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Mateus Silvestrin Autopoiese e Espinosa: Autonomia, Afetos e Clínica em Psicologia Santos 2013

Autopoiese e Espinosa: Autonomia, Afetos e Clínica em Psicologia

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Trabalho de Conclusão de Curso de Psicologia apresentado à UNIFESP.Resumo:Nas últimas décadas tem se configurado na psicologia uma forma de pensamento e atuação que se pode chamar de imanente. Duas teorias que ocupam o esse mesmo solo epistemológico são a Teoria da Autopoiese, de Maturana e Varela, e a Filosofia de Espinosa. O objetivo deste trabalho foi encontrar ressonâncias entre essas teorias no que diz respeito à cognição e a afetividade e identificar as contribuições dessas ressonâncias para a clínica em psicologia. Encontramos nas duas teorias a importância da noção de variação como característica fundamental da existência, pelos conceitos de variação estrutural e potência. Os fenômenos afetivos aparecem como aqueles diretamente ligados a essa variação, pelos conceitos de emoção, afeto e afecção. Em ambos os pensamentos é importante a ideia de que conhecimento e afetividade estão ligados a um processo de estabelecimento de composições pelo indivíduo, isto aparece nas discussões sobre acoplamento estrutural e micromundos e microidentidades, de um lado, e nas ideias de indivíduo e afetos alegres e tristes, do outro. Entre essas teorias divisamos uma concepção de sofrimento que é restrição da variação e da autonomia no domínio relacional das composições. A partir dos conceitos de ação e paixão em Espinosa e da cognição e constituição de micromundos e microidentidades em Maturana e Varela como atividade autopoiética, enxergamos uma contribuição para uma concepção de clínica preocupada com a construção singular de autonomia pelos sujeitos, constituição de modos de vida, e que essa construção deve apoiar-se em processos cognitivos e afetivos que passem de uma posição heterônoma e passiva a uma posição autônoma e ativa.

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Mateus Silvestrin

Autopoiese e Espinosa:Autonomia, Afetos e Clínica em Psicologia

Santos

2013

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Mateus Silvestrin

Autopoiese e Espinosa:

Autonomia, Afetos e Clínica em Psicologia

Monografia apresentada ao Curso de Psico-logia da Universidade Federal de São Paulocomo parte das exigências para obtenção dograu de psicólogo.

Universidade Federal de São Paulo

Profa Adriana Barin de AzevedoDr. Emílio Nolasco de Carvalho

Santos2013

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Mateus SilvestrinAutopoiese e Espinosa: Autonomia, Afetos e Clínica em Psicologia / Mateus

Silvestrin. – Santos, 2013-74 p. : il. (color.) ; 30 cm.

Profa Adriana Barin de Azevedo

Monografia – Universidade Federal de São Paulo, 2013.

1. Autopoiese. 2. Espinosa. 3. Clínica. I. Azevedo, Adriana Barin de. II.Universidade Federal de São Paulo. III.Título.

CDU Si399a

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Mateus Silvestrin

Autopoiese e Espinosa:Autonomia, Afetos e Clínica em Psicologia

Monografia apresentada ao Curso de Psico-logia da Universidade Federal de São Paulocomo parte das exigências para obtenção dograu de psicólogo.

Trabalho aprovado. Santos, 12 de fevereiro de 2013:

Adriana Barin de AzevedoOrientadora

Emílio Nolasco de CarvalhoCoorientador

Roberto Tykanori KinoshitaConvidado

Santos2013

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Agradecimentos

Sinto que este trabalho é verdadeiramente um fruto da minha trajetória na graduaçãocomo um todo, por isso os agradecimentos vão além das pessoas que se envolveram dire-tamente com a produção da monografia.

Em primeiro lugar quero agradecer minha família. Sem o apoio, carinho e o amor devocês tudo relativo à faculdade teria sido mais difícil, desde a preparação, a escolha docurso, o vestibular, até este derradeiro trabalho.

Aos amigos de dentro e fora da faculdade e a aqueles que conheci no intercâmbio,meu muito obrigado. No lazer ou no trabalho, e cada um do seu jeito, vocês certamentecontribuíram muito com a minha trajetória durante a graduação.

Quero agradecer aos professores da minha trajetória de ensino fundamental e médio naEscola “Verde que te quero verde...”. Se eu não tivesse a experiência do que é aprender peloconstrutivismo, talvez as ideias de “construtivismo radical” e de imanência não ressoassemtão forte em mim e, certamente, meu entusiasmo pelo conhecimento não seria tão intenso.

Já na graduação, sou grato ao prof. Alexandre Henz, por me ensinar a duvidar dascertezas, do óbvio e das respostas prontas, e pela sempre viva disponibilidade em fazer opensamento transbordar.

Ao prof. Alexandre Valotta, por me ensinar a fazer ciência sem perder a crítica emrelação a ela, e por ser um orientador de iniciação científica preocupado não só comprojetos e prazos, mas com a minha formação integral como profissional e pessoa.

Ao prof. Roberto Tykanori, por me apresentar o pensamento complexo e a autopoiese,e apontar as primeiras relações com Espinosa. Certamente mudaram o rumo do meupensamento, contribuindo para que eu pudesse formular questões mais interessantes, e, éclaro, fizeram com que este trabalho existisse.

À minha orientadora, profa Adriana Barin, por ter aceitado orientar um desconhecido,pelas valiosíssimas e cuidadosas contribuições na produção do texto, e por me ajudar ame aproximar mais, e com rigor, do “príncipe dos filósofos”.

Ao meu co-orientador, professor Emílio Nolasco, por aceitar embarcar nessa jornadae pela disposição em enfrentar a burocracia quando ela ameaçou beirar a insensatez.

Também agradeço a tantos outros professores que em um momento ou outro da gradu-ação, em uma palavra ou gesto, demonstraram confiança, me incentivaram ou auxiliaram.Mesmo as pequenas coisas contribuíram e foram importantes para que eu, dia a dia, pu-desse me manter firme em uma trajetória autônoma ao longo da formação.

Por fim, quero agradecer ao leitor. Este trabalho foi um requesito para a minhaformação, mas ele também foi uma exigência do meu próprio pensamento na direção deorganizar e compartilhar algo que me afeta tão fortemente. Cada um que se dispõe a lereste trabalho faz com que ele tenha mais realidade.

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“A incerteza é uma posição desconfortável.Mas a certeza é uma posição absurda.”

Voltaire

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Resumo

Nas últimas décadas tem se configurado na psicologia uma forma de pensamento e atuaçãoque se pode chamar de imanente. Duas teorias que ocupam o esse mesmo solo epistemo-lógico são a Teoria da Autopoiese, de Maturana e Varela, e a Filosofia de Espinosa. Oobjetivo deste trabalho foi encontrar ressonâncias entre essas teorias no que diz respeitoà cognição e a afetividade e identificar as contribuições dessas ressonâncias para a clínicaem psicologia. Encontramos nas duas teorias a importância da noção de variação comocaracterística fundamental da existência, pelos conceitos de variação estrutural e potên-cia. Os fenômenos afetivos aparecem como aqueles diretamente ligados a essa variação,pelos conceitos de emoção, afeto e afecção. Em ambos os pensamentos é importante aideia de que conhecimento e afetividade estão ligados a um processo de estabelecimentode composições pelo indivíduo, isto aparece nas discussões sobre acoplamento estruturale micromundos e microidentidades, de um lado, e nas ideias de indivíduo afetos alegrese tristes, do outro. Entre essas teorias divisamos uma concepção de sofrimento que érestrição da variação e da autonomia no domínio relacional das composições. A partirdos conceitos de ação e paixão em Espinosa e da cognição e constituição de micromun-dos e microidentidades em Maturana e Varela como atividade autopoiética, enxergamosuma contribuição para uma concepção de clínica preocupada com a construção singularde autonomia pelos sujeitos, constituição de modos de vida, e que essa construção deveapoiar-se em processos cognitivos e afetivos que passem de uma posição heterônoma epassiva a uma posição autônoma e ativa.

Palavras-chave: Autopoiese. Espinosa. Autonomia. Cognição. Afetos.

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Sumário

Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

1 EXISTÊNCIA EM VARIAÇÃO: AUTOPOIESE E POTÊNCIA . . . . . . . . . . 211.1 A Variação Autopoiética . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 221.1.1 Emoções . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 261.2 A Variação em Espinosa: Potência, Mente e Corpo . . . . . . . . . . . . . . . . . 281.2.1 Afecções e Afetos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 331.3 Variação entre a Autopoiese e a Potência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39

2 MUNDOS, CONEXÕES E REDES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 432.1 Composições de Corpo e Mente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 492.2 Ação e Paixão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53

3 AUTONOMIA, VARIAÇÃO E CLÍNICA EM PSICOLOGIA . . . . . . . . . . . 593.1 Autopoiese e Potência de Vida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 633.2 Autonomia e Saúde . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 643.3 Contribuições para uma Clínica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 653.3.1 Cognição e Afetividade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66

Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71

Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73

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Introdução

O estudo da cognição é uma questão que atravessa a história da filosofia e a curta históriada ciência moderna. Conquanto na primeira tradição os problemas referentes à cogniçãofossem fruto do debate entre diferentes perspectivas epistemológicas e metodológicas, como surgimento de uma ciência pautada em valores positivistas, no século XIX, o grau deimpasses colocados por esse tema agravou-se. Em prol de uma purificação do sujeito edo objeto, o saber foi retalhado e dividido em disciplinas, operando-se assim tambéma separação entre mente, corpo e social. Se por um lado esse movimento permitiu aatenção e a incursão em uma série de questões inéditas, devido aos aprofundamentos quepermitia, por outro, levou ao sufocamento de um outro campo e ao entrave da tentativa deaproximação entre as produções das diferentes disciplinas e dessas com a vida (KASTRUP,2007).

A psicologia nascida nesse momento histórico marcado pela disciplina, tendo sidoincumbida por tal projeto moderno a explicar o desvio, o déficit, a loucura, e aspirandoser reconhecida como ciência, tem como estratégia procurar e precisar as leis e regrasinvariantes da cognição, tomando-as como referência, norma, para responder ao que lhecompete. Assim, o campo que é excluído do estudo psicológico moderno da cognição éo campo do imprevisto, da instabilidade, da produção do novo, o que Kastrup (2007)denomina campo da invenção.

Jean Piaget, por exemplo, traz inovações importantes no olhar para a cognição: afocalização na ação do sujeito e a ideia implícita de que não há apenas um modo de co-nhecer (adultos e crianças conhecem o mundo de formas diferentes, por exemplo). Porém,estando atrelado à psicologia moderna, tem a potencialidade dessas ideias um tanto di-minuída quando coloca que esses modos diferentes de conhecer estão organizados em umpercurso evolutivo obrigatório. Visão ligada à racionalidade na qual se apóia para entrarem contato com seu objeto de estudo: a de que, assim como o desenvolvimento orgânico, odesenvolvimento cognitivo orienta-se ao equilíbrio. Orientação expressa em certas regrasinvariantes, leis; como a equilibração majorante, a assimilação e a acomodação (PIAGET,1989).

A psicologia excluiu necessariamente o campo da invenção pois, ao considerar as leiscomo o aspecto essencial, ao mesmo tempo, situou-as separadas da superfície de contatocom a vida e separadas dos próprios processos que as condicionam e que as atualizam.Como se tivessem uma existência independente do fazer concreto, das experiências con-cretas da vida de um indivíduo.

Em um funcionamento espelhado na lógica das ciências naturais da época, o movi-mento através do qual a aspirante a ciência se propôs a funcionar foi um movimentode separação, destaque, redução. Em consonância com essa lógica e com sua predileção

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pelas leis, regras e estruturas como os objetos de estudo que permitiriam o melhor enten-dimento da cognição, a psicologia vai trabalhar a partir de certos operadores: equilíbrio,teleonomia e representação.

A noção de equilíbrio que comparece na racionalidade psicológica é em grande medidaimportada de suas formulações na física e na biologia. Na física é o equilíbrio termodi-nâmico, no qual o sistema tende ao menor nível de energia, e consequentemente menorinstabilidade, alcançado pela dissipação da energia no contato com o exterior, dinâmicatambém conhecida como lei da entropia (KELSO, 1997). Na biologia, o equilíbrio queresvala na psicologia é na verdade trazido da fisiologia, e é bem exprimido no conceito dehomeostase. Tal princípio se aplicaria às diferentes e delicadas regulações metabólicas dosorganismos, garantindo que eles sempre voltem a certas faixas específicas após sofreremalterações, numa manutenção que permite que tais alterações se repitam, bem como serepitam os ciclos próprios do organismo em seu estado basal ou típico (PASSOS, 1997).

As idéias de teleonomia e representação andam juntas, na base do trabalho da psi-cologia sobre a cognição. A primeira vai guiar a busca das causas finais dos fenômenoscognitivos, causas que serão encontradas exatamente na representação do mundo. A idéiaé que para que se possa atuar sobre o mundo é necessário representá-lo devidamente antes.A cognição estará centrada sempre, então, num fim que se encontra fora dela e na adapta-ção a um mundo pré-estabelecido. Nesta concepção o sentido da cognição está para alémdo ato cognitivo e as estruturas adquirem uma fixidez a partir de um salto executado nosmecanismos explicativos, que parecem desprendê-las do agente cognitivo para responde-rem a uma finalidade externa e/ou pré-definida. Em certa medida, a cognição tem umponto final, que é aquele no qual ela está suficientemente estruturada para corresponderao mundo externo. Ademais, o conceito de representação ganha uma grande importânciapara a psicologia não só no âmbito do estudo do conhecer, destacando-se como o materialpsíquico por excelência, com o qual o psiquismo trabalha e no qual a vida psíquica serealiza (VARELA, 1989). Aliás, é esse referencial que permitirá um olhar normativo dapsicologia, que poderá dizer quais são os que representam devidamente o mundo e quaissão aqueles que não, isso a partir de um critério supostamente objetivo que é o “mundoreal”.

Contemporaneamente, contudo, começam a aparecer no seio da psicologia outros mo-dos de se compreender a cognição, pautados em outros alicerces epistemológicos. Comformulações valiosas e que expressam bem a tônica desse campo é possível destacar aproposta de tratar o conceito de ação como paradigmático (COSSU, 2007) e a proposta dainserção do tempo nos estudos da cognição (KASTRUP, 2007; PASSOS, 1997).

A perspectiva que enfatiza o conceito de ação o faz por considerá-lo um constructoteórico estratégico que permite abordar o psiquismo abrangendo sua complexidade, es-capando de reducionismos. Parte da consideração de que focar a ação supõe considerardomínios distintos que nela são articulados e ensejados. Nas palavras de Cossu:

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( . . . ) o conceito de ação, neste sentido atribuído por nós, parece serum bom motivo filosófico para se entender como o humano na sua uni-dade corpórea e psíquica, enquanto ser biológico e cultural, modifica-semodificando o seu ambiente imediato. Enquanto mente encarnada e,assim, mais do que uma substância cartesiana inextensa e isolada docorpo e do resto do mundo, mais do que um simples cérebro autônomoe desconectado do ambiente, visto magicamente como o único sujeito detoda a vida mental, a vida cerebral e o que se denomina por psíquicosó poderão ganhar contornos mais bem definidos numa perspectiva quecoloque o fato primordial da ação.(COSSU, 2007, p. 21, grifos do autor)

Como se vê nesse enunciado, na ação enxerga-se a conexão entre aspectos que pode-riam, um a um, ser tomados como ponto de partida para o entendimento da cognição(organismo, corpo, mente, cultura e ambiente), mas não com o mesmo proveito que en-contramos ao vê-los como dimensões de um mesmo acontecimento, que as engendra aomesmo tempo em que é engendrado nelas.

A vertente que trabalha valorizando a introdução do tempo no estudo da cognição faztal proposta ao avaliar que ele foi excluído dos estudos psicológicos do tema até recente-mente. O tempo de que falam não é o tempo cronológico, mas o tempo compreendido emsua conotação filosófica de duração, principalmente a partir de Henri Bergson. A partirdesse entendimento, o tempo é a dimensão da transformação, mudança, indeterminaçãoe instabilidade. Nas palavras de Kastrup, que a partir da introdução do tempo passa acompreender a cognição como força inventiva:

Só concebendo a cognição como sendo feita dessa espécie de substân-cia que é o tempo, substância que é a transformação mesma e nãoalgo que se transforma, só definindo a cognição como sendo, de saída,tempo, a invenção pode comparecer como tema no interior de seus qua-dros.(KASTRUP, 2007, p. 57)

Um olhar atento permite ver que tais ênfases diferentes na trilha por uma reformulaçãoda investigação da temática cognitiva são, na realidade, bastante próximas, habitam umcampo epistêmico comum. Isso fica evidente quando, não raramente, uma idéia cara paraum aparece também como importante para o outro, muito embora suas discussões sejamdistintas. Um exemplo de tal movimento se vê quando Cossu, discutindo o estatuto daação e da representação na metapsicologia freudiana, fala de uma temporalidade muitopróxima da que Kastrup trata:

E lembremos que quando se diz aqui unidade da ação, já estamos apressupor também uma unidade temporal do sujeito que não se reduzao presente atual, dado em forma de instante matemático, mas diz res-peito a uma temporalidade que ultrapassa as fronteiras imaginárias depresente, passado e futuro (. . . ).(COSSU, 2007, p. 141)

Outra via pela qual a psicologia começa a ser habitada por um novo fazer voltado à te-mática do conhecer é mais clínica, sendo promovida por dissidentes das terapias cognitivo-comportamentais clássicas, ou “racionalistas”. Nesse âmbito se destacam as propostas das

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terapias construtivistas e terapias narrativas, que remetem a um campo epistemológico de-nominado co-construtivista e, às vezes, simplesmente construtivista(MAHONEY; LYDDON,1988; GUIDANO, 1991)

Mahoney e Lyddon (1988), sistematizando as diferenças entre essas duas linhas deterapia, procurando discernir diferenças filosóficas, teóricas e práticas, apontam, entreoutras, as seguintes disparidades: enquanto para os racionalistas desenvolvimento e adap-tação giram em torno da questão da validade da cognição, para os construtivistas giramem torno da viabilidade; teoricamente os racionalistas trabalham com uma perspectiva desupremacia racional, ou seja, consideram que funções mentais superiores prevalecem sobrea emoção e a ação, já os construtivistas questionam a própria distinção entre esses trêsâmbitos e a idéia de que haveria uma prevalência estrutural envolvida. Em suas práticas,racionalistas costumam guiar sua condução focando problemas específicos, construtivis-tas, por sua vez, preocupam-se com a processualidade cognitiva do paciente, indo paraalém de problemas específicos.

Contudo, seria errôneo afirmar que as inovações no modo da psicologia olhar para oconhecimento surgiram espontaneamente em seu meio. Seu aparecimento se deve, emgrande medida, a certas propostas desafiadoras de paradigmas em outros campos deconhecimento surgidas no século XX. Os efeitos de tais propostas vem alcançar a psicologiapois são efeitos que clamam por um olhar mais complexo e interdisciplinar, algo que umarápida exposição poderá indicar.

Uma importante inovação que teve efeitos sobre o estudo psicológico da cognição sedeu no campo da física de sistemas. Mais especificamente pela identificação dos siste-mas abertos distantes do equilíbrio termodinâmico. Abertos porque a energia e matériapodem entrar e sair deles, trocam energia e matéria com o meio; distantes do equilíbriotermodinâmico porque trabalham sempre e apenas quando há troca de energia com omeio, caso essa troca cesse, havendo equilíbrio entre o exterior e o interior, o sistema párade funcionar(KELSO, 1997).

A focalização de tais sistemas fez saltar aos olhos os fenômenos e princípios de auto-organização. O que se poderia definir genericamente como a propriedade de um sistemaconstituído de componentes simples interligados poder gerar espontaneamente estadosglobais de cooperação entre tais componentes. Numa descrição complementar se poderiadizer que a partir de regras locais (as das relações simples entre os componentes) sãogeradas coerências globais. Há duas implicações importantes nesse tipo de funcionamento:uma diz respeito à espontaneidade da geração de padrões, ou seja, não há um organizador,processador ou controle central que funcione como regente da atividade total do sistema,assim como não é possível afirmar que o sistema responde a uma instrução externa; outraé a possibilidade que tais conceitos nos dão de passarmos coerentemente de uma ordemde grandeza a outra em nossa compreensão (do nível microscópico para o macroscópico,por exemplo)(VARELA; THOMPSON; ROSCH, 2003; KELSO, 1997).

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As novidades na física tiveram um forte impacto na biologia, uma vez que os siste-mas vivos são exatamente sistemas abertos distantes do equilíbrio. Assim, tais conceitoslançaram nova luz a certas questões problemáticas na biologia, ao mesmo tempo em queproblematizaram certas noções já bem estabelecidas nesse campo. É fazendo uso des-sas novas ferramentas para olhar o vivo que dois autores vão forjar uma resposta a umaquestão nevrálgica em biologia, qual seja: “O que caracteriza um ser vivo?”

