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AUSÊNCIA DE SOCIOAFETIVIDADE – REFLEXÃO ACERCA DO BENEFICIADO MORAL, ÉTICO, CONSTITUCIONAL e LEGAL. Este artigo foi escrito para fortalecimento de tese defendida pela signatária em parecer exarado no processo 021/1.09.0018406-4 em ação negatória de paternidade ajuizada por I.G.N, pai registral, contra a criança E.S.N, que após convivência de dois anos com o pai, cuja mãe é drogadita e vive pelas ruas e, seis anos de completo abandono, encontra-se em uma Casa de Acolhimento sem visitas por familiares. Este pai, sabedor de que não era pai biológico e certo da inexistência de vínculos de afeto com a criança (não sabe ele e, portanto, de início, cabe esclarecer que as 7ª e 8ª Câmaras Cíveis já firmaram o entendimento de que tanto a posse de estado de filho como socioafetividade apenas podem ser alegadas em proveito do filho), certamente aforou a demanda com a certeza de que seria vencedor da causa, tendo a ação, de fato, sido julgada procedente com base no exame de DNA excluindo a paternidade biológica e na ausência de vínculo de socioafetividade verificada no laudo psicossocial. Houve recurso do Ministério Público e da Defensoria Pública, sem julgamento até o momento pelo Tribunal de Justiça Gaúcho 1

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COMARCA DE PASSO FUNDO VARA DE FAMLIA

AUSNCIA DE SOCIOAFETIVIDADE REFLEXO ACERCA DO BENEFICIADO MORAL, TICO, CONSTITUCIONAL e LEGAL.

Este artigo foi escrito para fortalecimento de tese defendida pela signatria em parecer exarado no processo 021/1.09.0018406-4 em ao negatria de paternidade ajuizada por I.G.N, pai registral, contra a criana E.S.N, que aps convivncia de dois anos com o pai, cuja me drogadita e vive pelas ruas e, seis anos de completo abandono, encontra-se em uma Casa de Acolhimento sem visitas por familiares. Este pai, sabedor de que no era pai biolgico e certo da inexistncia de vnculos de afeto com a criana (no sabe ele e, portanto, de incio, cabe esclarecer que as 7 e 8 Cmaras Cveis j firmaram o entendimento de que tanto a posse de estado de filho como socioafetividade apenas podem ser alegadas em proveito do filho), certamente aforou a demanda com a certeza de que seria vencedor da causa, tendo a ao, de fato, sido julgada procedente com base no exame de DNA excluindo a paternidade biolgica e na ausncia de vnculo de socioafetividade verificada no laudo psicossocial. Houve recurso do Ministrio Pblico e da Defensoria Pblica, sem julgamento at o momento pelo Tribunal de Justia Gacho (Apelao 70043118934), com parecer da eminente Procuradora de Justia Marcia Leal Zanotto Farina, secundando o Ministrio Pblico de 1 grau, no qual, confessa a signatria, o parecer foi escrito no com belas palavras da nossa rica e magnfica lngua portuguesa, mas sim, recheado de empatia, emoo, paixo (exploso), defendendo vorazmente os interesses daquela pobre criana, com geografia afetiva talvez menor do que o tamanho de alguns poucos metros quadrados na Casa onde est abrigado (e graas s suas cuidadoras) e, no intuito de lhe dar uma perspectiva de vida digna, no s por ser criana mas tambm uma pessoa humana e, resguardando a ele o direito positivado de, quando lhe aprouver, investigar sua ascendncia ou origem biolgica. Acrescenta-se que, no caso, no houve vcio de consentimento quando do registro de nascimento, exigncia intransponvel e, sim, mero arrependimento, como se a criana, pessoa humana, fosse uma coisa.

Portanto, a tese de que o filho no pode ser prejudicado quando no deu ele causa ausncia de socioafetividade, tendo sido esta fomentada pelo pai registral, sob pena de o pai, com o aval da Justia, liberar-se de suas obrigaes e de a criana ser duplamente penalizada, uma vez pelo abandono e, outra vez, pela retirada do nome do pai registral, ficando privada de vindicar, seno afeto, alimentos, ou seja, uma rstia de dignidade.

