui: “o sonho é uma consciência que não pode sair da

atitude imaginária” (SARTRE, 1940, p. 211), já a crença em geral é reflexiva.

O mundo dos sonhos não teria, portanto, nenhuma relação com o mundo real (e

nem poderia ser “corrigido” pela percepção). Seria um mundo em que o sujeito crê e

não um mundo evidente. Poderíamos até dizer que nos sonhos temos uma “atmosfera de

mundo”, mas não mais do que isso. O sujeito sonhando entra no jogo do sonho: ele

entra na lógica do onírico e crê nesse mundo vivenciado (ao menos enquanto está

sonhando), pois nesse momento ele não pode refletir e não tem como ter distância da

sua crença.

Desperto, sei que sonho e posso decidir acreditar na estória sonhada, tal qual ao

ler um livro eu posso ficar tão fascinado pela estória que nela acredito: é “(...) esse

gênero de fascinação sem posição de existência que denomino crença”, diz Sartre

(SARTRE, 1940, p. 217). O mundo dos sonhos é, para Sartre, o mesmo mundo da

literatura: “é por isso que o mundo do sonho como aquele da leitura se dá como

inteiramente mágico; somos invadidos pelas aventuras dos personagens sonhados como

por aqueles dos heróis de romance” (SARTRE, 1940, p. 217).

Mas devo questionar: por que crer nos meus sonhos? Porque no imaginário

principalmente diurno, há algo mágico e fascinante – o que lhe dá um caráter fatal.

“Para falar a verdade, uma consciência que sonha é sempre consciência não-tética dela

mesma na medida em que está fascinada pelo sonho, mas ela perdeu seu ser-no-mundo

e não reencontrará senão desperta” (SARTRE, 1940, p. 219). Ficamos fascinados

porque a estória sonhada nos surpreende, uma vez que não segue a lógica da

consciência reflexiva. Um mundo em que tudo pode acontecer, sem que haja realmente

uma escolha do sujeito (que exige uma consciência reflexiva). “Assim, contrariamente

àquilo que poderíamos crer, o mundo imaginário se dá como um mundo sem liberdade:

ele não é mais determinado, ele é o avesso da liberdade, ele é fatal” (SARTRE, 1940, p.

218).

Sartre conclui que “o sonho é uma experiência privilegiada que pode nos ajudar

a conceber o que seria uma consciência que teria perdido seu ‘ser-no-mundo’ e que seria

privada, no mesmo golpe, da categoria do real” (SARTRE, 1940, p. 225). Daí porque

associa e desassocia o sonho com a alucinação, pois a pessoa que alucina sabe que não

se trata de algo real, mas sim de uma fantasia – de algo que se passa no imaginário. Os

doentes (que passam por alucinações) testemunham isso: confessam que vivem num

mundo imaginário, que tomam uma imagem como uma percepção. Eis a questão central

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de Sartre: “(...) como o doente pode crer na realidade de uma imagem que se dá por

essência como um irreal?” (SARTRE, 1940, p. 195).

Todo problema está aqui na crença: o alucinado crê na alucinação mesmo

sabendo que não se trata de algo real. Na verdade, trata-se de uma decisão. Por

exemplo: o doente pode nos dizer que está vendo uma lagartixa na parede; bem, se o

médico realmente colocar uma lagartixa na parede, o doente logo dirá: “mas essa

lagartixa é real!”. Fácil concluir que a alucinação é declaradamente algo irreal. A

questão é que o doente se fia nessa irrealidade: “o doente não fica surpreso pela sua

alucinação, ele não a contempla: ele a realiza” (SARTRE, 1940, p. 199). O próprio

sujeito, pela sua atividade criadora, decide crer no seu imaginário – ele organiza sua

vida a partir das suas alucinações, mesmo sabendo que elas não são reais. Afinal, “(...)

sem dúvida, antes de tudo, o doente se adapta às suas visões, mas as aparições e as

vozes se deixam penetrar e, dessa acomodação recíproca, resulta sem dúvida um

comportamento geral do doente que poderíamos chamar a conduta alucinatória”

(SARTRE, 1940, p. 205).

Embora seja possível associar o sonho à alucinação, Sartre não pode admitir o

sujeito cartesiano em dúvida se está sonhando ou não. Ele poderia até crer em seus

sonhos (como um doente crê em sua alucinação), mas não poderia colocar em questão

se está ou não sonhando como propõe Descartes... É impossível que o sujeito diga “eu

sonho” ou “eu estou sonhando”! Ele pode dizer, isto sim: “eu alucino”.

Ou seja, há uma crença no mundo. Em palavras ainda mais claras: o sujeito

acredita na existência do mundo e é a consciência a responsável por isso. Nada mais

estranho ao que Husserl propôs... A redução fenomenológica é exatamente a suspenção

da crença no mundo. Daí Sartre realizar um existencialismo, em que a existência

precede a essência...

De qualquer modo, nessa análise do sonho, fica claro que Sartre propõe uma

filosofia da consciência. E ela, a consciência, ditaria o que se passa no sujeito.