Considerando insuficiente e inapropriado responder a partir de uma lista de proprie-dades, Maturana e Varela (2001) preferem propor um modo de funcionamento, um tipode sistema, que caracteriza os seres vivos. Assim, afirmam que a característica definidorado vivo é sua organização1 autopoiética. Com isso se está dizendo que o ser vivo produz asi próprio constantemente, pois ao mesmo tempo que produz os componentes dos proces-sos metabólicos através dos quais se mantém, produz a condição de possibilidade deles,qual seja, uma fronteira dinâmica que o separa do meio externo e faz parte dos processosmetabólicos. Nessa circularidade fica evidente que:

(. . . )o que lhes é peculiar é que sua organização é tal que seu únicoproduto são eles mesmos. Donde se conclui que não há separação entreprodutor e produto. O ser e o fazer de uma unidade autopoiética sãoinseparáveis(. . . )(MATURANA; VARELA, 2001, p. 57)

Uma outra conseqüência se impõe a partir desse entendimento: no mesmo momento emque o ser vivo gera a si, ele gera um mundo. Isto pode ser melhor compreendido se levarmosem conta que o próprio organismo determina momento a momento quais elementos domeio terão efeitos sobre ele, através das variações em sua superfície de contato com omeio. Ora, esse campo de possibilidades de interação é o mundo que o organismo habitanaquele momento, seu ambiente. E seu ambiente2 e as ações possíveis nele são aquiloque o organismo conhece. Isso não deve nos surpreender se lembrarmos que o ser vivoestá sendo entendido aqui como um sistema auto-organizado. Sendo assim, é ele mesmoque gera suas regras internas de funcionamento e suas aberturas e fechamentos para omeio externo, determinando, assim seus campos de possibilidades e interações(VARELA;

THOMPSON; ROSCH, 2003).Um exemplo talvez possa esclarecer essa vertiginosa situação da produção simultânea

de um ser e de um mundo: imaginemos uma pessoa com os olhos fechados e que quer irde um ponto a outro de um cômodo. Ela avança com cautela, utilizando-se de seus sen-tidos disponíveis para guiar-se, o mundo que habita naquele momento é eminentementecinestésico e auditivo, o contato com qualquer objeto exige uma exploração tátil de re-1 É importante esclarecer a distinção entre organização e estrutura para os autores. A organização é

caracterizada pelas relações entre componentes, que permitem definir uma classe à qual pertence umaunidade. Estrutura são os componentes concretos que constituem uma unidade particular.

2 Tal noção tem ressonância com o que Kurt Lewin chama de “espaço de vida” de um sistema (umgrupo); com a noção de Unwelt de Uexkull (1934); e com a posição de Merleu-Ponty em A Estrutura doComportamento: “Assim, a forma do estimulador é criada pelo próprio organismo, por sua maneiraprópria de se oferecer às ações de fora. [...] é o próprio organismo [...] que escolhe no mundo físicoos estímulos aos quais ele será sensível. O meio (Umwelt) se destaca no mundo segundo o ser doorganismo...”(MERLEAU-PONTY, 2006)

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conhecimento. Agora, o que acontece quando abre os olhos? Repentinamente, abre-se omundo visual diante dela, sua postura e seu andar são outros, o modo como interage como ambiente é também diverso. Não há dúvida de que no abrir dos olhos produziu-se umvidente e um mundo visível. Não se está dizendo que as mesmas características físicas docômodo (as propriedades de reflexão luminosa, a dureza dos materiais. . . ) não estivessemlá antes, se está dizendo, sim, que antes do abrir dos olhos as características que influíamno agir da pessoa eram diversas. É nesse sentido que se diz que há um co-engendramentoentre o sujeito e o objeto do conhecimento, observa-se sempre uma congruência, um aco-plamento entre o meio e o sujeito, gera-se uma certa coerência entre o ser do sujeito e omundo por ele habitado.

O impacto da teoria da autopoiese é profundo para a psicologia. E não é por acaso queas clínicas construtivistas e a perspectiva de introdução do tempo na cognição têm comoimportante referencial essa proposta. Afinal, atinge-se aí uma posição muito peculiar ecom diversos desdobramentos: Cognição, ontologia e ação imbricadas de forma complexae circular. Queremos apontar algumas das implicações mais importantes da introduçãodesse olhar na psicologia.

Uma mudança decisiva que se faz necessária é o abandono do paradigma centrado narepresentação. Tal conceito se mostra inadequado e limitante quando queremos abrangera complexidade dos fenômenos da vida com suas dinâmicas de emergência por auto-organização e co-engendramento dos sujeitos e das realidades (os mundos). O desinves-timento na ideia de representação acarreta uma vasta gama de problematizações para apsicologia em seus mais diversos campos. Em consonância com o que vimos discutindo,destacamos dois: não pode mais bastar à psicologia a compreensão da dimensão represen-tacional do sujeito, seu funcionamento não pode ser entendido e/ou avaliado apenas porsua capacidade de representar e operar nesse registro. Por outro lado, não é mais possíveltomar como critério um mundo que estaria dado para ser representado, a referência e ocritério da psicologia ao olhar para os sujeitos não pode mais ser um a priori. Se há umco-engendramento sujeito-mundo, a questão não se assenta mais em um ponto de apoio(referência) fixo, mas sobre um olhar para combinações e coerências singulares, e por issomesmo, vibrantes, oscilantes.

Outro aspecto que necessita novo olhar quando confrontamos o modo moderno defazer psicologia com uma leitura da autopoiese diz respeito à questão da teleonomia.Vimos falando de auto-organização e da inseparabilidade sujeito-mundo, tais noções sãoincompatíveis com a idéia de teleonomia, afinal, nesse funcionamento é necessário que hajaalgo com valor de instrução, que o organismo captaria e ao qual responderia de acordo.Mas se sujeito e mundo se produzem mutuamente a cada momento, quem informa aquem? E se as coerências internas são geradas globalmente, sem um controlador central,quem lê e segue as instruções? Destarte, da teleonomia é preciso passar ao estudo daautonomia do vivo, da identificação de como gera as coerências internas e conexões com

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os mundos. Autonomia que não é independência, pois assim como sujeito e mundo sãoco-engendrados, são co-dependentes, caso o mundo trazido à tona no fazer do sujeito lheseja inabitável, ele deixa de existir.

Uma condição importante para a introdução dessas concepções é que onde reinava oequilíbrio absoluto deve-se agora abrir espaço para o desequilíbrio. Com os sistemas dis-tantes do equilíbrio termodinâmico divisamos que eles não são aspectos excludentes, mascapazes de convivência, na qual os equilíbrios vão renovando-se no fluxo dos desequilíbrios,como movimentos dentro de uma grande peça musical. Onde antes enxergava-se apenasa estabilidade deve-se agora enxergar uma metaestabilidade, na qual é indispensável con-siderar que os momentos ou elementos estáveis não excluem a presença de instabilidadesinternas, que não são “ruídos” ou “erros” dos processos, mas força mobilizadora.

Inicialmente no estudo da cognição, mas com conseqüências que se expandem paradiversos campos nessa virada epistemológica, a psicologia é chamada a um olhar no qualprocessos, causas e efeitos mantém-se unidos, no qual forma e devir coexistem. É convi-dada a fazer valer um “reencantamento do concreto”3, a trabalhar na imanência.

Em nosso trabalho queremos percorrer alguns caminhos que se abrem para pensar aclínica a partir de uma psicologia que se alia às perspectivas de compreensão da cogniçãoque apresentamos. Nesse percurso recorreremos enfim ao autor que, a nosso ver, compõecom todas estas teorias explicitando-as através de uma perspectiva efetivamente clínica,este autor chama-se Benedictus de Espinosa. Dizemos isto, pois, a partir de uma teoria daimanência, que concebe a vida humana como parte de uma processualidade necessária emvariação e produção infinita, Espinosa nos ensina que só podemos considerar o “vivo”, o“indivíduo” a partir das relações que ele experimenta e que o compõem (DELEUZE, 1981).

O plano de composição, de desenvolvimento de processos cognitivos, poderia ser pen-sado, junto a este autor, a partir das relações de composição e decomposição que afetamum corpo e uma mente, ao mesmo tempo. Trata-se de um processo de experimentação eaprendizado que leva ao conhecimento e a uma condição que Espinosa chama de liberdadeou autonomia. Ser livre é, para este autor, aprender com quais encontros se aumenta apotência de um corpo, com quais encontros é possível se fortalecer e conhecer os distintosmodos de vida e tudo o mais que o rodeia (SPINOZA, 2010).

O que estamos chamando de clínico na filosofia de Espinosa é principalmente seu olharpara os afetos, ou seja, as ações e as paixões no homem e como ele pode conduzir-se emmeio a isso procurando exercer e construir sua liberdade, autonomia. Nessa problemáticaenfrentada pelo filósofo, as questões do Conhecimento e da Ação são centrais, assim comoo são na teoria da autopoiese e seus interlocutores. Porém as idéias espinosistas nos

3 Varela utiliza essa expressão contrapondo os novos modos de olhar a cognição aos antigos, que con-sidera darem destaque ao abstrato, como se vê: “(. . . ) o que todos os seres cognitivos vivos parecemter em comum é o conhecimento que é sempre um know-how constituído com base no concreto (. . . ).O que tradicionalmente chamamos ‘irracional’ e ‘não-consciente’ não contradiz o que parece racionale intencional: constitui sua própria fundamentação.”(VARELA, 2003)

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20 Introdução

garantem a vantagem de já ter discernidos alguns aspectos e dinâmicas importantes noolhar para o sofrimento e para os modos de vida humanos. É nesse sentido que queremosinvestigar o que o encontro entre esses referenciais tem a contribuir para uma clínicaimanente na psicologia que integre afeto e cognição, corpo e mente nos encontros vividos.

Nosso percurso consistirá de três momentos principais. No primeiro capítulo apresen-taremos e relacionaremos as compreensões das teorias a respeito do funcionamento dosindivíduos singulares e como ele se liga ao fenômenos afetivos. O segundo capítulo mudaráo foco para como as duas teorias concebem as relações dos sujeitos e quais suas consequên-cias. O terceiro e último capítulo explora algumas relações entre as teorias, apoiando-senos capítulos anteriores, explicitando as contribuições que a intersecção desses olharestrás para a clínica em psicologia. Por fim, fazemos uma breve conclusão, retomando opercurso e as implicações para a psicologia.

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1 Existência em Variação: Autopoiese e Potência

Consideramos que grande parte da contribuição que a teoria da autopoiese e a filosofia deEspinosa pode proporcionar ao fazer clínico em psicologia está nos recursos que nos dãopara entender e atuar com os fenômenos afetivos do homem. Tais recursos estão inscritos,como apresentado anteriormente, num solo epistemológico específico no qual processos eestabilizações (formas) são entendidas conjuntamente, na imanência.

Nesse sentido, é um olhar que vai procurar a gênese das formas e dos processos, bus-cando perceber como se dá a integração de níveis de complexidade crescentes, sem perderde vista os processos mais básicos, como, por exemplo, os de formação e manutenção demembranas em um organismo unicelular, não deixam de atuar ou são substituídos pelosmais complexos. Os conceitos de determinismo estrutural e domínios de interação deMaturana e Varela, que veremos a seguir, exemplificam bem essa postura. Espinosa, emconsonância com essa racionalidade, trabalha seus conceitos tendo como base processosque são comuns a tudo que faz parte da Natureza, o que fica claro ao apresentar porquee como vai tratar dos afetos:

Os que escreveram sobre os afetos e o modo de vida dos homens parecem,em sua maioria, ter tratado não de coisas naturais, que seguem as leiscomuns da natureza, mas de coisas que estão fora dela. (. . . ) Mas eisaqui meu raciocínio. Nada se produz na natureza que se possa atribuira um defeito próprio dela, pois a natureza é sempre a mesma, e umasó e a mesma, em toda parte, sua virtude e potência de agir. Isto é,as leis e as regras da natureza, de acordo com as quais todas as coisasse produzem e mudam de forma, são sempre as mesmas em toda parte.(. . . ) É por isso que os afetos de ódio, da ira, da inveja etc., consideradosem si mesmos, seguem-se da mesma necessidade e da mesma virtude danatureza das quais se seguem as outras coisas singulares. Eles [os afetos]admitem, pois, causas precisas, tão dignas de nosso conhecimento quantoas propriedades de todas as outras coisas cuja mera contemplação noscausa prazer.(SPINOZA, 2010, EIII, Prefácio, p.161-163)

O filósofo retira o afeto humano de um lugar no qual sua explicação só pode se dartendo como referência alguma característica exclusiva ou uma interioridade psicológicaprópria do homem. Espinosa concebe o homem como participante da ordem comumda natureza, que implica todas as coisas do mundo, de modo que seus afetos só podemser pensados no plano dos encontros que acontecem neste mundo-natureza. No mesmomomento, ele integra a afetividade humana aos modos pelas quais todas as coisas se pro-duzem e mudam de forma, indicando a processualidade imanente que vimos enfatizando.Com isso, ancora tal estudo no trabalho sobre acontecimentos e movimentos muito con-cretos, não busca abstrações ou a formação de regras que seriam independentes do camporelacional onde acontecem.

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22 Capítulo 1. Existência em Variação: Autopoiese e Potência

Vejamos então algumas compreensões básicas de como as coisas se produzem e mudamde forma na coisa viva, a partir da Teoria da Autopoiese, e, na sequencia, trabalharemosaspectos da filosofia de Espinosa, propondo conexões entre estas duas teorias e apresen-tando uma distinção dos conceitos de emoção, afecção e afeto.

1.1 A Variação Autopoiética

Os seres vivos são sistemas longe do equilíbrio termodinâmico. Como tais estão em cons-tante troca de energia e matéria com o meio, em uma interação que só termina com amorte. A característica peculiar aos seres vivos é que eles são também sistemas auto-poiéticos, ou seja, nessa troca com o meio estão constantemente produzindo os compo-nentes moleculares que, interligados em uma ampla rede, são eles mesmos. Ao mesmotempo, produzem seus contornos, que funcionam tanto como um “filtro” para as intera-ções, quanto como separação do meio externo, uma espécie de (e em muitos casos, de fatouma) membrana.

Onde podemos ver isso que o ser vivo produz em suas trocas com o meio e que éele mesmo? Podemos vê-lo em sua estrutura, que consiste nos componentes e relaçõesmoleculares (e celulares, e entre órgãos e entre sistemas e. . . ) que realizam o ser vivosingular a cada momento. O ser vivo está sempre nesse movimento de produção, umfluxo de mudanças estruturais que ocorre nas mudanças energéticas e de matéria dentro ena borda de si. Não é difícil perceber a realidade disso, que se faz presente no conjunto deprocessos anabólicos e catabólicos, nas alterações proteicas que acontecem constantementeenquanto dura a vida do organismo, seja uma bactéria, seja um humano. Como mostramMaturana e Varela:

A ontogenia é a história de mudanças estruturais de uma unidade, semque esta perca sua organização. Essa contínua modificação estruturalocorre na unidade em cada momento, ou como uma alteração desenca-deada pelo meio onde ela se encontra ou como resultado de sua dinâmicainterna. A unidade celular classifica e vê a cada instante suas contínuasinterações com o meio segundo a sua estrutura. Esta, por sua vez, estáem constante mudança devido à sua dinâmica interna. O resultado geralé que a transformação ontogenética de uma unidade não cessa até queela se desintegre. (MATURANA; VARELA, 2001, p.86, grifo dos autores)

Importa apontar que o que é dito da célula nessa citação vale para qualquer ser vivo.Também é fundamental reforçarmos aqui o que dissemos em forma de nota na introduçãoa respeito de dois conceitos intimamente relacionados que podem gerar confusão: estru-tura e organização. Para os criadores da teoria da autopoiese, organização são as relaçõesmínimas que devem existir para que afirmemos que algo pertence a uma determinada ca-tegoria. Estrutura são os componentes concretos que constituem uma unidade particular.Assim, a organização “cadeira”, por exemplo, pode ser concretizada pelos mais diversosmateriais (plástico, madeira. . . ) e ter o encosto e o assento mais alto ou mais baixo, ser

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1.1. A Variação Autopoiética 23

reclinável ou não; mesmo admitindo essas diversas formas, todas elas mantém as relaçõesmínimas que nos permitem defini-las como cadeiras. Nesse sentido, as definições de or-ganização são sempre minimais, no sentido de que definem o mínimo necessário para aidentificação de uma classe.

No caso dos seres vivos, a organização que os define é a organização autopoiética. Amanutenção do processo de produção de si e de seus contornos é uma condição para queo organismo continue vivo. Mas isso pode acorrer por meio das mais diversas estruturas,que concretizam a autopoiese ao mesmo tempo que desenvolvem a ontogenia singular decada ser vivo, com todas as suas especificidades. A fantástica diversidade de seres vivosque conhecemos demonstra de quantas formas diferentes a autopoiese pode realizar-se.Podemos acrescentar, ainda, que à condição da manutenção da autopoiese soma-se acondição de que o ser vivo deve manter sua congruência (ou adaptação) com o meio emque está, o que também pode ser feito das mais variadas maneiras. Trataremos disso commais cuidado nos próximos capítulos.

Por ora, queremos enfatizar a distinção entre organização e estrutura, especialmenteporque o termo “estrutura” pode soar impregnado de ideias de fixidez, coisa estática oumatriz fixa a partir da qual se desenvolveriam processos. Como se vê, essas ideias não seaplicam aqui, pois, enquanto a organização é o que é preciso manter constante, a estruturaé o que varia em movimento espontâneo pela dinâmica interna e relacional do vivo. Issoposto, podemos continuar a ver algumas propriedades do fluxo de mudanças estruturais.

Um aspecto importante desse fluxo é que ao mesmo tempo que ele se realiza na estru-tura, é por ela determinado. Em outros termos, esse fluxo vai adiante a cada interaçãoda estrutura. O resultado de uma dada interação é uma resolução que depende da es-trutura da unidade que a recebe. Dessa forma, o resultado da interação de uma proteínacom um substrato qualquer é definido pela alteração que sua estrutura permite acon-tecer a partir desse encontro, assim como o encontro de um micro-organismo com umasubstância qualquer, até o encontro de um humano com uma condição qualquer. O quedetermina o resultado de uma interação para o microorganismo ou para o humano é arede de mudanças estruturais possíveis, que já existiam virtualmente pelos modos comoseus componentes estão dispostos, e é colocada em movimento pela interação.

O que os autores desejam mostrar é que uma determinada interação com um agente ex-terno só pode desencadear mudanças em uma unidade, e que tal mudança (o “resultado”)é determinada pela estrutura da unidade afetada. Se voltarmos às cadeiras e identificar-mos como uma cadeira de madeira maciça e uma com assento e encosto de palhinha semodificam ao levarem uma marretada no assento, vemos que a primeira fica arranhadaenquanto a segunda tem seu assento destruído. A marretada não determina o que acon-tecerá em cada caso, mas a estrutura de cada cadeira específica sim. Também fica claroque não é a organização cadeira que especifica o resultado da interação, pois, como vimos,esta organização é destruída em um caso e no outro não. É o fato de a estrutura de uma

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24 Capítulo 1. Existência em Variação: Autopoiese e Potência

cadeira ser feita de palhinha e a outra de madeira maciça que determina o resultado dainteração, não o fato de serem cadeiras.

O mesmo raciocínio é válido para os seres vivos. As mudanças que acontecem em suasestruturas a cada momento são determinadas pela própria estrutura, embora sejam mui-tas vezes deflagradas, desencadeadas, pelas relações que o ser vivo estabelece com agentesexternos. Isso pode soar um pouco estranho a princípio, mas sabemos por experiência queé assim. Imaginemos duas situações: É um fenômeno conhecido de muitas pessoas queagitar ou girar uma vara com intensidade no ar continuamente pode atrair um morcegoque esteja próximo, de tal maneira que em sua desorientação ele pode chegar a chocar-secom a vara. Pensemos no efeito das ondas sonoras geradas pelo movimento nas estruturasdaquele que agita a vara e do morcego: para o humano o efeito será ele ouvir um certosom, parecido com uma espécie de ventilador. As ondas sonoras geradas pelo movimentoatingem o corpo humano, algumas frequências dessas ondas acabam por estimular o apa-relho auditivo, desencadeando uma série de mudanças estruturais que envolvem grandeparte do corpo, outras dessas ondas não afetam o corpo de modo algum, não causamqualquer mudança estrutural. O morcego, por sua vez, é atingido pelas mesmas ondasque o humano, mas sua estrutura é tal que as frequências de ondas que gerarão alteraçõesestruturais são outras. O próprio efeito também é muito diverso, empurrando o mamíferovoador em direção à origem do som. Ora, parece claro que não é possível dizer que o somque o humano ouve e o movimento do morcego estão contidos nas ondas sonoras, massurgem na interação destas com a estrutura de cada ser vivo.

Em outra situação, essa mais corriqueira, podemos imaginar alguém que está prestesa tirar uma chaleira do fogo. A chaleira está quente e a pessoa sabe, por experiência,que vai se machucar se tocar nela, sabe que essa interação irá agredir sua estrutura, farácom que a estrutura se modifique de uma forma destrutiva. O que ela faz? Coloca umaluva (térmica) e pronto, pode segurar tempo suficiente a chaleira quente para mudá-lade lugar. Nos termos que estamos trabalhando aqui, o que ela fez não foi nada maisque modificar a estrutura da própria mão, e ao fazer isso modificou o efeito do toque nachaleira quente.

A esse modo de compreender as interações, Maturana e Varela (2001) dão o nome dedeterminismo estrutural. Corremos o risco de ficar um tanto perplexos com tal propostase passarmos rapidamente a um entendimento de que dessa forma as características doagente perturbador são completamente irrelevantes. Mas isso não é verdade, pois emboraessas características não determinem o efeito da interação, são elas e não outras quetem a capacidade de desencadear as mudanças estruturais. A questão é que elas têmessa capacidade em função da estrutura que as recebe, e não por si mesmas. Assim, raiosluminosos não poderiam desencadear mudanças estruturais da mesma forma que as ondassonoras em nosso exemplo, pois as partes da estrutura que afetariam tanto no homemquanto no morcego seriam distintas.

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1.1. A Variação Autopoiética 25

Há algo muito importante aqui, pois estamos acostumados a considerar que nas inte-rações dos seres vivos há elementos que possuem o valor de informação para o ser, queinstruem a forma como ele há de modificar-se. Estamos acostumados a interpretar suasmodificações como se elas ocorressem em função dos agentes do meio, quando ocorremmuito mais a partir e no contato com eles. Isso ocorre exatamente porque as mudan-ças possíveis a cada momento estão contidas na estrutura, que a partir da interação serearranja.

