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Auto da Mui Dolorosa Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo Personagens Representador Caifás Espia Rabi Azar Jacob Baru Rabi Abraão Diabo Judas Centúrio Cristo Apóstolos S. Pedro Hóspede Nossa Senhora S. João S. Tiago Anjo Acusador Anás Testemunhas 1ª Testemunha 2ª Testemunha Aucília Malco S. João Judeus Porteiro Pilatos Pregão Romão Fariseus Herodes Mulher de Pilatos Pagem Verónica Fariseu Ladrão da mão esquerda Ladrão da mão direita Confúcio Linguinhos Nicodemos José de Arimateia Entra o representador e diz: Representador Depois de criados os Céus e a terra, O povo devoto e mui reverendo Segundo meu fraco saber, que entendo, Contudo andamos em mui grande guerra. Da qual a vitória em vale, em serra, E não se descobre até descender O Filho de Deus por nós padecer Segundo na Sacra Escritura se encerra. É porque movido de grã devoção Que vós outros tendes em esta história Me pus a fazer a sagrada memória Da mui dolorosa e sentida Paixão. Padre Eterno, por dar-nos perdão, (Contemple isto qualquer pecador) Mandou seu Filho como reparador Do pecado primeiro da humanal geração. E porque notei será figurado Tudo, em suma, como aconteceu. Primeiro passo, como o vendeu

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Auto da Mui Dolorosa Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo

Personagens

RepresentadorCaifásEspiaRabi AzarJacob BaruRabi AbraãoDiaboJudasCentúrioCristoApóstolosS. PedroHóspedeNossa SenhoraS. JoãoS. Tiago AnjoAcusadorAnásTestemunhas1ª Testemunha 2ª TestemunhaAucília MalcoS. JoãoJudeus PorteiroPilatosPregãoRomãoFariseus HerodesMulher de Pilatos PagemVerónicaFariseu Ladrão da mão esquerdaLadrão da mão direitaConfúcioLinguinhosNicodemos José de Arimateia

Entra o representador e diz:

RepresentadorDepois de criados os Céus e a terra,O povo devoto e mui reverendoSegundo meu fraco saber, que entendo,Contudo andamos em mui grande guerra.

Da qual a vitória em vale, em serra,E não se descobre até descenderO Filho de Deus por nós padecerSegundo na Sacra Escritura se encerra.

É porque movido de grã devoçãoQue vós outros tendes em esta históriaMe pus a fazer a sagrada memóriaDa mui dolorosa e sentida Paixão.

Padre Eterno, por dar-nos perdão,(Contemple isto qualquer pecador)Mandou seu Filho como reparadorDo pecado primeiro da humanal geração.

E porque notei será figuradoTudo, em suma, como aconteceu.Primeiro passo, como o vendeuAquele sacrílego Judas malvado.

Virão os doutores do povo danadoSegundo já agora mil vezes se fazNo palácio do dragão CaifásAli darão fim a seu ordenado.

E logo atrás deles (segundo vereis) Entrará Judas, com grande cobiça,E com ele o Diabo que assim o atiça,O que ambos fazem calando ouvireis.

Depois de vendido o ter aos Judeus,Por trinta dinheiros, aquele traidor,Entra nosso messu, Jesus RedentorCom todos os doze discípulos seus.

Pedro, André, João, Mateu,Filipe, Tomé, Jacob Maior,Judas, Simão, Jacob Menor,E Bartolomeu e Judas Tadeu.

Aqui os prelados contemplem tambémQuão manso e benigno vem o senhorOs súbditos olhem, com grande temorA obediência que os doze lhe têm.

Depois de ensiná-los a eles mui bem,Declarando-lhes os segredos da sua Paixão,Manda a S. Pedro, também a João,Que vão à cidade de Jerusalém.

Os quais lhe irão ambos a ordenarOnde há-de cear, com sua companha,Oh Céu sagrado de tanta façanha,Ali o seu corpo nos deu por manjar!

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Depois que lá for e acabar de cear,Contemple aqui o soberbo, tirano,Com quanta humildade o Senhor SoberanoOs pés aos discípulos lhes há-de lavar.

E isso acabado, todos se irãoA despedir-se da Madre SenhoraContemple qualquer alma pecadoraAs santas palavras que ambos dirão.

Com que tristeza e desconsolação,Se hão-de despedir um do outro ali,Oh lágrimas tristes dos olhos saiDaqueles que disto seus devotos são.

Depois da partida da Madre, o SenhorIrá com os seus ao horto orarDe Getesámani, onde beijarO irá o discípulo mau, Judas traidor.

O beijo malvado de tanto amargorContemplem criados que são desleais Que com esse crime nem menos nem mais,Serão reputados, no mesmo error.

Ali será preso com grande ruído,Aquele cordeiro manso, inocente,Atado daquela sacrílega gente,Com empuxões e pancadas ferido.

De um cabo a outro com dores trazidoAgora contemplem os que são vingativos,Aqui neste passo, também os altivos,Em como Jesus se mostrou sofrido.

Depois da prisão ser tão desonrada,Que ao cristão dor tanta lhe traz,Será em prisão levado a Anás, Ali lhe darão a cruel bofetada.

Oh alma que estás de injúria cercada!Perdoa, perdoa, com grã devoção,Vendo o Senhor de humanal geração,Quão paciência Lhe tem aqueixado.

O velho de Anás mandará, Depois de o ter mui escarnecido.Que a Caifás vá oferecido,O qual pelas mãos logo se fará.

O dragão Caifás o esconjurará,Ali bofetadas, também repelões.Ali empuxado daqueles saiões,Ali por S. Pedro negado será.

Ali do seu povo será blasfemado,E com zombarias de jogos cruéisDevotos cristãos, de Cristo fieis,Contemplai a doutrina do Profetizado.

Que o Céu foi aberto quando ele foi dadoCom glória e cantares de muita alegria,E hoje o vereis com tanta agonia,Que não se conhece seu rosto sagrado.

Ali, toda a noite, de todos veladoVereis o senhor com guardas de genteAtado à coluna, seu rosto inocente,Com grande humildade o terá inclinado.

Tu, pobre humano, que estás condenado,Contempla, contempla com tino n’aquisto;Vê teu Redentor Senhor Jesus CristoEm como por si está atribulado.

Depois da manhã todos logo irãoAqueles saiões ao templo ordenarEm como a Cristo hão-de acusarDiante de Pilatos e o que lhe dirão.

Ali virá Judas com grande paixão,Arrependendo-se do mal que tem feitoAli Satanás lhe porá seu peito,Que Deus lhe não pode dar nisso perdão.

O desesperado se irá enforcar,Como, mui cedo, senhores, vereis.E assim mesmo também ouvireisTudo o que em casa de Pilatos passar.

Assim padecendo, até o julgar, Contemplem, devotos, a muita doutrina Contemplem, Juizes, que a justiça divina,Mui estreitas contas lhe há-de tomar.

Contemplem por Deus com viva atenção,Em como Pilatos, de medo vencido,Quis, por comprazer o povo perdido,Matar a Jesus, soltar Barrabão.

Quantos já agora por triste afeição Condenam os justos e soltam culpadosAos quais melhor fora nunca serem nados,Que cometerem tão grande traição.

E porque enfadados, senhores, não sejam,Já quero dar fim a meu razoado:Pois, pelo autor, será dedadaToda a Paixão, segundo desejam.

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Também aqui entra, porque todos vejam,Herodes, Verónica, e crucificar,Tirá-lo da Cruz, depois sepultar:Se nisto errei, por Deus me provejam.

Vai-se o representador, e entram os fariseus, Caifás, Rabi Azar, Jacob Barú, Rabi Abraão; e logo chega um espia e diz Caifás ao espia:

CaifásComo tardaste lá tanto,Dize, ó venizarão?Já nos Céus punhas espanto.

EspiaVenho com grande quebrantoQue membro não tenho são,Venho mui arrenegadoVenho mui fora de mimVenho tão desesperado,Senhor, nosso grão prelado, Que deitei quanto comi.

Vossa senhoria querDar-se tanto devagarPois se ele bem souberQuanto só vai a perderTambém há-de arrenegar.

Que depois que ando nisto Digo a Vossa senhoria,Vi tantas cousas de CristosQue se muito vai com istoPor demais é ser espia.

CaifásTudo é o que disto vem escrito?

EspiaNão pode ser.Nem o tempo lugar nos dáNem papel tanto aí háEm que se possa escrever.E faz maravilhas tantas,Milagres tão evidentes,Faz obras tão excelentes,Que Rei na boca das gentesSe diz e enche gargantas.É senhor dos elementos, Planetas celestiais,Obedecendo-lhe os ventos,Sol, lua e firmamentosSerpentes e tudo o mais.

É mestre das Escrituras,Declara segredos seus.Nunca fui tal criatura,Depois da lei da Escritura,Em gentios e Judeus.

CaifásComo falas tu, assim?Parece que dele és?!

EspiaFalo, que nunca tal viNem dos passados ouviDesde Adão até Moisés.Falo, que se muito viveEste homem, olhai, senhor,Temo que ainda vos priveSegundo notícias tiveDe escribas e sabedores.De contínuo hoje andeiTraz dele com grã paixãoE da volta que o acheiOnde agora o deixeiDe traz do rio Cedrão.Havei conselho maduroE dai-lhe breve despachoQue este caso é mui duroQue maldade nem perjuro,Contra ele certo não acho.

CaifásPois aqui juntos, senhores,Em conselho nos juntemosOs que sois mais sabedoresE do povo pregadoresDizei o que aguardaremos.A Jesus que se diz CristoDestruidor de nossa LeiPorque não atentais nistoPois do povo tendes vistoAdorá-lo como Rei?Que, segundo já crêem nele,Não há aí que duvidarTodo o povo ser com ele;E não convém que, por ele,Percamos nosso lugar.Ordenemos de o matar,A Jesus por modo e viaFalsamente o acusarE a torpe morte o condenar,Que não viva um só dia.E, se todos concordarQuiserem em meu dizer,Seja logo, sem tardar.E vós, senhor Rabi Azar

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Dizei vosso parecer.