Ento, vamos l:

Que tal alguns traos antagnicos entre Coisa e Pessoa Humana. Coisa em sua acepo mais qualificada, ou seja, a do personagem ngela de Clarice Lispector, para o seu verdadeiro ltimo romance Um sopro de vida, o qual tambm o escreveu como livro definitivo, publicado aps a morte da magistral escritora, cuja montagem final dos manuscritos fora efetuada pela amiga Olga Borelli, quem, realmente modesta, disse mais tarde que os fragmentos se encaixaram naturalmente.

Mesmo para ngela, a qual penetrava com sentimentos de estremecer nossos seis sentidos e todos os dela as coisas e as descrevia com esplndida riqueza de detalhes como se cada qual fosse um objeto com aura destacvel e que deveria ser respeitado pela humanidade (opinio pessoal), mas que tambm para ela a aura da Coisa era diversa da aura da pessoa humana. Ressalto que o personagem apenas destacou a aura da pessoa e eu, insisto em, hodiernamente, utilizar pessoa humana (o que me pareceu, insipientemente, ser uma redundncia, mas bastou ler e interpretar a Magna Carta e embaralhar as cartas das minhas experincias pessoais, profissionais e cotidianas para depois filtr-las, situar o meu Eu e, ao menos, tentar identificar as pessoas, digamos assim, que no so de boa vontade para eu compreender que no redundncia, que h sim, a sutil diferena entre pessoa e pessoa humana). Talvez este meu comentrio seja, salvo melhor juzo, desprezvel no campo do Direito e no das relaes interpessoais, mas que, a meu sentir, com fundaes de concreto, vigas e de argamassa de que h casos, nem que de forma espordica ou qui isolada, em que nos deparamos ou nos depararemos em uma saia justa para aquilatarmos qual parte(s) merece(m) (ao mental e argumentativa feita para defesa pessoal e por dever de funo, ao menos no meu caso), o manto constitucional protetor da personalidade e dignidade da pessoa humana. Difcil sim , no caso concreto que est em nossas mos, lidadores do Direito (redundncia recm admitida por mim, aps explanao pelo Eminente Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, para quem bastaria referirmos a caso, pois, ao contrrio, estaramos falando de uma hiptese XV Jornada IARGS de Direito de Famlia, realizada nos dias 17 a 19 de novembro de 2011, no Teatro Dante Barone na Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, evento de uma magnitude e que me oportunizou a escrever este artigo, incentivada pela incansvel, guerreira e transformadora de sonhos em realidades Dra. Maria Berenice Dias, aps narrar a ela caso em que eu, como Promotora de Justia atuante junto 2 Vara Cvel Especializada em Famlia e Sucesses da Comarca de Passo Fundo defendi a tese objeto deste artigo).

Bem, agora, sinto-me na obrigao de citar pequeno e rico verso da obra Um sopro de vida (com segundas intenes, claro, pois adoro, resignada na minha caracterstica mais marcante, pois s vezes penso que fui marcada a ferro e fogo com o dito humildade pura, tanto que s de pensar em escrever este artigo, sentia os meus rgos vitais glidos, como quando perdemos o ente querido que mais amamos e, mais, com a alma inquieta, estremecida (exploso). Ou seja, nada em mim quedou-se, por um instante sequer, intrpido, nem mesmo neste instante em que procuro digitar palavras balbuciadas pelo meu corao.) Voltemos s segundas intenes, quanto a isto, meu argumento risvel, pois Clarice Lispector no necessita ser lembrada aos outros, ela como se fosse ouro ou diamante, ambos comestveis e conforme o gosto do fregus, ao mesmo tempo onvora e que lega um prazer inenarrvel que nutre completamente corpo, mente e alma e, alm de no engordar, capaz de nos dar gosto e nos faz feliz por dias, dias e dias (opinio pessoal e que arrisco seja a de todos os seus leitores).

Neste instante copio Clarice Lispector: (...)