É nessa condição de determinismo estrutural que o ser vivo vai construindo a si próprio,momento a momento, no interjogo com o meio, conforme sua estrutura abre e se fecha a elee conforme vai resolvendo as instabilidades que aparecem (e renovam-se constantemente)em sua estrutura. É possível compreender essas instabilidades como problemas que surgemno seio do organismo, e para o quais ele deve dar uma resposta, que não é uma resoluçãodefinitiva, mas que permite continuar sua autopoiese. De fato, esses problemas são vitaispara o ser vivo, pois sua ausência levaria a automatismos, repetições simples nos modos derelacionar-se com o meio, o que poderia restringir e até comprometer sua congruência comele, em uma paralisação progressiva que poderia levar, no limite, à paralisação da própriaautopoiese. Com a presença atuante destas instabilidades é diferente, pois garantem avariação e a recriação da própria existência. As instabilidades são oportunidades parao ser vivo formular problemas, e problematizar é gerar sentidos divergentes (KASTRUP,2007). Uma vez colocado o problema interno, solucioná-lo é realizar a existência deuma forma nova, apostar em um caminho ativo e criativo. Nesse sentido, ser capazde aproveitar as instabilidades como problematização é tão importante quanto dar umaresposta adaptativa ao ambiente, pois é apenas colocando e solucionando problemas que oser vivo pode desenvolver novas formas de relação, mantendo seu movimento autopoietico.Como diz Kastrup (2007, p.137):“Problematizar é bifurcar, criar caminhos divergentes,ao passo que solucionar problemas é ser capaz de viabilizar novas formas de existência”.

Ajuda pensarmos que um ser vivo é uma rede de interdependências, ou seja, é compostode uma série de subunidades mantendo relações entre si de tal modo que uma mudançaem um ponto da rede não tem efeitos apenas locais mas também em áreas distantese espalhadas pela rede inteira. Ao mesmo tempo, é uma rede aberta a interferênciasexternas, as interações com o meio, e tais interferências perturbam as relações internasda rede, exigindo que elas variem para manterem-se. As variações nas relações internasse dão através das mudanças estruturais.

Se ilustrarmos as mudanças estruturais como o fluxo que são, poderemos imaginá-locom uma direção. Como sabemos que há instabilidades internas, da própria estruturaque funciona de forma auto-organizada, veremos que essa direção está constantementebifurcando-se, abrindo e fechando direções pelas quais pode continuar seu movimento.Nesse quadro, os agentes do meio vêm acrescentar ainda mais instabilidades, expandindoas bifurcações e direções do fluxo. Ao interferirem sobre esse fluir, afetam e mantêm seu

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26 Capítulo 1. Existência em Variação: Autopoiese e Potência

movimento, criação e fechamento de vias. Podemos dizer que este movimento é rizomático,pois como dizem Deleuze e Guattari (1995, p.15): “qualquer ponto de um rizoma pode serconectado a qualquer outro e deve sê-lo. É muito diferente da árvore ou da raiz que fixamum ponto, uma ordem”.

1.1.1 Emoções

Na relação com o meio, a cada momento há determinadas formas de interação que redun-dam em uma mudança estrutural do organismo (uma mudança de estado) e outras nasquais as mudanças desencadeadas fazem com que as relações que lhe eram características,que a definiam como sistema vivo, sejam perdidas, causando a destruição da unidadecomo tal, sua morte. A estrutura do organismo está constantemente colocando esses do-mínios: de perturbação e de interações destrutivas, modificações do campo de encontroentre meio e organismo.

Esse jogo de modificação se dá na superfície de contato de um organismo com o meio,em suas bordas, fronteiras, que expõem ou retraem suas regiões perceptivas e efetoras. Hátodo um campo de estabelecimento de contato entre organismo e meio que está variandomomento a momento. O ser vivo, sendo um território de toque, estabelece trocas com omeio, o qual aparece como perturbação.

Como seria de se esperar, quanto mais complexo um ser vivo, mais elaborado é tambémtodo o processo de configurações de domínios de perturbação e de interações destrutivas.Bem como são mais variadas e imprevisíveis são as mudanças estruturais resultantes dosencontros entre organismo e meio. Isso é algo que se vê de forma acentuada nos animaise de modo especial nos animais dotados de sistema nervoso.

De fato, o sistema nervoso aparece, para Maturana e Varela (2001), como uma parteda estrutura que aumenta o número de estados possíveis do organismo, pois é uma redeque se interpõe entre os órgãos sensoriais e motores incrementando o número de relaçõesentre eles. Conectando o corpo inteiro, o sistema nervoso promove uma rápida integraçãodo organismo, o que contribui exatamente na diversificação do território de encontro como meio. Uma vez que as relações entre os componentes do organismo estão aumentadas,podem variar mais, e os estados globais possíveis se multiplicam também.

O que estamos chamando de estados globais aqui, vale lembrar, são os estados emer-gentes que surgem por uma certa configuração das relações entre componentes simples, eque é diferente de uma mera soma de suas propriedades. Um sistema longe do equilíbriovive marcado por momentos de alguma estabilidade que são esses estados de coerênciaglobal, e entre tais momentos há rápidos períodos de desordem, nos quais os componentesnão estão agindo em uma determinada harmonia. A existência do ser vivo é marcadapor essa dinâmica em muitos níveis (molecular, celular, dos sistemas fisiológicos). Que-remos destacar o nível das relações entre as superfícies sensorial e motora dos animais ecomo elemento crucial para a diversificação dessas relações está o sistema nervoso, que

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1.1. A Variação Autopoiética 27

se interpõe entre essas superfícies. Nos interessa, mais ainda, apontar que esse aumentoquantitativo de relações implica também em uma diversificação do campo de contato como meio, levando a mudança na maneira em que o organismo passa a operar, perceber esentir as coisas. Estas mudanças no modo de sentir e perceber nos levam ao domínio dosafetos.

O que foi exposto até aqui nos prepara para discernir as diferenças entre emoção,afecção e afeto. E só podemos entendê-lo bem tendo em mente que o vivo existe nessavariação constante, variação da estrutura, variação dos domínios de perturbação e dedestruição, variação do território de contato com o meio. Tudo isso em uma dinâmica quefunciona com determinismo estrutural e na qual, segundo Maturana e Varela, as únicascondições são a manutenção da autopoiese e a congruência com o meio, ponto que ficarámais claro no capítulo 2.

Humberto Maturana define a emoção como uma característica dos animais. Ela surgea partir dessa variação constante, diversa e, muitas vezes, imprevisível que é o modocomo a vida animal vai se desenvolvendo. Aliás, na visão deste autor, as emoções estãotão ligadas a esse fluxo que por vezes ele utiliza o termo emocionear, exatamente paramarcá-lo como processo. Vejamos:

O que distinguimos ao falar de emoções são classes de condutas rela-cionais, e o que conotamos que ocorre no viver de um organismo aodistinguir nele diferentes emoções são distintas configurações fisiológicasque especificam, momento a momento, a orientação relacional interna eexterna de seu viver relacional. E é por ser essa a natureza do emocio-near que as emoções modulam a dinâmica molecular de um organismoe, portanto, a forma que segue o fluir da realização de sua autopoi-ese.(MATURANA; DáVILA, 2009, p. 298, grifos do autor)

As emoções aparecem como descrições que um observador faz dos estados de um ani-mal. Nesse ato o observador descreve aspectos relacionais do animal em questão, maisespecificamente, procura mostrar aquilo que o animal pode fazer e sentir naquele mo-mento. Basta pensarmos em como fazemos referência às emoções em nosso cotidiano.Quando dizemos que alguém está com raiva, ao mesmo tempo afirmamos que nesse mo-mento é mais fácil para essa pessoa ter uma atitude agressiva, mais fácil entender ações oufalas para com ele como agressivas, e mais difícil para avaliar as causas daquilo que o estádeixando com raiva. Não é à toa que comumente se diz como um aviso a outrem “cuidado,ele está bravo!”. Por outro lado, quando dizemos que uma pessoa está feliz, divisamosnesse momento que ela é mais capaz de atitudes afetuosas, consegue colocar-se com maisdisposição às situações que experimenta. Aí nosso discurso já é mais incentivador “nãose preocupe, ele está de bem com a vida!”.

Ao falarmos de emoções estamos falando de como está configurado o território de con-tato com o meio, pelo qual o animal recebe as perturbações. São também as emoções quedeterminam quais interações poderão ser destrutivas para o animal. Ao mesmo tempo,procuramos expressar a disposição interna deste organismo, a maneira que sua estrutura

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28 Capítulo 1. Existência em Variação: Autopoiese e Potência

está disposta e como está atualizando sua autopoiese naquele momento. Sabemos por ex-periência que são essas disposições que determinam como o animal está e como ele poderáestar no momento seguinte. No exemplo acima, sabemos bem que uma mesma brincadeirafeita para a mesma pessoa em uma e em outra situação terá resultados completamentediferentes, e que a própria pessoa pode perceber, ao comparar os dois estados, que ela, decerta forma, “não era a mesma” em uma e em outra situação. Nesse sentido, a emoçãomostra o que o ser vivo pode fazer e sentir e ainda aponta para o que está havendo naquelemomento ao nível do fluxo de suas mudanças estruturais, quais possibilidades de estadosubsequente estão fortalecidas e quais estão enfraquecidas.

1.2 A Variação em Espinosa: Potência, Mente e Corpo

Passemos agora à exploração de como a teoria espinosana dos afetos aproxima-se da teoriaemocional autopoiética e como introduz importantes diferenciais.

Inicialmente é bom dizermos de algumas concordâncias e diferenças básicas entre aspropostas da autopoiese e a filosofia de Espinosa. Inserido no campo das filosofias doséculo XVII, Espinosa, ao discutir a dinâmica dos encontros entre corpos, tem como baseo pensamento de Descartes, pautado em uma física que sustenta uma explicação mecânicado corpo humano. Encontramos a apresentação das relações de movimento e repouso doscorpos no segundo livro da Ética, como comenta Livio Teixeira em seu Prefácio ao Tratadoda Reforma da Inteligência:

Uma amostra do que poderia ser para Espinosa o método a ser empre-gado na Física, nós o temos, sem dúvida, nos axiomas, lemas, postuladose na definição que se encontram após a prop. XIII do livro II da Ética,e que constituem o fundamento de uma explicação mecânica do corpohumano, à maneira de Descartes, aliás. (TEIXEIRA, 1966, p. 48)

A teoria da autopoiese trabalha com a física de sistemas complexos (ou fora do equilí-brio termodinâmico), Espinosa trabalha com a física cartesiana. Para este último, quandofalamos de corpos é preciso considerar que “Todos os corpos estão ou em movimento ouem repouso” (Axioma 2) e isso só ocorre através do encontro com os outros corpos. Issoindica que para a teoria de Espinosa é impossível pensar um corpo fora da relação, do con-tato com outro corpo, como trataremos detidamente mais a frente e como fica explicitadona demonstração que se segue ao Lema 3 do livro II:

Os corpos (pela def.1) são coisas singulares, que (pelo lema 1) se dis-tinguem entre si pelo movimento e pelo repouso. Assim (pela prop.28da P.1), cada corpo deve ter sido necessariamente determinado ao movi-mento ou ao repouso por uma outra coisa singular, isto é (pela prop. 6),por um outro corpo, o qual (pelo ax.1) também está ou em movimento ouem repouso. Ora, este último, igualmente (pela mesma razão), não podeter se movido nem permanecido em repouso a não ser que tenha sidodeterminado ao movimento ou ao repouso por um outro, e este último(pela mesma razão), por sua vez, por um outro e, assim, sucessivamente,até o infinito. C.Q.D.

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1.2. A Variação em Espinosa: Potência, Mente e Corpo 29

Apesar da distância cronológica dos pensamentos de Espinosa e de Maturana e Varela,quando propomos uma aliança entre estas teorias, percebemos o quanto elas ressoam emdiferentes aspectos que serão mostrados ao longo deste trabalho. Ao colocarmos os doisconjuntos de ideias e os dois modos de pensar em contato, em interpenetração, podemosperceber algumas concordâncias. Uma delas já vimos dizendo desde o início: ambos ospensamentos procuram operar na imanência, perceber causas e efeitos unidos, evitamrecorrer a explicações que residem em a priori e em justificativas transcendentes. Outroentendimento comum, e que nos interessa especialmente agora, é a importância da noçãode variação que fundamenta cada pensamento.

Na teoria da autopoiese já vimos que a força da variação está ligada ao que esta teoriaaproveita da visão dos sistemas complexos longe do equilíbrio termodinâmico, ou seja, daconcepção de que estes são sistemas que, enquanto existem, possuem uma espécie de di-ferença interna, que chamamos comumente de desequilíbrios. Nos sistemas autopoiéticos,os seres vivos, o que varia é sua estrutura e seu território de contato com o meio. Asemoções aparecem aí como uma síntese momentânea desse fluxo de transformações.

Compreendendo a dinâmica de variações estruturais e relacionais chegamos às emo-ções na autopoiese. Para chegarmos às afecções e aos afetos, poderíamos perguntar: emEspinosa, o que varia?

Sem dúvida aquilo que é o principal elemento da variação para esse filósofo e queserá um dos elementos chave de seu pensamento é a potência. Na Ética ele defende que aNatureza inteira, ou Deus, pode ser definida como potência infinita, como aquilo que podeabsolutamente. Potência é a capacidade de fazer, produzir. Contudo, não existe comopossibilidade, mas sempre em ato, realizada. Não é que a Natureza carregue em si umnúmero de possíveis e realize apenas alguns escolhidos, e por isso é muito potente, porquepoderia produzir muitas coisas, mas porque efetua sempre tudo o que pode, como estádeterminado em seu funcionamento. É nessa plena realização que a potência da Naturezasegue eternamente em uma produção absoluta.

Assim, quando Espinosa fala de potência, ele fala de uma força sempre efetivada, sem-pre funcionando e causando efeitos. Essa força não existe “em potência” ou em potencial,não pode ser acumulada ou reservada para ser utilizada depois, não é a energia potencialda física, que se acumula para então ser liberada/utilizada. Como não pode ser guardada,reservada ou acumulada, a potência existe sempre realizada. O que muda de uma pro-dução para outra da Natureza é apenas a intensidade com que a potência se realiza. Épor isso que Espinosa afirma que a Natureza e tudo que ela produz é potência, e não quepossui uma potência. Se a Natureza é pura potência, é essa força espontânea de atividadeou ação, fica evidente que ela não pode não agir e, consequentemente, realiza tudo quepode.

É por sua potência que a Natureza produz todas as coisas singulares, vivas ou não. Ecomo Espinosa afirma que essa produção é imanente, não é que a Natureza doe um tanto de

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30 Capítulo 1. Existência em Variação: Autopoiese e Potência

sua potência para que as coisas singulares existam, mas as coisas singulares existem comoparte da potência infinita da Natureza. A própria Natureza existe enquanto se expressaem seus modos, ou seja, em tudo que existe. Como nos explica Deleuze, a Natureza seexpressa nos modos e estes são expressão dela, eles a exprimem1. Não se trata de umadoação, de retirar algo de si para entregar a outra coisa, mas sim de produzir em si mesmavidas singulares que a expressam, que afirmam a potência infinita desta Natureza.

Assim, cada coisa afirma de maneira singular um nível da potência absoluta, porisso é um grau da potência da Natureza. Deleuze diz o seguinte a respeito: “Quando omodo [a coisa singular] passa à existência, é que uma infinidade de partes extensivas sãodeterminadas do exterior a entrar sob a relação que corresponde à sua essência ou a seugrau de potência”(DELEUZE, 1981, p. 104).

Embora isso não seja verdadeiro apenas para os seres vivos, aqui ajuda lembrar dasrelações internas na teoria da autopoiese: tipo e quantidade de relações internas variamde um ser vivo para outro determinando aquilo que ele é e o que pode2.

Qualquer ser vivo singular e qualquer homem singular é a afirmação de um grau dapotência da Natureza. A própria noção de grau nos convida a pensar em algo que variadentro de uma escala. Cada existência é uma variação da potência da Natureza e opróprio grau, enquanto existe, varia, aumentando ou diminuindo. Cada coisa varia emsua potência de acordo com suas próprias relações complexas “que correspondem à suaessência ou grau de potência” e a partir das relações que estabelece com as outras coisassingulares, os encontros que faz com elas. Os encontros podem aumentar, diminuir ou serirrelevantes para a potência de uma singularidade. Essa diferença está ligada a quantouma coisa singular convém (ou não) com a outra, o quanto uma compõe com a essênciada outra no momento do encontro.

Ao tratarmos das variações da potência da Natureza e das coisas singulares nos apro-ximamos da concepção de afeto e afecção. Para tanto é preciso saber, de início, queEspinosa entende a potência humana realizando-se simultânea e paralelamente no corpoe na mente. Simultaneamente, pois se trata de um modo, de uma produção, da mesmapotência infinita e una; e paralelamente pois são irredutíveis uma à outra, ou seja, nãose pode explicar uma pela outra. De certa forma, podemos dizer que ambos realizam deformas distintas um mesmo grau da potência da Natureza3, por isso qualquer variação que1 Faço referência a esta leitura deleuziana de Espinosa apenas para esclarecer a relação entre coisas

singulares e Natureza. Mas para uma discussão mais longa a respeito do tema, acompanhar a pro-blematização da ideia de expressão em Deleuze – “Espinosa e o problema da expressão” (traduçãobrasileira no prelo).

2 Em nossa passagem pela teoria espinosana estamos priorizando a ideia de potência da Natureza (oude Deus) e das coisas singulares, pois essas ideias se apoiam na tese deste autor de que há uma únicaSubstância infinita (que é o próprio Deus ou Natureza), expressa em infinitos Atributos, dos quaisconhecemos dois: Extensão e Pensamento, já que somos um modo da potência de agir e de pensar.Encontram-se essas definições na parte I da Ética.

3 A rigor tal simultaneidade e irredutibilidade justificam-se pela irredutibilidade dos atributos divinos.Um efeito que acontece em um corpo deve ser explicado por uma concatenação de causas corpóreas,um efeito na mente deve ser explicado por uma concatenação de ideias que o causam. Ambas as

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1.2. A Variação em Espinosa: Potência, Mente e Corpo 31

ocorre nesse grau tem efeitos equivalentes e simultâneos nessas duas dimensões. Vejamosentão como acorrem as variações no corpo e na mente.

O corpo humano é entendido como um indivíduo. Para Espinosa um indivíduo, é umconjunto de corpos (aqui entendidos como os corpos da física) que juntos formam umcorpo maior, um corpo composto. O que garante que um determinado indivíduo existae continue existindo, e o que diferencia um indivíduo de outro, são os tipos de corposque o compõe e, especialmente, uma determinada relação característica de movimento erepouso entre esses corpos. Assim, uma pedra é um indivíduo que difere, digamos, deuma planta, pois os corpos que a compõe são diferentes dos corpos que compõe a planta eporque as relações de corpos são bem diferentes nos dois casos. De fato, a pedra, estáticacomo é, contém relações mais fixas entre seus componentes, e as transformações que oscorpos que a compõe sofrem normalmente são pouco plásticas e/ou demoram um longotempo para acontecer; o mesmo não se pode dizer da planta, que pode ter tanto estruturasestáticas quanto algumas mais fluídas, e são as relações entre essa fixidez e plasticidadeque a mantém viva.

Há mais. Espinosa nos fala de indivíduos compostos de outros indivíduos. O corpohumano é um indivíduo composto altamente complexo, nele coexistem vários indivíduos.As diferenças e especificidades das células e órgãos exemplificam bem essa concepção dofilósofo. Tal complexidade, unida à diversidade de disposição possível desses corpos, osmodos como podem se rearranjar uns em relação aos outros, garantem as formidáveispotências dos corpos humanos.

Fazendo uma leitura dessa concepção de indivíduo a partir da teoria da autopoiese,podemos dizer que um indivíduo composto, e consequentemente o corpo humano, é umatotalidade que ao se manter mantém algumas totalidades menores que a compõe, compor-tando assim diferentes relações básicas que devem estar garantidas para sua sobrevivência.A vantagem desses indivíduos mais complexos é que pela união das capacidades dos su-bindividuos componentes o todo torna-se também mais versátil, ou seja, a quantidade equalidade de interações que pode ter com os outros corpos é diversificada. Maturana eVarela chamam o conjunto formado por essas uniões de “unidades de segunda ordem”4.Ao mesmo tempo, Espinosa indica que a permanência na existência desses indivíduoscompostos e do aumento de sua potência dependem da manutenção das relações caracte-rísticas entre os corpos, que definem o indivíduo maior.

Explicamos então uma primeira dimensão da potência: a potência de um corpo ou deum indivíduo reside em sua capacidade de afetar e ser afetado pelos outros corpos. Ela estáligada à composição e à natureza dos indivíduos. Dessa forma, é evidente que os indivíduos

concatenações seguem uma mesma ordem e conexão determinada pelo funcionamento da Natureza.Como explicita a P7 da EII: “A ordem e a conexão das ideias é o mesmo que a ordem e a conexãodas coisas.”

4 Uma unidade de segunda ordem é composta por unidades de primeira ordem, que consistem naunidade de menor nível de grandeza em que se pode identificar uma organização autopoiética: acélula.

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32 Capítulo 1. Existência em Variação: Autopoiese e Potência

compostos são mais potentes que os corpos simples, pois a união das capacidades deafetar e ser afetado de cada corpo contribui para que ele tenha capacidades que nãoexistem nas partes individualmente. Uma capacidade maior de ser afetado e de afetarpermite o contato com um número e uma diversidade maior de indivíduos, bem como umamaior variedade de formas de acolher e promover esse contato (modificar-se a partir dele).Lembremos que a potência varia, é um grau intensivo. Retomaremos essa importanteafirmação após explorarmos o que vem a ser a potência da mente5.

Para Espinosa, enquanto o corpo humano é composto de outros corpos, a mente écomposta de ideias. Como se sabe, uma ideia está sempre referida a algo, é sempre “ideiade” alguma coisa. A que as ideias da mente estão referidas, qual é o seu objeto?