Rabi AzarContradiz quanto quiseresE Filho de Deus se chama,Só por isso o acusemosTodos juntos o matamosPois assim de nós difama.Vinguemos nossas tenções,Cumpramos nossas vontades,Sigamos acusaçõesFundadas em tais razões,Sem haver deformidades.Diremos ser malfeitor,Diremos ser feiticeiro,Público encantadorE de Deus blasfemador,Dos Diabos companheiro.Com poder de BelzebuFez estas cousas que digo.Dizei vós Jacob BaruQue faremos de JesusPois que sois o mais antigo.

Jacob BaruEu digo que hei por bemTodo o vosso parecerE mais que logo convémQue na Cruz morte lhe dêemPois que nos quer ofender.Pois o povo não consenteCom nós outros concordar,Cumpre que isto ande quenteE que morra brevementeSem momento descansar.Segundo meu parecer,Por razão e por justiça,Juremos de o prenderE contra ele procederDeixando à porta a pregaçãoE porque minha tençãoÉ, senhor, isto que digoSujeito-me à razãoDo meu Rabi AbraãoPois que é o mais antigo.

Rabi AbraãoEle faz muitos sinaisNão tenhas dúvida nistoRessurge corpos mortaisE outros milagres mais,Os quais nunca havemos visto.Se com isto permanecePor muitos dias compridosE o povo lhe obedece,

Contra nós se ofereceQue sejamos destruídos.Morra, morra às nossas mãos!Que vivendo está evidenteVir contra nós os RomãosE tomar com suas mãosNossos lugares e gente.Não demos causa, senhores,Para nossa perdiçãoVinguemos nossos rancoresE tragamos com favoresO povo à nossa mão.E falsamente o acusemosQue por verdade não seiE com isto provaremosTestemunhos juntaremosQue digam que quebra a lei.E porque o adiantadoNão quererá dele ouvir,Se não por bem concertadoEste feito e aprovadoSegundo meu presumirE pois já determinadoTemos isto entre nósQue morra crucificadoPara mais ser afrontado.Caifás, que dizeis vós?

CaifásDeveis todos de saberQue nos é de lei forçadoQue um homem há-de morrerPor se a gente não perder.Isto assim esteja calado.Não se veja ante nos maisJesus, que a morrer se ofereça,Se meus conselhos tomais,Como vós outros deveisMui torpe morte lhe dais.E, porque tempo não perdemosA Jesus de Nazaré,De tal modo o acusemos,Que à morte o condenemos,Pois de nós Rei diz que é.Se de Deus filho diz serCom seus pensamentos vãosAgora o podemos verE se vem com seu poderLivrá-lo das nossas mãos.E, pois todos acordamosEm toda aquesta requesta,De tal maneira o façamosQue nisto não detenhamosPôr o peito antes da festa.Que se faz alvoraçar

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O povo que já crê neleNão dará tempo e lugarComo o possamos matarPara nos vingarmos dele.

Aqui vem Judas e com ele o Diabo, e diz este:

DiaboFaze o que hás-de fazer,Judas, tem bom cuidado,Isto põe a bom recado,Não queiras tanto perder.A teu mestre vai venderA casa de CaifásOnde juntos acharásOs judeus a teu prazer.Trinta dinheiros na mãoTe darão logo nessa hora Esses bem pagos agoraE outras coisas te farão.Não cures de fantasiaE viverás descansado,Mui rico e mui abastado:Dá ao demo a hipocrisia.Que a negra vida te deuPara teu contentamento,Que ainda do unguentoPerdeste o que era teu!Serás um grande sandeu Se com ele mais viveres,E, se tudo isto fizeres,Serás um rico Judeu.

JudasOh que grande perdiçãoFoi aquela do unguento!Por tão grande derramamentoTenho dor do coração.Quando o vi jazer no chão,Por ser de tanta valia,Tomei tanta fantasiaQue perdi a devoção.Se eu tivera o unguento, Que partido que fizera!Juro à tal que enriqueceraEm dinheiro mais de cento.Tenho, nos sentidos meus,Pois mo ele fez perder,De o ir logo venderE trazê-lo logo aos Judeus.Oh como vou agastadoE tão cheio de paixão!

Diabo

Sei que tens muita razãoAndares apaixonado.Esse unguento tão prezado,Por trezentos o venderas,E esse dinheiro tiveras,Se não fora derramado.Trezentos e mais valiaFizeras do teu quinhãoUm bem forrado gibãoE um pelote de folia.

JudasOra a conta deitarei:De trezentos, parte quinta,A mim vinham certos trinta E portanto o venderei.E se a mim os fariseusOs trinta dinheiros dãoEu lho entrego na mãoA ele e todos os seus.

DiaboBem farás de não tardarTeus passos cheios andandoQue eles estão ordenandoComo o poderão matar.

JudasE com isto logo ireiA casa de Caifás,Onde conselho se faz,Porque aí o venderei.

Chama à porta.

Ó de casa, ó senhor,Beijo vossas mãos de cote,Eu sou Judas EscarioteVosso grande servidor.Dias há que ouvi dizer,E isto verdade é,Que a Jesus de NazaréOrdenáveis de o prender.E que não o podeis colherPelo não poder achar,Se me vós quereis peitarEu vo-lo farei haver.

CaifásVenhas tu muito embora,Honrado Judas, amigo,Muito folgamos agoraPois chegaste a esta horaEscuta o que te digo:Daremos quanto mandares,

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Se dele fores espia, E se não nos enganaresTerás em nossos lugaresSempre boa companhia.

JudasNão cureis de oferecerPalavras de lisonjeiros,Dai-me vós trinta dinheirosQue ele a mi me fez perder.E vós vereis o que eu façoSe mos vós quiserdes darPorque eu o hei-de espiarAté o meter no laço.

CaifásVês aqui logo contadosOs trinta dinheiros, vem,Ora, Judas, tem cuidadoDe o pôr a bom recado,E chamar logo nos vem.

JudasOra estai aparelhadosPara quando vos chamarPorque vos cumpre andarDe armas mui ataviados.Porque são tão esforçadosOs seus e de coraçãoQue a vinte não temerãoAinda que venham armados.

CaifásVamos logo aparelharTudo quanto for misterE quando Judas chamarQue o vamos logo buscarPara o haver de prender.Ide vós, Rabi Abraão,Ao centúrio chamarE peitai-o de antemão,Contai-lhe toda a razãoE que nos venha ajudar.

Rabi AbraãoÓ Centúrio, meu senhor,Cavaleiro esforçadoE capitão do imperador,Nosso bem, nosso favor,Nosso tanto desejado:Donde vindes tão armadoCom vossa gente luzida?

CentúrioVenho, certo mui cansado,

De casa do adiantado.

Rabi AbraãoDeus descanse nossa vida.Em muita fadiga andamosBuscando a Vossa Mercê,Pela pressa em que estamosE hoje nunca o topamos.

CentúrioDizei, Rabi, para quê?

Rabi AbraãoPara que nos ajudeisA prender a Jesus CristoCom a gente que trazeis.Se vós, senhor, assim o fazeis,Bem pago sereis daquisto.

CentúrioTudo quanto me mandais Rabi, senhor eu fareiE se logo me feitardes,Como quer que o espiardes, Chamai-me que logo irei.

Rabi AbraãoJá o temos espiadoPara esta noite que vem. Dou-vos vinte e um cruzadosE ponde-o a bom recadoPorque assim, senhor, convém.Conta bem, não vás errado,Dezasseis são, vinte e um.Oh! Que formoso cruzado!Este não é cerceado!Já me não fica nenhum.Ora olhai, senhor honrado,O que digo: assim vivais,Seja bem arrepelado,Empuxado e espancado,Que lhe fiquem bons sinais.

CentúrioEu farei o que dizeisNão mo encomendeis mais.

Rabi AbraãoGrande mercê me fareis.

CentúrioO que digo, vós vereis.

Rabi AbraãoDizei, senhor, sois contente?

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Quereis mais?

Centúrio Muito bem está.

Rabi AbraãoPois também a vossa gentePorque seja diligenteLhe peitaremos que vá.Antes que se ponha o sol,Centúrio, vos aparelhais vós,Pois de todos sois a flor.Fazei como homem de prolE tirai-nos destes nós.

Vem Cristo com os doze apóstolos e diz:

CristoFilhos meus, muito amados,Aos quais eu sempre amei,E de mim mui estimados,De mim sempre adoutrinadosEm a minha santa lei:Sabereis que nestes diasÉ necessário, e convém,Por cumprir as profecias,Subir a Jerusalém.No poder sacerdotadoO Filho do homem virá,Será preso, flagelado, Será morto e sepultado,Aos três dias surgirá.Será o justo metidoEm as mãos dos pecadores,E será desconhecido,Daquele povo descrido,Escribas e regedores.Antes disto começadoHaveis, filhos, de saberQue o dia é chegadoEm que o cordeiro sagradoSe deseja de comer.Todos vos aparelhaiAo pascoal cordeiro,Todos comigo ceai,Todos juntos contemplaiNeste passo derradeiro.

Dizem todos os apóstolos:

Apóstolos Ubi vis tibi paremus comedere pascha?

Diz Cristo:

Cristo A Jerusalém ireis,João, Pedro e Simão,E à porta achareisUm homem, a quem vereisInfusa de água na mão.E a ele seguireisAté a casa onde entrarE ao senhor falareisE da minha parte direisQue vos amostre o lugar.

S. PedroCom muito grande cuidado,Senhor Mestre, cumpriremosO que por vós é mandado;Segundo vosso ordenadoAmbos juntos partiremos.