NGELA. Quando eu vejo, a coisa passa a existir. Eu vejo a coisa na coisa. Transmutao. Estou esculpindo com os olhos o que vejo. A coisa propriamente dita imaterial. O que se chama de coisa a condensao slida e visvel de uma parte de sua aura. A aura da coisa diferente da aura da pessoa. A aura desta flui e reflui, se omite e se apresenta, se adoa ou se encoleriza em prpura, explode e se implode. Enquanto a aura da coisa igual a si mesma o tempo todo. A aura qualifica as coisas. E a ns tambm. E aos animais que ganham um nome de raa e espcie. Mas a minha aura estremece flgida ao te ver.

(...)

E da? Da que temos que nos dar conta de que crianas e/ou adolescentes e pessoas capazes no podem ser tratados como Coisa, nem como Coisas com aura. Ora, so pessoas humanas, muitas vezes com a aura amarga e coleirizada em prpura pela falta de afeto. razovel que, se este uma mo de duas vias, devemos valorar, com muita responsabilidade e seriedade que o caso requer, a conduta do adulto. Portanto, devemos averiguar quem o responsvel, quem deu causa ausncia de sociafetividade.

Em se tratando de um filho, quem adoa a sua aura seno os pais e a famlia, em primeiro lugar? E mais, quando a socioafetividade no existe, haver alguma hiptese em que podemos atribuir tal fato a uma criana ou devemos cobrar e responsabilizar a falta de atitude de um ou ambos os pais, conforme o caso, muitas vezes com inrcia total neste vasto mundo inundado de inovaes tecnolgicas onde as pessoas, com boa vontade, tm N opes de comunicao e formas de aproximao?

Isto tudo to intuitivo que qualquer leigo compreende mesmo sem conhecer a Lei (sabe-se que pela LICC o desconhecimento da Lei inescusvel), pelos seus impulsos e intuitos mais primrios que os filhotes so mais frgeis que os adultos e, por isso, sempre e sempre o direito deve socorr-los, mesmo quando o laudo psicossocial aponta a falta de sociafetividade, pois devemos questionar Porqu no h socioafetividade, quem foi o responsvel pela ausncia do afeto, a criana e/ou adolescente ou o adulto capaz civil e criminalmente? Logo, beneficiarmos aquele que negou o afeto ao menor, no Direito atual, permeado de valores como por exemplo, o amor, e que sobrepe o afeto filiao biolgica, em prol de quem, pessoa adulta, utilizando sua prpria torpeza, pretende ver extinta a paternidade registral, uma hipocrisia com graves consequncias, pois descabe a Justia tratar com lenidade ao responsvel pelo afeto inexistente e, muito menos com indulgncia, a tais pessoas solertes, geralmente prfidos e que adoram uma pantomima.

Mesmo que j encolerizada em prpura a aura do filho (a), mais pelo verdadeiro amor que pela letra fria da lei, incluindo-se a os direitos fundamentais da criana e do adolescente previstos na Constiuio Federal, Estatuto da Criana e do Adolescente, Cdigo Civil, Cdigo Penal e Legislao Extravagante to bem conhecidos dos lidadores do Direito, que gozam de prioridade absoluta (direito dignidade, ao respeito, ao afeto, ao sustento, personalidade, ao lazer, ao esporte, convivncia familiar, etc. e etc.), este sim, o filho, merece brandura, suavidade, doura, mansido e lenincia da sociedade, no caso, das mos acolhedoras do Ministrio Pblico e da sapincia do Poder Judicirio.Vale lembrar que o reconhecimento voluntrio de filho havido fora do casamento irrevogvel, no se admitindo sua anulao por mero arrependimento, devendo ser resguardados os direitos protetivos do infante (art. 1 da Lei n. 8.560/92 e 1.609 do CCB).

