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Autismo infantil: questões fundamentais sobre o diagnóstico e um tratamento
possível
Rosane Braga de Melo (Professora do UNI-IBMR, FCCL-RJ)
Bianca Machado Quintão (Graduanda de Psicologia pelo UNI-IBMR)
Daniele Borges de Mello (Graduanda de Psicologia pelo UNI-IBMR)
Flávia Louise Neves Gonçalves (Graduanda de Psicologia pelo UNI-IBMR)
Lilian Ribeiro Froes (Graduanda de Psicologia pelo UNI-IBMR)
Shana Allevato Wajntraub(Graduanda de Psicologia pelo UNI-IBMR)
Sobre o diagnóstico: um breve histórico
Considerando a etimologia da palavra, “autós” em grego, autismo significa “de
si mesmo”. Eugen Bleuler (apud Bercherie, 1989) foi o psiquiatra austríaco que
primeiro conceituou a esquizofrenia como uma doença mental diferente das demais
demências, incluindo o autismo dentro dos quatro critérios principais para a
identificação desta afecção mental, que ficaram conhecidos como os quatro ‘A’ de
Bleuler: alucinações, afeto incongruente, ambivalência, autismo. Desta forma, autismo
durante as primeiras décadas do século passado referia-se, em psiquiatria, à tendência
do esquizofrênico de ensimesmar-se, alhear-se do mundo social, colocar-se em um
mundo à parte. O autismo bleuleriano coincidia com a teoria freudiana sobre o auto-
erotismo, desde que ficasse excluído o eros, acentuando a perda da realidade e mais
particularmente o aspecto da vivência de uma outra realidade. À luz da importante obra
de Bleuler, de 1911 (ver Kaufmann[1]
), sobre as Esquizofrenias,
Potter (apud Abramovitch, 2001), em1933, descreveu um novo quadro psicopatológico,
a Esquizofrenia infantil. Segundo Potter, as crianças, assim como os adultos, rompem
repentinamente o contato com a realidade, depois de um período de desenvolvimento
normal, e preservam uma vida interior fantasiosa e criativa, porém privada e isolada.
Em 1943, Leo Kanner, cunhou o termo Distúrbio Autístico do Contato Afetivo (Rocha,
1997[2]
). Nessa época, Kanner formula duas hipóteses para a investigação etiológica do
autismo - inatista e psicogênica - influenciando a psiquiatria no tratamento precoce das
crianças. O diagnóstico de debilidade mental e deficiência auditiva eram comuns para
tais crianças. Os testes psicométricos registravam coeficientes de inteligência muito
baixos, mas em todos os casos foi constatado que não havia deficiência auditiva. A
impossibilidade de estabelecer conexões com pessoas e situações, além de uma relação
particular com as palavras - quando estas são tomadas com um significado inflexível e
não podem ser usadas além da acepção original em que foi aprendida - foram outras
características apontadas por Kanner. Qualquer mudança introduzida na rotina, na
disposição dos móveis, nas normas, na ordem que rege a atividade cotidiana os
desespera. As crianças se relacionam muito bem com os objetos, que lhes dão uma
satisfação inquebrantável de poder e domínio. Ainda que sejam tomados por débeis
mentais, todos possuem uma indubitável capacidade cognitiva. Kanner estabeleceu uma
distinção importante entre a esquizofrenia infantil e o autismo infantil precoce,
considerando que no autismo infantil os sinais de isolamento extremo e desapego ao
ambiente surgem desde o início de vida de um bebê.
Uma outra concepção que inclui o autismo dentro das psicoses é a de Tustin
(1984). Segundo Tustin (1984) o autismo patológico impede a percepção de realidades
divididas de modo que a criança passa a apresentar o quadro clínico que é denominado
psicótico. A criança psicótica tem uma consciência agonizante do não - eu (not self)
antes que tenha um eu (self) suficientemente integrado para lidar com a tensão. Um eu
encontrou com um não-eu (not self) experimentado de forma traumática, o que para
Tustin sugere que uma criança nessa ocasião não tenha desenvolvido a necessária
integração neuromental para lidar com a tensão. Tustin considera, então, que exista um
autismo primário normal que é catastroficamente perturbado, onde a criança reage
através do desenvolvimento de um autismo patológico. Nesses casos temos os
autistasencapsulados ou presos em uma concha (Tustin, 1984). Para Bettelheim (1987),
o afastamento da realidade e o alheamento autístico são características ressaltadas na
descrição dessas crianças que se tornam inacessíveis em sua fortaleza vazia.