Três anos depois de O imaginário, Sartre publica sua grande tese: O ser e o nada

– ensaio de ontologia fenomenológica (1943). Voltarei a essa tese em vários momentos

do curso, mas apenas para pontuar: sua tese, como o subtítulo nos diz, leva a pensar

uma ontologia. Uma ontologia que seria fenomenológica. A descoberta de Husserl,

segundo Sartre, revoluciona o modo de pensar a ontologia. Assim Sartre abre sua tese:

“o pensamento moderno realizou um progresso considerável reduzindo a existência à

série de aparições que se manifestam. Visamos nisso suprimir certo número de

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dualismos que embaraçaram a filosofia e os substituir pelo monismo do fenômeno”

(SARTRE, 2006, p. 11). Ou seja, Sartre abre já com o elogio à “conquista” husserliana

da intencionalidade e já avisa o leitor: o tema aqui é sobre a consciência.

Sartre diz que a fenomenologia é uma descrição do fenômeno. Sim, mas esse

fenômeno, a seu ver, é o existente (o tal da maçaneta que perturba o caro Carlos Alberto

Ribeiro de Moura!). Não se trata mais de uma ciência da essência, pois “assim o ser

fenomenal se manifesta, ele manifesta sua essência assim como sua existência (...)”

(SARTRE, 2006, p. 13). Aqui há algo novo: a fenomenologia trataria também da

existência. Para Sartre, há fenômenos em si (algo que arrepiaria Husserl!). A coisa não

só existiria como é em-si... (toda a ideia da redução foi colocada de lado!). Algo que se

exprimiria desta forma: “a aparência não esconde sua essência, ela a revela: ela é a

essência” (SARTRE, 2006, p. 12).

Quando Husserl afirma que a intencionalidade nos faz pensar num correlato

entre a consciência e o mundo, Sartre traduz assim: é verdade que a consciência está em

relação com as coisas; mas é também verdade que a consciência não se identifica com

essas coisas. Existe o eu e o não-eu. Algo que posso observar ao infinito... (nos seus

infinitos modos de aparições – em seus perfis). Isso não significa nos voltarmos ao

dualismo kantiano entre fenômeno e noumeno. Significa dar existência às coisas tal

como elas aparecem (algo que não sou e que se apresenta ao eu). A ontologia

fenomenológica de Sartre se direciona a isso: as coisas têm seu próprio ser assim como

a consciência. O título de sua obra remete exatamente a esse tema: o ser e o nada (algo

que poderíamos traduzir assim: as coisas e a consciência). Leiamos uma passagem em

sua introdução em que isso já fica explícito:

o erro ontológico do racionalismo cartesiano é de não ter visto que, se o

absoluto se define pelo primado da existência sobre a essência, ele não

poderia ser conhecido como uma substancia. A consciência não tem nada de

substancial, é uma pura ‘aparência’, no sentido em que ela não existe senão

na medida em que ela aparece. Mas é precisamente porque ela é pura

aparência, porque ela é um vazio total (porque o mundo inteiro está fora

dele), é por causa dessa identidade nela da aparência e da existência que ela

pode ser considerada como absoluta (SARTRE, 2006, p. 23).

Interessa-nos aqui frisar o polo da consciência – desse vazio total (o nada). Na

análise do sonho temos uma pista: a consciência pode refletir a si mesma. Isso não

significa que há momentos em que a consciência seja inconsciente de si: “(...) se minha

consciência não é consciência de ser consciência de ser ou, se se quiser, uma

consciência que se ignora, uma consciência inconsciente – o que é absurdo” (SARTRE,

2006, p. 18).

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O que Sartre defende é que a consciência sempre é consciência de algo. Nesse

sentido, ela poderia estar completamente voltada ao mundo, ao que lhe é exterior, e não

tomaria a si como objeto. Trata-se de uma consciência espontânea em relação ao mundo

e que, por isso, não se posicionaria em relação a si mesma. Eis a possibilidade de uma

consciência não posicional de si: uma consciência não-tética – há coisas que se

passariam na consciência que não são refletidas. Simplesmente passariam

espontaneamente, ou melhor, irrefletidamente.

A contribuição de Sartre à fenomenologia é exatamente essa: “(...) é a

consciência não-reflexiva que torna a reflexão possível: há um cogito pré-reflexivo que

é a condição do cogito cartesiano” (SARTRE, 2006, p. 19). Em outras palavras, a

consciência está presente a si a todo o momento (ao ver algo, tenho consciência de

algo), mas não necessariamente toma a si como objeto a todo o momento – ela pode

operar de forma irreflexiva, tal como no sonho (imagino algo sem ter a mim mesmo

como tema, mas isso não deixa de ser um evento concreto, pleno e absoluto). É a partir

dessa posição sobre a consciência que Sartre exprime o que irá denominar

existencialismo: “isso quer dizer que o tipo de ser da consciência é o inverso daquele

que nos revela a prova ontológica: como a consciência não é possível antes de ser, mas

que seu ser é a fonte e a condição de toda possibilidade, é sua existência que implica sua

essência” (SARTRE, 2006, p. 21).

Com essa afirmação, não resta espaço para o tal do “inconsciente” freudiano.