O filósofo é enfático: “o objeto da ideia que constitui a mente humana é o corpo(. . . ), existente em ato, e nenhuma outra coisa” (EII, P13, p.97). Então a mente é umconjunto de muitas ideias referidas aos muitos corpos que compõem o corpo, é tambémprodutora de ideias que surgem enquanto o corpo modifica-se (pelos movimentos, pelapercepção. . . ).

Essa definição implica que temos acesso às coisas exteriores pela forma como nossocorpo se relaciona e é modificado por elas, o que percebemos é antes o efeito das coisassobre nosso corpo e nossa mente do que o conhecimento preciso daquilo que é causadesse efeito. Essa maneira de conhecer apoia-se na forma como o corpo se rearranja, éafetado, ao encontrar-se com outro. A forma como nosso corpo se modifica a partir daação de outro sobre ele é a imagem que nosso corpo forma da coisa exterior, por issoessa forma de conhecimento é denominada de imaginação. Esses encontros com os outroscorpos implicam, ainda, em marcas, traços, que permanecem no corpo e modificam aforma como ele se rearranja, é pela ligação entre esses traços que temos a memória. Paraexemplificar vale a pena pensar nas sensações. Ao mesmo tempo que o corpo é levadoa se rearranjar devido a algum estímulo físico (sonoro, luminoso, mecânico, químico...)adquirindo uma disposição que contém a imagem daquilo que nos afeta, a mente tem aideia dessa coisa, e rapidamente pode passar às imagens e ideias de outras coisas que estãoligadas a essa por associação, por experiência.

Outra implicação do modo como Espinosa define a mente humana é que as ideiasque a compõe produzem-se em consonância com o que acontece com o corpo, pois é ocorpo em ato que é o objeto da mente, não um corpo abstrato. Esses acontecimentosse dão exatamente no interjogo dos encontros com os outros corpos, nos quais o homematua sobre os outros corpos e é afetado por eles. Como esse interjogo não cessa enquantoo corpo existe, a mente está a todo momento produzindo ideias conforme o corpo éafetado e afeta, e concatenando ideias pelo fluxo da memória. Além dessa produção deideias pela imaginação, Espinosa vai falar de outras duas formas de conhecimento, cuja5 As explicações sobre os corpos e os indivíduos podem ser encontradas na parte II da Ética, especi-

almente na proposição 13. As explicações que definem a mente, seu funcionamento e ligação com ocorpo iniciam-se nessa proposição e vão até o final dessa Parte.

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1.2. A Variação em Espinosa: Potência, Mente e Corpo 33

importância veremos mais à frente. Podemos adiantar, por ora, que a mente só temum conhecimento adequado das coisas, das causas e das relações por meio desses outrosgêneros de conhecimento, embora os três gêneros sejam modos de a mente fazer aquiloque lhe é próprio: conhecer6.

Com isso estamos em condições de dizer qual é a potência da mente: produzir ideias,concatená-las e, através disso, compreender. De fato, não é difícil concordar que umamente que consegue manter mais ideias ao mesmo tempo, consegue estabelecer mais li-gações entre elas e, assim, compreender melhor, é mais potente que outra. Além disso, ofilósofo põe em destaque que entre as próprias ideias há diferença, sendo algumas adequa-das e outras inadequadas. Resulta que uma mente é mais potente que outra na medidaem que tem mais ideias verdadeiras ou adequadas do que ideias inadequadas. Colocadode forma simples, ideia adequada é uma ideia pela qual se pode conhecer pela causa, ideiapela qual conhecemos efeito e causa unidos, conhecemos o que constitui o corpo exteriorque nos afeta e o porquê dele nos afetar de alegria ou de tristeza. Espinosa dirá que todasas ideias são adequadas em Deus, ou seja, na substância da qual somos expressão, masem nós as ideias apenas são adequadas quando conhecemos pela causa e serão, necessa-riamente inadequadas, quando somos afetados por um corpo exterior e só percebemos oefeito deste corpo em nós. Assim, a mente humana é capaz de conhecer verdadeiramenteou inadequadamente (DELEUZE, 1981).

1.2.1 Afecções e Afetos

Os aspectos que abordamos até agora respondem “o que são” a potência do corpo e damente e mostram como se realiza a potência humana a cada momento, ou, como diriaDeleuze (1981), o que preenche a potência. É exatamente isso que Espinosa chama deafecção. Ela é o elemento da forma ou do estado que a potência assume pelas relações,encontros, que estabelece.

As afecções do corpo são os estados que o corpo assume no encontro com os outroscorpos, as imagens e disposições que daí decorrem. As afecções da mente são ideiasque acompanham as imagens do corpo, bem como as ideias que ela produz enquantocompreende. Nas duas dimensões, é um certo arranjo da potência que varia. Temos aía demonstração de como a potência é o grande elemento da variação em Espinosa: apotência varia pelas afecções de que é afetada nas relações. Retomando a discussão sobrea Natureza, dizemos que as coisas singulares são afecções da potência infinita ao mesmotempo que são um grau dela. É claro que não são afecções que surgem na relação comcoisas externas à Natureza, pois não há nada fora dela, mas que aparecem por relação eprodução interna, nesse sentido são auto-afecções.

6 Pode-se conferir EII, P17 sobre a imaginação. Os três gêneros de conhecimento são apresentados emEII, P40, esc. 2.

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34 Capítulo 1. Existência em Variação: Autopoiese e Potência

Mas a potência é o conceito da variação ainda de forma mais radical, pois não se resumea uma mudança de forma de realização, é também uma alternância de intensidade. Namudança de uma afecção a outra, junto de uma e de outra afecção, o homem (e qualqueroutro modo) experiencia um aumento ou diminuição de sua potência, de sua capacidadede afetar e ser afetado. É essa passagem, essa transição de uma intensidade a outraque Espinosa chama de afeto. Quando essa transição indica um aumento da potênciachama-se alegria e quando leva a uma diminuição chama-se tristeza7.

Como recurso para começar o contato com esses conceitos vale a pena pensarmosno uso comum dos termos alegria e tristeza, mais especificamente, na experiência quetemos quando dizemos que algo foi uma alegria ou tristeza. Qualquer um pode dizer decomo uma alegria é algo revigorante, como traz uma disposição de ânimo que impulsiona,faz sentir capaz, anima. Algo que nos entristece, por outro lado, leva-nos ao sentidocontrário, de retraimento, desânimo, sensação de incapacidade. Os extremos da mania eda depressão mostram bem esses sentimentos: de um lado a impressão de onipotência, deoutro, da completa impotência.

De fato, esses usos estão de pleno acordo com a proposta espinosana, mas ela nos dizao mesmo tempo de um jogo afetivo mais sutil que ocorre a todo momento nos encontrose acontecimentos mais cotidianos e produzem pequenos afetos e afetos parciais, ou seja,que afetam apenas uma parte do corpo. Como o indivíduo é composto de vários corpos,possui essa característica de ter apenas algumas de suas partes afetadas por um afeto(lembremos das ondas sonoras que afetam apenas o aparelho auditivo de uma pequenaalegria em nosso exemplo) e mais, uma mesma causa pode afetar diferentemente partesdiversas do corpo. Uma pessoa com hipertensão, por exemplo, pode ter seu paladarafetado de alegria ao comer uma bela pipoca salgada, mas outras partes de seu corpo(o sistema circulatório é a primeira vítima) terão sua potência diminuída, suas relaçõesserão em alguma medida decompostas pelo encontro do indivíduo com esse alimento.Parte essencial da dinâmica afetiva é dosar os afetos parciais em uma proporção que aalegria de uma parte do corpo não cause mau a várias outras8. Discutiremos isso mais àfrente, no capítulo 3.

Os afetos não se restringem a alegria e tristeza, mas o filósofo consegue explicar todosos demais afetos a partir desses que, junto com o desejo, são chamados de afetos primários.A partir de algumas características do funcionamento da mente e da natureza, em umestudo das relações, das composições e das dinâmicas de aproximação e afastamento dosindivíduos, ele concebe outros afetos importantes a que comumente nos referimos. Porexemplo, designa que o amor é “uma alegria acompanhada da ideia de uma causa exterior”,enquanto que o ódio é enunciado da mesma forma mas com a tristeza substituindo a

7 Sugerimos algumas passagens da Ética onde aparece a explicação da tristeza e da alegria, especial-mente na Parte III, Def. 3; Definição Geral dos Afetos e P11, esc.

8 Algumas das passagens onde aparecem os afetos parciais são encontradas em EIII, P11, esc.; EIV,P44, esc..

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1.2. A Variação em Espinosa: Potência, Mente e Corpo 35

alegria; o medo, por sua vez é “uma tristeza surgida da ideia de uma coisa futura oupassada de cuja realização temos alguma dúvida”, a esperança sendo o seu inverso e osdois estando sempre ligados pois a falta de certeza que envolve a esperança gera certomedo e o inverso acontece com a esperança9(SPINOZA, 2010).

Apesar de definir uma série de afetos, o autor é muito sensato ao dizer que “há tantasespécies de alegria, tristeza e desejo [...] quantas são as espécies de objetos pelos quaissomos afetados” (SPINOZA, 2010, EIII, P56, p. 229), bem como que comumente sofremosflutuações do ânimo por estarmos afetados ao mesmo tempo de afetos contrários. Essasconsiderações são importantes, também, para evitarmos a tentação de querer intelectuali-zar essa passagem que é o afeto, pois ele é algo vivido, não abstraído. Como diz o próprioEspinosa:

Ora, a ideia que constitui a forma de um afeto deve indicar ou exprimiro estado do corpo ou de alguma de suas partes, estado que o própriocorpo ou alguma de suas partes tem porque sua potência de agir ou suaforça de existir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada. Épreciso observar, entretanto, que, quando digo força de existir maior oumenor do que antes, não compreendo com isso que a mente comparao estado presente do corpo com os anteriores, mas, sim, que a ideiaque constitui a forma de um afeto afirma, a respeito do corpo, algo queenvolve, de fato, mais ou menos realidade do que antes. (SPINOZA, 2010,EIII, Definição Geral dos Afetos, p 259, grifos do autor)

Essa observação é coerente com a definição de potência como força espontânea deação que existe sempre em ato, não como possibilidade. Não é que a mente percebaque de uma hora para outra poderia fazer coisas diferentes do momento anterior, massente esse aumento de potência ao mesmo tempo em que ele acontece pela afecção de quemente-corpo é tomado, ele é percebido em sua própria realização.

Nesse trecho aparecem duas expressões curiosas acompanhando as ideias de afeto epotência: “mais ou menos realidade” e “força de existir maior ou menor”. Compreenderessas ideias nos aproxima do elemento que falta em nosso quadro da teoria espinosanados afetos. A primeira pode ser entendida a partir do que vimos anteriormente sobre apotência do corpo e da mente: quando nossa potência é estimulada, a mente e o corporealizam-se mais plenamente, têm mais meios para se realizarem, concretizam aquilo quelhes é próprio com mais intensidade. Em outros termos, o corpo pode ser afetado, acolhera afetação e afetar outros corpos de mais jeitos, e a mente pode ter e produzir mais ideias.Há uma imagem que ilustra esse modo de entender o sentido de realidade: ela consisteem dizer que uma bolha de sabão tem menos realidade que uma formiga. Ora, é evidente

9 As definições de amor e ódio estão em EIII.P13, esc.; medo e esperança: EIII,P18, esc. 2. Adicional-mente, é possível consultar as Definições dos Afetos, ao final da EIII com todos os afetos.

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36 Capítulo 1. Existência em Variação: Autopoiese e Potência

que a formiga existe de mais formas que a bolha de sabão, pois trabalha, comunica-se,percorre distâncias, já a bolha de sabão apenas mantêm-se no ar até chocar-se com algo,ou seja, os encontros que admite sem se destruir são poucos10.

A expressão “força de existir maior ou menor” relaciona-se com essa ideia de realização,mas diz respeito mais fortemente ao conceito espinosano de conatus. O conatus é definidocomo o esforço que cada coisa tem por perseverar em seu ser11. Esse esforço por perseverarna existência é a tendência de todas as coisas singulares por afirmar-se: manter e renovaras relações básicas que o compõe e as partes que concretizam essas relações. O movimentodo conatus é duplo: por um lado visa a expansão da potência, por outro a oposição eevitação daquilo que é contrário à natureza (as relações básicas) da coisa singular, coisasque podem destruí-la (DELEUZE, 1981).

Como se vê, o esforço por perseverar no ser está intimamente ligado aos afetos, poisa expansão da potência se dá exatamente pelo aumento dela, pelos afetos de alegria. Eos afetos de tristeza nos mostram, por sua vez, que algo é contrário à nossa natureza.Nesse sentido, um estímulo à potência é também um estímulo à própria força de existir,ao próprio conatus. Ora, a força de existir nada mais é do que a força que uma coisasingular tem de efetivar sua potência, é esse modo singular de ser e fazer/produzir queé sua essência. Por isso, Espinosa diz que “o esforço pelo qual cada coisa se esforça porperseverar em seu ser nada mais é do que sua essência atual” (SPINOZA, 2010, EIII, P7,p. 175).

É nesse sentido também que Deleuze (1981) diz que um afeto alegre resulta de umbom encontro, um encontro no qual o contato entre os corpos gera uma composição, umaconveniência. Pois tal contato fortalece um, o outro ou os dois, fortalece seu modo própriode existir, sua essência. No afeto triste acontece o contrário, a força de existir de um, talcomo está se realizando no momento do encontro, decompõe em alguma medida o modode se relacionar, de existir, do outro. Podemos entender melhor o que significa o aumentoe a diminuição de potência a partir desse conceito que explicita nossa característica deperseverar na vida, lutando sempre contra aquilo que está por nos destruir, ou seja, oconceito de conatus. Deleuze o descreve bem:

10 Ao compreendermos essa imagem da formiga e da bolha de sabão podemos associar sua explicaçãoao tempo, à duração que cada um permanece na existência. Contudo, segundo Espinosa, essa ideiaé falsa. A realidade de um modo tem a ver com a intensidade, seu grau de potência, não com o seutempo de duração na existência. Nesse sentido, algo pode ter mais realidade que outra coisa mesmoque seu tempo de existência seja inferior. Também não se deve deduzir que a diferença ocorre apenasem função dos indivíduos do exemplo serem de “gêneros” diferentes, pois há diferença de potência erealidade entre seres de mesmo gênero, por exemplo, um humano pode ter muito mais realidade queoutro de acordo com a maneira que cada um realiza sua potência. Este exemplo foi tomado de umaaula do professor Marcos Ferreira de Paula em seu mini-curso sobre a saúde em Espinosa, ministradoem maio de 2011.

11 Sugerimos algumas proposições que se referem ao conceito de conatus: EIII, P 4-10.

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1.2. A Variação em Espinosa: Potência, Mente e Corpo 37

Mas a grande diferença entre os dois casos é a seguinte: na tristeza, anossa potência como conatus serve toda ela para investir a marca dolo-rosa e para repelir ou destruir o objeto que a causou. A nossa potênciaestá imobilizada e só pode reagir. Na alegria, pelo contrário, a nossa po-tência está em expansão, compõe-se com a potência do outro e une-se aoobjeto amado. Eis porque, mesmo quando supomos constante o poderde sermos afetados, algo da nossa potência diminui ou é impedido pelasafecções de tristeza, aumenta ou é favorecido por afecções de alegria.(DELEUZE, 1981, p. 106)

As palavras de Deleuze nos mostram a relação do conatus com a alegria e a tristeza. Avia que a ideia da força de existir abre pode nos levar também ao terceiro afeto primário:o desejo.

Espinosa concebe o desejo como o afeto que diz respeito à maneira como o homem, emconsonância com o conatus, procura perseverar na existência a cada momento. De acordocom as afecções e as intensidades de alegria e tristeza de que o homem está tomado,o conatus é realizado de uma forma específica impulsionando o homem a perseverar naexistência, essa forma é justamente o desejo. Tal afeto é, então, expressão do conatus eaquilo que determina o que o homem se esforçará por realizar12.

Como já dissemos, o modo próprio de perseverar na existência, a maneira singularde existir, de exercer a potência, é a própria essência de uma coisa. Por isso, o filósofodo século XVII afirmará que “o desejo é a própria essência do homem”(SPINOZA, 2010),afinal, é por ele que se sucedem as ações que mantém o homem na existência e realizamsua potência.

Não podemos deixar de reforçar que o desejo está intimamente ligado aos afetos dealegria e tristeza, de tal forma que os dois últimos são muitas vezes a chave para com-preendermos o primeiro. Isso se dá pois o desejo sempre carrega em si o movimentocaracterístico do conatus: um desejo pode direcionar o fazer do homem no sentido deevitar uma causa de tristeza ou destruí-la. Como se vê, tal desejo surge/é movido pelatristeza, enquanto outro desejo pode voltar o homem no sentido de aumentar sua potên-cia, se compor com outrem de modo a “existir mais” (ter mais realidade), este desejosurge/é movido pela alegria. A explicação de Espinosa a respeito disso mostra como essaimbricação é patente:

Além disso, a alegria e a tristeza são paixões pelas quais a potência decada um – ou seja, seu esforço por perseverar no seu ser – é aumentadaou diminuída, estimulada ou refreada. Ora, por esforço por perseverarem seu ser, enquanto esse esforço está referido ao mesmo tempo à mentee ao corpo, compreendemos o apetite e o desejo. Portanto, a alegriae a tristeza são o próprio desejo ou apetite, enquanto ele é aumentadoou diminuído, estimulado ou refreado por causas exteriores, isto é, é aprópria natureza de cada um.(SPINOZA, 2010, EIII P57 dem., p. 233)

12 EIII, P9, escólio.

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38 Capítulo 1. Existência em Variação: Autopoiese e Potência

Com essa visão que entrelaça conatus, afetos primários e potência, mais o discerni-mento do que o filósofo entende por afecção, temos o panorama completo de como a noçãode variação se desdobra em sua teoria afetiva. Ilustremos o conjunto com um exemplo:

Pensemos numa experiência alegre de alguém ouvindo uma música que lhe agrada. Oencontro com tal música produz em seu corpo e em sua mente um afeto que estimula suaforça de existir, ou seja, que aumenta sua potência de vida. Isto ocorre porque há umamudança no arranjo entre as partes de seu corpo, provocada pelo “efeito” da música, queaparece por uma afecção no corpo que corresponde a uma ideia desta afecção na mente.O que nos ensina Espinosa é que esta injeção de ânimo, este prazer vivido pelo indivíduoneste encontro, indica que algo da música convém com o corpo e a mente deste indivíduo.Mas o que nela poderia convir com um corpo e uma mente?

Pode ser, por exemplo, que há uma composição entre o ritmo da música e as conexõesque estabelecem um ritmo corporal e mental do sujeito naquela hora. Mas pode ocorrertambém que esta música apareça para o indivíduo bem no momento em que outra coisaboa ocorre a ele. Neste sentido, a ideia da música fica ligada a outro afeto de alegria, demaneira que ao ouví-la novamente o individuo sentirá alegria, por ser ao mesmo tempoafetado da outra situação que estava ligada a ela. Então há uma memória do corpo quenos faz lembrar dos efeitos dos corpos exteriores sobre nós e que ligam ideias e afetosvividos ao mesmo tempo13.

Sendo assim poderíamos dizer que, ao perceber a alegria provocada por esta músicao indivíduo buscará o encontro com ela em outros momentos para reviver a sensaçãoagradável que ela traz, ele terá o desejo de escutá-la novamente. No entanto, Espinosanos chama a atenção para o fato de sermos afetados pelas mesmas coisas de maneirasdiferentes em momentos diferentes. Isto significa que, em um novo encontro, com umanova conexão de experiências vividas, o afeto de alegria vindo da música já conhecido poreste indivíduo, pode perder esta força, se tal música se separar da ideia da outra situaçãoboa a que estava ligada e se ligar a uma notícia devastadora que ele recebe no momentoem que escuta a música14, por exemplo. Trata-se, portanto, de uma concatenação de

13 Espinosa chama a atenção para o fato de quando dois afetos estão ligados, um deles pode ser a causade alegria apenas por acidente, pois “não aumenta nem diminui sua potência de agir enquanto o outroaumenta ou diminui esta potência.” (E, III, P.15, dem). Sendo assim, a música, por exemplo, podenão ser a causa do afeto de alegria, mas como estava ligada a uma outra situação que era a causa, aoser ouvida novamente a música provocará um afeto de alegria. Por isso, diz Espinosa, que o afeto deamar a música que lhe parece agradável, não quer dizer que se saiba a causa pela qual a ama, mas aama apenas por “simpatia”, como ele explica no escólio desta mesma P.15 da Etica III.

14 Como este encontro com a música produziu afetos distintos em momentos distintos, o indivíduo podeexperimentar uma “flutuação de ânimo”: “O estado da mente que provém de dois afetos contráriosé chamado de flutuação de animo e está para o afeto assim como a dúvida está para a imaginação(...) Pois o corpo humano é composto de um grande numero de indivíduos de natureza diferente epode, portanto, ser afetado de muitas e diferentes maneiras por um só e mesmo corpo e inversamente,uma vez que uma só e mesma coisa pode ser afetada de muitas maneiras, poderá igualmente afetarde muitas e diferentes maneiras uma só e mesma parte do corpo. Por isso tudo, podemos facilmenteconceber que um só e mesmo objeto pode ser causa de muitos e conflitantes afetos.” (SPINOZA, 2010,E, III, P.17, esc.)

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1.3. Variação entre a Autopoiese e a Potência 39

ideias e de afetos, que indicam uma situação vivida, e que podem aumentar ou diminuira potência do corpo. De qualquer maneira, pela ideia do conatus, Espinosa defende quetodo indivíduo sempre se esforçará para imaginar ou lembrar situações de alegria e para seafastar de afetos de tristeza que tiram dele sua força de existir: ”Esforçamo-nos por fazercom que se realize tudo aquilo que imaginamos levar à alegria; esforçamos, por outro lado,por afastar ou destruir tudo aquilo que a isso se opõe, ou seja, tudo aquilo que imaginamoslevar à tristeza” (EIII, P.28).