Aqui vão os apóstolos falando pelo caminho, e diz S. Pedro:

Oh milagre tão patente!Oh graça a nós só difusa!Oh eterno omnipotente!Irmão, vês aqui dianteVai o homem da infusa?Deus te salve, nosso irmão,E conforme em seu amor,Em muita consolação,Ouvirás a intençãoDo nosso Mestre e Senhor.A dizer por nós te enviaQue nos queirais amostrarOnde está aqui o lugarPara hoje vir cearEle e sua companhia.

HóspedeCom muita grande alegria.Sou, irmão, muito contentePois o mestre, todavia,Me faz tanta cortesiaDe que eu não sou merecente.Vedes aqui o lugarNão segundo o seu estado.Venha quando ordenarPorque tudo há-de acharMuito bem aparelhado.E bem Lho podeis dizer,Senhores, logo enquantoSe ordena todo o comer.

S. PedroAssim viremos fazer.

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Irmão, Deus vos faça santo.

S. Pedro a Cristo:

Senhor Mestre, está cumpridoO que mandastes fazerE temos apercebidoQuanto Vós fordes servido.Feito tendes de comer.

Cristo ao hóspede:

CristoDeus te salve, nosso amigo,E te dê consolação.Pois te apraz cear comigo,Paz tenhas sempre contigoPara tua salvação.

HóspedeSenhor, minha faculdadeOnde não poder suprirSupra tua santidadeRecebendo a vontadeQue está para te servir.

CristoMuito convosco comerEsta Páscoa desejeiAntes do meu padecerTambém vos quero dizerQue jamais a comerei.Em verdade eu vos digo,Não vos quero entristecer,Que estou perto de perigoPor igual come comigoQuem hoje me há-de vender.

Todas as vozes:

Nunquid ego sum Domine?

S. PedroSenhor, grande suspeiçãoDe quem seja me puseste.Senhor, dize, se eu não,Se não darei o galardãoA esse que tu disseste.

CristoAquele que mete a mãoComigo no talhadorEsse digo que há-de serMelhor fora não nascerQue cometer tal error.

Responde Judas:

Judas Por ventura serei eu,Senhor, esse que disseste?

CristoToma, vai fazer o teuE declara o dito meu,Cumprido o que prometesteTodos vos levantaiFilhos meus deste lugarE ali vos assentai.Fazei isto me deixaiQue os pés vos quero lavar.

S. PedroSenhor, eu muito descontenteTal não posso consentir.

CristoÓ Pedro, Pedro consente.

S. PedroÉ um grave inconvenienteAo servo o senhor servir.

Cristo Oh não queiras duvidar!Atenta no que te digoQue se teu pé não lavarTerás dúvida de entrarEm meu reino comigo.

S. PedroMeu dito julga, Senhor,Não por teu contradizenteMas por medo e por temorVendo tão grande favorDe que eu não sou merecenteE porque como serventeA ser lavado obedeçaOs pés não seja somente.Que, Senhor, estou contenteSejam mãos e mais cabeça.

CristoAquele que limpo éNão será lavado maisQue só a planta do péTirando um que em nós se vaiVós outros limpos estais.

Assim faz Cristo a pregação:

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Bem vistes vós e sabeisMeus feitos, filhos, nesta horaExemplo em mim tomareisUns aos outros lavareisComo eu vos fiz agora.Vós a mim chamais senhorBem dizeis que eu o são;Aquele que for maiorServirá ao menorDe vontade e coração.A virtude da humildadeÉ caminho para os CéusOnde há amor e caridade,Sabei decerto, em verdade,Ali está o Senhor Deus.E das virtudes que sãoA maior é a caridadeEsta é mais perfeição,Tende-a vós no coraçãoEm mui inteira vontadeO que mais vos encomendo,Filhos meus, os pobres são,Aos quais, ante vos vendo,Que os não deixeis gemendoSem alguma refeição.Ora filhos quero irConvosco ver minha MadreE dela me despedirAntes de eu me partirPara o reino de Deus Padre.

Aqui fala Nossa Senhora:

Nossa SenhoraOh! Filho meu amoroso,Como vindes tão cansado!Vosso rosto gloriosoQue soía ser formosoComo vem tão demudado!Dizei, filho, que requestaMudou vossa perfeição;Porventura é já esta,Filho meu, aquela setaQue me disse Semeão?Filho meu, muito amado,A vossa mãe não direisDe que vindes enojado?

CristoJá o tempo é chegado,Senhora, que vós sabeis;Há-de-se cumprir, Senhora,Ao que fui enviado:Eis que se aproxima a hora

Em que hei-de sair foraComo está profetizado.Venho-vos visitarAntes de minha partida,Ó madre minha, e rogarQue não vos queirais turbarNem sejais entristecida.

Nossa SenhoraFilho meu e meu amorDe temor estou cercadaQue estou tão cheia de dorQue não sei filho e SenhorComo seja consolada.Que fico desamparada,Triste e sem ninguém,Nesta vida desamparada,Por vós, Filho, amarguradaDe ser sempre me convém.

CristoVossa pena minha é Madre, porque me matais?

Nossa SenhoraPorque não vejo porquê,Filho meu, vos apartais.

CristoMeu Padre assim o prevêHei-de cumprir seu mandadoSenhora dai-me licençaQue me já estão esperando,Que é esta a hora quandoSe executará a sentença.Os dias são já chegados,Em os quais, com crua conta,Serão meus ossos contados,Meus membros desconjuntadosE meu corpo em grande afronta.Ao que, pois, convém de ir-me,Há-de-se cumprir sem falha;Senhora quero partir-me,Porque é hora de sair-meA esta crua batalha.

Nossa SenhoraÓ meu filho delicado,Isto é ao que vindes?Tão ligeiro e apressadoTão cansado e afrontado!Ó meu Deus donde vos ides?Porque me queres deixar?Bem vedes quão só estou.

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CristoNão se pode escusar,Madre minha, de acabarO que o meu Padre mandou.

Nossa SenhoraPois não se pode escusarEsta tão triste partidaQuero-vos, Filho, abraçarPorque vos queirais lembrarDa minha tão triste vida.Também vos quero abraçar,Filhos meus, com muito amorE a todos vos rogarNão queirais desprezarO Vosso Mestre e Senhor.

Indo Cristo para o horto diz aos discípulos:

CristoEm verdade sabereis,Filhos meus muito amados,Cumpre que vos esforceis,Que nesta noite sereisPor mim escandalizados.

S. PedroTal fraqueza e desamor,Senhor, não consentirei;E se alguém tendo temorEm ti escandalizado for,Eu nunca já o serei.

CristoNão te mostres tão constante,Pedro, que o não serás,Que Eu te digo que anteQue esta noite o galo canteTrês vezes me negarás.

Todos a uma voz:

Et si opportuerit nos mori teum non negabimus.

S. PedroSenhor, não tem naturezaPoder, nem pode obrar,Que matreiro nem cruezaEm mim ponha tal fraquezaQue te haja de negar.Porém, se for teu mandado,Senhor, eu consentireiSer morto e arrastado,Ser por ti despedaçado,

Mas negar-te não farei.

Diz Cristo no horto:

CristoOra aqui vos assentai,Todos juntos estareis,E um pouco me aguardareisE orai e contemplai.

Aqui entra S. João, Pedro e Tiago e diz Cristo:

Estes comigo irão Para me acompanhar, Todos em contemplação,E os outros ficarão,Que eu ao Padre vou orar.Que a minha alma se entristeceCom grande temor da morte;Meu espírito se oferece,A minha carne se enfraquece,Tomando passo tão forte.Todos três aqui ficai,Não quero que vades mais.Filhos, comigo velaiE orai e vigiai,Assim juntos como estais.

Oração

Ali, Padre, me ofereço,Em ti há todo o poder,Senhor, tudo o que te peçoSe confirma em teu prazer.Peço-te meu desejar,Pois é fraca a humanidade,Se se pudesse escusarEste cálix de passarSendo feita a tua vontade.

Diz aos discípulos:

Ó Pedro, Pedro, te digo,Como não podes velarUma hora só comigo?Sendo tanto meu amigoMe deixas assim ficar?Ora, filhos meus, orai,Não consintais turbaçãoE velai e vigiai,Desse sono despertai,Não caiais em tentação.Meu espírito aparelhadoEstá prestes a morrer,

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Mas o corpo atribuladoDe temor está afrontadoQue me faz estremecer.

Torna a orar.

Ó Padre meu poderoso,Ouve minha oraçãoE dá-me, Senhor, repouso,Que de temor temerosoSe perde um coração.Senhor, seja consolado,Que tenho fadiga forteE o corpo atribuladoDesta angustiosa morte.

Aqui torna Cristo para os discípulos e logo torna a orar.

Ó Senhor, se ser pudesse,Por me tirar de tristura,Não gostasse nem bebesseEste cálix da amargura!E se apraz outra coisa À tua santa vontade,Eis aqui tão pereçosaEsta carne temerosa,Faça-se a tua vontade.Antes da minha paixão,Piedoso Senhor Padre,Peço-te do coraçãoQue hajais, Senhor, compaixãoDe minha tão triste Madre.Também sejam amparadosMeus discípulos, Senhor,Porque andam derramados,Corridos e destroçadosComo gado sem pastor.

Aqui aparece o Anjo.

AnjoAnjo sou nos Céus criadoDa potência divinalQue a ti sou enviadoCom o poder e mandadoDo teu padre eternal.Por mim te manda dizerQue te queiras esforçarPara haveres de beberEste cálix sem temerQue é para o mundo salvar.Esforça teu coraçãoPois se não pode escusarEste cálix de paixão

P’ra reunir a geraçãoQue Adão fez condenar.Que sem ti não pode ser,Senhor, este tem cumprido;E por isso hás-de sofrerEsta morte e padecerSegundo está prometido.E o que lhe encomendasteDe tua Madre olhará,Assim como rogaste,E a teus servos guardará.