Pode ocorrer de a consciência não tomar a si como tema: “caímos nessa ilusão bem

frequente que faz da consciência uma semi-inconsciência ou uma passividade. Mas a

consciência é consciência de parte a parte. Ela não poderia então ser limitada senão por

ela mesma” (SARTRE, 2006, p. 21). Não há modo mais explícito de afirmar que

estamos diante de uma filosofia da consciência tal como Lacan compreende e lê a

fenomenologia: uma filosofia em que a consciência está presente de ponta a ponta – sem

intervalo, sem lacuna... (o máximo que pode ocorrer é ela não refletir a si mesma). Esse

será um tema constante no curso, uma vez que Lacan se voltou ao pensamento de Sartre

em vários momentos.

Seguindo esta tradição, encontramos em Merleau-Ponty ainda outra redefinição

da fenomenologia.

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Uma fenomenologia da percepção – a concepção de Merleau-Ponty

Merleau-Ponty é herdeiro das reflexões de Husserl, Heidegger e Sartre. Sua

experiência de pensamento se localiza na virada nas estratégias filosóficas no século

XX: a passagem de uma fenomenologia, que parece encontrar seu próprio esgotamento,

a uma das últimas tentativas de uma ontologia face à cena estruturalista.

Assim como Heidegger, para Merleau-Ponty, é preciso redefinir a

fenomenologia. Um projeto que parece surpreendente: “o que é a fenomenologia?

Parece estranho que ainda tenhamos que colocar essa questão meio século após os

primeiros trabalhos de Husserl. Todavia, ela está longe de ser resolvida” (MERLEAU-

PONTY, 1967, p. i,). Para um filósofo que parece seguir “à risca” os passos de Husserl,

surpreende nos deparar com essa necessidade de precisar algo que parecia claro até

então. Por que, então, esta questão não lhe parecia resolvida? Por que seria necessário

redefinir a fenomenologia?

A definição de Merleau-Ponty é:

a fenomenologia é o estudo das essências [...] mas a fenomenologia é

também uma filosofia que repõe as essências na existência, e não se pode

compreender o homem e o mundo de outra maneira senão a partir de sua

‘facticidade’. É uma filosofia transcendental que coloca em suspenso, para

compreendê-las, as afirmações da atitude natural, mas é também uma

filosofia para a qual o mundo já está sempre ‘ali’, antes da reflexão, como

uma presença inalienável, e cujo esforço todo consiste em reencontrar este

contato ingênuo com o mundo, para lhe dar enfim um estatuto filosófico

(MERLEAU-PONTY, 1967, p. i, grifo meu).

Há aqui claramente um adendo: “mas a fenomenologia é também (...)” – como se fosse

preciso ir além do que a fenomenologia husserliana propõe.

De pronto, pode-se deduzir a possibilidade de levar a extremos o que Husserl

descreve sobre os modos de a consciência visar algo. Merleau-Ponty privilegia um

extremo: “toda consciência é, em qualquer nível, consciência perceptiva” (MERLEAU-

PONTY, 1967, p. 452). De fato, há uma particularidade em como Merleau-Ponty herda

a fenomenologia, pois, a seu ver, trata-se de compreender como se daria nossa relação

direta com o mundo.

É certo que Husserl destacava que somente a consciência perceptiva teria um

contato direto com o mundo, pois somente na percepção o objeto está em proximidade,

presente, “em carne e osso”. Qualquer outro modo da consciência visar algo levaria a

um objeto não-presente, como é o caso da imaginação.

Entretanto, diferentemente do pensamento husserliano, Merleau-Ponty considera

um fato que na percepção há um contato com a existência, com a facticidade: a

percepção nos daria o acesso mais concreto possível ao mundo, sem omitir seu sentido.

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Como vimos, Husserl assumira uma autolimitação: a análise transcendental seria

uma análise eidética, isto é, a fenomenologia não trataria de fatos, mas apenas de

essências, e a redução eidética seria exatamente essa passagem à essência. Se o objetivo

de Merleau-Ponty é buscar uma experiência direta com o mundo, então não pode seguir

o projeto husserliano e protesta:

é contraditório afirmar, ao mesmo tempo, que o mundo é constituído por mim

e que, desta operação constitutiva, eu só posso apreender o esboço e a

estrutura essencial; é preciso que eu veja aparecer o mundo existente, e não

somente o mundo em ideia no término do trabalho constitutivo, ou eu só teria

uma constituição abstrata e não uma consciência concreta do mundo. Assim,

em qualquer sentido que se toma, o ‘pensamento de ver’ só é certo se a visão

efetiva é assim (MERLEAU-PONTY, 1967, pp. 430-431).

Para Merleau-Ponty, seria contraditório propor uma explicitação da constituição

da experiência se autolimitando a uma análise eidética. Por isso, ele opõe à análise das

essências uma análise existencial baseada nas relações vividas, retomando, portanto, o

que afirmara na conclusão de A estrutura do comportamento (1942): a percepção é um

ato que nos faz conhecer existências (cf. MERLEAU-PONTY, 2002b, p. 240). Não por

acaso Merleau-Ponty fala sobre uma função existencial na percepção. É também por

esse motivo que a percepção não seria um mero problema da filosofia, como diz

Theodore Geraets, mas o problema da filosofia mesma (cf. GERAETS, 1971, p. 129).