Como se vê, a teoria espinosana dos afetos nos mostra ser o conatus o esforço queexplica a potência do indivíduo. De modo que as afecções do corpo indicam como oindividuo é afetado por corpos exteriores e quais ideias na mente ele forma destas afecções.Em relação aos afetos, vimos que os três afetos primários estão intimamente ligados aoconatus: o desejo é a própria expressão da força de existir, a alegria e a tristeza sãovariações intensivas nessa força de existir, variações que a estimulam ou refreiam. Apotência singular do homem é a expressão dos encontros deste, e dizem o quanto umavida é capaz de ser afirmada.

1.3 Variação entre a Autopoiese e a Potência

Conhecendo a conceituação de emoção na autopoiese e a visão de Espinosa a respeito dosafetos, podemos estabelecer mais claramente suas aproximações e diferenças, e começara apresentar a contribuição delas para um olhar clínico em psicologia.

O primeiro ponto de contato o leitor já conhece, é o fio condutor do que vimos apre-sentando até aqui: ambas as perspectivas trabalham valorizando e apoiando-se em ideiasde variação. Enfatizam que a vida é um processo de variação que implica em mudançasconstantes do próprio homem, em sua estrutura, seus estados, suas afecções, e tambémmudanças em seu campo relacional, domínios de perturbação e destruição, desejos e afetos.

Outro aspecto de aproximação entre as teorias é que o fluir dessa variação surge deum movimento imanente autodeterminado, mas que nem por isso deixa de ser explicá-vel por princípios que não são exclusivos deles mas se aplicam a todas as coisas. Asideias de determinismo estrutural e de conatus exemplificam isso. É especialmente inte-ressante observar como ambas as propostas carregam em si a capacidade de ao mesmotempo utilizarem-se de aspectos abrangentes para descrever os processos e resguardarema importância da singularidade. Assim, a atividade, seja perceptiva, seja motora, ocorresempre no fluir da autopoiese, segundo Maturana e Varela. Para Espinosa, acontecemsempre pela força do conatus. Mas a maneira específica de isso se realizar é da ordemda ontogênese, varia de um indivíduo para outro, e em um mesmo indivíduo ao longodo tempo que existe. De um lado, pela compreensão de que essa realização depende damudança contínua da estrutura, de outro, pela ideia de que a composição dos corpos queformam um corpo maior é sempre singular e varia de acordo com os encontros.

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40 Capítulo 1. Existência em Variação: Autopoiese e Potência

É verdade que autopoiese e conatus possuem posições parecidas dentro dos dois sis-temas de pensamento, mas não temos intenção de estabelecer uma equivalência estritaentre eles. Primeiramente, a autopoiese diz respeito apenas ao fazer dos seres vivos15, en-quanto que o conatus é postulado como comum a tudo que existe. Deste último podemoster consciência pelo desejo, por outro lado, nenhum mecanismo semelhante é propostona autopoiese, embora, como veremos, isso de certa maneira seja sentido na forma queexpandimos ou retraímos nossa autonomia.

A partir desses embasamentos as duas teorias desdobram suas concepções da afeti-vidade. Um aspecto importantíssimo é que em ambas a afetividade não se restringe asensações ou percepções, meros sentimentos. Mas é o processo por meio do qual é mo-dulado o campo relacional do sujeito, compreendendo os afetos e as ideias não só comopassivas, mas também como ativas, afetando e produzindo tanto o sujeito como o mundo.

Há, contudo, diferenças importantes. Espinosa faz um estudo mais fino da dinâmicaafetiva, destrinchando-a em afecções e afetos. Tal distinção interessa pois mostra comoestado e processo, forma e devir, implicam-se um ao outro como aspectos de um mesmofenômeno, afeto e afecção estão sempre juntos. Essa explicitação é útil pois aponta que senão enxergarmos os dois aspectos estaremos vacilando em nosso entendimento de qualquerdinâmica afetiva específica que procuremos conhecer.

Outra diferença fundamental está no fato de que Espinosa explora como a menteestá implicada na afetividade. As ideias a respeito do corpo e a atividade da mente deprodução de ideias estão ligadas ao fluxo afetivo: a potência de agir de um corpo estádiretamente relacionada a potência de pensar da mente, de maneira que a afetividade e acompreensão das experiências são coisas que operam juntas. Em Maturana, uma relaçãodesse gênero não é explicitada. O motivo para isso está na concepção de mente queatravessa o pensamento desse autor: para ele a mente está relacionada principalmenteà reflexividade que se origina da capacidade humana de operar na linguagem. Assim,a mente opera com palavras e é responsável por manter uma coerência descritiva, quechamamos de “eu”, e que nos permite continuar no domínio das interações linguísticasconstruído com nossos semelhantes. Nesse domínio as palavras são ações, atividade deinteração sempre ligada ao campo intersubjetivo (MATURANA; VARELA, 2001). Ora, nosparece que é exatamente pelas palavras serem consideradas ações que o autor não vênecessidade de discutir de modo mais pormenorizado o aspecto mental da afetividade,pois ela dispõe todo tipo de ação, inclusive as que se dão em palavras.

Em Espinosa, os afetos estão sempre ligados a ideias, variando a qualidade delas,que podem ser claras ou confusas, contribuindo mais ou menos para que nosso modo deviver e produzir afetos seja bom. Assim, a concepção espinosana da mente traz elementospreciosos para nosso entendimento da afetividade, pois consegue distinguir pormenores de15 É motivo de debate se a noção de autopoiese, tal como definida por Maturana e Varela, é aplicável

a outros sistemas, como os de organização social. Para uma discussão pormenorizada consultar Hugo(2011)

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1.3. Variação entre a Autopoiese e a Potência 41

seu funcionamento contemplando sua especificidade sem desligá-la do corpo e do camporelacional. Veremos à frente como o estudo de Espinosa dos tipos de ideias e de suasrelações com os afetos contribuem com a busca de uma vida mais livre, mais autônoma.

A proposta de Espinosa que consideramos mais valiosa no encontro com a teoria daautopoiese é aquela que define o afeto como intensidade. Nessa concepção reside um apeloclínico fortíssimo. Quando relaciona o afeto com a potência, Espinosa está apontando parao fato de que a variação afetiva é ao mesmo tempo uma variação do modo de existir. Aíestá contida a ideia de que há grande diferença entre apenas existir, manter as relaçõesbásicas, sobreviver, e viver na expansão do próprio modo de existir, da singularidade,da potência. Nos termos das ideias da autopoiese, um ser vivo que tem em seu domíniode perturbação e de disposição de ação um determinado número de possibilidades emum momento, e em outro apenas metade dessas possibilidades, existe de formas bemdiferentes em cada um deles, embora em nenhum momento deixe de estar vivo.

Ora, as situações que merecem um olhar clínico são exatamente situações nas quaishá um impedimento da potência, onde a tristeza, a restrição da ação, imperam. Nocaso das situações de sofrimento isso nos parece evidente, pois podemos observar que sãoafetos tristes que dominam um corpo e este corpo não consegue se ocupar das situaçõesde alegria que o tirariam deste estado. Mas vamos pensar num caso em que o afeto,inicialmente é de alegria, por exemplo, como no caso do amor e vamos considerar, comopropõe Espinosa na Ética, que este amor se torne excessivo (SPINOZA, 2010, EIV, p. 44).O que pode ocorrer neste caso é a fixação neste afeto de amor por um objeto, de talmaneira que os outros afetos também necessários para a constituição deste indivíduo nãosão considerados. Sempre que há uma fixação, ou uma dependência de uma situação paragarantir a nossa alegria, somos passivos, já que é algo exterior a nós que causa esta alegria.E, ainda, se somado a isso, esta alegria do amor por um objeto aparece como condição denossa existência, a tal ponto que não conseguimos ser afetados de outras coisas para nostornarmos alegres, então não podemos dizer que ela aumenta nossa potência, pois impedeo corpo de ser afetado por outras coisas.

Este individuo afetado de amor, como diz Espinosa, continua sendo afetado por talobjeto mesmo que este não esteja presente; ele ”acredita tê-lo diante de si. E quando issoacontece com um homem em estado de vigília, dizemos que ele delira ou está louco.”(esc.)Para Espinosa este homem não se pauta pela razão, com isso não tem ideias adequadas,não é capaz de agir. A única saída para que ele entre no caminho da razão, para que elepossa efetuar a sua potência é através da capacidade de ser afetado por outros objetos, poroutras alegrias passivas; sendo apenas assim que se torna possível a ele, sair do sofrimentoou da dependência e criar novos modos de existência.

De agora em diante, conforme progredimos na exploração das pistas que o encontroda autopoiese com Espinosa nos dá para a clínica, trabalharemos com a perspectivaespinosana da afetividade e a aliaremos aos conceitos que se desdobram a partir da teoria

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42 Capítulo 1. Existência em Variação: Autopoiese e Potência

da autopoiese para o entendimento dos processos vivos.Até aqui, com nossa discussão a respeito da variação em que o indivíduo vive pudemos

conceber as mudanças que sofre a cada momento e o movimento singular e autodetermi-nado que o faz perseverar na existência. Olhamos para o que ocorre no seio do sujeito,com e a ele. Contudo, toda a dinâmica afetiva ocorre em relação, tudo que vimos até aquiestá acontecendo nas relações. A variação e o movimento da vida só acontecem porque osujeito é um sujeito relacional: relaciona-se com o mundo, com os outros e consigo. É daíque surgem alegrias e tristezas, acomodações, incômodos e desejos.

A partir do próximo capítulo, trataremos em termos de relações para identificar oque nelas fortalece ou restringe a potência, como isso acontece e o que se pode fazer apartir desse entendimento quando temos uma preocupação clínica. Veremos que o afetoestá intimamente ligado ao conhecimento e que é nessa ligação que reside a chave para ofortalecimento de singularidades autônomas.

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2 Mundos, conexões e redes

No capítulo anterior vimos que o ser vivo constrói a si mesmo incessantemente por umasérie de processos. Queremos destacar agora que, segundo a teoria da autopoiese, aomesmo tempo que produz a si mesmo, ele produz um mundo. É possível distinguir agênese do mundo e do ser vivo, mas é impossível separá-las. Não existe mundo semaquele que o habita, nem ser vivo sem mundo.

Talvez o leitor concorde prontamente com a segunda parte da última afirmação, mastenha dificuldade em concordar com a primeira parte. É um tanto estranho para nossopensamento que não haja um mundo pré-existente, já pronto, ao qual o ser vivo vaiadaptar-se e habitar. Tendemos a pensar que fazer uma afirmação como essa é negartodo o mundo físico e a história evolutiva (de adaptação) dos seres vivos ou, no mínimo,é afirmar que tudo que existe, o mundo com o qual estamos acostumados, são merasprojeções da mente. Para explicar a relação entre aquele que o habita e o mundo, tendemosa procurar ao menos uma referência fixa, e ficamos de um lado para o outro, afirmandoque ou o mundo deve ser constante ou a capacidade de projeção daquele que o habita.

A própria psicologia é marcada por esse dilema ao longo de sua história, e escolas depensamento desenvolveram-se apoiadas em um ou outro extremo, enquanto em outrashá esforços de superação dessas dicotomias, embora mais ou menos embaraçados poraquelas características que apresentamos em nossa introdução (teleonomia, representaçãoe equilíbrio). Exemplos de embate entre extremos dessa controvérsia ocorreram no iníciodo século XX, nos trabalhos da psicologia estritamente baseada na psicofísica, que buscavareduzir a consciência à suas leis, em contraponto à psicologia idealista que considerava aconsciência como uma realidade a priori (KOHL, 1992).

Mas nenhuma dessas respostas se coaduna com o que afirmamos no início, pois se omundo – aquilo de que temos consciência – depende daquele que o habita, não pode seranterior ao habitante, e por outro lado, se o habitante – aquele que possui a consciência– depende do mundo, ele não pode ser anterior ao mundo. É preciso encontrar outraresposta, sair dicotomia, para entender como mundo e ser vivo podem ser co-dependentes.

Algo importante, inicialmente, é precisar o que queremos dizer com “mundo”. Podemosdizer que um mundo é um domínio de interações regulares que se torna significativo aolongo de sua história. O mundo de um ser vivo é constituído então por elementos do meiocom os quais ele estabelece interações a cada momento. O leitor faz bem se lembrar dosdomínios de interação que apresentamos anteriormente e da superfície de contato com omeio. É nesse processo de fechamento e abertura do ser vivo com o meio que emerge omundo para o sistema.

Varela, Thompson e Rosch (2003) dão o exemplo de um "autômato celular"que é umaparato de simulação computacional em que se constrói uma rede auto-organizada de

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44 Capítulo 2. Mundos, conexões e redes

unidades (“células”) que tem, cada uma, dois estados possiveis, ativo e inativo. Essasunidades são ligadas entre si formando um anel em que estão lado a lado, de modo quecada uma se comunica com outras duas e define seu estado atual por regras internas quelevam em conta o estado de suas vizinhas. Avaliando o comportamento de um anel comoesse é possível ver que apenas a partir de suas regras internas ele é capaz de gerar umasérie de estados globais coerentes. Algo muito interessante acontece quando se coloca umanel desses em um meio com o qual ele pode interagir, nesse contexto o anel recebe o nomede Bittorio. No experimento apresentado pelos autores, o meio também é composto porelementos que estão ativos ou inativos. O modo do autômato se relacionar com esse meio éque cada vez que uma célula entra em contato com um elemento, ela assume o estado dele.Dependendo das regras de funcionamento interno, é possível ver dois modos de relaçãoestabelecidos pelo Bittorio. Em um o contato com elementos do meio é irrelevante, nãogera mudanças significativas no funcionamento do anel. Em outro, porém, o autômatofunciona de modo que quando uma unidade é afetada por algo do meio, há uma mudançaglobal no anel. Se essa mesma unidade é afetada uma segunda vez, nada acontece. Noterceiro contato dessa mesma unidade com algo externo, porém, uma mudança globalocorre novamente. Ao observarmos esse anel operando por algum tempo, percebemos quea cada sequência ímpar de perturbação há uma alteração significativa.

A história de interações e as relações possíveis entre o funcionamento do sistema eo meio fazem emergir um domínio que é relevante, significativo para o sistema: “Asdistinções que o Bittorio seleciona, tais como sequências ímpares, indicam as regularidadescom as quais o Bittorio co-varia. Essas regularidades constituem o que poderíamos chamarde ’o mundo de Bittorio”’ (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 2003, p. 161).

Como se vê, esse mundo não existia a priori no meio nem tampouco no Bittorio, sópôde configurar-se nos encontros dos dois. O anel não era um “selecionador de sequênciasímpares” antes de envolver-se com o meio, tinha apenas suas regras internas. No meio,por outro lado, não existia um mundo de sequências pares e ímpares, havia apenas oselementos ativos e inativos. Tanto o anel quanto o meio dessa experiência computacionalsão bastante simples, mas a dinâmica que revelam não deve ser subestimada; podemosdizer que é ela que instrumentaliza nosso pensamento:

Considerando-se que já podemos reconhecer a emergência de um tipomínimo de significação apenas com a forma simples de autonomia (fe-chamento) e acoplamento dado ao Bittorio, imagine as ricas e complexasvariedades de significação que podem ser produzidas por células vivas ouredes celulares complexas como o cérebro e o sistema imune. (VARELA;THOMPSON; ROSCH, 2003, p. 162)

Continuando a caracterizar esse domínio de significação que chamamos de mundo, éimportante reforçar que há diferença entre mundo e meio. Se o mundo tem a ver coma história de nossas interações, o meio é o espaço onde as interações se renovam. Algodo meio passa a fazer parte de um mundo quando a estrutura e disposição de um sujeito

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admitir um contato com ele, pois pode ocorrer uma variação do sujeito no qual ele sefecha e não se acopla ao meio; o mesmo pode ocorrer com o meio.

Em nosso primeiro capítulo apresentamos as noções de domínios de perturbação edomínios destrutivos em meio a nossa discussão mais ampla a respeito da variação. Podeparecer estranha esta retomada para definirmos o que é um mundo, afinal, o mundo quehabitamos nos parece bem estável e alicerçado, não acordamos em um mundo totalmentediferente a cada manhã. De fato, essa dimensão já conhecida da dinâmica autopoiéticaexplica o fato do mundo ser um conjunto de relações e de ser a seleção de determinadas re-lações e não de outras. Ela não explica, porém, os aspectos de regularidade e historicidadeque aparecem acima.

Para compreendermos esses aspectos é preciso ter em mente que há duas histórias pró-prias dos seres vivos que contribuem para o estabelecimento das regularidades dos mundos.Uma é a história da espécie (filogenética), outra é história do indivíduo (ontogenética).A história filogenética situa cada ser vivo em uma longa linhagem de adaptação que lheconfere uma determinada estrutura, conservada por ter sido bem sucedida em sobreviveraté o momento. Como vimos anteriormente, a estrutura é determinante daquilo que o serpode ou não fazer, ao mesmo tempo que é plástica dentro de certos limites. A ontogênese,por sua vez, é a história singular de mudanças e estabilizações estruturais do indivíduo,depende das formas que foi constituindo a partir das perturbações que sofreu ao longo davida, de que maneiras específicas realizou sua autopoiese. Dessa forma, os mundos quesão possíveis de serem criados são restringidos tanto por aspectos filogenéticos quantopelos encontros concretos que moldam uma vida.

Olhemos mais de perto para como se desenvolvem as regularidades dos mundos naderiva ontogenética. Como colocamos acima, interações recorrentes geram regularidades.Quando não é impedida a continuidade da interação entre sujeito e meio, a relação podese estabilizar. Maturana e Varela (2001, p. 87, grifo dos autores) explicam: “O resultadoserá uma história de mudanças estruturais mútuas e concordantes, até que a unidade e omeio se desintegrem: haverá acoplamento estrutural”.

Esta ideia de acoplamento estrutural é valiosa para nós. Fala de como dois deviresindependentes, o do ser vivo e do meio, seguem seus próprios caminhos de transformação,unindo-se em certos pontos, aliando-se, acoplando-se. É pela deflagração desse campo dealianças que surgem mundos e suas regularidades. Kastrup ajuda a caracterizar como sãoessas alianças:

O efeito do acoplamento estrutural é uma adaptação ou compatibilidadecom o meio. A adaptação, explicada pelo acoplamento estrutural, nãopossui direção otimizante nem caminho necessário. O acoplamento écom o meio e ao meio. Trata-se de composição, agenciamento, e nãode acomodação. [...] Adaptar-se é tirar proveito do meio, viabilizandoa continuidade da vida. [...]. O acoplamento resulta das modificaçõesmútuas que organismo e meio sofrem no curso de suas interações. Cabelembrar ainda que os acoplamentos são sempre temporários e relativos,

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46 Capítulo 2. Mundos, conexões e redes

sendo constantemente questionados frente a novas situações colocadaspelo meio. (KASTRUP, 2007, p. 135-135, grifos da autora)

Assim, o acoplamento estrutural é condição da adaptação ao meio, e essa adaptaçãofaz surgir um mundo. Esse mundo é um espaço de interação entre ser vivo e meio, e a ma-nutenção desse espaço é condição de sobrevivência para o ser vivo. Dessa forma, enquantoele existir, habitará um mundo pelas regularidades de suas relações. Em nosso viver hu-mano, muitas dessas regularidades são a tal ponto naturalizadas que (a)parecem óbvias,pré-existentes, mas na verdade elas dependem de nossa estrutura e de nossa história ontoe filogenéticas.

A experiência visual, por exemplo, parece dar acesso imediato a um mundo fixo eindependente. Abrimos os olhos e o mundo está lá, não parece haver nada de “construído”na realidade a que temos acesso pelos olhos. Contudo, há fortes indicações de que eleé construído. Varela, Thompson e Rosch (2003) apreciam especialmente o exemplo deum experimento conduzido por Held e Hein em 1958. Nesse experimento filhotes de gatonasceram completamente no escuro. Antes que pudessem ver a luz, foram divididos emdois grupos: o grupo livre e o grupo da cesta. Os gatinhos do grupo cesta entrariam emcontato com a luz dentro de uma cestinha, de modo que não poderiam explorar o ambientelivremente, já que cada uma dessas cestas ficava amarrada em um gatinho do outro grupofora da cesta, que chamamos de livre. O grupo livre seria exposto à luz carregando umacestinha, ligada ao seu corpo, na qual estava um filhote do grupo cesta, desta maneiraele poderia explorar livremente o ambiente iluminado. E assim se fez, os filhotes foramexpostos ao mesmo tempo à luz e cada gato do grupo livre carregava consigo uma cestacom um gato do grupo cesta. Dessa forma, os dois grupos foram expostos à mesmaestimulação visual, mas apenas os gatinhos do grupo livre eram ativos na relação coma luz. O que aconteceu de surpreendente foi que os gatos do grupo cesta, após ficaremalgumas semanas na cestinha, ao serem libertados, agiram como se fossem cegos: essesanimais esbarravam em objetos e caíam de degraus.

Mais interessante ainda é constatar que é possível encontrar situações parecidas comhumanos. Oliver Sacks em “Ver e não ver” 2005 discute o caso de um homem com a visãogravemente comprometida desde a infância por danos à retina e por densas cataratas,a quem foi possível, aos cinquenta anos, após viver toda uma vida como cego, recobrara estimulação da retina por cirurgias para remoção das cataratas. Apesar disso, “abriros olhos” desse paciente não foi suficiente para que ele acessasse o mundo visual. Eletinha dificuldade em dar unidade a objetos e seres, por exemplo. Era-lhe absolutamenteenigmática qual forma poderia ter seu gato de estimação, de modo que não conseguiareconhecê-lo ou vê-lo como um todo sem tocá-lo e fazer o exercício de correlacionar o quevia com o que tateava. Algo parecido acontecia com rostos, e as mudanças rápidas deexpressões faciais o deixavam perdido. A percepção de perspectiva e profundidade, bemcomo da tridimensionalidade de objetos também eram verdadeiros desafios cotidianos.