Cristo Ó servo e mensageiroDe meu Padre celestial,Consinto muito por inteiroSer cumprido meu marteiroPela linhagem humanal.

Vem aos discípulos e diz:

Ora dormi, todavia,E folgai-vos, filhos meus,Porque chegado é o diaEm que o filho de MariaSerá entregue aos Judeus.Eis Judas se vem chegando Com tanto poder de genteE ele os vem apressando.Esta é a hora quandoA mim será ofendente.

Diz Judas aos fariseus:

Judas Senhores, tende cuidado,Atendai ao que vos digo,Nenhum seja tão ousadoDe ir diante desmandadoMas atrás todos comigoSem nenhuma divisão.Ide todos bem amadosCom mui bravo coração,Que já vos disse que sãoOs seus muito arriscados.Porque podereis acharOutro que pareça ele,Aquele que eu beijarIde logo arrepelar.Não prendais outro por ele.

Diz Judas a Cristo quando lhe dá o beijo:

Rabi, salve-te o SenhorQue todas as coisas faz.

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Eu, Judas, teu servidor,Este beijo com amorTe dou em sinal de paz.

CristoAmigo com quem viesteQue com beijo de traiçãoAo teu mestre vendeste?Oh! Judas, quão mal fizesteEm não olhar quem eu são!

Diz Cristo aos Judeus:

Vós outros a quem quereisQue tão armados andais?A qual de nós demandais?

Todos:

A Jesus de Nazaré.

CristoEu sou esse que buscais.

Aqui cairão os Judeus e Cristo perguntará três vezes. Eles cairão até às ditas três vezes e acabando diz:

Se me vós a mim quereis Não vo-lo quero impedir.Eis-me aqui como dizeis,Mas a mim só prendereis,Estes outros deixai ir.

Aqui corta S. Pedro a orelha a Malco e diz:

S. PedroFeri-los, Senhor, feri-los,Feri-los mui de verdadeAqueles perros descridosPorque são homens perdidosE lhes trago grã vontade.Ó Senhor, dá-me licençaAntes de teu padecerQue eu lhes darei a pendençaQue têm contra teu poder.

CristoÓ Pedro, não ofendendo,A ti te digo, e na verdade,Que teu cutelo metendo Na bainha, eu te repreendo,Que não segues humildade.E sabe que quem ferirCom ferro será ferido

E o que se há-de cumprirNão mo queirais impedirNem queirais ser atrevido.Se, por força de varões,Aqui houvesse de haver-me,Com mui poucas dilações,De anjos doze legiõesViriam a defender-me.Mas como se cumpririaO que está profetizado?Ficava falso o ditado.Em tal caso eu fariaFicar seu dito anulado.

Diz aos Judeus:

Ó gente cruel em todo, Pois me atais desta feição,Dizei-me porque razãoAssim e por tão ruim modoMe prendeis como ladrão?

Aqui levam o Senhor ante Anás e dizem todos a vozes:

Hic dixit: possum destruere templum Dei et post triduum reedificare illud.

AcusadorAnte ti primeiramente Trazemos, Senhor Anás,Este homem ofendenteContra Deus e contra a genteCom cruéis crimes que faz.É um grande encantadorE diz ser filho de DeusE grande blasfemador,Chama-se rei e senhorDe toda a terra e dos Céus.

AnásPorque não me dás razão?Como vens com tal folia?Que é de tua pregação?Onde é tua companhia?Teus milagres onde estão?Porque todas tuas cousasNão te livram destas mãos?Bem parecem cautelosasTuas palavras famosasE teus pensamentos vãos.

CristoEu sempre com humildadePublicamente falei

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Pelos templos da cidadeSem haver em mim maldadeQue encontrasse o que ensinei.Porque perguntas a mimPois que não hei-de ser crido?Pergunta aos que estão aíAs cousas que cometiQue as têm mui bem sabido.

AcusadorComo com tanta ousuraA Anás assim dissesteNão lhe captando mesuraCom palavras de louvura?Tu conheces quem é esteLogo aqui ante ele digoQue falaste sem razãoPor não ires sem castigoQue quem é seu inimigoEsta leva em galardão.

Dá-lhe uma bofetada. Cristo ao Acusador depois de este lhe dar a bofetada:

Cristo Ó homem sem piedade,Porque me és adversário?Se falo alguma maldade,Tu me prova o contrárioE se nela não errei,Dá razão porque me feresQue na terra onde andeiEscondido não preguei,Mas entre homens e mulheres.

Anás Convém que seja levadoPois que tão grande se fazAssim, como está atado,E esta noite apresentadoSeja ao meu genro Caifás.E não poupando a preguiçaSeja de nós acusado,Pois o furor nos atiça.Dizei que faça justiçaE não seja perdoado.

Acusador ante Caifás.

AcusadorSenhor Caifás, honrado,Sacerdote soberano,A ti connosco é mandadoAcusar este malvadoTodo cheio de engano.

O qual fala muito ousadoBlasfemando nossa lei,Pervertendo nosso estadoContra teu sacerdotado!Messias se chama e Rei.E disto que dele faloAqui temos testemunhas.Ordenamos de matá-loPara que não venham tomá-lo Do poder das nossa unhas.Mui torpe morte lhe demos,Pois é justiça e razão;Suas culpas ajuntemos,Do que testemunhas temos,Como estas duas dirão.

Ambas as testemunhas dirão juntamente:

TestemunhasHic dixit: possum destruere templum Dei et post triduum reedificare illud.

1ª Testemunha Com muita grande ousadiaEste que se diz MessiasDisse que destruía O templo e que o fariaNo espaço de três dias.

2ª Testemunha:Eu também lhe ouvi dizer:O templo destruireiE o tornarei a fazerCom mais perfeição e serDo que o fez Salomão rei.

CaifásComo estás assim caladoAo que de ti se diz?Não vês este povo iradoContra ti todo assentado?Porque não respondes? Diz.Pois calas tua maldadeMostrando-te tão esquivo,Conjuro-te em verdade,Digas ser sem puridadeSe és filho de Deus vivo?

CristoEu te digo que nos Céus E na terra e onde estouAcusado dos incréus Vivo sou Filho de DeusE tua boca o falou.Digo mais: não duvideis

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No filho da virgem Madre;Mas porém os que não creisNão tardando me vereisEstar à dextra de Deus Padre.E nas nuvens milagrosoO verá quem duvidou.E quem for de mim santosoContra si será irosoQue meu Padre me enviou.

CaifásNão ouvistes? Blasfemou.Que queremos mais fazer?Que diante onde eu estouA sua boca o falouPorque deve de morrer.Dizei que maior querençaAndais aqui buscandoQue ao caso mais pertença?Se vedes que da nossa crençaE Deus está blasfemando?

Depois de escarnecerem de Cristo diz Caifás:

Profetiza nobis, Criste, qui est, qui te percussit?Pois que já tão certo temos Que de morte é culpado.Bom será que repousemosE amanhã o levaremosA Pilatos, adiantado.Ele fique bem atadoPorque não possa fugirDe muitos homens guardadoDe redor todo cercadoE nós vamos a dormir.

Pergunta Aucília a S. Pedro e diz:

Aucília Também este é Galileu,Deles é sem duvidar,Disto bem me afirmo euQue discípulo é seu,Que o vi com ele andar.

Responde S.Pedro:

S. PedroSabe certo que não seiO que me dizes mulher,Com este homem nunca andeiNem creias de tal dizer.

Pergunta segunda vez a S. Pedro:

Aucília Ali torno a afirmarQue de Galileu és tu,Bem parece em teu falar.Manifesto sem errarQue tu andavas com Jesus.

S. PedroNão te disse já que não.Oh! Que assim me desatinas.Oh! Não me persigas nãoQue não ouvi suas doutrinas.

Pergunta de Malco a S. Pedro:

Malco Tu és discípulo dele,Bem o mostras na traição,Que eu te via andar com ele E tu falavas por eleNo horto e na prisão.

S. PedroÓ homem não digas tolices,Que de meu dito primeiroAgora digo o sinal,Que não vi esse homem.Por Deus, juro verdadeiro.

Aqui canta o galo. Diz S. Pedro fazendo o [...]:

Ai que dor de grande cuidado.Quem perdeu tão grande amigoComo eu, triste coitado,Que prazer terá consigo.Mas tu és meu amigo Consola o desamparoQue neguei meu Senhor.Ai que dor!

S. Pedro diz a S. João que vem passando:

Ó João, aonde vais?João olha o que te digoQue jamais me não verásNem eu me verei contigo.Foge de mim, pecador,Que não sou quem ser soíaQue sou já Pedro traidorQue neguei a meu senhorQue tanto bem me queria.Ó triste velho, coitado,

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Mais que todos pecadorQue temias ser tomado,Ser preso e encarceradoNa prisão de teu senhor!Porque querias viverSem teu mestre e redentor,Não te cumpre aparecerQue todos hão-de dizer:Ali vai Pedro traidor!Ó Senhora magoada,Que é o que de mim direis?Quando fordes informadaDe uma traição provadaCom que olhos me olhareis?Ó João tu não me ajudasA chorar meu desamparo…Como de dor não te mudasEm me ver pior que JudasE Judas serei chamado?

S. JoãoÓ Pedro que te farei?À tua grande paixãoQue remédio eu darei?Como te consolarei?Em mim não cabe razão!Olha que disse o senhor, Quando os pés nos lavou,Que aquele que maior forQue servisse ao menorE assim o encomendou.E, pois tu és o mais velho,Na idade e no saber,Tu nos hás-de dar conselhoPois quebrado é o espelhoEm que nos soíamos ver.Também deverás de olhar O que o mestre te diziaQuando ao Padre foi orar:Que havias de negarTrês vezes em este diaE mais disse que seriaDe todos desamparadoE que nenhum ficariaDesta sua companhiaCom que fosse consolado.