Merleau-Ponty nos sugere pensar a partir da experiência vivida, pois toda

experiência, toda percepção, pressuporia um mundo vivido. Uma herança certamente

husserliana, muito embora continue realizando uma leitura original do trabalho de

Husserl: o mundo estaria sempre presente, antes de toda percepção, e a fenomenologia

poderia repor nosso contato mais direto com ele. É esta uma das indicações das últimas

obras de Husserl em A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental

(1935-1936). Assim ele define o mundo da vida:

o mundo da vida é o mundo permanentemente pré-dado, sendo válido em

permanência e de antemão, mas válido não a partir de um propósito qualquer,

de uma temática qualquer, segundo um fim qualquer universal. Qualquer fim

o pressupões, e também o fim universal de conhecê-lo com verdade científica

o pressupõe, e já previamente, e sempre de novo previamente no progresso

do trabalho, como sendo à sua maneira, mas precisamente como sendo

(HUSSERL, 2012a, p. 383).

Merleau-Ponty é atento a essa passagem de Husserl. Na verdade, radicaliza o

pensamento de Husserl ao afirmar que o mundo é anterior à reflexão, ou de qualquer

análise, que dele podemos fazer. Em seu prefácio a A Fenomenologia... Merleau-Ponty

afirma:

desejar-se-ia remover essas contradições distinguindo entre a fenomenologia

de Husserl e a de Heidegger? Mas todo Sein und Zeit nasceu de uma

indicação de Husserl e, em suma é apenas uma explicação do ‘natürlichen

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Weltbegriff’ ou do ‘Lebenswelt’ que Husserl, no final da sua vida,

apresentava como o primeiro tema da fenomenologia, de forma que a

contradição reaparece na filosofia do próprio Husserl (MERLEAU-PONTY,

1967, pp. i-ii).

Esse parece ser o projeto de Merleau-Ponty em A Fenomenologia..., que o leva a igualar

esse projeto à retomada desse mundo vivido com o primeiro ato filosófico.

A fenomenologia estaria, portanto, ligada ao mundo da vida, porque tudo que

sabemos, mesmo nas ciências, só é possível a partir desse mundo vivido. É preciso

despertar essa experiência do mundo, anterior a qualquer saber. Retornar às coisas

mesmas, no olhar de Merleau-Ponty, significa retornar a este mundo anterior a todo

conhecimento e sobre as quais as ciências falam.

A tarefa da fenomenologia seria a descrição desse mundo, daquilo que

percebemos a partir de nosso contato o mais direto com o mundo. O problema é

naturalizar uma forma de ver o mundo8, imaginando que é a mais óbvia

9. Nesse sentido,

Merleau-Ponty afirma ser preciso reaprender a ver o mundo, levando ao extremo que

todo ato só se dá pressupondo um primado da percepção10

:

a verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo11

e, nesse sentido, uma

estória contada pode significar o mundo com tanto ‘profundidade’ quanto um

8 Naturalizar significa aqui tomar como verdadeiro: “a percepção sinestésica é a regra e, se nós não

percebemos, é porque o saber científico substitui a experiência e que nós desaprendemos a ver,

compreender e, em geral, sentir, para deduzir de nossa organização corporal e do mundo tal como

concebe o físico o que nós deveríamos ver, compreender e sentir.” (MERLEAU-PONTY, 1967, p. 265).

Desenvolvi esse conceito com Helgis Cristóforo: “naturalizar seria tomar como natural o que ensina a

tradição e que aceitamos como dogma, por não examinarmos os fundamentos do bem-conhecido, devido

a uma submissão dos sujeitos a alguma forma de poder, em uma atitude natural, por termos

desaprendidos a questionar, e tomarmos como realidade uma realidade aparente que nos é mais

imediata, tomando o todo pela parte – um teatro”. 9 Aqui está a questão: o óbvio pode se dar como o que me é natural. Assim, o que sei, o que tomei como

certo, é óbvio. Mas numa mudança de atitude, o óbvio é o mais difícil: é o enfrentamento do que sustenta

o que sei: meus pré-juízos – os juízos prévios do que sei. De certo modo, fazer filosofia, para Husserl, é

lidar com esse enfrentamento do óbvio. Castilho diz algo próximo em sua tese quando escreve essas

palavras: “como nunca houve, no passado, uma ciência da δόαξ, a empresa tem de iniciar-se numa certa

ingenuidade, ao contrário da firmeza com que acena a via cartesiana, quando se passa ao transcendental.

Essa ingenuidade só poderá ser corrigida através de uma ‘reflexão metódica’ posterior. Mas, apesar da

ingenuidade inicial, a pesquisa vai pouco a pouco se ordenando, à condição de que se enfrentem e se

resolvam os problemas de trabalho, no campo” (CASTILHO, 2015, p. 220). 10

Eis as palavras de Husserl: “a percepção é o modo originário da intuição, ela expõe em originalidade

primordial, ou seja, no modo da própria presença. Temos, ao lado deste, outros modos da intuição que

têm em si mesmos, conscientemente, o caráter de modificações deste autopresente ‘ele mesmo aí’. São

presentificações, modificações da presentação; elas tornam conscientes modalidades do tempo, por

exemplo, não o estar-aí-ele-próprio, mas o ter-estado-aí-ele-próprio, ou o futuro, o estará-aí-ele-próprio.