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Sacks reflete a respeito:

Foi uma aventura, uma excursão para dentro de um novo mundo, do tipoque é dado a poucos. Mas então surgiram os problemas, os conflitos, dever mas não ver, de não ser capaz de criar um mundo visual, e ao mesmotempo ser obrigado a abrir mão de seu próprio mundo. Viu-se entre doismundos, exilado em ambos (...). (SACKS, 2005, p. 154)

Essas histórias de gatos e homens cegos, além de impressionantes, são úteis à nossareflexão. Nelas fica muito evidente a dimensão e a importância do acoplamento estrutural:mesmo o que há de mais óbvio em nossa experiência não pode ser considerado indepen-dente de uma história que estabelece regularidades a partir de encontros e alianças. Tantoum mundo quanto o habitante surgem de um só golpe. Mesmo com as regularidades, hános dois lados variação constante, há sempre espaço para mudanças nos acoplamentos,nos dois lados dessa moeda mundo-sujeito. Como colocam Maturana e Varela (2001, p.):“nosso mundo (...) será precisamente essa mistura de regularidade e mutabilidade, essacombinação de solidez e areias movediças que é tão típica da experiência humana quandoa olhamos de perto.”. O acoplamento estrutural é um processo contínuo de vai e vem quemolda mundo e sujeito pelas afetações recíprocas ao longo do tempo.

Esses casos a respeito da visão ainda contribuem com uma pista importante para en-tendermos essa emergência conjunta de sujeito e mundo. Mais especificamente, além deindicarem sua codependência, demonstram como se dá seu engendramento e continuidade.Há algo comum na experiência dos gatos e de Virgil e sem o qual nenhum deles constitui-riam nem a si mesmos nem seus mundos, e que foi necessário na “troca de mundos” queVirgil procurou fazer. Nada disso seria possível se não houvessem atos, fazeres. De fato,vimos que o mundo visual não é dado pelos olhos (ou pela captação de informações pelosistema nervoso), mas é construído pelo olhar. Os gatos precisaram colocar-se em ativi-dade de exploração da luminosidade do meio para surgir o mundo visual; Virgil precisouapoiar o que via em seu mundo do tato para a partir daí fazer emergir um novo mundoconforme ele mesmo emergia como vidente. O ato de olhar é que se mostra decisivo.

É pelo fazer, pelo ato, que surgem tanto o sujeito do conhecimento quanto o objeto doconhecimento. No capítulo anterior discutimos como o ser vivo está sempre produzindoa si mesmo, como seu fazer leva a alterações estruturais constantes, assim, seu fazer é, aomesmo tempo, fazer a si mesmo. Agora exploramos o surgimento de um mundo por essemesmo fazer, e encontramos em sua variação constante certas regularidades que ocorrempelos encontros e nos fazem habitar e conhecer um mundo. Desse modo, o fazer está nocentro do surgimento do sujeito e do mundo:

Essa circularidade, esse encadeamento entre ação e experiência, essainseparabilidade entre ser de uma maneira particular e como o mundonos parece ser, nos diz que todo ato de conhecer faz surgir um mundo.(...) Tudo isso pode ser englobado no aforismo: todo conhecer é um fazere todo fazer é um conhecer.(MATURANA; VARELA, 2001, p. 31-32, grifosdos autores)

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48 Capítulo 2. Mundos, conexões e redes

Assim, a vida de um sujeito aparece como um encadeamento de atos que o constituemassim como constituem o mundo que ele conhece. É por isso que Maturana e Varelaafirmam igualmente que viver é conhecer. Enquanto um sujeito vive, de acordo com osfazeres de que é capaz e das alianças que estabelece com o(s) meio(s) por onde passa, écapaz de fazer emergir diferentes modos de ser, ou seja, no dizer dos autores, diferentesmundos, construídos ao longo das histórias de vida singulares.

Seguindo esse raciocínio, Varela (1992) propõe a ideia de que em nosso cotidianotransitamos entre micromundos e microidentidades. Em geral conseguimos ver esse tipode transição quando passamos de um ambiente a outro, de um tipo de atividade a outro.O modo de uma pessoa se portar no trabalho e o tipo de situação que espera encontrar sãobastante diversos dos que emergem quando essa mesma pessoa está reunida com os amigosem um bar após o trabalho. Esse tipo de passagem de micromundo e microidentidade, queocorre em um mundo singular, é o tipo de mudança que estamos tão acostumados a fazer,porque de fato costumam relacionar-se a acoplamentos que reforçamos todos os dias, quesão revestidas daquela obviedade que discutíamos há pouco. Passar de um micromundoa outro implica em uma mudança no modo de perceber e de interagir com o ambiente, eestá diretamente ligada às alterações no “campo de contato com o meio”, que discutimosno capítulo anterior.

Segundo Varela (1992), a rápida passagem de um micromundo a outro, bem comoo estabelecimento de uma certa microidentidade em um ambiente que não seja idênticomas guarde semelhanças com outros já conhecidos, se dá devido a uma história de “saber-fazer” (do inglês know-how), história de modos de atuar e acoplar-se ao meio circundante.Esse tipo de conhecimento, que se estabeleceu ao longo da história dos costumes e envolveuma enorme gama de fazeres específicos a cada situação, é chamado pelo autor de “senso-comum”.

Há dois exemplos dados por (MATURANA; VARELA, 2001) que ilustram o que isso querdizer. Um evoca todo o saber-fazer envolvido em uma simples conversação, que é umtipo de convenção que se naturalizou nas relações sociais e com a qual estamos envolvidosdesde a mais tenra infância: saber ouvir e a hora de falar, empregar tom de voz e palavrasadequadas, voltar-se para o interlocutor, demonstrar que está escutando, etc. tudo issoacontece “automaticamente” no nosso cotidiano, mas é evidente que exige uma série deconhecimentos, exige um modo de estar presente na situação. Outro exemplo incrementao anterior, e fala do acoplamento envolvido ao estar à mesa comendo junto de outraspessoas. Além de toda a coordenação própria de uma conversação, faz-se necessária umasérie de ações relativas ao modo de se portar à mesa, como usar os talheres e mastigar,como posicionar o corpo etc... Nossa prontidão para agir em ambas as situações aparece demodo imediato, demonstrando uma forma de acoplamento já constituída em micromundo

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2.1. Composições de Corpo e Mente 49

e microidentidade1.É evidente que nossos micromundos e microidentidades não são constituídos de forma

definitiva e muitas vezes são desafiados por situações novas que demandam um novoexercício de acoplamento. Ou seja, demandam modos diferentes de atuar e interagir. Porora, queremos destacar o fazer como o aspecto crucial no jogo de interações recorrentesque faz surgir um mundo. Importa frisar igualmente que conhecer é produzir a emergênciade um mundo pelo fazer, no mesmo momento em que aquele que conhece emerge pelarealização de sua autopoiese.

2.1 Composições de Corpo e Mente

Em Espinosa aparece uma outra discussão a respeito do que seria a constituição de ummundo singular. Contudo, encontramos os atos ou, em suas palavras, a potência deagir, em uma posição de destaque, além de uma proposta que também fala de alianças emaneiras de formar conexões.

A ideia de ato ou de fazer está intimamente ligada a toda a concepção de potência quejá discutimos. A potência existe sempre realizada, existe sempre em ato, sempre fazendoacontecer algo de acordo com as leis da Natureza e com a essência de algum ser singular.O corpo só existe realizando em ato seu modo próprio de afetar e ser afetado pelos outroscorpos, assim como a mente existe em ato, produzindo ideias.

Ambas as teorias que estamos aproximando neste trabalho afirmam que as ações sópodem ocorrer a partir da afetividade. São afetos e afecções que dispõem os atos, os atosrealizam o sujeito e fazem surgir um mundo. Por outro lado, é a partir do fazer do sujeitoque se renovam as afecções e afetos, gerando uma circularidade nesse processo.

Como vimos com Espinosa, o afeto que determinará a forma do ato é o desejo, e odesejo está ligado a afetos alegres ou tristes. No primeiro caso, acontece um aumentode potência e o fazer suscitado pelo desejo vai na direção de conservar aquilo que é tidocomo causa do afeto alegre, no segundo caso, que é acompanhado de uma diminuição dapotência, o desejo direciona o sujeito no sentido de destruir ou afastar a causa da tristeza.

Aqui é importante retomar aquilo que Deleuze (1981) diz sobre esse aspecto de apro-ximação e distanciamento envolvido na dinâmica afetiva. O fluir dos afetos se dá com ofluir dos encontros. Os encontros geram composições e decomposições. Bons encontrosgeram composições que fortalecem a potência e a capacidade de agir. Maus encontros1 Não é demais reforçar que muitos desses hábitos estão ligados a convenções sociais e por isso mesmo

ao momento histórico e à tradição cultural específica em que se desenvolvem. A constituição demicromundos e microidentidades leva a marca de comportamentos “naturalizados” pela forma comosão aprendidos e repetidos cotidianamente, mas não podemos deixar de frisar que muitos deles que sãorepetidos cotidianamente vem na esteira de um processo histórico marcado, por exemplo, pelas regrasde etiqueta do século XVII. Uma interessante discussão a respeito pode ser conferida no trabalhode Norbert Elias, “O Processo Civilizador” (1994). Nesse sentido, micromundo e microidentidadetem determinações e características muito locais, pela forma como se desenvolvem, mas não devemosesquecer que essas situações acontecem inseridas em uma história cultural que as possibilita.

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50 Capítulo 2. Mundos, conexões e redes

decompõem relações, com aquilo que se encontra ou relações próprias daquele que estáno encontro, e enfraquecem a potência.

Quando Espinosa apresenta a noção de indivíduo, chega a afirmar que a Naturezainteira pode ser considerada como um indivíduo. No limite, tudo se compõe com tudo aoinfinito. Mas quando tratamos dos modos singulares, indivíduos específicos, vemos queeles só podem perseverar na existência enquanto mantém sua natureza, seu modo própriode estabelecer relações. Para tanto, ele precisa fazer encontros que não o destruam e criaruma rede de conexões que lhe permita exercer sua potência. Qualquer modo singular sópermanece existindo enquanto está acompanhado de composições com outros modos.

O filósofo usa o termo “conveniência” quando fala da condição para o estabelecimentodessas conexões, e diz que algo pode ter mais ou menos conveniência com a naturezade outro. As coisas que convém mais entre si são aquelas que são úteis umas às outras,ou seja, há algo de comum entre elas e por isso elas se aproximam e se ligam para sefortalecer.

Ao tratar do estabelecimento de redes de composições por conveniências encontramostambém em Espinosa a concepção de uma rede de relações estabelecidas pela atividade dosujeito. Essas ideias são as que mais se aproximam dos conceitos de mundo e acoplamentoestrutural da teoria da autopoiese. É a partir delas e de como Espinosa analisa o fazer quegera composições, acoplamentos e mundos que queremos avançar na compreensão dessaemergência.

De pronto, é preciso reconhecer que um mundo é sempre um mundo afetivo. Configurarum mundo é configurar uma rede de afinidades e incompatibilidades. O mundo e seusobjetos surgem em maior ou menor conveniência com o sujeito de acordo com a maneiradele viver seus encontros, com os afetos ativos e passivos que ele experimenta. A partirde Espinosa, podemos dizer que o fazer está relacionado à natureza do indivíduo, estáligado a seu modo próprio de afetar e ser afetado. Tanto em Espinosa, quanto na teoria daautopoiese, temos que esse modo próprio é construído ao longo do tempo pela experiência,através da qual o individuo passa a conhecer as coisas, pelo que há de comum entre ele e osoutros corpos com que se relaciona. É através deste conhecimento que ele vai adquirindona medida em que estabelece mais composições do que decomposições, que ele varia seumodo de existência, mudando também o mundo em que está inserido. Seja ao falarmosde acoplamento estrutural, seja ao falarmos de conveniência nos encontros, destaca-se umprocesso de produção de um plano comum por afetação mútua.

Retomar o caso de Virgil nos ajuda. Ele precisou mudar seu fazer para poder gerar umplano de conveniência com a luz. Em sua experiência cega, o lugar das imagens visuais erao de algo que atrapalhava seu viver, gerava uma decomposição e certamente afetos tristes.Para gerar conveniência com a luz foi necessário todo um exercício de experimentação comela no qual a potência de Virgil pudesse se expressar na visão. Foi preciso construir umcorpo, uma forma de composição, vidente. Essa construção se dá pela busca das alegrias

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2.1. Composições de Corpo e Mente 51

que também surgiam no contato com a luz, lutando contra a tristeza de ter que abandonaro modo de ser cego.

Mudanças no fazer e no mundo estão sempre ligadas a mudanças nos afetos. Umafeto triste envolve diminuição da potência, portanto, tendemos a lutar contra este efeitocausado pelo corpo que, em contato conosco, nos enfraquece. Nosso conatus se ocupa deafastar ou tentar destruir isto que impede nossa potência de se manifestar, nesse sentidoficamos tomados demais por este esforço e quase não conseguimos buscar afetos alegres.Quando nosso fazer é guiado por desejos tristes, seu resultado não leva a um novo desejoprodutivo, ele se ocupa em afastar o corpo que o enfraquece e lhe é contrário. Quandosomos afetados de um afeto alegre e temos nossa potência aumentada, algo diferente sepassa. O afeto que surge daí irá no sentido de gerar composição, conexão. O desejode manter e desenvolver essa ligação permanece forte, nos estimulando a perseverar naexistência pelo conhecimento das causas de nossos afetos e, por consequência, nos fazendoagir.

As contribuições de Espinosa mostram de que forma os afetos são a força motrizda existência: variando a potência singular de um individuo. Nos termos da teoria daautopoiese podemos dizer que é a partir dos afetos que o fazer autopoiético segue adiantee mundos são construídos. Nesta última proposta viver é conhecer, é constituir mundos.Para Espinosa, viver é perseverar na existência pela afirmação e efetuação da potência.Um ponto de toque interessante entre as teorias é que, no que diz respeito à potência damente, Espinosa diz que um aumento de sua capacidade de agir é um aumento em suacapacidade de compreender. Uma mente tem mais realidade quanto mais compreende,quanto mais é capaz de produzir ideias e estabelecer relações entre elas. No encontro comas ideias da autopoiese podemos encontrar ressonância entre as concepções ao pensarmosna mente de um sujeito que tem um mundo complexo, que é capaz de estabelecer diversasrelações e composições. Como conhecer é viver, alguém que conhece mais por ter ummundo amplo, tem também o modo de vida ampliado.

Queremos reforçar a ideia de que construir um mundo é estabelecer uma rede atravésde ações; e que essa rede é uma rede que pulsa com afetos. Essa concepção é interessante,pois uma rede é exatamente uma arquitetura de conexões, ligações. As ligações emsi, podem ser mais fortes ou mais fracas. Algumas ligações fortes podem adquirir essaqualidade por serem reforçadas, tornando-se importantes na arquitetura da rede. Outrastêm sua força pela própria forma como foram constituídas, são um nó forte desde o início.Em uma rede também podemos conceber movimentos: dentro da própria rede eles podemgerar novas conexões ou desligamentos; na borda da rede é possível conceber movimentosque chegam até franjas de “pontas soltas”, que podem estender-se em direção a novasconexões ou retrair-se.

Podemos retomar o que discutimos sobre os afetos na primeira parte e procurar verbrevemente como uma forma de estar afetado relaciona-se a um mundo correlato. Em

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52 Capítulo 2. Mundos, conexões e redes

um mundo em que há mais alegrias que tristezas a potência está fortalecida, é umasituação em que o exercício de acoplamento está favorecido pois há mais conveniências quecontrariedades, portanto, é um mundo povoado por relações que mantém um movimentode afetação mútua entre sujeito e mundo, e por isso há possibilidade de modificação deambos em uma variação produtiva. É uma rede que, internamente, nas ligações que jáestão estabelecidas, pulsa mais fortemente; essas mesmas ligações estão em movimento.A atividade desejante está também estimulada, levando o sujeito a querer manter-se nocontato com o que lhe causa alegria, ou, mais ainda, conhecer melhor essas própriasalegrias e suas relações, em um movimento de transformação das relações que já existeme de ampliação do mundo em direção de outras em que ele pode efetuar a potência deformas novas. As bordas da rede estão abertas a novas ligações.

Em um mundo em que as tristezas superam as alegrias, falamos de um micromundoem que as relações são desvitalizadas e de um jogo afetivo em que sujeito e meio convémpouco entre si. Ora, isso mesmo é viver sob maus encontros, encontros tristes que en-fraquecem a potência. As forças ficam investidas em suportar a tristeza, em sobrevivera esses encontros. Os micromundos ficam marcados pela repetição, por acontecimentos,percepções e atitudes já esperadas, não há variação produtiva. Esse mundo é sentidocomo algo que atrapalha a existência do sujeito, e seu desejar também fica diminuído.

Se pensarmos em realidade como Espinosa propõe, podemos dizer que alguém quetransita entre pouquíssimos micromundos é alguém que tem pouca realidade, pois existede poucas formas, com pouca intensidade. Conforme é capaz de constituir ou participarde mais mundos, mais intenso pode ser seu fazer, sentir e pensar. Há mais alternativaspara composições e movimentos inventivos, a maneira de se ligar às relações é diferente,pois elas podem ser fontes de variação e produção.

Reconhecer que o movimento de modificação e/ou ampliação de micromundos e mi-croidentidades está ligado a uma força que vem dos afetos é importante, mas não nosmostra como essa modificação pode ser feita de fato, apenas suas condições. Precisamosacrescentar a nosso entendimento uma nova dimensão na compreensão dos afetos parachegarmos a como isso pode ocorrer. É o que faremos em seguida.

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2.2. Ação e Paixão 53

2.2 Ação e Paixão

O viver é a produção de si e da rede que é o mundo. O que movimenta essa produção éa variação afetiva. Até o momento exploramos o que é essa variação afetiva e como elaestá intimamente ligada com o processo de construção de si e do mundo. Se quisermoster um olhar clínico para a vida, precisamos ir mais longe e conhecer as vicissitudes dessemovimento afetivo. Quem apresenta um estudo pormenorizado do tema é Espinosa. Seupensamento abre caminhos para compreendermos como produzimos e nos relacionamoscom os afetos. Isso se dá especialmente quando ele concebe a diferença entre paixão eação.

O filósofo utiliza essas ideias para qualificar a atividade do corpo e da mente, porém,como veremos, a distinção entre paixão e ação se dá mais claramente na mente. Por essemotivo, trabalharemos destacando o aspecto mental dessa conceituação. Mas é semprebom lembrar que para tudo que ocorre na mente há um processo correlato e simultâneono corpo, como já discutimos.

O termo paixão é utilizado em sua acepção grega original, com o significado de so-frimento: estar sob uma paixão é padecer, sofrer. Aquele que está sob uma paixão estádestituído de sua potência, ela se realiza determinada por causas exteriores. Nesse sen-tido, Deleuze (1981) diz que não se tem a posse formal da potência. A paixão tambémé sofrimento porque impede a atividade própria da mente, impede-a de compreender,cercando-a de ideias confusas.

Quando apresentamos como Espinosa entende a mente falamos sobre como são forma-das essas ideias confusas ou inadequadas. São ideias que indicam o que está se passandocom o corpo, elas surgem a partir dos “encontros fortuitos com as coisas” e estão ligadasàs imagens que se formam no corpo. Como elas dizem respeito diretamente ao corpo mastambém indicam a presença de um corpo exterior, são chamadas de confusas, pois po-demos acreditar que estamos adquirindo um conhecimento sobre essa coisa exterior masna realidade estamos apenas percebendo o efeito dela em nosso corpo. Ou seja, é outracoisa que causa na mente tal ideia, por isso esta mente só conhece o efeito da ideia pro-duzida nela e não sua causa. Ao operar com essas ideias, a mente não pode compreenderverdadeiramente, ela apenas imagina.

Mesmo sendo confusas e mutiladas (termo também utilizado para defini-las), afinalnos dão apenas uma parte muito restrita do conhecimento envolvido no encontro com ascoisas, elas continuam sendo ideias e, portanto, são acompanhadas de afetos. Dizemosque neste caso o desejo do individuo é dependente de uma causa exterior que produz umafeto em seu corpo e sua mente. O desejo que daí provém não podem ser compreendidopelo fazer da própria mente, parte de sua determinação fica perdida, alienada na causaexterior. A mente e o fazer estão então submetidos a algo que se impõe sobre eles e quenão pode ser compreendido claramente. Os afetos que surgem daí arrastam o homem afazer coisas que não consegue entender e a manter-se sob afetos que lhe impedem de ser

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54 Capítulo 2. Mundos, conexões e redes

sujeito de suas ações. Na paixão, vive-se em função do acaso. Essa é uma ideia recorrenteao longo da Ética, aparecendo de muitas formas, como a seguinte, em que Espinosa serefere aos afetos ligados às paixões:

Chamo de servidão a impotência humana para regular e refrear os afetos.Pois o homem submetido aos afetos não está sob seu próprio comando,mas sob o do acaso, a cujo poder está a tal ponto sujeitado que é, muitasvezes, forçado, ainda que perceba o melhor para si, a fazer, entretanto,o pior. (SPINOZA, 2010, EIV, prefácio, p. 263)

Pode ser útil pensar na forma que utilizamos comumente a palavra paixão. É claroque ela não comporta exatamente a acepção espinosana da palavra e ninguém a utilizapensando em afetos ligados a ideias confusas. Mas o uso comum do termo também nãose afasta tanto do que estamos discutindo aqui, pois em geral denota uma situação emque há um sentimento tão forte que adquire poder sobre a pessoa, e ela vive em funçãodele. Músicas românticas estão aí para atestar abundantemente esse uso. Ele tambémcomparece em um filme como “O segredo de seus olhos”, um personagem diz:

Então comecei a pensar nas pessoas, mas em todas as pessoas. Nãosó nessa em especial (...) E no ser humano. Uma pessoa pode mudarqualquer coisa, para ser diferente, mas há uma coisa que não se podemudar, nem você, nem eu (...) ninguém.