S. PedroOh que novas de prazerE lembranças do passado!A morte vem-me levarNão me queiras dar lugarQue morra desesperado.Ó meu triste coração,Faze tu por me vingar,

Pois fizeste tal traiçãoQue chegaste a negarAo salvador! Ai! Que dor!Ó mesquinho! Mui bem seiQue traidor serei chamadoPois fui tão desacordadoQue negar a Deus chegueiComo traidor! Ai! Que dor!Ó tristes olhos choraiLágrimas de amargor;Meus suspiros suspiraiPois neguei a meu senhor.Ai! Que dor!

Acaba-se o ofício da quinta-feira e começa o da sexta-feira, e diz Caifás:

CaifásSenhores determinemos Darmos fim a este feitoPois Jesus já preso o temos,A Pilatos o levemosQue dele faça bom direito.Dizei todos ser culpadoDe uma morte mortal.Será de nós acusado:Que morra crucificado,Dizei todos por igual.Andemos dissimuladosE vivos no acusar,Nossos ditos apontadosPor direitos alegadosSem em nada discrepar.Que se Pilatos acharNossos ditos discordantesNão o quererá julgarE mandá-lo-á soltarE seremos mal andantes.

Vem Judas arrependendo-se do mal que tem feito e diz:

Judas Ai de mim! Quão grande mal!Porque não olhei primeiroQue sendo homem mortal Vendi a Deus eternalCom cobiça de dinheiro!Porque não fui eu lembradoDo que dele recebiE com quanta honra honradoPerdoando meu pecadoQue outra vez cometi?Agora por galardãoDe ser dos maiores seus

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Com soberba de ladrãoO Senhor da Redenção Eu fui vender aos Judeus.Oh! Triste! Que mal andei,Quão traidor serei chamado!Pois com tal traição pequeiContra Deus e sua lei!Oh! Judas! Judas malvado.

Chega aos Judeus e diz:

Eu, mau, ingrato e injusto,Grão pecado me venceuQue vendi o sangue justoPor tão pouco preço e custoSendo Deus do alto Céu.

Todos:

Quid ad nos? Tu videris.

JudasOh! Dinheiro mal ganho,Indigno de te guardar!Em este templo sagrado,Conhecendo meu pecado,O queira logo lançar.

Respondem os Judeus:

Non licet nos metere in cordo nam, quae pretium sanguinis est.

Aqui engana o Diabo a Judas:

DiaboJá te não podes salvar,Não creias que tem poderDeus de te isso perdoar,Portanto vai-te enforcar,Não vivas em desprazer.Isto te convém fazerPorque teu grande pecadoNão seja tão publicadoPois te hão-de maldizer.Se viveres neste estado,Fortuna te correrá,O teu coração será Sempre mui angustiado.Se tu fores avisadoMuito melhor te seria Morreres desesperado.Confia no que te digoE, se o fazes, serás foraDo mal que fizeste agora.

JudasNão sei que faça, coitado,Se não só desesperarDe meu tão grande pecado,De nunca ser perdoado,Ir-me quero enforcar.

DiaboVai que eu te ajudareiEm tudo o que eu puderE logo te tirareiCorpo e alma levareiP’ra casa de Lúcifer.Lá te farão grão prazerE ali mui bem estarásCom outros que lá acharás.

JudasPois que Deus não tem poderDe me dar nisto perdão.Melhor é logo morrer,Que, vivendo, padecerCuidando nessa Paixão.Oh se logo aqui achasseEm que logo me enforcasse?

DiaboNesta árvore o farásNem busques outra melhorEm esta te enforcarásE logo descansarásDe tua tão grande dor.Não tenhas algum temor,Começa a fazer istoPois vendeste a Jesus Cristo.Oh que bom ramo aqui está,Deita tu bem o baraçoQue ele mui bem te terá.Tu olhas se quebrará?Tu não vês isto que eu faço?Ata mui bem o baraçoQue bem sabes que isto fazO que serve a Satanás.

Enforca-se Judas e diz:

Judas Aqui fenece meu malCom ditado de traidor.Aqui fenece o mortalHomem triste e deslealQue vendeu a seu senhor.

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Entram os fariseus com grande ruído em casa de Pilatos e responde o porteiro:

Porteiro Que diabo é tal bradar?Vós outros assim gritais?Estai quietos, não subais,Que de cá podeis falar.Entrar assim não queirais.Como sois bem ensinados!Não entreis sem ser chamadosPara que vos não percais.

EspiaA Pilatos nos chamaiE dizei à puribidadeQue temos necessidadeDe saber como lhe vai.Se dorme que se levanteQue lhe queremos falar,Que nos haja de julgarEste preso mal andante.

PorteiroEle está mui mal sentido,É-lhe dado repousarE não se há-de levantarAté o sol não ser saído.Eu lhe irei dar o vestidoSe ele estiver acordadoEu lhe darei o recadoQue de vós tenho sabido.Não se faça mais baldãoNem queira nenhum bulirQue, se Pilatos dormir,Terá disso grão paixão.

PilatosDá-me cá esse roupão.Quem fala aí de redor?

PorteiroSão os fariseus, senhor,Que muito há que aqui estão.

Diz Pilatos aos fariseus:

Pilatos E vós outros que quereis,Que tão cedo madrugastes?Que acusação fazeis?Que mal é o que achastesA este homem que trazeis?Com inveja que tivestes,Eu bem sei que o trazeis,

E por isso vos moveis.Tanta queixa assim houvesseDar-vos-ei também castigoSe usardes contra o direito.Olhai bem o que vos digoQue em mim tereis inimigoSe vos vir com mau respeito.

Respondem todos:

Si non est hic male factorNon tibi tradidissemos eum.

AcusadorOlha bem, senhor, primeiro,Que cousa grave seriaChamar-se Deus verdadeiroO filho do carpinteiroE da tão pobre Maria!A nossa lei nos infama De que Deus nos quis dotarDe direito, Rei se chama,De nosso levar disfamaPor seu tributo estorvar.E nos dias que obrigadosA guardar somos em cabo,Fez ser sãos demoninhados,Ressurgir corpos finados,Cegos ver, pelo diabo.

PilatosRespondendo a vossos ditosDigo não posso sentirComo malignos espíritosPossa dos corpos aflitosO diabo fazer sairSenão pelo grão poderDo excelso Criador.Mas vós, com tal desprazer,O quereis contradizerNão sendo merecedor.

AcusadorNão se pode bem julgarSem ouvir ambas as partes,Vossa alteza mande entrarEste homem singularMalvado em tantas artes.Tantas coisas dele temosQue destroem nossa lei,Nosso libelo poremosNo qual certo provaremosQue se chama nosso Rei.Ele sê-lo nos pareceNestas insígnias que traz,

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Do colar que ao peito descePor tal a gente o conheceNas maravilhas que faz.

PilatosVai com cordura, Romão,E faze isto, calando,Toma a Jesus pela mãoE, tirando-lhe a prisão,Dize que chamá-lo mando.

RomãoSenhor Jesus, por mercêTe peço e por humildade,Pois a pobreza tanta é,Que recebas minha féCom tua benignidade.

Lança-lhe a cajoa aos pés e diz:

Que o senhor adiantadoTe manda que logo vásAnte ele apresentadoPara te ouvir, com senadoDe Anás e de Caifás.

Diz Pilatos a Cristo:

Pilatos Bem vês que as vozes que dão,Bem vejo que é sem culpa.Bem vês que descridos são,Bem vejo quão sem razãoTua culpa te desculpa.

AcusadorNós, Senhor, não costumamosSem culpa alguém condenar,Mas também em posse estamosQue aqueles que castigamosNão costumamos honrar.Como fez o teu cursor,Quem em trazendo-o adorouComo Deus nosso SenhorSem de ti haver temorNão sei quem tal lhe mandamos.

PilatosQuem foi?

Acusador Este encantadorQue perdeu a todo o mundo,Que introduziu teu servidorPor lhe dar honra e louvor

Com sucesso mui jucundo.Lançando-Lhe a vestiduraEm terra sobre que andasse,Isto com grande mesura,Com palavras de louvura,Para que mais nos danasse.

PilatosTu porque desta maneiraEste homem fizeste entrar?Lançando-Lhe a capa inteiraQue foi coisa lastimeira,Porque deste grão pesar?

RomãoPorque deste aprendiQuando fui por teu mandado.Dia de Ramos o viMais honrado que tiDo povo e sacerdotado.Em Jerusalém te contoQue o vieram receberSem faltar todos um ponto,Foi honrado sem conto,Quanto te quero dizer.Mas lançavam vestidurasE outros ramos de palmasE outros passos de figuras.Outros com muitas mesurasLhe davam mui grandes salvas.Uns Hossana Lhe diziam,Outros Excelsis cantavam,E todos os que o seguiamCom estes clamores iamE assim o adoravam.

AcusadorPode ser mor desatinaQue fazer de nós sandeus!Este que andou peregrino,Um homem sem ser latino,Sabe o hebraico dos Judeus?Saber-me-ás dizer: vem cá,Pois que tens tão grande aviso,Que significa Hossana?Teu saber responderáAlguma coisa de siso.

RomãoMui presto respondereiA vossas perguntas vãs.Dir-vos-ei tudo o que sei,Isso porque o pergunteiA pessoas muito sãs.O Hossana quer dizer:

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Deus vos salve, e isto não.Com pouca festa e prazerPois hoje vos vem trazerÀ nossa alma a salvação.

PilatosDizei-me vós, povo honrado,Que significa na Igreja Hossana?

Diz o acusador adiantado:

AcusadorQue quer dizer bem declaradoTua vinda benta seja.Pois em nome do omnipotenteVem salvar a Israel,Disse-lhe devotamente:Bendito, ante esta gente,Sejais, ó Emanuel.