As intuições presentificadoras ‘repetem’ – em certas modificações que lhes são próprias – todas as

multiplicidades de aparições em que o objetivo se expõe segundo a percepção: a intuição rememoradora,

por exemplo, mostra o objeto como ele-próprio-tendo-sido-aí, na medida em que repete a perspectivação

e restantes modos de aparição, mas em modificações conforme a memória. Ela é, então, consciente como

perspectivação passada, como curso passado de ‘exposições de’ subjetivas, nas minhas anteriores

validades do ser” (HUSSERL, 2012a, p. 85). 11

Na sua primeira intervenção radiofônica em 1948 e publicada sob o título de Palestras, Merleau-Ponty

parece justificar essa definição da filosofia: “o mundo da percepção, quer dizer, aquele que nos é revelado

pelos nossos sentidos e pelo uso da vida, parece, à primeira vista, o melhor conhecido por nós, porque não

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tratado de filosofia. (...) Se a fenomenologia foi um movimento antes de ser

uma doutrina ou um sistema, não é nem acaso, nem impostura. Ela é

laboriosa como a obra de Balzac, aquela de Proust, aquela de Valéry ou

aquela de Cézanne, – pelo mesmo gênero de atenção e de admiração, pela

mesma exigência de consciência, pela mesma vontade de apreender o sentido

do mundo ou da história em estado nascente. Ela se confunde nessa relação

com o esforço do pensamento moderno (MERLEAU-PONTY, 1967, p. xvi).

Haveria uma lição na insistência de Husserl em descrever a redução: não há

como suspender completamente o mundo – sempre o pressupomos, porque somos seres

no mundo, como afirmaria Heidegger – aponta Merleau-Ponty:

o maior ensinamento da redução é a impossibilidade de uma redução

completa. Eis por que Husserl sempre volta a se interrogar sobre a

possibilidade da redução. Se fôssemos o espírito absoluto, a redução não

seria problemática. Mas, ao contrário, nós estamos no mundo, já que mesmo

nossas reflexões tem lugar no fluxo temporal que elas procuram captar (...),

não existe pensamento que abarque todo o nosso pensamento. (...) Longe de

ser, como se acreditou, a fórmula de uma filosofia idealista, a redução

fenomenológica é a fórmula de uma filosofia existencial: o ‘In-der-Welt-

Sein’ de Heidegger só se manifesta sobre o fundo da redução fenomenológica

(MERLEAU-PONTY, 1967, p. viii-ix)12

.

Assim, ao invés de suspender a crença no mundo, Merleau-Ponty segue a ideia

heideggeriana de que somos seres no mundo e que, por isso, a redução seria uma

espécie de retorno ao mundo tal como ele nos aparece antes da reflexão, tal como ele é,

assim como se dá ao olhar. “Portanto”, afirma Merleau-Ponty, “não é preciso perguntar-

se se nós percebemos verdadeiramente um mundo, é preciso dizer, ao contrário: o

mundo é aquilo que nós percebemos” (MERLEAU-PONTY, 1967, p. ix).

Mas, Merleau-Ponty não deixa de realizar uma espécie de filosofia da

consciência... O capítulo sobre O cogito na Fenomenologia da percepção é clássico.

Trata-se de um momento em que busca fundamentar o cogito cartesiano a partir da

fenomenologia. Busca, literalmente, afirmar a existência de um eu:

sou eu [moi] que reconstituo o Cogito histórico, sou eu [moi] que li os textos

de Descartes, sou eu [moi] que reconhece uma verdade imperecível e no fim

das contas o Cogito cartesiano não tem sentido senão para meu próprio

há a necessidade de instrumentos nem de cálculos para aceder a ele, e que nos é suficiente,

aparentemente, abrir os olhos e nos deixar viver para penetrar nele. Portanto, isso não é senão uma falsa

aparência. Gostaria de mostrar nessas conversações que ele é, em larga medida, ignorado por nós

enquanto permanecemos numa atitude prática ou utilitária, que seria preciso mais tempo, esforço e cultura

para colocá-lo a nu e que é um dos méritos da arte e do pensamento moderno (compreendo por essa arte e

o pensamento desde 50 a 70 anos) de nos fazer redescobrir esse mundo em que vivemos mais que somos

sempre tentados a esquecer” (MERLEAU-PONTY, 2002a, p. 11). Heidegger, por sua vez, escreve em

1929: “[sobre a filosofia] não se trata de nada menos do que reconquistar uma vez mais esta dimensão

originária do acontecimento no ser-aí filosófico, para chegar a ‘ver’ todas as coisas de novo de modo mais

simples, mais intenso e mais duradouro” (HEIDEGGER, 2003b, p. 29). 12

Eis outro modo de pensar isso: não há como realizar uma redução completa se levarmos em conta a

questão da temporalidade, de uma história sedimentada: “eu posso fechar os olhos, tapar as orelhas, mas

eu não posso cessar de ver, nem que seja o negro dos meus olhos, de ouvir, nem que seja este silêncio, e

do mesmo modo eu posso colocar em parênteses minhas opiniões ou minhas crenças adquiridas, mas, o

que quer que eu pense ou que eu decida, é sempre sobre o fundo do que eu cri ou fiz” (MERLEAU-

PONTY, 1967, p. 453).