No podemos olvidar que neste caso, no possvel penalizarmos ainda mais os menores, pessoas humanas e, como afeto no tem preo, resta preservar a sua relegada dignidade, mantendo ntegros os deveres paternos, em especial, no caso, os alimentos, a fim de que se possa gozar de um mnimo de conforto e ter acesso cultura, instruo e sabedoria (educao em sentido amplo), para oportuniz-los a se perceberem incompletos e autorizarem-se a parar antes de serem parados, a mudar antes de serem mudados, a revelar suas ausncias antes de serem delatados pelas interrogaes da presena (estou parafraseando Marina Silva). Yussef Said Cahali, in Dos Alimentos, 2a ed., So Paulo, Ed. Revista dos Tribunais Ltda., pg. 14, narra que Alimentos so, pois, as prestaes devidas, feitas para que quem as recebe possa subsistir, isto , manter sua existncia, realizar o direito vida, tanto a fsica (sustentao do corpo), como a intelectual e moral (cultivo e educao do esprito, do ser racional). O Cdigo Civil, no captulo especfico (artigos 1.694 a 1.710; antigo, artigos 396 a 405), no se preocupou em definir o que se entende por alimentos. Porm, no artigo 1.920 (antigo, artigo 1.687) encontramos o contedo legal de alimentos quando a lei refere-se ao legado: O legado de alimentos abrange o sustento, a cura, o vesturio e a casa, enquanto o legatrio viver, alm da educao, se ele for menor. Acrescenta-se que, consoante a 37 Concluso do centro de Estudos do TJRS Em ao de alimentos do ru o nus da prova acerca de sua impossibilidade de prestar o valor postulado.Ainda, no presente caso, oportuno invocar o princpio constitucional que impe tratamentos isonmicos entre os filhos, vedando tratamento discriminatrio (artigo 227, 6o, da CF), devendo a Justia suavizar estas desigualdades.

Com muito efeito a tambm aguerrida, sbia e perspicaz Marina Silva, em sua coluna no jornal Folha de So Paulo, publicada no dia 04 de novembro de 2011 citou o educador, poeta e filsofo Rubem Alves (tambm sou f de ambos de carteirinha). Explanou ela referindo a Rubem Alves: Sua afirmao minha alma movida pelas ausncias revela em carregadas tintas o que quase sempre fazemos questo de velar: que nos movemos mais pelo que nos falta do que pelo que possumos.

S os que se percebem incompletos autorizam-se a parar antes de serem parados, a mudar antes de serem mudados, a revelar suas ausncias antes de serem delatados pelas interrogaes da presena.

H muitos anos guardo, do educador Rubem Alves, a lio da incompletude humana da qual s o amor nos redime. E educao um outro nome da palavra amor.

(...)

Por fim, transcrevo as razes recursais do caso que originou este artigo, apelao 70043118934, a qual aguarda julgamento:RAZES DE APELAO

EGRGIO TRIBUNAL DE JUSTIA,

COLENDA CMARA:

I - RELATRIO

Trata-se de ao negatria de paternidade ajuizada por I. G. N. em face E. S. N., nascido em 20/08/2002, representado por sua me. Afirmou que h pouco tempo soube pela genitora que E. no era seu filho, tendo sido induzido em erro. Aduziu que conviveu com o menor, tratando-o como filho, at que este contava dois anos de idade. Postulou exame de DNA e a procedncia do pedido.

A genitora do ru foi citada por edital (fls. 55-57), sendo-lhe nomeada curadora.

Aportou aos autos percia gentica excluindo o autor de ser pai biolgico do requerido (fls. 65-67).

Sobreveio percia psicossocial (fls. 69-70) e o demandante apresentou memoriais (fls. 75-76).

A curadora apresentou contestao (fls. 77-79), postulando, preliminarmente, a citao do requerido na pessoa de seu atual guardio, ou seja, o responsvel pela Casa de Acolhimento Roberto Pirovano Zanatta e, no mrito, contestou o pedido por negativa geral.

Houve rplica (fls. 80-81).

O Ministrio Pblico lanou parecer pela improcedncia do pedido (fls. 82-86).

Foi determinada a citao do requerido, na pessoa do curador ento nomeado (fl. 87), que ratificou os termos da contestao das fls. 77-79 (fl. 88).

Sobreveio sentena julgando procedente o pedido do autor (fls. 89-90).

Intimado (fl. 90/verso), o Parquet interpe o presente recurso de apelao.

II - FUNDAMENTAO

Permissa venia, a respeitvel sentena monocrtica merece ser integralmente reformada, para que seja julgado improcedente o pedido em exame.