PilatosSe vós dais testemunhoNesses vossos desatinos,Convosco jogai os punhos,Lançando por cruzes, juntosPara que sejais mofinos.Que clamais ou que bradais?Que mal fez o meu cursorQue vós outros não façais?Porque todos lhe chamam Vosso Deus e Salvador.E para satisfazerDeste povo a grande saudadeA Jesus fazei trazerE tornai-o a meterSó, sem nenhuma companhia.Não cures da bizarriaNem te metas em afrontaPor lhe fazer cortesia,Nem te arguam de falsiaPois vem tudo a uma conta.

Romão a Cristo:

Romão Senhor, eu sei a verdadeE por tua grã clemênciaPeço a tua santidade, Pois em ti há piedade,Que o recebas com paciência.

Acusador muito rijo:

Acusador Ouve, ouve adiantado,

Senhor, não quereis olharUm homem tão infamado;E se anda endemonhadoPorque o quereis guardar?Por ele e sua grandezaFez Herodes insolentesFeitos, estragos, vileza,Matando com grã cruezaOs meninos inocentes.Por este medo infinitoFugiu com ele sua MadreÀ província do Egipto,Com José, seu padre dito,Ao qual nega de padre.

PilatosQuantos tenho de tristeza,Considerai de verdade,Nem me move tal bravezaVer que não há naturezaIgual à vossa maldade.Eu justiça não Lha negoPois o não acho culpado.A minha alma descarregoE a vós vo-lo entregoQue por vós será julgado.

Aqui dirão todos os fariseus:

Fariseus Nobis non licet interficere quemquam.

AcusadorA mandado tão acesoMe convém de replicar:Senhor, esse é um grande pesoQue por lei nos é defesoOs Judeus de não matar.Por César te requeremosQue não queiras duvidar, Pois em seu nome te temos,Que este homem te trazemos,Que no-lo queiras julgar.

PilatosPois é de força mandadoDeterminar este feito,Para ser crucificado,Por mim será perguntadoPelos termos de direito.Seja cá dentro trazidoPor vós outros, homens meus.Dize: és tu o cumpridoMessias Rei prometidoQue te chamas dos Judeus?

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CristoIsso que me perguntaste,Te pergunto se é de ti,Que por certo não errasteOu porventura falasteOu te disse outrem por mi?

Pilatos Nunquid ego seum Judeus?Olha bem o que dissesteÀ tua gente e aos teus.Pontífices e fariseusTe trouxeram, que fizeste?

CristoO meu reino e companhiaA este mundo não impedimos.Se deste fosse, viriaMinha gente e livrar-me-iaDos que tanto me perseguem.

PilatosSegundo o teu falarE o que disseste, Jesus,Me faz crer sem duvidarE naquisto afirmarPor certo Rei és tu.

CristoTua boca o falouEm dizeres que eu sou Rei,Para isso me enviouMeu Padre e me mandouQue reunisse sua grei.Por todos os que sãoInclinados à verdadeE de limpo coraçãoMinha palavra ouvirãoCom amor e caridade.

Diz Pilatos aos fariseus:

Pilatos Sabei que eu me desobrigoConsentir em vosso empacho,Nem a julgá-lo me obrigo,Porque decerto vos digoQue bem sem culpa o acho.

AcusadorSem culpa dizeis, senhor?Se o bem olhares tuÉ grande blasfemador,É mui grande encantador

Com o poder de Belzebu.Toda a terra da JudeiaTem deitado a perderE também de Galileia.E como Rei se passeia, To fazemos a saber.

PilatosPorventura é galileu este homem?

AcusadorSim, senhor.

PilatosComo não é do poder meu,Por isso julgá-lo euO não posso sem error.A Herodes o levaiQue é de sua jurisdição;Ante ele o acusai,Ante ele o demandai,Lá segui vossa tenção.

Aqui levam o senhor a casa de Herodes, com grande ruído e diz o acusador:

Acusador Mui alto Rei e senhor,Em poder mui acabado,Pilatos teu servidorTe manda este encantadorQue por ti seja julgado.Em grande culpa é tomadoPois contra o poder realO ceptro te há usurpado,Por isso é acusado.Passa sentença mortal.Aqui verás o processoEm que deve de morrerPelo criminal excessoContra o teu poder avessoQue se faz Rei, sem o ser.

HerodesQuanto tenho de prazerCom este homem que trazeisQue tanto desejo verPara por ele saberAs coisas que me dizei!Seja logo desatadoDaquelas cordas que traz,Não seja mais acusado,Para eu ser certificadoDas maravilhas que faz.Como és assim trazido

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Ante nós dessa maneira?Para Rei não vens guarnidoNem trazes nobre vestido.Senta-te nesta cadeira.És tu a quem não achouMeu padre em tal sazãoQuando buscar-te mandou?Quantos moços que matouPara te colher à mão?És aquele a quem trouxeram Presentes do OrienteOs reis que dele vieramE com meu padre estiveramCom tanto poder de gente?És aquele que tornouA vista que havia perdenteO cego que te rogou?És também o que fartouCom cinco pais tanta gente?És também o que vieste,Depois do terceiro dia,Dar vida ao irmão de MariaE outras coisas que fizesteQue de ti se nos dizia?Pois milagres sabes fazer,Milagres tantos sem par,Faze por me dar prazerCousa alguma para verQue te mandarei soltar.E no meu reino hás-de estarMui estimado comigo.Porque não queres falarNem resposta me tornarA quantas coisas te digo?Este é o que dissestes,Milagroso galileu?Bem por nada vos vencestes.

AcusadorSenhor julgai-no-lo prestes.

HerodesTirai lá esse sandeuE logo aqui vos digo:A Pilatos o tornaiE dizei que de inimigoFico grande seu amigoE lá com ele o julgai.E saiba que este feitoNão é de meu senhorio.Mais, pois o tomou a peito,Que se vos faça direito,Como eu nele confio.

Aqui levam outra vez o senhor a Pilatos:

AcusadorA ti o mandou trazerHerodes, Rei, todaviaQue ordenes, senhor, queriaDe justiça nos prover.

PilatosSofrer tal não poderia.Herodes não o quis julgarPorque o achou inocenteE vós quereis menoscabarMinha honra, para usarDo que a lei não consente.Costume antiquadoÉ pela Páscoa tirarUm preso que for achadoQue por vós for demandadoNeste dia o soltar.Jesus Cristo não culpado,Barrabás por ser ladrão,Dias há que está julgado,Que por vós seja tiradoDestes dois um da prisão.

Todos:

Não este, mas sim Barrabás.

AcusadorTodos juntos num querer,Pois a escolher nos dás,Jesus deve padecer.E tu, senhor, por fazerMercê, dá-nos Barrabás.

PilatosBem por claro tenho vistoVosso grande desamorPois já vos fundais n’aquisto.Que farei de Jesus Cristo?

AcusadorCrucifica-o senhor.

PilatosEm verdade eu me quitoDa culpa d’aqueste injustoE de Deus seja malditoQuem gastar mais o espíritoCom palavras de mau gosto.

Neste passo sonha a mulher de Pilatos mui agastada e diz:

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Mulher de Pilatos Ai como estou agastadaDas grandes cousas que viN’aquesta noite passada,De visões toda cercada,Que não sei parte de mi.A Jesus sonhei que via,Manso como um cordeiro,Que sem culpa padeciaAcusado com falsiaA mui áspero marteiro.Sonhava que via maisO muito grande clamorQue saía dos mortaisCom as potências divinaisDo seu confuso rancor.Entra o justo inocente,Vi batalha ensanguentada,Vi Jesus estar presente,Capitão de ante a genteQue estava desbaratada.A Pilatos com recadoVai dizer esta visão,Porque não seja ousadoCondenar a seu pecadoNem no justo meta a mão.Tu lhe dirás tudo aquistoE que eu lhe mando dizerSe deite fora disto,Que em julgar a Jesus CristoSe não queira entrometer.

PagemPilatos, tua mulherA dizer por mim te envia,Que te não queiras meterA julgar nem procederA Jesus por nenhuma viaPorque dele tem sonhadoNesta noite por visão,Que é justo e sem pecadoE falsamente acusadoPor invejosa tenção.

PilatosNão vedes o que me mandaMinha mulher dizer,A qual é da vossa banda,Deixai agora essa demandaQue não traz bom parecer.

AcusadorJá te dissemos primeiroTu, senhor, não queres quererQue este homem é feiticeiro

Dos diabos companheiroQue Lhe faz isto fazer.Se tua mulher sonhouFoi por nosso aprovar.Que o diabo lhe mandou,Ele mesmo lho causou,Que a fosse a atribular.

Neste passo lava Pilatos as mãos e diz:

Pilatos As mãos lavo aqui presenteNem consinto ser culpadoNo sangue deste inocente,Mas mando cumpridamenteQue por vós seja julgado.

AcusadorDesse sentença mortal,Pois temos grande razão.Se te não parece igualSobre nós venha este malE a filhos de geração.

PilatosEm verdade eu não poreiMeu nome em tão grande perigo.Por vos comprazer fareiQue feri-lo mandareiDe açoites por seu castigo.

Aqui açoitaram a Jesus, e como o açoitarem tira-lo-ão fora e assentado em uma cadeira, com uma cana verde na mão. Dirão todos em voz:

FariseusAve, Rex, Judeorum!

AcusadorNão hás-de, senhor, estarSem ter coroa de ReiPara teu povo mandar.Eu lha vou logo buscarE nada me deterei.

Aqui traz a coroa de espírito e diz o acusador:

Pois de nós dizes ser reiTua mui real pessoa,Por mais te enobrecerTe quero logo ponerNa cabeça esta coroa.