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Cogito, eu não pensaria nada se eu não tivesse em mim mesmo tudo o que é

preciso para inventá-lo (MERLEAU-PONTY, 1967, p. 425).

Entretanto, esse cogito que anuncia Merleau-Ponty não é o mesmo cogito

cartesiano. Não se trata de negar as sensações e afirmar a existência de uma substância –

de uma coisa pensante contraposta a uma coisa extensa. No cogito, descobre “o

movimento profundo de transcendência que é meu ser mesmo, o contato simultâneo

com meu ser com o ser do mundo” (MERLEAU-PONTY, 1967, p. 432). O que isto

significa?

Tal como o cogito cartesiano, o cogito merleau-pontyano traz uma certeza: é

indubitável que eu sinto algo. Assim, mesmo que esteja vivendo em uma ilusão, como

no caso do amor (em que não se teria certeza se esse amor é ou não verdadeiro), a

certeza de sentir algo afirmaria a si mesmo, independente de ser real ou ilusório o que

esteja vivendo13

. Merleau-Ponty faz, portanto, uma espécie de cartesianismo sem sujeito

de certeza, pois a ilusão é completamente possível (e provável), mas isso não faz com

que a certeza de sentir, de existir, seja questionada.

Viver uma ilusão não significa estar condenado a viver na ilusão. Toda a ideia

de Merleau-Ponty poderia ser pensada a partir da concepção do a posteriori de Freud: o

que sinto não é simplesmente ilusório, pois de algum modo se passa como real e, a

posteriori, pode ser ressignificado.

Com esse tipo de concepção, Merleau-Ponty afirma estar realizando uma crítica

à transparência da consciência tal como aparece em Sartre (como veremos), pois “se

estamos em situação, somos cercados, não podemos ser transparentes a nós mesmos, e é

preciso que nosso contato com nós mesmos não se faça senão num equívoco”

(MERLEAU-PONTY, 1967, p. 437) 14

. Não significa que ele seja a favor da psicanálise.

O que Merleau-Ponty propõe é uma consciência que não tem plena posse de si, sem que

13

A ideia de Merleau-Ponty é que tenho confiança/fé no mundo. Independente de estar vivendo uma

ilusão ou não, é em situação (sendo no mundo, sentindo o que ele me oferece) que eu vivo: “perceber é se

engajar num só movimento todo um futuro de experiências num presente que não o garante jamais a

rigor, é crer num mundo” (MERLEAU-PONTY, 1967, p. 344). É por ter essa crença que a consciência

teria uma posse pré-consciente do mundo: “o verdadeiro cogito não é a face-a-face do pensamento com o

pensado desse pensado: eles não se reúnem que através do mundo. A consciência do mundo não é

fundada sobre a consciência de, mas elas são rigorosamente contemporâneas: há para mim um mundo

porque eu não o ignoro; eu sou não dissimulado a mim mesmo porque eu tenho um mundo. Permanecerá

a analisar essa posse pré-consciente do mundo no cogito pré-reflexivo” (MERLEAU-PONTY, 1967, p.

344). 14

Não há uma transparência na posse de si: “a posse de si, a coincidência com si não é a definição do

pensamento: ela é, ao contrário, um resultado da expressão e ela é sempre uma ilusão, na medida em que

a claridade do adquirido repousa sobre a operação funcionalmente obscura pela qual nós eternizamos em

nós um momento da vida fugitiva” (MERLEAU-PONTY, 1967, p. 446).

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implique haver um inconsciente15

. Há uma consciência que se ilude e erra – está sujeita

ao engano, mas certa de estar vivenciando isto ou aquilo:

a ideia de uma consciência que seria transparente para ela mesma e cuja

existência retomaria a consciência que ela tem de existir não é tão diferente

da noção de inconsciente: é, dos dois lados, a mesma ilusão retrospectiva, se

introduz em mim a título de objeto explicito tudo o que poderia em seguida

apreender de mim mesmo. O amor que atravessa em mim sua dialética e que

acabo de descobrir não é, desde o começo, uma coisa escondida num

inconsciente, e menos ainda, é o movimento pelo qual eu me torno em

direção a alguém, a conversão de meus pensamentos e de minhas condutas –

não ignoro pois sou eu que vivia horas de tédio antes de um reencontro e que

experimentei alegria quando ele aproximava, ele era do começo ao fim vivido

– ele não era conhecido (MERLEAU-PONTY, 1967, p. 436).

Tal conclusão leva a questão da vivência ao seu extremo: o que vivemos é

verdadeiro no momento em que vivemos. Não se trata de algo inconsciente, mas algo

vivido. Nos sonhos, por exemplo, não haveria, a seu ver, algo como uma “representação

inconsciente” – para o sonhador, o que ele sonhou é verdadeiro. Seria a consciência

desperta que quereria representar, dar um sentido, ao que foi vivido no sonho (muito

próximo do que vemos em Sartre). Assim, se não se puder representar o que vivo, isso

não significa que o sonho não tenha sido real/vivido e não coloca em dúvida que se

senti isto ou aquilo, mesmo que “isto ou aquilo” seja um equívoco se tomado em outra

situação (a posteriori).