Olhe para mim. Sou um cara jovem, tenho um bom trabalho, umamulher que gosta de mim (...) E, como diz você, continuo estragandominha vida vindo em lugares como este. Mais de uma vez você meperguntou: o que está fazendo aqui, Pablo? Você sabe porque venho,Benjamín?

É porque me apaixona. Eu gosto de vir aqui, de ficar bêbado, brigarcom alguém que me sacaneie (...) eu gosto disso!

[...]

Entendeu, Benjamín? As pessoas podem mudar tudo: de cara, de casa,de família, namorada, religião, de Deus... Mas há uma coisa que não sepode mudar, Benjamín. Não se pode trocar de paixão.

Esses usos corriqueiros daquilo que chamamos de paixão tem em comum com Espinosaa ideia de que na paixão há algo que foge ao nosso controle. Para o filósofo, porém, ela nãoé necessariamente intensa como geralmente a utilizamos, há pequenas paixões, ligadas aacontecimentos comuns, ela não é algo extraordinário. Espinosa também não concordariacom o personagem acima, pois tanto é possível mudar quanto desfazer as paixões. Há umoutro modo de se relacionar com as coisas, gerar ideias e afetos, esse modo é a ação.

A ação2 é o contrário da paixão. Quando age o indivíduo está na posse (formal) desua potência, sua realização é determinada, causada, por ele mesmo. Ao agir, a menteopera com ideias adequadas.2 Justificamos agora porque até o momento utilizamos as expressões “o fazer” ou “ato” mesmo em

momentos que seria mais eufônico utilizar o verbo agir. Reservamos o uso do termo “ação” para ouso conceitual que Espinosa faz dele.

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2.2. Ação e Paixão 55

Das ideias inadequadas das paixões dizíamos que eram mutiladas, pois concediam umconhecimento parcial. As ideias ligadas à ação são claras porque dispõem um conheci-mento muito mais completo. Deleuze nos diz que cada uma delas forma um conjunto“com três vértices: ideia de nós mesmos, ideia de Deus e ideia das outras coisas.” (DE-

LEUZE, 1981, p. 83-84). Essas ideias não surgem em nós como indicação de uma marca,uma imagem no corpo, não servem para indicar seu estado. Elas surgem da potência damente de formar ideias e conexões de ideias e explicam-se por essa potência da mente.Não são efeito de uma causa externa e parcial, mas interna. Na paixão a causa da ideiaé a coisa exterior, na ação é a própria mente. Ao mesmo tempo, elas expressam aspectosligados ao funcionamento da relação com a coisa exterior de que tratam (daí a mençãode Deus ou da Natureza na explicação deleuziana, o funcionamento das relações seguea ordem da Natureza). Conseguem também expressar características próprias da coisaexterior e, não meramente seus efeitos sobre nós. No encontro com algo compreendemos oque dele convém com nosso corpo e mente e, consequentemente, o porquê somos afetadosde alegria ou tristeza (ou ambos).

Utilizemos mais um exemplo. Imaginemos uma criança que está próxima a uma fo-gueira em um ambiente frio. Logo que o calor do fogo o afeta ela sente a alegria de seraquecido pela chama. Alguém pode avisá-la de que o fogo é perigoso, ou alguma lem-brança ligada à sua figura pode inspirar-lhe cautela. A partir disso, a criança inicia umexercício de experimentação com o fogo, um jogo de aproximar e distanciar, brincar como fogo, atiça-lo e tirar-lhe o substrato. Nesse vai-e-vem, gradativamente é estabelecidoum plano de composição com o fogo, o indivíduo pode perceber como ele funciona, emque circunstâncias ele mesmo se beneficia do fogo, de que formas o fogo também podemachucá-lo, como o calor aumenta ou diminui ao longo do tempo. Essas ideias vão muitoalém da ideia inicial do fogo como apenas algo que aquece e acalenta, elas indicam comoé possível relacionar-se com o fogo, descobrir o que há de comum entre os dois corpose perceber o que do fogo convém com seu corpo e o que não convém.3 Para Espinosa,operar a partir de ideias desse tipo é agir. Em outras circunstâncias, nosso sujeito poderiater operado a partir das ideias e afetos suscitados imediatamente pelo primeiro contatocom o fogo. Sentindo-o como algo que aquece, tentaria tocá-lo, e apenas aí descobririaque o fogo não é só causa de alegria. Isso seria um fazer apaixonado.

No segundo caso, o sujeito de que falamos foi movido por uma ideia inadequada arespeito do que constitui o fogo, uma paixão alegre, e isso foi causa de uma forte tristeza,ele teve sua potência diminuída ao queimar-se. Essa tristeza pode aparecer também comouma paixão que fará com que o sujeito, por medo, tenha dificuldades em aproximar-se

3 Claro que o experimento da criança aqui pretende indicar um primeiro encontro com o fogo, que énecessariamente um encontro por ideias inadequadas, já que esta criança não pode conhecer as causasde sua alegria ao ser aquecida ou da tristeza ao se queimar. Mas este encontro servirá de experiênciapara que ela aos poucos compreenda o que há de comum entre ela e o fogo, de maneira que ela adquirauma ideia adequada e estabeleça uma composição com ele.

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56 Capítulo 2. Mundos, conexões e redes

do fogo novamente por um longo tempo. Vale apontar que essa paixão triste, um medo,pode inclusive impedi-lo de experimentar com o fogo e, consequentemente, de formar asideias adequadas que permitiriam a ele ter uma relação ativa.

Colocamos lado a lado paixão e afeto pois é preciso frisar que os pares ação/paixão ealegria/tristeza não são a mesma coisa. Como se vê, uma paixão pode ser alegre ou triste,pode vir de uma causa exterior que provoque em nós o efeito de alegria ou de tristeza.Já uma ação só pode surgir de afetos alegres. Espinosa explica que assim acontece,pois os afetos tristes necessariamente envolvem diminuição da potência da mente, de suacapacidade de formar ideias adequadas, e como a ação depende de ideias adequadas paraexistir, ela não pode surgir da tristeza.

Deleuze (1981) aponta uma outra característica importante da ação, além do fatode ela estar sempre ligada a afetos alegres. Toda ação é uma auto-afecção. Nós mesmossomos causa das ideias adequadas que surgem em nós, bem como das disposições corporaisque as acompanham. Nesse movimento, somos causa também de nossos próprios desejos,permitindo efetuar nosso modo singular nos encontros alegres que nos mantenham naexpansão da potência, selecionando com o que e como fazemos encontros e composições.

No final de nossa discussão sobre a emergência de mundos e as composições discutimoscomo sua ampliação implica a intensidade afetiva, as alegrias e tristezas, e afirmamos quetal intensidade é uma condição para essa expansão, mas que não é ela propriamente oque faz esta última acontecer. Pelo que acabamos de ver, podemos propor que a partirda intensidade afetiva alegre é preciso conquistar um fazer movido por ação para que sepossa modificar positivamente um micromundo ou ampliá-lo.

Devemos acrescentar ao que dissemos sobre a intensidade das relações o componentede o quão autônomas elas são. A questão que surge é se o fazer do indivíduo é ativoou passivo. Sabemos que na paixão não somos completamente donos de nosso fazer,então os mundos que emergem nessas condições possuem uma série de determinações quenos escapam. Seu funcionamento aparece em grande medida alheio a nossos própriosatos, não construímos um mundo, ele nos acontece. Se não sentimos que o que fazemosfaz diferença, como podemos investir no árduo trabalho de produzir ideias adequadas eorganizar os encontros? Com esse movimento diminuído as relações ficam reduzidas asempre as mesmas, sem serem transformadas ou ampliadas.

Lembramos que isso é válido tanto para paixões tristes quanto para paixões alegres.Pois a causa é exterior e a determinação continua sendo externa sempre que estamos emum regime de reação às coisas, sempre que nosso fazer é segundo em relação a aquilo quecausa o afeto. Mesmo que o afeto seja de alegria, ainda estamos submetidos às situaçõesexteriores, vivemos em função delas ao invés de agir determinando nossa própria formade estar no encontro.

Porém, quando procuramos transformar a relação com as paixões alegres ao aprenderpor quais conveniências podemos produzir alegrias, começamos a participar de forma

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2.2. Ação e Paixão 57

ativa da produção de nossas microidentidades e micromundos. A forma de estar presentenos acontecimentos, de perceber e fazer, passa a se orientar por determinações internase é atenta às causas tanto quanto aos efeitos deles. É essa disposição, unida à forçapulsante que a alegria traz aos micromundos, que ativa a variação nas relações de formaprodutiva e transformadora, permitindo que elas mudem ao longo do tempo conforme osenvolvidos seguem seus fluxos próprios de variações. A partir de relações assim, o sujeitotem mais autonomia e pode participar de mais micromundos, pode alargar seu mundoconstituindo outros planos de composição. O desejo não só está fortalecido como operaem uma perspectiva ética, que adquire sua inteligibilidade em um modo de vida e queconduz à ação e à produção de um mundo consonante com ele.

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3 Autonomia, Variação e Clínica em Psicologia

Quando apresenta a distinção entre ação e paixão, Espinosa mostra que passar da segundapara a primeira indica uma construção singular de autonomia. Quanto mais alegrias pas-sivas experimentamos, mais aumenta nossa capacidade de tornarmos causa dos própriosdesejos e alegrias através da organização dos encontros, fazeres e composições. Conseguirmanter-se em uma tal condição é a própria felicidade, ou “beatitude”, para o filósofo.

Ao encontrarmos a ideia de autonomia nos aproximamos de um ponto que considera-mos central para uma clínica entre a autopoiese e Espinosa. Queremos continuar o diálogoentre essas perspectivas para ver em que consiste sua importância.

A construção de si e do mundo depende das conexões que estabelecemos e essas cone-xões são produzidas a partir de afetos. Vimos com alguns desdobramentos da teoria daautopoiese que a emergência de um mundo tem sempre o sujeito como referência, o mundoemerge a partir das ligações com aspectos do meio selecionado pela estrutura do ser vivo,aspectos com os quais se desenvolve um acoplamento estrutural pelo movimento relacionalprolongado. O ser vivo também produz a si mesmo de uma forma em que a referênciaé ele mesmo, pois o meio externo só pode desencadear as mudanças que acontecerão noorganismo, sem as determinar.

Essas concepções expressam como a teoria da autopoiese apoia-se nas concepções deque há codependência entre ser vivo e meio, e uma autonomia fundamental do ser vivo.Como os autores colocam claramente:

Utilizamos a palavra autonomia em seu sentido corrente. Vale dizer,um sistema é autônomo se é capaz de especificar sua própria legalidade,aquilo que lhe é próprio. [. . . ] é evidente que uma das propriedadesmais imediatas do ser vivo é sua autonomia. Propomos que o modo, omecanismo que faz dos seres vivos sistemas autônomos, é a autopoiese,que os caracteriza como tal. (MATURANA; VARELA, 2001, p. 55-56)

Por essas ideias, temos que o homem vive, desde o início, apoiado em uma autono-mia ligada a sua biologia. O modo como funciona é tal que ele “especifica sua próprialegalidade”, vive especificando condições, limites e aberturas de seu próprio viver. Existeselecionando ligações e contatos que interferem nesse movimento.

Por outro lado, ao discutirem as ideias a respeito da emergência dos mundos, Maturanae Varela, mostram que embora haja uma autonomia fundamental, isso não impede quetratemos as coisas como se elas existissem independentemente de como nos relacionamoscom elas. Porém, como vimos, o surgimento do mundo é inseparável de nosso fazer, enosso fazer é inseparável de nossa afetividade.

No caso da teoria de Espinosa, poderíamos dizer que a “emergência do mundo”, melhorexplicitada na própria ideia do autor pela “expressão da Natureza”, se dá através dosmodos singulares que a exprimem, ou seja, dos indivíduos efetuando a potência, que são

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60 Capítulo 3. Autonomia, Variação e Clínica em Psicologia

aqueles que Espinosa chama de indivíduos livres ou autônomos. Quando Espinosa analisaa dinâmica afetiva humana e distingue nela os movimentos por ação e por paixão, conseguemostrar como mantemos essa ilusão de separação entre nosso fazer e nossa experiênciae suas consequências. Uma delas é que acreditamos ter uma vontade totalmente livre, acapacidade de decidir independentemente de nossos afetos e composições. Espinosa é umferrenho opositor dessa ideia, como se vê:

Se a experiência, entretanto, não mostrasse aos homens que fazemos mui-tas coisas das quais, depois, nos arrependemos, e que, frequentemente,quando somos afligidos por afetos opostos, percebemos o que é melhor,mas fazemos o que é pior, nada nos impediria de acreditar que fazemostudo livremente. Assim, a criancinha acredita apetecer, livremente, oleite; um menino furioso, a vingança; e o intimidado, a fuga. [. . . ] e mui-tos outros do mesmo gênero acreditam que assim se expressam por umalivre decisão da mente, quando, na verdade, não são capazes de contero impulso que os leva a falar. Assim, a própria experiência ensina, nãomenos claramente que a razão, que os homens se julgam livres apenasporque estão conscientes de suas ações, mas desconhecem as causas pelasquais são determinados. (SPINOZA, 2010, EIII, P2, esc., p. 169 e 171)

O que o filósofo mostra é que a decisão está sempre ligada aos afetos e ela será melhorou pior, será mais ou menos benéfica para o fortalecimento da potência, de acordo comcomo são gerados esses afetos: por uma causa externa ou interna, por afetos alegresou tristes. Conforme conhecemos a dinâmica das causas, conforme criamos planos decomposição ativos, somos mais capazes de nos manter na alegria, na firme expansão dapotência e de suportar as tristezas inevitáveis.

Contudo, conforme nos mantemos em um regime de passividade, em que não somosplenamente donos de nosso próprio fazer, vivemos em uma espécie de paradoxo. Porum lado temos a convicção de independência das coisas exteriores, decidimos por nossaprópria vontade, mas o que se passa em muitas das relações na verdade é uma profundadependência delas. Dependência pesada, pois nossa potência praticamente se realiza (nosentido espinosano de ganhar mais realidade) através delas, não a possuímos. As coisasexteriores tomam parte na determinação dos desejos e outros afetos, e uma parte quenão podemos conhecer claramente. Se a teoria da autopoiese concebe uma autonomiafundamental do homem, Espinosa denuncia como ele pode viver no que podemos chamarde uma heteronomia relacional, que se refere a ignorância do homem em pensar que épela vontade que alguém é independente e autônomo, e como as experiências da vidaprovam que uma “vontade individual” nada garante para que as coisas se saiam bem,este individuo sofre por não compreender o porque de existir corpos contrários ao seu,contrários a sua vontade.

O que aprendemos com Espinosa é que a autonomia, que ele chama de liberdade,não passa por um controle absoluto sobre os afetos, é possível apenas a partir de umaprendizado do que somos capazes, de maneira a sermos a causa dos nossos afetos, causade nossa alegria.

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Aqui precisamos ter cuidado com um raciocínio rápido para não deixar escapar algofundamental. Dissemos que a heteronomia relaciona-se fortemente a um tipo de depen-dência. Pode parecer legítimo supor, então, que conforme construímos uma autonomiavencemos a dependência e alcançamos independência. Contudo, em coerência com o pen-samento imanente que procuramos sustentar até aqui, precisamos dizer que na verdade oque se logra é uma mudança no modo de depender.

Vimos que partindo do entendimento biológico da autopoiese só podemos compreendersatisfatoriamente sujeito e mundo ao reconhecermos que há codependência entre eles.Logo, se fosse possível conquistar uma verdadeira independência, ao mesmo tempo seperderia a própria condição da existência. Espinosa, por sua vez, como também vimos,afirma que a ideia de independência não é mais que uma ilusão. Pois os que acreditamnisso:

(. . . )parecem conceber o homem na natureza como um império num im-pério. Pois acreditam que, em vez de seguir a ordem da natureza, ohomem a perturba, que ele tem uma potência absoluta sobre suas pró-prias ações, e que não é determinado por nada mais além de si próprio.(SPINOZA, 2010, EII, prefácio, p. 161)

Contudo, “Não pode ocorrer que o homem não seja uma parte da natureza. . . ” (SPI-NOZA, 2010, EIV, P4, p. 273). Assim, a dependência é constitutiva, a ligação a um mundo,a coisas exteriores e à ordem comum da natureza é inevitável e imprescindível. Mas issonão significa que o modo como dependemos seja sempre o mesmo, que não possa havermudanças.

Perceber que a dependência muda é uma sutileza, mas uma sutileza muito importanteno contexto de nossa discussão. É útil pensarmos, por exemplo, nas alterações que ela so-fre comumente ao longo do ciclo vital. Ao nascer um ser humano é totalmente dependente,sem cuidados constantes ele não pode sobreviver. Enquanto é criança continua necessi-tando do apoio próximo dos pais. Conforme avança na adolescência passa a dependertambém de círculos fora da família, de grupo de amigos, de lugares onde faz atividadese estabelece vínculos. Na vida adulta as dependências passam pelo trabalho e, talvez,além da família original, pela constituição da própria família do sujeito, além de outrasdependências ligadas a mais atividades e lugares, de lazer, por exemplo. Na velhice poderetornar um regime de dependência mais forte, de acordo com como o corpo se desgasta,e as ligações referentes às atividades anteriores podem se romper1.

Vejamos como essas mudanças ligam-se ao que estamos chamando de autonomia fun-damental e domínio relacional. Para que um sujeito passe por todas essas etapas do ciclovital a autonomia fundamental precisa estar garantida em todos eles. Isso significa que1 Não temos a pretensão de dizer que as mudanças do ciclo vital que apresentamos são “naturais”,

iguais para todos ou as melhores. O que esboçamos é um caminho de mudanças relacionais, olhandopara as dependências. Esses caminhos certamente são marcados por questões culturais e sabemos,por exemplo, que em diferentes culturas a dependência dos pais é colocada em segundo plano maiscedo ou mais tarde.

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62 Capítulo 3. Autonomia, Variação e Clínica em Psicologia

não pode acontecer nada que interrompa sua autopoiese, nada que impeça sua autoprodu-ção e a variação estrutural. Em termos espinosanos o individuo deve evitar encontros quedecomponham suas relações constituintes, aquelas que definem a forma de composiçãosingular do indivíduo. Podemos imaginar tal interrupção acontecendo de duas formas etanto a partir de Maturana e Varela quanto de Espinosa. Para os primeiros autores, ainterrupção ocorre quando o contato com algo externo atua sobre o domínio de interaçõesdestrutivas ou a autonomia fundamental pode ser destruída por privação, a variação es-trutural precisa de certos substratos que precisam estar garantidos para ela seguir adiante.E pensando com Espinosa, uma interrupção pode acontecer quando o indivíduo faz ummau encontro, como é o caso dos acidentes e muitas doenças, também é possível pensarem uma situação de privação extrema, pois os corpos que compõe o indivíduo precisamser “regenerados” constantemente por outros corpos, que passam a ser parte dele, e apotência do indivíduo não pode perseverar sem um mínimo de alegria. Evidentemente,na privação em ambas as teorias, estamos falando de coisas básicas como a respiraçãoe alimentação. A manutenção da autonomia fundamental é, então, uma questão de so-brevivência. E ela está ligada a uma dependência no campo das relações, que devemgarantir certos encontros e evitar outros. Mas vale apontar que, nesse domínio que tratado funcionamento interno do ser vivo, a heteronomia é inconcebível. Quando ocorre umadeterminação que não é própria do ser vivo, quando algo exterior impõe uma modificaçãoa partir da qual ele não consegue se reorganizar ou se não tem recursos para manter suaautoprodução, ele morre.

Embora o domínio relacional garanta que essas dependências mínimas sejam atendidas,ele não se restringe a elas, mas pode expandir-se muito além. Como coloca Espinosaquando fala em conatus, o ser está sempre lutando para aumentar sua potência. Esseaumento da potência se dá nas relações. Conforme o domínio relacional se expande, vãose formando domínios de significação, vínculos importantes, acoplamentos, micromundosenfim. Mas aqui as formas de depender desses mundos, o modo de estabelecer essasligações, não são sempre autônomas, por mais que a autonomia fundamental que se dáno funcionamento interno esteja garantida. Aliás, podemos dizer com o filósofo que elassão, necessariamente, heterônomas inicialmente. Nosso conhecimento sempre parte dosencontros fortuitos com as coisas, da experiência dos efeitos das coisas sobre nós, enfim,de ideias inadequadas.

A autonomia nas relações deve, então, ser construída e conquistada. Isso se dá peloestabelecimento de redes de alianças e micromundos que ampliem a capacidade de agir,pensar e sentir. Quando tratamos da autonomia no domínio relacional não estamos maisfalando meramente de sobreviver, mas de potência de vida (KASTRUP, 1995) e saúde.Estamos tratando da capacidade de estabelecimento de modos de existência que sejamautopoiéticos.

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3.1. Autopoiese e Potência de Vida 63

3.1 Autopoiese e Potência de Vida

Kastrup (1995) explora como Maturana e Varela enfatizam a noção de autopoiese comocondição de sobrevivência biológica, no sentido a que temos nos referido aqui como umaautonomia fundamental. Porém, vê que esta noção pode ser trabalhada também em umasegunda dimensão, de uma filosofia imanente, e esta dimensão: “(...) refere-se ao fato deque há vida no vivo, definindo vida como potência, impulso de autocriação, cujo resultadoimprevisível não assegura sua manutenção como sistema vivo.” (KASTRUP, 1995, p. 14).