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Aqui se porão todos os fariseus de joelhos, e dirão todos a vozes:

Fariseus Ave, Rex, Judeorum!

E depois o levarão dentro e virá Pilatos com ele cá fora:

Pilatos Eis o homem açoitado,Eis o homem afligido,Eis o homem acusado,Eis o homem descorrido,Eis o sem culpa, culpado,Dizei ora o que farei.

Dirão todos:

Crucifige, crucifige eum!

PilatosEu tal não consentirei.

AcusadorSenhor julga-o por lei,Quia filium Dei se fecit,Pois lei temos assaz forte,Sê-nos direito juiz, senhor,Lança bem tua sorte,Que este homem merece maisPois, de Deus, filho se diz.

Aqui torna Pilatos dentro e diz a Cristo:

Pilatos Tu vês este recusarE o que dizem de Jesus?Dize-me sem duvidar,Que te quero perguntar,Que me digas quem és tu?

Torna a dizer Pilatos:

Nem resposta me tornarNem me queres responder,Para te crucificarE mais para te soltar,Sabe que tenho poder.

CristoSobre mim não tem poder,Só se for de cima dado.E quem me for atraerEm verdade hás-de crer

Que mor é o seu pecado.

Aqui torna Pilatos fora e diz:

Pilatos Eu não acho coisa forte,Olhai bem o que fazeis,Para o condenar à morte.Vós o tendes desta sorteQue mais morte Lhe quereis?

Todos:

Si nunc diruistis non es enviens Caesaris; omnis eum qui se regem faest contra dicit Caesaris.

Pilatos Que farei, triste, não sei!Vosso poder me embaraçaPois eu sem culpa o achei.Eis aqui o vosso rei,Que mandais que se lhe faça.

Todos:

Tole, tole, crucifige eum!

AcusadorSenhor, faze que não vamosDaqui sem cruel justiçaE este que nós te damos,De que tais coisas provamosCrucifica-o, crucifica-o.

PilatosOh! Cruel requerimento!Que mui me trazeis a pique,Gente sem comedimento,Requereis sem cumprimentoQue vosso Rei eu crucifique.

AcusadorNós outros, senhor, não temosPríncipe superior.Nem Rei nosso conhecemosSenão César, que queremosPor um só imperador.Por ele te requeremos,Que não queiras duvidar,Pois em seu nome temosEste homem que trazemosQue no-lo queiras julgar.

Aqui dá Pilatos a sentença:

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Pilatos Eu Pilatos, adiantado,De Jerusalém senhor,Com justiça delegado,Com poder e com mandadoDe César Imperador;Vistas as acusaçõesDe Jesus da Nazaré,Sem mais outras dilaçõesE pelas próprias razões,Dou sentença que tal é:Eu mando que seja alçadoEm uma cruz de madeiraCom fortes pregos pregadoE morra crucificadoNo mais áspero marteiroE o pregão tal há-de serCom estes escritos meus:Justiça que manda fazerEm Jesus por se dizerDireito rei dos Judeus.

PregãoJustiça, justiça de grande rigor,Que manda fazer o muito serenoPôncio Pilatos, justiça maior,Que morra na Cruz como pecadorCrucificado, Jesus Nazareno.

Aqui diz chorando S. João.

S. JoãoAi dolor, dolor, dolor!Por meu mestre e meu senhorAi dolor.Oh! Qual é o coraçãoQue se não possa abrandarVendo ir crucificarO Senhor de RedençãoCom tanta dor e pesar!Oh! Discípulo traidor,Porque não houveste medoDe mandares um só dedoPara vender o senhor!Ai dolor!À Madre deste SenhorOh! Que nova levarei?!E como lha contareiCom grande dor!Ai dolor!

Chega S. João a Nossa Senhora e diz:

Oh triste nova de espanto

Dizei vós, quem sofrerá?Em grande dor e quebrantoDe hoje mais viver em pranto,Senhora, a vós convirá,Que a inveja acabadaHoje tem sua vontade.Senhora, parte apressadaQue a vosso filho é chegadaA morte de crueldade.

Nossa Senhora Oh! Que nova de sentir!Oh! Dor para mim tão forte!Como é que eu posso ouvirQue meu filho há-de subirA cruz com tão cruel morte?Ai! Que esperança terei,Triste mais triste que todas Com quem me consolareiPois a um filho que gereiLhe deram tão tristes bodas!Vós outras todas mulheres,Vede que consolaçãoQue alegria e que prazeres,Que manjares e comeresQue tristes novas me dãoDo meu amor! Ai dolor!Oh! Meu filho, oh! Meu senhor,Oh! Triste desamparada!A minha alma trespassadaEstá por meu redentor!Ai dolor!

Aqui estará quieta Nossa Senhora e levam Cristo a crucificar e diz Cristo:

Cristo Em aquesta dor tão forte,Filhas de Jerusalém,Não choreis a minha morte!Mas chorai a triste sortePois que tão cedo vos vemNo qual tempo direis:Bentas as que não geram.Por outeiros clamareis,Dos montes vos queixareis,Porque vos não enterraram!

VerónicaÓ gente de crueldade,Quanto vos posso rogar,Que motivos de piedade,Me deixeis por humildadeA este homem alimpar.Pois te não posso valer,

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Meu Jesus de Nazaré,Tu me queiras receberO pouco que te hei-de fazerQue a vontade grande é.

CristoÓ mulher tão piedosaDe minha paixão e dor,Nesta hora tenebrosa,Pois que foste tão ditosa,Eu te deixo este penhor.

Aqui crucificarão o Senhor. Antes que levantem a cruz manda Pilatos seu édito, por um pagem que o pregue na cruz, e diz Pilatos:

Pilatos Vem tu cá, fiel servente,Toma este meu ditadoO qual muito diligenteLevarás em continenteE porás na cruz pregado.E se aí, algum judeuTo quiser contradizerResponde que mando euSer cumprido o édito meuSem nenhum seu antepor.

PagemPilatos, adiantado, Senhores, cá me mandouTrazer este seu ditadoPara ser na cruz pregadoDe Jesus a quem julgou.Nenhum pois será ousadoDe o querer contradizerNem ir contra seu mandadoE quem isto quiser crerSerá bem aconselhado.

Fariseu O édito não consintoQue na cruz seja pregadoE a Pilatos logo vamosE todos juntos digamosQue emende seu ditado.

Aqui vêm os fariseus todos até Pilatos e dizem:

Fariseus Noli scribere Rex Judeoruem, se quia ipse dixit Rex Judeoruem.

PilatosIsto é o que escrevi,Já está constituído.Deixai-o estar por aí,Porque creia que é assiAquele por quem for lido.

Aqui levantarão a Cruz e dizem os fariseus:

FariseusAlias salvos facit se ipsum non potest saluem facere? Rex Israel est, descendat de cruce et credebimus est.

AcusadorPois és Cristo e tens poderDe sarar muitos enfermos,Pois fazes mortos viver,Não farás tu por descerDessa Cruz para em ti crermos?

CristoÓ Padre, ó Padre perdão,Outorga a quem me ofende,Não sintas minha paixãoPorque esta ofensãoQuem a faz a não entende.

Diz o ladrão da mão esquerda:

Ladrão da mão esquerdaSe tu és Deus verdadeiroPorque te deixas morrer?Salva, salva a ti primeiroE a nós destes marteiroNão nos deixes padecer.Não uses de tal cruezaContra nós e contra tiPois te chamas Deus da altezaSocorra tua grandezaQue não morramos aqui

Diz o ladrão da mão direita:

Ladrão da mão direitaOh homem desesperado!Não fales tão largamenteQue tu foste condenadoE eu por nosso pecado,Mas este morre inocente.E muitas maiores doresMerecíamos penarMas tu, Senhor dos Senhores,Ao teu reino quando foresDe mim te queres lembrar.

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CristoAqui logo de improvisoEm verdade saberásPois tiveste bom avisoQue hoje no paraísoComigo certo serás.

Aqui fala S. João:

S. João Oh! Não vos queirais deterE andai mais apressada.Senhora, cumpre correrSe ainda vivo o queirais verCaminhai Virgem sagradaSegundo vai apressado.Dos carniceiros algozesVosso Filho dedicadoJá será crucificadoCom grandes gritos e vozes.

Nossa SenhoraAi dolor!Oh vós outros, que passaisPor esta vida mesquinha,Rogo-vos que me digaisSe vistes penas mortaisTamanhas como esta minha?Vistes por aqui passarO meu filho tão formoso?Aquele que não tem parEm graça, feições e arSobre as virtudes lustroso?Vistes lá o meu Amado,Filhas de Jerusalém,O meu filho tão prezadoMas humilde e bem criadoDo que nunca viu ninguém?

VerónicaÓ mulher, porque chorais?

Nossa SenhoraDo meu filho novas eu dei.

VerónicaEsse por quem perguntaisSegundo vossos sinaisPor esta rua não vai.

Nossa SenhoraVistes lá o meu Amado?

Verónica

Vi levar a padecerA um homem desonradoTanto já desemelhadoQue o não hei-de conhecer;Vi os algozes pegadosNele mui cruelmenteE vi seus olhos quebradosSeus membros desconjuntadosSem ter cor de homem vivente;Vi tanto sangue correrDaqui quando passavaAqui se não podia terNem de fraco imóvelA cruz que às costas levava.E quando por mim passouMe pedia com amarguraMeu lenço em que se limpouE logo nele ficou Impressa sua figura.

Tanto que lhe mostrou o lenço, diz S.João o seguinte:

S. JoãoOh, excelente pintura!Oh mistério mui profundo!Esta é a vossa figuraDos homens a formosuraQue amava todo o mundo.

Aqui o irá erguendo.

Eis aqui o vosso Amado,Não esmoreçais Senhora,Eis o Justo condenado,Crime ensanguentadoPor nossa alma pecadora.