Merleau-Ponty reconhece que o cogito cartesiano é pontual16

e se esvanece

depois de pronunciado. Não aconteceria o mesmo com a certeza de sentir isto ou

aquilo?

Sua resposta é não. A existência é definida enquanto um movimento que sempre

se ultrapassa. Não significa que a consciência estaria sempre em ruptura consigo:

haveria uma síntese passiva da consciência que tornaria possível uma unidade

presuntiva17

. Ultrapassar a si mesma não impediria a existência de um cogito, pois

15

É verdade que Merleau-Ponty concebe que há algo irrefletido na consciência, mas não algo

inconsciente: “é preciso colocar a consciência em presença de sua vida irrefletida nas coisas e despertar a

sua própria história que ela esqueceu, está aí o verdadeiro papel da reflexão filosófica e é assim que

chegamos a uma verdadeira teoria da atenção” (MERLEAU-PONTY, 1967, p. 40); “a tarefa de uma

reflexão radical, quer dizer, daquela que quer se compreender a si mesma, consiste, de uma maneira

paradoxal, a reencontrar a experiência irrefletida do mundo, para substituir nela a atitude de verificação e

as operações reflexivas, e para fazer aparecer a reflexão como uma das possibilidades de meu ser”

(MERLEAU-PONTY, 1967, pp. 278-279). 16

“Aquele que duvida não pode, duvidando, duvidar que ele duvida. A dúvida, mesmo generalizada, não

é uma nadificação de meu pensamento, não é senão um pseudo-nada, eu não posso sair do ser, meu ato de

duvidar estabelece ele mesmo a possibilidade de uma certeza, ele está aí para mim, ele me ocupa, eu estou

engajado, não posso fingir não ser nada no momento em que o realizo” (MERLEAU-PONTY, 1967, p.

457). 17

Não há uma passividade da consciência, mas uma síntese de transição, como Merleau-Ponty insiste (cf.

MERLEAU-PONTY, 1967, pp. 307; 382; 480; 484) – como se os momentos jamais fossem justapostos

ou sucessivos, mas que, de algum modo, passassem um ao outro, passivamente, de modo que eles se

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haveria uma temporalidade própria da consciência, em que a existência seria uma

espécie de ato ou fazer: uma passagem violenta do que se era ao que se é (uma

ressignificação constante de si); ao que se é, ao que se visa ser. Numa palavra, o cogito

seria sempre efetuado, e cumprido, em toda posição do “eu posso”, “eu existo” – em

todas as intencionalidades da consciência.

Mas o cogito cartesiano não é o mesmo proposto por Merleau-Ponty, pois o

propõe como sua inversão: “não é porque eu penso que eu estou certo de existir, mas,

ao contrário, a certeza que tenho de meus pensamentos deriva de sua existência efetiva”

(MERLEAU-PONTY, 1967, p. 438). Ou seja, posso, por exemplo, duvidar que amei,

mas não que vivi o sentimento de ter amado. Também posso afirmar que tal amor foi

“inadequado”, porque o sentimento de amar não apreende necessariamente o próprio ato

de amar (como algo que posso apreender na minha frente), mas o sentimento de amor

continua real. Eis sua proposta de radicalizar o cogito cartesiano:

o Cogito é o reconhecimento desse fato fundamental. Na proposição ‘Eu

penso, eu sou’, as duas afirmações são bem equivalentes, sem a qual não

haveria o Cogito. Mas ainda se deve entender sobre o sentido dessa

equivalência: não é o Eu penso que contem eminentemente o Eu sou, não é

minha existência que é levada à consciência que tenho, é inversamente o Eu

penso que é reintegrado ao movimento de transcendência do Eu sou e a

consciência de existir (MERLEAU-PONTY, 1967, p. 439)18

.

A resposta de Merleau-Ponty à instantaneidade de um ponto do cogito cartesiano

é lhe dar uma espessura temporal: é indubitável que eu penso e que esse pensamento é

englobassem. No limite, implica dizer que o futuro, o passado e o presente participam de uma mesma

unidade em cada ação (num campo de presença). Mas o passado não é o passado “em pessoa”, e sim tal

como o vemos agora, assim como o futuro só é em intenção. É como se, a cada momento, um mesmo fato

acontecido no passado só permanecesse operando como um perfil do presente. Sendo assim, ele sempre

está presente diante de uma modificação: diante de um presente atual. Isso porque é sempre o atual que

está em vista ao possível: os atos da consciência sempre visando relações entre si a partir de um campo de

presença – relações temporais que penetram num certo antes e num certo depois que o circundam. Isto é

fundamental para Merleau-Ponty: é no presente vivo que é possível qualquer síntese perceptiva.