Em sntese, o douto Magistrado a quo fundamentou o decisum nas concluses do laudo da percia gentica, que excluiu a possibilidade de paternidade biolgica, bem como da percia psicossocial, que atestou a ausncia de vnculo afetivo entre as partes.

Ocorre que tais fundamentos no se mostram suficientes, no entender desta agente ministerial, para embasar a procedncia do pedido ventilado na negatria de paternidade.

A fim de demonstrar a necessidade de reforma da deciso recorrida, transcreve-se, inicialmente, o teor do parecer lanado s fls. 82-86:

Como visto, o exame de paternidade pelo mtodo de DNA foi conclusivo, afirmando que o requerente excludo de ser o pai biolgico do requerido.

Tambm, pelos estudos sociais, percebe-se que no h entre as partes relao de socioafetividade. Ocorre que isto no basta para a procedncia da ao. Se no h laos de afetividade, a responsabilidade, no caso concreto, exclusiva do pai registral que, segundo o estudo social, acompanhou a criana at ela completar dois anos de idade, abandonando-a totalmente aps tal idade, num ato de crueldade e desumanidade, pois sabedor das condies maternas, a qual dependente qumica e vive na rua, e naquele momento, nada sabia acerca de no ser o pai biolgico da criana, o que veio a desconfiar somente no final de 2009.

Ora, a criana conta com 08 anos de idade e o autor deixou passar o prazo de seis anos de completo abandono do menor (pois segundo ele o tratou como filho at os dois anos de idade), aduzindo, em outubro de 2009 que h pouco tempo tomou conhecimento de que E. no era seu filho pela prpria genitora.

Ao que tudo indica, o autor no tenciona produzir outras provas, pois sequer arrolou qualquer testemunha, mesmo que fossem os parentes da genitora, fundamentando seu pedido em um exame de DNA postulado aps seis anos de abandono da criana. Ora, sabido que a paternidade socioafetiva ou a comprovao do estado de filho prevalecem sobre a paternidade biolgica ou registral, mas, neste caso especfico, h que se ressaltar que a inexistncia da relao de afeto de exclusiva responsabilidade do pai registral.

E no s, alm da inexistncia de relao socioafetiva, h que ser provado, de forma absolutamente convincente, o erro ou a falsidade do registro.

Deve o requerente, portanto, provar que foi induzido em erro. Reza o artigo 1.604 do Cdigo Civil que Ningum pode vindicar estado contrrio ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro. Ademais, com o registro de nascimento constitui-se a parentalidade registral, que goza de presuno de veracidade e publicidade (art. 1.603 do CC).

Vale dizer que o autor, ao qual incumbia o nus de provar o erro ou falsidade do registro (art. 333, inciso I, do CPC), no comprovou qualquer induo a erro, chegando a contradizer-se, pois na inicial alega que soube do fato que lhe induziu a erro h pouco tempo e pela prpria genitora. J, no estudo social, consta que quando iniciou o relacionamento com a genitora ela j se encontrava grvida (fl. 69).

No presente caso, no se trata do caso em que o autor foi arrebatado pelo esprito de humanidade e induzido em erro substancial referente a sua qualidade de suposto pai. Ao contrrio, sabe-se da dificuldade de colocao em famlia substituta de um menino com idade avanada, oito anos, e que teve sua situao indefinida at o momento, porque aps seis anos de falta de contato com o filho, o autor baseia-se apenas em exame de DNA para desconstituir a paternidade. No entanto, no provando ele erro ou falsidade do registro, tal deve ser mantido ntegro cabendo ao pai registral s responsabilidades com seu filho sob s penalidades legais.

Cita-se jurisprudncia, a qual no socorre o autor, no caso concreto, pois as intenes do requerente, quais sejam, livrar-se do encargo legal, porque de fato, j julgou-se liberado de suas responsabilidades h seis anos, contribuindo, exclusivamente, pelo rompimento dos laos afetivos, os quais, cr a signatria, que, em havendo um mnimo de humanidade, solidariedade, caridade, carter e dignidade do autor, possam ser resgatados e possa o autor aproximar o filho dos parentes maternos.