O diagnóstico hoje
Na atualidade, o autismo passa a ser classificado como um déficit
neurobiológico inato, inscrito, inclusive, na classificação das doenças mentais (DSM-
III-R, 1989; DSM-IV, 1994; OMS, 1975; CID-10, 1990). Embora na publicação do
DSM II, em 1968, o autismo tenha sido inserido no quadro “esquizofrenia de início na
infância”, a partir da década de 70, passa a ser reconhecido como uma deficiência
cognitiva. Em 1980, no DSM III, o termo utilizado é o de “distúrbios pervasivos do
desenvolvimento”, que se distingue da esquizofrenia infantil. No DSM IV, o autismo se
caracteriza por prejuízo severo e invasivo em diversas áreas do desenvolvimento:
habilidades de interação social recíproca, habilidades de comunicação, ou presença de
comportamento, interesses e atividades estereotipados. Os prejuízos qualitativos
correspondem a um desvio acentuado em relação ao nível de desenvolvimento ou idade
mental do indivíduo. No CID-10, o autismo também deixa de ser diagnosticado como
uma psicose e torna-se um distúrbio global do desenvolvimento. No DSM IV, o
diagnóstico é feito a partir da detecção de um total de seis ou mais itens dentro do
quadro apresentado pelo Manual, a partir dos prejuízos qualitativos nas áreas de
interação social, na comunicação, e nos padrões restritos e repetitivos de
comportamento, interesses e atividades. Embora no CID-10 não encontremos o critério
diagnóstico estabelecido por uma determinada quantidade de itens são citados, também
em um quadro de critérios diagnósticos, comprometimentos qualitativos na interação
social recíproca, comprometimento em brincadeiras de faz - de - conta e jogos de
imitação, padrões de comportamento, interesses e atividades restritos, repetitivos e
estereotipados, e falta de uso social de quaisquer habilidades de linguagem. Tais
anormalidades do desenvolvimento devem estar presentes nos primeiros três anos para
que o diagnóstico seja feito, mas a síndrome pode ser diagnosticada em todos os grupos
etários.
O debate aberto pela psicanálise sobre o autismo atribui relevância à estrutura e
não às manifestações sintomáticas (Rocha Miranda, 1999). Como afirma Lacan (1967)
trata-se de uma forma mais grave de assujeitamento à linguagem, o que nos remete ao
campo das psicoses. Embora encontremos posições teóricas diferentes sobre o autismo,
as contribuições da psicanálise vislumbram algumas saídas, que não sejam saídas de
estrutura, na análise dessas crianças (Pollo, 2001). Nos extremos das posições em
relação à estrutura, existem teóricos que não consideram o autismo uma estrutura
(Rosine e Robert Lefort, por exemplo), e os que consideram o autismo uma quarta
estrutura, a ser acrescentada às já conhecidas neurose, psicose e perversão. No interior
da posição que inclui o autismo no campo das psicoses, ao menos duas podem ser
ressaltadas: a de uma esquizofrenia precocemente desencadeada (Bruno, 1999, 2001;
Soler, 1999, 2001), e a de uma psicose precocemente desencadeada (Abramovitch,
2001a, 2001b).
Sobre um tratamento possível
Hoje, as pesquisas médicas dominantes procuram causas neurológicas,
bioquímicas e genéticas, descartando as que foram consideradas psicodinâmicas ou
relacionadas aos pais, definindo o autismo como um transtorno cognitivo, privilegiando
o tratamento comportamental como terapêutica. Muitas vezes, o objetivo desse tipo de
tratamento restringe-se ao treinamento de habilidades para o ajustamento e adaptação da
criança. Desde Tustin (1984), o autismo é considerado um dos quadros mais difíceis de
serem tratados em psicoterapia. As intervenções adotadas e sugeridas por Tustin
indicam que algo, como o terror, necessita ser posto em palavras pelo terapeuta,
auxiliando a criança a experimentá-lo, destacando a importância do uso da palavra no
processo terapêutico. Neste sentido, para Tustin, o tratamento de procedimentos
interpretativos é possível à medida que essas crianças possuem uma linguagem interna e
entendem, mas não falam. “O que não quer dizer que a catarse desenfreada é a ordem do
dia” (Tustin, 1984, p.149). Por outro lado, Tustin adverte que “técnicas que buscam
estimular a criança psicótica pela cócega, carícia ou abraço são cruéis...” (Tustin,1984,
p.191). Laznik (2004) propõe uma intervenção precoce para o autismo, através da
detecção de dois sinais primordiais que permitem pensar na hipótese de um autismo nos
primeiros meses de vida, pois as estereotipias e auto-mutilações só aparecem aos dois
anos de vida. O primeiro seria o não-olhar entre a mãe e a criança, incluindo o fato da
primeira não se dar conta disso. O segundo estaria relacionado a uma falha no terceiro
tempo do circuito pulsional, no qual a criança vai se fazer objeto de um novo sujeito na
tentativa de fisgar o gozo deste Outro materno.
As particularidades de um atendimento com crianças autistas vem sendo alvo de
muitas pesquisas a partir das contribuições da psicanálise. O tempo todo, afirma
Carneiro Ribeiro (2001), essa é a clínica em ato, de tal modo que o menor movimento -
um desvio de olhar, um comentário qualquer - pode desencadear desde uma crise de
fúria até o início do contato possível. Assim sendo, neste atendimento a clínica surge do
inesperado, da surpresa, do real que emerge a cada instante em seu poder de impossível
e avassalador. Embora difícil de suportar, é importante apostar em um tratamento
possível e não deixar essas crianças ao abandono, à deriva de qualquer laço social,
presas no porão, tal como na matéria publicada recentemente (O Globo, 16/07/2006, p.
18 e 19). Designado como escravo da linguagem (Nominé, 2001), ou como alguém que
não faz uso da função da fala (Elia, 2004), mas ainda assim inserido no campo da
linguagem (Lacan, 1975), a criança autista pode ser abordada por um tratamento
possível pela palavra. “A gravidade do adoecer psíquico em crianças tão pequenas é
causada pela falta de tempo hábil para que elas possam construir bengalas imaginárias
ou pontos de sustentação para a existência, o que as deixa vulneráveis a sua própria
estrutura” (Abramovitch, 2001, p. 84).
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[1]
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Esta é uma versão em português baseada na versão francesa publicada em 1999, no Neuropsychiatrie
de l’enfance et de l’adolescence. A tradução em português foi de Monica Seineman.