Pensemos assim: quando vemos uma mesma coisa em diferentes perspectivas, não percebemos uma

fragmentação de momentos que se sucedem, mas um objeto integral num campo de olhar – ele é

sintetizado pela própria realização do que é o olhar: ver algo. Cada percepção seria, assim, algo como um

entrelaçar de um presente, com retenções (Retentionen) e protensões (Protentionen), nas palavras de

Husserl, e que tornaria possível as sínteses perceptivas (já que o próprio horizonte temporal garante a

unidade do objeto). Aquilo que foi visto (perspectiva passada) está ainda presente na perspectiva “atual” –

que só tem sentido porque nos reenvia a algo já vivido – nosso passado. Eis o que Merleau-Ponty define

enquanto campo: algo presente que engloba mais do que o atual, por realizarmos uma síntese passava do

tempo. 18

O cogito cartesiano deveria ser lido nesta perspectiva: “eu penso, e tal ou tal pensamento me parece

verdadeiro; eu sei bem que ele não é verdadeiro sem condição e que a explicitação total seria uma tarefa

infinita; mas isso não impede que, no momento em que eu penso, eu penso algo, e que toda outra verdade,

no nome da qual eu gostaria de desvalorizá-la, se ela pode para mim se chamar verdade, deve entrar em

acordo com o pensamento ‘verdadeiro’ da qual tive experiência” (MERLEAU-PONTY, 1967, pp. 455-

456).

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reintegrado à minha existência, ultrapassando o pontual pela transcendência. O que é

vivido não pode ser negado, participa da espessura temporal da existência.

O cogito cartesiano seria então um cogito falado, pontual, determinado no

tempo. O que Merleau-Ponty propõe é algo existencial (que se vivencia num fluxo), que

não se esvanece no pontual, mas que atravessa nossa vida... Daí propor um cogito tácito,

que não precisa ser pronunciado. Em uma palavra, algo vivido:

(...) eu nem poderia nem mesmo ler o texto de Descartes, se eu não estivesse,

antes de toda fala, em contato com minha própria vida e meu próprio

pensamento e se o Cogito falado não reencontrasse em mim um Cogito

tácito. É o Cogito silencioso que Descartes visava escrevendo as Meditações,

ele anima e dirige todas as operações de expressão que, por definição, falham

sempre em seu objetivo, porque eles interpõem, entre a existência de

Descartes e o conhecimento que ele toma, toda a espessura de aquisições

culturais, mas que não seriam mesmo tentadas se Descartes não tivesse,

primeiramente, em vista de sua existência. Toda questão está em

compreender o Cogito tácito, de não colocar nele o que nele se encontra

verdadeiramente e de não fazer da linguagem um produto da consciência sob

o pretexto de que a consciência não é um produto da linguagem

(MERLEAU-PONTY, 1967, pp. 460-461).

Mais à frente, complementa: “para além do cogito falado, aquele que é convertido em

enunciado e em verdade de essência, há um cogito tácito, uma experiência de mim por

mim” (MERLEAU-PONTY, 1967, p. 462)19

.

Entretanto, foi preciso o cogito cartesiano para que houvesse a condição de

possibilidade para se perceber a existência do cogito tácito. É preciso que o cogito se

pronuncie – que o sujeito se pronuncie pontualmente:

a consciência silenciosa não se apreende senão como Eu penso em geral

diante de um mundo confuso ‘a pensar’. Toda apreensão particular, e mesmo

a reconquista desse projeto geral pela filosofia, exige que o sujeito desdobre

os poderes dos quais ele não tem o segredo e, em particular, que ele se faça

sujeito falante. O Cogito tácito não é Cogito senão quando ele é exprimido

ele mesmo (MERLEAU-PONTY, 1967, p. 463).

A conclusão de Merleau-Ponty é que “eu sou uma experiência” e, por isso, “a

primeira verdade é bem ‘Eu penso’, mas na condição que se entenda por isso ‘eu sou a

mim’ sendo no mundo” (MERLEAU-PONTY, 1967, p. 466).

Mas, o cogito tácito, mesmo sendo uma radicalidade do cogito cartesiano, não se

desvincula de uma filosofia da consciência. Na verdade, esse cogito mostra uma vida

“mais profunda da consciência” (MERLEAU-PONTY, 1967, p. 327). Mais profunda

que a consciência absoluta descrita por Husserl e sem a pretensão de transparência da

consciência tal como Sartre nos apresenta. Essa vida mais profunda da consciência é um

19

Logo a seguir Merleau-Ponty complementa essa reflexão com uma passagem enigmática, uma vez que

ele não a desenvolve – uma passagem, aliás, que poderia nos levar a dialogar com a psicanálise: “o

Cogito tácito, a presença de si a si, sendo a existência mesma, é anterior a toda filosofia, mas ele não se

conhece senão nas situações limites em que ele é ameaçado: por exemplo, na angústia da morte ou no

olhar de outrem sobre mim” (MERLEAU-PONTY, 1967, p. 462).

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tipo de consciência que não é explícita a si mesma. Trata-se de algo vivido e que não

nega a identidade do sujeito, mesmo que essa identidade seja dada de outra forma: “o

contato absoluto de mim comigo, a identidade do ser e do aparecer não podem ser

colocados, mas somente vivido abaixo de toda afirmação” (MERLEAU-PONTY, 1967,

p. 342).

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