TJSP-057928) REGISTRO CIVIL - NEGATRIA DE PATERNIDADE - VIABILIDADE DO PEDIDO - RECURSO NO PROVIDO. O reconhecimento de filho irrevogvel, mas no impede a anulao do ato em ocorrendo falsidade do registro ou vcio de consentimento, conforme vem previsto no artigo 348 do Cdigo Civil. (Apelao Cvel n 189.168-4, 6 Cmara de Direito Privado do TJSP, So Carlos, Rel. Des. Ernani de Paiva. j. 19.04.2001, un.).

Por fim, no tendo sido produzidas outras provas, no comprovando o autor erro ou falsidade do registro, cabe ser julgada improcedente a demanda, ao menos, como homenagem ao direito fundamental de E. de ter convivncia familiar e em respeito aos mais comezinhos princpios constitucionais de proteo s crianas e adolescentes, se que ainda resta preservada a dignidade do menor E.

Verifica-se, portanto, que no restou comprovado, in casu, o erro ou a falsidade do registro, nus que incumbia ao autor, conforme se depreende dos artigos 1.604 do Cdigo Civil e 333, inciso I, do Cdigo de Processo Civil.

Impende salientar que a exigncia de tal comprovao decorre da irrevogabilidade do ato de reconhecimento espontneo da paternidade, prevista no artigo 1 da Lei n 8.560/92 e no artigo 1.609 do Cdigo Civil.

Assim, somente se admite o cancelamento do registro em situaes excepcionais, mediante a comprovao cabal de vcio de consentimento, a exemplo do erro, dolo, coao, simulao ou fraude, o que incorreu no caso dos autos.

Acerca da necessidade de comprovao de tais vcios para a procedncia da negatria de paternidade, farta a jurisprudncia:

APELAO CVEL. AAO NEGATRIA DE PATERNIDADE. EXAME DO CASO CONCRETO. NUS DA PROVA. O reconhecimento espontneo de paternidade por quem sabe no ser o pai biolgico tipifica verdadeira adoo. irrevogvel e irretratvel. Para haver a anulao do registro civil, deve ser demonstrado um dos vcios do ato jurdico. No caso dos autos, no restou demonstrado que o autor que tenha sido induzido em erro. Pelo contrrio, as verses das partes so contraditrias e h evidncias de que o mesmo tinha cincia de que o menor no era seu filho. RECURSO IMPROVIDO. (Apelao Cvel N 70018364638, Oitava Cmara Cvel, Tribunal de Justia do RS, Relator: Claudir Fidelis Faccenda, Julgado em 29/03/2007)

AO DECLARATRIA DE INEXISTNCIA DE FILIAO LEGTIMA. ACORDO. DIREITO INDISPONVEL. NO HOMOLOGAO. 1. Presume-se que o reconhecimento de paternidade da menor foi um ato voluntrio e consciente do autor da herana. 2. O reconhecimento de paternidade ato irrevogvel e irretratvel ex vi do art. 1 da Lei n 8.560/92 e art. 1.609 do Cdigo Civil, sendo que a anulao do registro, para ser admitida, deve ser sobejamente demonstrada e necessariamente deve decorrer de um dos vcios do ato jurdico, tais como coao, erro, dolo, simulao ou fraude. 3. A filiao direito indisponvel e o reconhecimento, ato irrevogvel, sendo, portanto, impossvel a homologao do acordo onde a genitora compromete-se a excluir o nome do falecido, do registro de nascimento da infante. Recurso desprovido. (Agravo de Instrumento N 70023111552, Stima Cmara Cvel, Tribunal de Justia do RS, Relator: Srgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 16/07/2008)