Nossa SenhoraOh face resplandecente!Oh face tão poderosa!Oh meu Filho inocente!Oh milagre tão potente!Oh mulher, como és ditosa!Por onde viste levarO pintor desta pintura?

VerónicaEu vo-lo irei mostrarPara vos acompanhar,Senhor, nesta amargura.

S. JoãoSenhora, fique o pintadoVamos ver o pintor

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Antes que seja passadoPara ser crucificadoDaquele povo traidor

Nossa SenhoraAi dolor, dolor, dolorDolor de tanta tristeza,Ver gente desesperada,Gente sem comedimento.Oh gente desatinada!Para quê a tal cruezaTanto sem merecimento?

Aqui chega Nossa Senhora à cruz, e aí diz:

Filho, pois por tantas vezesFazes oração do PadreÓ filho meu, não desprezesOs braços, o choro e precesDa tua triste Madre.Rogo-te, Filho amorosoQue me não deixes assimQue meu vigor e repousoSerá triste e temerosoFazendo vida sem ti.Que fico desamparadaDe esposo, Filho e Senhor,De todo o bem esquivada,De todo o mal requestada,De todas as tristes a maior.Mulheres, que dor tão forteO meu coração a queixa!Oh grave mal, dura sorte!Filho, antes desta morteAlgum consolo me deixa.

CristoObrigando-me a razãoA meu dito e meu querer,Sentindo vossa paixãoVos digo por S. João:Vês o teu filho, Mulher?E a ti, amado meuEscolhido por meu Padre,Olha que te digo eu:Ficarás por filho seu,E Ela por tua Madre.

Nossa SenhoraComo podem cuidar,Ó filho e Senhor meu,Que seja para julgarA ver-vos eu de trocarComo ao filho de Zebedeu?

Aqui diz Cristo com a voz muito erguida ao Céu:

Cristo “Eli, Eli”Tu, Senhor que me mandaste:Lammae Labactam.

Os judeus todos dirão:

Judeus Eliam vocat iste: videmos an veniat Elias liberaus eum.

CristoAgora em cumprimentoDe todo o meu padecer,Hei sede neste tormentoDe desejoso e contenteDa linhagem guarnecer.

EspiaNão vedes, quer beberPor mostrar que não tem medo?Eu vou a todo o correrPara logo lhe trazerPor fel e vinagre azedo.

Trazendo a cabaça diz o acusador:

Acusador Pois estás tão desejosoDe beber, bebe, Senhor,Este vinho tão gostoso,Não morras de sequioso.Que tal achas o sabor?

CristoCom este gosto amargosoE com os vossos rancores,Digo eu mui desejoso,Em ti, mundo tão danoso,Cumpridas são minhas dores.

Daí a pouco diz:

A ti, Padre, dou com amor,O que tu, Senhor, me deste:A ti, ó Padre e Senhor,Meu espírito com louvor.“Quia consumatum est”.

ConfúcioVerdadeiramente digoQue Ele é filho de Deus,

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Por tal o creio e vos digoMereceis um grande castigoVós outros, todos judeus.Não vedes quantos sinaisVêm por toda a redondeza?Nem estejamos aqui mais,Se meu conselho tomais,Conhecei vossa viagem.

Aqui se vai o Confúcio com os armadores e vão-se a Pilatos e diz o acusador:

AcusadorSenhor, Pilatos honrado,Em verdade te dizemosQue por tu nos é forçadoSer o safado guardadoEm extremo dos extremos.E porque, Senhor, seráNojosa coisa de olharOs corpos de ali ficarLicença, Senhor, nos dáQue os possamos quebrantar.

PilatosFazei já vossa vontadeE cumpri vosso quererPois fostes tão sem piedadeCostumazes na maldadeQuerendo a Jesus perder.

Aqui vêm quebrar as pernas aos ladrões e diz o acusador:

AcusadorPois Jesus já morto está,Não quebremos a escritura,Mas alguns dos que aí háA lança corra e veráSe vai vivo à sepultura.

LinguinhosPois tenho vista privadaDo que levo grande paixão,Ponde-me a lança apontadaE dar-lhe-ei uma lançadaNo meio do coração.

Aqui se lhe dará a lançada, e como o sangue corre lhe diz:

Oh grande milagre visto!Olhai o que digo eu:Em verdade este é CristoNão duvide ninguém disto

Que a meus olhos vista deu.

Põe-se de joelhos e pede perdão a Cristo:

Senhor, peço-te perdãoQue tu és Deus de virtude,Remédio da geração,Que a mim deste saúde.

Aqui se levanta e diz:

Oh judeus, quão mal fizestes!Porque foi tal desavençaQue morte ao Justo destes,Olhai o que cometestesQue vou fazer penitência.

AcusadorComo estais assim pasmadosOuvindo tanta loucura?Oh! Doudos desatinados,Dizei-me se sois pagadosDe jogar a vestidura?

Todos.

Non seindamus eum, sed sortiam de ca cuius sit.

Vão-se todos, e virá Nicodemos a pedir o corpo de Cristo a Pilatos e diz:

Nicodemos Paz e saúde com próspera vidaVos dê o Senhor, Pilatos honrado.Venho pedir-vos, que queirais de bom gradoFazer-me uma grande mercê mui comprida:Jesus Nazareno sem culpa devidaQue vós condenastes a morte tão certaLicença me deis que lhe dê sepultura,Não fique na Cruz a Páscoa florida.

PilatosMuito me apraz da cruz o tireisE seja por vós mui bem sepultado,Que creis ser justo e injusto acusadoE à morte trazido, segundo dizeis.E pois essa honra fazer-lhe quereisFolgo com isso, tomai o mandado.

NicodemosO Senhor aumente vosso estadoPor tanta mercê que assim me fazeis.

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Indo pelo caminho, topa José de Arimateia e diz:

José de ArimateiaSalve-te Deus, varão muito honradoE Deus te dê paz com muita alegria.Aonde te vais com tanta agoniaE como assim vais e tão apressado?

NicodemosDizei, como serei consolado,Dareis alegria a esta minha almaQue venho cansado e cheio de calmaDe casa de Pilatos, o adiantado.

José de ArimateiaBenvindo, amigo, que pazNem alegria terei em meus diasPois hoje padeceu o nosso MessiasCom quem tomávamos todos solaz.Coisa que veja não me satisfazDepois que perdi tão grande amigo,Muito queria que fosses comigoA ver seu corpo, Senhor, se te praz.

NicodemosEu tenho pedido seu corpo sagradoA Pôncio Pilatos, que deu a sentença,E ele nos deu sem outra detença.Vês, aqui trago um seu assinado.De ti folgaria se fosse ajudadoQue d’Ele sei que eras mui grande amigo.Agora te trago de ires comigoTirar o seu corpo, que está encravado.

Diz Nicodemos a Nossa Senhora:

Em dias de tal pesar,Senhora, desconsolada,É mais pena consolar,Antes será mais dobrada,A vossa alma magoar.Desçamo-lo do madeiroPara que vejais mais de pertoVosso filho verdadeiro,Aquele Manso Cordeiro,Que jejuou no deserto.E com ele tereis certoAlguma consolaçãoAinda que muita paixãoVós dirá seu coraçãoQue lhe haveis de ver aberto.

José de ArimateiaOh que injustiça tamanha

Vos hão hoje, Senhor, feitoSem lei nem ordem direitaMas por invejosa manha.Nesta deserta montanhaNesta tão penosa cruzVos puseram sendo luzDesta gente tão estranha!

NicodemosOh pés santos que passadasDestes sempre por salvarQuem vos ousou de encravar Com tão feias marteladas!As águas do mar salgadasVos tiveram obediênciaE este povo sem clemênciaVos pregou com mãos iradas.

José de ArimateiaOh muito, muito alto Redentor,Licença, Senhor, te peço,Que aqui isto que eu te começoO hajais por bem, Senhor.Não mereço tal honorTocar corpo tão sagradoMas vosso grande amorMe causa ser tão ousado.

NicodemosOh sacratíssimo ladoQue és horta da Salvação!Tão ferido e tão chagadoQuanto sangue hás derramadoPara nossa redenção!Toda a humana geraçãoChora hoje tal misériaPois para isso dá marteiroTão dolorosa paixão.

José de ArimateiaEssas mãos, que enfermidadesCuravam tão desvairadas,Como estão tão encravadasCom tão feias crueldades!Aos cegos claridade,Aos mortos davam vidasE agora tão feridasSem nenhuma piedade.

NicodemosAvé, santíssimo corpo sagrado,Santos dos Santos, Senhor dos Senhores.

José de ArimateiaAvé, Maria, mui cheia de dores

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Avé, Cruz Santa, madeiro exaltado!

Nicodemos Este cordeiro, Senhora, inocente,Que vós aqui vedes a quebrar a pedaços,Recebei agora nesses vossos braçosPois sua morte nos era forçada.

Nossa SenhoraOh dor desigual! Oh povo malvado!Que fez um Filho? Dizei, cruel gente.Oh triste de mim! Oh filho sagradoQue morte tão crua e tão sem medidaVos deram, sem culpa e tão desonrado,Aqueles atrozes do povo malvado!Oh triste das tristes a mais doloridaOh, meu doce Filho, que meigo tormentoCriou vossa carne privou minha vida!Oh Filho inocente! Que dores que sinto!

José de ArimateiaDeixai-o levar ao monumentoDepois levantai tão grande despedida.

Fim

Versão recolhida em Caçarelhos. Manuscrito datado de 24 de Outubro de 1956 e assinado por Francisco […]. Esta versão é baseada no "Auto da Mui Dolorosa Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo" do Padre Francisco Vaz de Guimarães, composto no segundo quartel do séc. XVI. Existe notícia de representações em 1903 em Ifanes, 1934 em Caçarelhos, 1939 em Algoso e, posteriormente, em 6 de Junho de 1948 em Duas Igrejas.