APELAO CVEL. AO NEGATRIA DE PATERNIDADE. INEXISTENCIA DE PROVA DE QUE O REGISTRO DECORREU DE ERRO DE CONSENTIMENTO. VERDADE REGISTRAL E SOCIOAFETIVA QUE PREVALECE SOBRE A VERDADE BIOLGICA. O reconhecimento paternidade ato irrevogvel, a teor do art. 1 da Lei n 8.560/92 e art. 1.609 do Cdigo Civil. A retificao do registro civil de nascimento, com supresso do nome do genitor, somente possvel quando existir nos autos prova cabal de ocorrncia de vcio de consentimento no ato registral ou, em situao excepcional, demonstrao de total ausncia de relao socioafetiva entre pai e filho. No comprovado que o registro decorreu de erro de consentimento e que inexiste vnculo socioafetivo entre pai e filho, j que por ocasio do nascimento da criana o pai registral vivia maritalmente com a genitora daquela, impunha-se a improcedncia da ao negatria da paternidade. NEGARAM PROVIMENTO APELAO. (Apelao Cvel N 70032545105, Stima Cmara Cvel, Tribunal de Justia do RS, Relator: Andr Luiz Planella Villarinho, Julgado em 07/07/2010)

No caso em tela, embora a percia realizada nos autos exclua a paternidade biolgica do autor, no h nenhuma prova ou indcio srio de que o demandante tenha sido induzido em erro pela genitora.

Alis, faz-se imperioso destacar que o prprio autor deixou de produzir provas a tal respeito, uma vez que, aps a realizao de exame de DNA e da percia psicossocial, diretamente postulou o julgamento da ao (fls. 75-76).

Alm disso, o autor, por suas prprias declaraes, deu mostras de se tratar, em verdade, de arrependimento quanto ao reconhecimento da paternidade de E., que se dera de modo voluntrio.

Ocorre que a jurisprudncia consolidou-se no sentido de que o simples arrependimento posterior no que tange ao reconhecimento voluntrio da paternidade no suficiente para a nulidade do registro, fazendo-se necessria a prova da existncia de algum dos vcios de consentimento, consoante acima referido.

Conforme os ensinamentos de Maria Berenice Dias,

O reconhecimento voluntrio da paternidade independe da prova da origem gentica. [...] ato livre, pessoal, irrevogvel e de eficcia erga omnes. [...] O ato do reconhecimento irretratvel e indisponvel, pois gera o estado de filiao. Assim, inadmissvel arrependimento. No pode, ainda, o reconhecimento ser impugnado, a no ser na hiptese de erro ou falsidade do registro.

Dessa forma, inexistindo prova cabal de falsidade ou erro, no poderia ter sido acolhida a pretenso do autor.

Ademais, diante das peculiaridades do caso concreto, a manuteno da paternidade registral afigurava-se impositiva.

Com efeito, E. nasceu no dia 20 de agosto de 2002 e, como anteriormente mencionado, foi acompanhado pelo pai registral at completar dois anos de idade, quando foi totalmente abandonado pelo demandante, que, naquele momento, nada sabia acerca de no ser o pai biolgico da criana, o que veio a desconfiar somente no final de 2009.

A me do infante, por sua vez, dependente qumica e vive na rua condies essas de conhecimento do pai registral , razo pela qual E. encontra-se em acolhimento institucional na Casa da Criana, desde o dia 26 de junho de 2009 (conforme estudo social da fl. 20), tendo sido suspenso o poder familiar da genitora, em ao que tramita perante o Juizado da Infncia e Juventude (processo n. 021/5.09.0021157-5).

Portanto, diante de tais circunstncias, a desconstituio do registro de nascimento de E., relativamente paternidade, representa ofensa frontal ao princpio fundamental da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1., inciso III, da Constituio da Repblica, bem como aos direitos da personalidade, previstos nos artigos 11 a 21 do Cdigo Civil, na medida em que o infante ficar sem pai registral, quando tal no da sua iniciativa e vontade.

Destaca-se que o afastamento entre o autor e E. no pode servir de justificativa para a anulao do registro, sob pena de o infante, j punido severamente pelo abandono, ser outra vez prejudicado pela retirada do nome paterno de seu registro de nascimento, com as consequncias da decorrentes, como a perda da possibilidade de vindicar alimentos.

Alm disso, preciso frisar, uma vez mais, que foi o prprio autor quem impediu o desenvolvimento de relao afetiva entre as partes, ao abandonar E. quando ele contava apenas dois anos de idade. Diante disso, a desconstituio do registro, quando j passados seis anos do abandono, faria com que o autor fosse beneficiado pela prpria torpeza, pois, aps abandonar por longo perodo o filho voluntariamente reconhecido, ver-se-ia livre de arcar com as responsabilidades decorrentes de tal reconhecimento, por evidentemente ter dado causa falta de relao paterno filial.

Tambm oportuno ressaltar que, ao contrrio do que sustentou o Magistrado a quo, a existncia de um pai registral no impede a busca da origem gentica de E., quando este for adulto ou quando tiver algum responsvel por ele.

Com efeito, a ao de investigao de paternidade imprescritvel (Smula n. 149 da STF), sendo que, como bem observa Maria Berenice Dias,

[...] o impedimento busca de estado contrrio ao que consta no registro no pode obstacularizar o direito fundamental de vindicar a origem gentica. Trata-se de direito imprescritvel (ECA 27). A s existncia do registro no pode limitar o exerccio do direito de buscar, a qualquer tempo, o reconhecimento da paternidade (CC 1.614). Assim, mesmo quem tenha pai e esteja registrado como filho de algum, no est inibido de intentar ao investigatria de paternidade para conhecer sua ascendncia biolgica, havendo somente a necessidade de proceder citao do pai registral.

Portanto, no caso concreto, a manuteno da paternidade registral a medida que se revela mais adequada garantia dos direitos fundamentais do infante, especialmente dos direitos sade, alimentao, educao, ao esporte, ao lazer, dignidade, ao respeito e convivncia familiar (artigos 227 da Constituio da Repblica e 4 do Estatuto da Criana e do Adolescente), observando-se, ainda, os princpios da proteo integral e prioritria, do interesse superior da criana, da responsabilidade parental e da prevalncia da famlia (artigo 100, pargrafo nico, incisos II, IV, IX e X, do Estatuto da Criana e do Adolescente).

Salienta-se, tambm, o disposto no artigo 22 do Estatuto da Criana e do Adolescente, segundo o qual aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educao dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigao de cumprir e fazer cumprir as determinaes judiciais.

Assim, a manuteno da paternidade registral possibilitar ao Ministrio Pblico o ingresso de ao de alimentos em favor do menor.

O que no se pode admitir que, possuindo pai registral em condies de lhe proporcionar o mnimo existencial, E. permanea em situao de completo abandono at o eventual surgimento de pessoa interessada em acolh-lo.

Alm disso, em persistindo o abandono, e caso aparea alguma alma caridosa disposta a acolher o menor, o Ministrio Pblico poder ingressar com ao de destituio do poder familiar do demandante, com vistas a viabilizar a colocao de E. em famlia substituta.

Por fim, a signatria informa que, na ao de destituio do poder familiar que tramita perante o Juizado da Infncia e Juventude (processo n. 021/5.09.0021157-5), foi equivocadamente excludo do feito o pai registral, com base unicamente no resultado da percia gentica efetuada no presente processo, sem que houvesse o trnsito em julgado da deciso ora recorrida. Alm disso, esto sendo adotadas medidas para a colocao do menor em famlia substituta sem que tenham sido esgotadas as possibilidades de manuteno do infante na famlia de origem.

Em virtude disso, buscando assegurar a observncia aos direitos fundamentais do infante e aos princpios acima citados, esta signatria expediu ofcio ao Juizado da Infncia e Juventude (cpia anexa), noticiando as irregularidades acima apontadas e a interposio do presente recurso.

III PEDIDO:

EM FACE DO EXPOSTO, requer o Ministrio Pblico o conhecimento e o provimento do presente recurso, reformando-se a deciso atacada, para o fim de julgar improcedente a ao negatria de paternidade.

Passo Fundo, 31 de maro de 2011.

Maria Augusta Ongaratti,

Promotora de Justia.Artigo escrito em 27/12/2011 por Maria Augusta Ongaratti, Promotora de Justia do Estado do Rio Grande do Sul. Ps-Graduada em Direito Lato Sensu pela Universidade Federal de Santa Maria. Manual de Direito das Famlias. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 338.

Manual de Direito das Famlias. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 338.

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