Entender que a autopoiese abre esta outra dimensão, ao nosso ver, aumenta ainda maissua relação com as ideias de Espinosa. Pois se o vivo tem uma dimensão autopoiéticapara além do nível em que ela garante a sobrevivência, se podemos enxergá-la tambémna medida em que a vida procura afirmar-se em modos de ser (auto) produtivos que arealizam mais, fica ainda mais claro porque sua restrição é acompanhada de sofrimento,como nos mostra Espinosa. Restrições a esse movimento são restrições à própria vida,muito embora não sejam necessariamente restrições à sobrevivência. Citamos mais umavez a autora com uma interessante formulação a esse respeito:

Pois em Maturana e Varela existem elementos para pensar o vivo perma-nentemente confrontado não só com a morte biológica, mas com a morteem vida. A morte da vida no vivo aparece então como evitação do riscode toda experiência que abriria para criação permanente da existência.Em certas formas de subjetividade (...) a estrutura acaba por abolir odevir, ou seja, a autopoiese. (KASTRUP, 1995, p. 14)

Nos termos que estamos trabalhando aqui, a subjetividade aparece como os movi-mentos de variação da potência pelos afetos e a construção de mundos. Ora, as formasde subjetividade a que Kastrup se refere são exatamente formas em que a variação estácomprometida e a construção de mundos parada ou limitada. A expressão “morte emvida” também nos parece muito oportuna, e faz todo o sentido conforme entendemos aautopoiese como o que define a vida e o processo autônomo de produção de modos deexistência.

A autora se refere a um funcionamento prolongado em um ritmo de limitação da ex-periência. Convidamos o leitor a imaginar também uma situação em que um indivíduorealmente parece ter perdido parte da própria vida, um momento em que nos pergunta-mos como é que ele conseguirá superar tal situação, em nossos termos, como ele superaráa tristeza e como conseguirá produzir novos encontros e conexões. Partir dessas interrup-ções mais abruptas da produção viva podem ajudar a vislumbrar como outras formas desubjetividade podem operar nesse registro de sobrevivência mais do que a produção devida, com a diferença de que ele não precisa ser causado por uma interrupção, mas podeter se constituído mais gradativamente.

Como dissemos, esse modo de compreender a produção de vida parece ressoar forte-mente com as ideias espinosanas. Sabemos que as transformações pelas quais o homem

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passa, segundo Espinosa, estão necessariamente ligadas à variação da potência e das co-nexões que o indivíduo estabelece com outros indivíduos. Essas mudanças podem ir nosentido de aumento da capacidade de agir, da autonomia, ou no sentido contrário. En-quanto procura construir sua autonomia e felicidade, o homem faz um movimento deprodução de modos de vida na variação, assim ele tem mais realidade. Na medida emque as mudanças vão no sentido da heteronomia, estando o homem à mercê das coisasexteriores, podemos dizer que essa produção é substituída por uma adaptação passiva quepode se contentar com a reprodução de paixões alegres como única fonte de estímulo àpotência. Este quadro afetivo em que o conatus está a tal ponto restringido talvez seja omais próximo de uma “morte em vida” que podemos conceber a partir de Espinosa. Poisele é um desinvestimento profundo da construção da liberdade e autonomia, como se ohomem se conformasse em viver em meio às ideias inadequadas e em função do acaso.Dessa forma, ele tem menos realidade, “existe menos”. Reforçamos então que há uma forteaproximação quando pensamos com Espinosa e com a autopoiese sobre como o simplessobreviver, ou ter pouca realidade, está longe de ser uma existência autônoma e alegre.E, além disso, ficamos com a ideia de que existir separado dos meios para construir essasituação é o mesmo que morrer em vida.

3.2 Autonomia e Saúde

Colocamos que estabelecer modos de existência autopoiéticos é uma questão de potênciade vida, como procuramos mostrar com a discussão da morte em vida. Dissemos tambémque ela é uma questão de saúde. Certamente não queremos dizer com isso que a meraausência de doenças garante uma vida de autonomia e de afetação alegre, mas entendemosque a saúde envolve manter viva a capacidade de variação, de geração de formas deexistência e mundos abertos a transformações. A doença aparece como uma diminuiçãodessas capacidades em prol da sobrevivência ou como um momento de crise em que asformas de existência antigas não valem e precisam ser reinventadas em um novo regime devariação e produção de mundos2. O sofrimento aparece sempre acompanhado da perdade um modo de vida já estabelecido e/ou da dimensão autopoiética das relações.

Ser capaz de instaurar novas ordens para a própria vida não é outra coisa que serautônomo nas relações. Em Espinosa esta capacidade está ligada a uma tendência doindivíduo de realizar a própria natureza. Ao falar de conatus, nos parece muito signifi-cativo que ele utilize a expressão perseverar no próprio ser alternando-a com a expressãoconservar o próprio ser, pois a primeira (que é aliás a definição original do conceito na2 Esta ideia de saúde que esboçamos aqui ressoa com a noção de Canguilhem de saúde como nor-

matividade vital. Como ele coloca: “Ser sadio significa não apenas ser normal em uma situaçãodeterminada, mas ser, também, normativo, nessa situação e em outras situações eventuais. O quecaracteriza a saúde é a possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentâneo, apossibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir normas novas em situações novas.”(CANGUILHEM, 2010, p. 148)

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3.3. Contribuições para uma Clínica 65

parte III) indica um esforço construtivo e contínuo, e não meramente de manutenção. Aomesmo tempo, sabemos que conservar o próprio ser em Espinosa é efetuar a potênciae, de maneira que o que se mantém são as conexões, as relações complexas entre partesextensivas que o constituem. O individuo precisa variar de partes para existir, estando ocorpo cada vez mais capaz de “afetar e ser afetado de muitas e diferentes maneiras”, masgarantindo que as suas conexões não sejam destruídas. Por isso mesmo, essa conserva-ção não é propriamente uma manutenção do mesmo, mas do diferente, porque o que seprocura manter é um campo que permita a variação e a efetuação plena da potência.

Realizar a própria natureza é realizar a potência de forma autônoma perseverando deforma singular na existência. Não é à toa que Espinosa identifica essa capacidade com oconceito de virtude, que para ele é necessariamente algo que existe positivamente quandoo homem se guia pela razão procurando organizar seus afetos e encontros. Ele faz questãode afirmar que a virtude é algo que existe positivamente, o que é muito diferente de pensaro virtuoso como aquele que evita o mal ou os vícios. Diríamos que alguém que se dirigedessa forma se dirige necessariamente em função de afetos tristes, procurando evitá-los,e, por isso, não está determinado por sua própria natureza, mas pelo efeito de coisasexteriores, apaixonado. Assim como viver em função da sobrevivência identifica-se comuma vida limitada, viver fugindo do mal não é viver na virtude, efetuando a potência.

É nesse sentido que identificamos que uma construção de autonomia no domínio rela-cional é também uma questão de saúde, pois quando falamos de saúde falamos de alguémem condições de produzir uma vida plena, uma vida em que pode realizar sua naturezasingular. Na doença, ao contrário, os meios para exercer tal forma de existência lhe estãosubtraídos, e aí não há autonomia e a própria possibilidade de autonomia está ameaçada.

3.3 Contribuições para uma Clínica

Seja a partir da ideia de vida feliz em Espinosa, de uma visão ampliada da autopoiese oude saúde como a possibilidade de fazer emergir micromundos e microidentidades ativas,estamos sempre transitando por um campo de compreensão da vida que não pára deretornar ao tema da autonomia . Ao mesmo tempo, não deixamos de retomar a cadamomento como a vida é um movimento de variação contínua: variam os afetos, os mundose os modos de existência; e essa variação é tanto mais feliz, saudável e potente quantomais autônoma conseguir ser.

Compreendendo que o que está em jogo na construção de um caminho de vida maisfeliz ou saudável não é encontrar uma forma ou estrutura definitiva de relação onde avariação seria substituída por uma estabilidade perene e sempre idêntica a si mesma, mas,antes, aprender uma maneira de variar de modo singular com as relações, acreditamosencontrar uma compreensão fecunda para pensar a clínica em psicologia. Pois a clínicapsicológica não encontra nenhum tipo de sofrimento que não seja um enrijecimento ou

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66 Capítulo 3. Autonomia, Variação e Clínica em Psicologia

restrição das relações e da capacidade de agir. Ao nosso ver ela é sempre um olhar para asrelações do sujeito consigo e com o mundo, e deve ser, então, um olhar atento ao fluir davariação e à construção de autonomia. Acreditamos que a atividade clínica em psicologiacompreendida dessa forma é exatamente uma atividade voltada para o viver, mais quepara o sobreviver, é envolvimento com a produção de modos de existência de um outropara desenvolver junto com ele um cuidado dessa produção (no sentido de que ela possaser singular e incessante, autopoiética).

Maturana e Varela e Espinosa nos dão recursos para dedicarmos esse tipo de atençãopara a vida de modo integral, pois não separam as mudanças nos modos de existir dasmudanças nas relações. Pelo modo como operam em seus pensamentos, eles nos mantêmpróximos da imanência que perpetua cada existência. De acordo com tudo que tratamosaté aqui podemos ver que a produção viva singular de cada sujeito ocorre, simultanea-mente, em duas frentes: na efetuação da potência e na construção de mundos. E as chavespara o cuidado e fortalecimento dessas produções estão nos afetos e na autonomia. Aolongo de nosso caminho até aqui falamos de passagem sobre como aparecem os impedi-mentos na efetuação da potência e na construção de mundos, queremos unir esse modode entender tais fluxos com o esboço de clínica que acabamos de fazer para avançar sobreessas questões de sofrimento e vislumbrarmos as pistas que surgem para sua superação.

3.3.1 Cognição e Afetividade

O pensamento que desenvolvemos aqui identifica a vida com uma atividade cognitiva. Masaqui conhecer não é meramente representar a realidade ou chegar a fórmulas intelectuaisabstratas que expliquem a experiência. Conhecer é exercer concretamente um modo devida, que é sempre inseparável de um mundo que emerge com ele.

O conhecimento de que nos falam Maturana e Varela e Espinosa é experiência, ele se dápor um modo de estar presente nas relações e é produto e produtor de acontecimentos devida. Esses autores nos fazem perceber que o mundo e as relações não são independentesda forma de estar neles e que o caminho para uma mudança positiva passa por mudançastambém nos modos de conhecer. Essas mudanças passam pela construção de autonomiano processo de conhecimento, por sair de uma situação em que o mundo nos acontece, emque somos passivos, para uma situação em que somos agentes do processo. Não é estarcompletamente adaptado ao meio, já possuindo todas as respostas às perturbações que elepossa oferecer, mas permanecer em adaptação mudando junto com o mundo, interferindoe sofrendo interferências.

Quando nos fala de micromundos e microidentidades, Varela abre a possibilidade deavaliarmos o quão implicados ou não estamos em seu surgimento e o quão abertos amudanças eles são. Mas é Espinosa que nos mostra de modo mais elaborado como nossoexercício cognitivo pode ser restritivo, quando opera pela imaginação, ou ativo e potentequando opera pela Razão.

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3.3. Contribuições para uma Clínica 67

A princípio pode parecer contraditório dizermos que o conhecimento é experiência elogo em seguida afirmar que é a Razão que contribui para que ele seja uma produção maisviva. Afinal, não é a razão um conjunto de fórmulas abstratas e gerais, exatamente o quedissemos que o conhecimento não é? É verdade que essa é uma forma de entender a razão,mas se o leitor nos acompanhou até aqui, certamente pôde ver que a Razão de Espinosanão tem nada de abstrato. Ela é um conhecimento dos encontros e nos encontros, é umexercício de experimentação e de identificação de conveniências e inconveniências. Estarorientado pela razão é exercer autonomia, dosar intensidades e contatos, produzir e agira partir de ideias adequadas, que são sempre ideias que surgem de um envolvimento dosujeito com o próprio ato de conhecimento. Abstrato é o funcionamento pelas ideias ina-dequadas da imaginação, pois elas levam a generalizações a respeito das coisas meramentea partir de seus efeitos. Além disso, o sujeito aparece como aquele que sofre o efeito dacoisa exterior, o conhecimento passa por ele mas não lhe pertence.

Operar com a razão abre a possibilidade de manter em movimento a produção etransformação de mundos, tirar partido da variação para a produção e renovação demodos de vida. A razão assim concebida é uma atividade de infinita curiosidade quantoao que há de variação nas relações, e por isso atenta às singularidades, antes que àsgeneralidades. Está sempre aberta ao que pode haver de novo e diferente no contato.Mesmo assim, é sempre bom lembrar que não há uma passagem definitiva para o reino dasideias adequadas, estamos sempre sujeitos a voltar para uma posição passiva e heterônomavez por outra, o que pode até ser cômodo momentaneamente, afinal nesse registro estamosno domínio da repetição e do reconhecimento, da adaptação a um mundo já dado.

O apelo que as teorias que exploramos aqui fazem é que possamos manter uma posturacognitiva ativa, pois assim podemos manter um movimento de vida. Nos termos queKastrup propõe, trata-se de sustentar uma política cognitiva marcada pela invenção, queexatamente:

Trata-se de uma política que mantém a aprendizagem sempre em curso,por meio de agenciamentos, acoplamentos diretos, imediatos com aquiloque faz diferença. Se a relação que mantemos com as formas cognitivasnão nos fecha ao que nos chega de diferencial e problemático, se desen-volvemos a capacidade de nos manter tocados pelas afecções, a invençãonão se esgota na solução, mas mantém sua processualidade. (KASTRUP,2007, p. 224-225)

Acreditamos que esse modo de entender a cognição e as pistas que dão ao indicar anecessidade de uma certa política cognitiva são da maior importância para a clínica empsicologia, pois falam diretamente da constituição de sujeitos e dos mundos que habitame do que faz essa constituição ser saudável ou sofrida. Mas por tudo que vimos até aquidevemos reconhecer que qualquer política cognitiva está necessariamente acompanhada deuma política afetiva. Cognição e afetividade andam sempre juntas, então para exercermosuma certa política cognitiva precisamos configurar também nossa forma de nos relacionar

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68 Capítulo 3. Autonomia, Variação e Clínica em Psicologia

com os afetos. Pois os afetos estão na base das ações que fazem surgir um mundo e sãoeles também os responsáveis pela variação que mantém o movimento vivo.

A partir do que Espinosa nos mostra nas partes IV e V da Ética podemos esboçar emque consiste essa política afetiva. Em primeiro lugar ela valoriza as alegrias. É precisose manter sob afetos alegres para que a potência possa sempre se fortalecer. Se tivermosque estar sob um afeto que é uma paixão, que seja uma paixão alegre, pois conformeela estimula nossa potência, nos dá armas para fazer o salto da paixão para a ação. Seconseguimos aproveitar esse aumento de potência para conhecer em quê consistiu essemesmo estímulo, qual conveniência existe no encontro que a causou, damos um passo emdireção à ação. Assim, procurando construir um conhecimento alegre, vamos adquirindoautonomia e aprendendo a organizar nosso fazer e encontros de modo a continuar na efe-tuação plena da potência. É por essas auto-afecções que podemos garantir a continuidadeda afetação alegre, pois nas paixões não temos qualquer garantia, uma vez que ocorrempor determinação externa.

Vale destacar que nessa determinação de uma relação benéfica com os afetos, alegriaaparece no plural, assim como quando falamos dos afetos ao longo de todo o trabalho.Pois devemos lembrar que há muitas espécies de afetos, muitas espécies de alegrias eque, aliás, nós necessitamos dessa diversidade. Como os afetos são em geral parciais ecomo nosso corpo é composto de muitos indivíduos diferentes, necessitamos sempre deuma pluralidade de afetos e em intensidades variadas. Sabemos disso por Espinosa, mastambém por experiência, basta olharmos para a diversidade de afetos que buscamos e quenos realizam cotidianamente. Fazer uso dessa diversidade é também algo que contribuicom nossa autonomia na relação com os afetos, pois quanto mais alternativas de afetaçãotemos, menos dependentes somos de coisas específicas e mais combinações de afetaçõespodemos fazer.

Esta diversidade de afetos está diretamente ligada, evidentemente, à diversidade demicromundos e microidentidades pelas quais um sujeito consegue transitar. Isto tambémse relaciona fortemente com o que colocamos a respeito da autonomia e da dependência,como podemos ver na seguinte discussão feita por Kinoshita:

Entendemos a autonomia como a capacidade de um indivíduo gerar nor-mas, ordens para sua vida, conforme as diversas situações que enfrente.Assim não se trata de confundir autonomia com auto-suficiência nemcom independência. Dependentes somos todos; a questão dos usuários[de serviços de atenção psicossocial] é antes uma questão quantitativa:dependem excessivamente de apenas poucas relações/coisas. Esta situ-ação de dependência restrita/restritiva é que diminui sua autonomia.Somos mais autônomos quanto mais dependentes de tantas mais coisaspudermos ser, pois isto amplia nossas possibilidades de estabelecer novasnormas, novos ordenamentos para a vida.(KINOSHITA, 2001, p. 57)

Depender de apenas umas poucas coisas ou relações é ter restringidas as possibili-dades de estabelecer conexões, é ter poucos recursos para produzir novos regimes de

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3.3. Contribuições para uma Clínica 69

acoplamento. Além disso, sem a constituição de uma certa diversidade de micromundosperde-se a possibilidade de que experiências que ocorrem em um regime de funcionamentointerfiram e movimentem outros regimes pela diversificação de afetos. Ocorre também,evidentemente, uma menor margem de mobilidade. Se um determinado ordenamento re-lacional é ameaçado ou começa a fracassar em algumas de suas trocas (ligações), não épossível recorrer ou se refugiar em outra configuração de percepção e atuação. A restriçãoda existência é grande e no uso comum que fazemos de “dependência” é a essa restriçãoque nos referimos, ao fato de uma determinada relação ser uma ligação intensa e que nãotem conexões alternativas. Um aspecto principal da autonomia é ser capaz de organizar,reorganizar e selecionar, mas se não há alternativas isso é impossível.

O que se vê na restrição quantitativa de micromundos e afetos é uma fragilização dasrelações: o trânsito entre elas é difícil ou impossível, e os próprios micromundos ficamempobrecidos, pois sem interferências recíprocas e oscilações no funcionamento não háperturbações capazes de desafiar as normas de vida estabelecidas.

O desejo também aparece em destaque quando aprendemos com Espinosa a nos re-lacionar com os afetos. Isso porque ele é o afeto que deve estar ligado ao conhecimentoadequado que geramos pela razão para que esse conhecimento possa ter um verdadeiroefeito em nosso fazer, para que possamos nos tornar causa de nossos próprios afetos. Comoele coloca na parte IV da Ética: “O conhecimento verdadeiro do bem e do mal, enquantoverdadeiro, não pode refrear qualquer afeto; poderá refreá-lo apenas enquanto consideradocomo afeto” (SPINOZA, 2010, EIV, P14, p. 283). O conhecimento adequado deve estarapoiado em alegrias e nos desejos ativos para poder se sustentar, em uma espécie de ciclovirtuoso. É preciso cuidar para que a ação gere sempre mais ação, fortalecer o exercício darazão diante das paixões pelo conhecimento dos afetos e pela organização dos encontros.

Vale observarmos que na clínica psicológica essa importância dos afetos na experiênciade mudança é um ponto comum mesmo em referenciais muito diferentes. Por exemplo,em psicanálise sabe-se que uma compreensão e mesmo explicação intelectual racional-mente impecável do analisando pode muito bem servir em certas circunstâncias comouma resistência ao processo analítico. Por outro lado, em uma abordagem cognitivo-comportamental, alguns exercícios a serem cumpridos entre as sessões podem ser estru-turados de forma que a dificuldade deles suba muito lentamente, de modo a garantirexperiências de sucesso que serão essenciais para que o cliente possa chegar ao desenvolvi-mento de habilidades que são o objetivo final da intervenção. Seja como for, o clínico empsicologia sabe que precisa de experiências afetivas para que mudanças possam ocorrerno processo com o sujeito, e sabe, ainda, que essas mudanças duram se são acompanha-das também de mudanças afetivas mais amplas. Com Espinosa podemos dizer que essasmudanças mais amplas estão ligadas ao sujeito poder ser causa de seus próprios desejos.

Ao falarmos de um tipo de política cognitiva e de uma política afetiva que vão nadireção de sustentar a variação e do exercício de autonomia, vemos como cognição e

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70 Capítulo 3. Autonomia, Variação e Clínica em Psicologia

afeto não param de implicar-se um ao outro. Nosso fazer surge dos afetos e os faz surgirjunto com o mundo. O que conhecemos é sempre causa de afetos e conhecemos semprea partir de afetos, sejam causados de fora ou internamente. Os próprios afetos precisamser conhecidos e examinados. Pois conhecer os afetos é conhecer também os mundos queeles dispõem, é conhecer o quanto podemos pensar e fazer quando estamos sob eles enesses mundos. É, sobretudo, descobrir o quanto nos fazem agir ou sofrer. E ao mesmotempo, para produzir formas de relação com os afetos em direção à autonomia é precisoo compromisso com uma forma ativa de conhecimento, que passa ela mesma a ser causade alegrias enquanto transforma o mundo que habitamos.

A partir das teorias que colocamos em contato aqui, seja ao tratarmos do conhecimentode um modo geral, seja ao tratar do conhecimento dos afetos, o que vemos é que não háuma fórmula geral, uma resposta universal para o que se encontrará ou para como oprocesso de constituição de si e do mundo se dá. Cada sujeito singular há que fazer ummapeamento ou talvez uma cartografia do mundo que habita e dos afetos que compõe. Étambém nesse sentido que enxergamos uma clínica que se relaciona com essas teorias, poiselas nos dizem que é preciso se debruçar sobre os modos de conhecer e de se relacionarcom os afetos, sobre a experiência. É nesse trabalho delicado que lida com intensidades,com a variação e com os ritmos dos mundos que emergem com o sujeito, que surgem ascondições para o desenvolvimento de modos de vida autônomos, e, como diz Espinosa,livres.

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Conclusão

Nossa proposta nesse trabalho foi estabelecer relações entre dois pensamentos que ope-ram de forma imanente, a Teoria da Autopoiese, de Maturana e Varela, e a filosofia deEspinosa. Pensamentos que, acreditamos, contribuem para uma forma de fazer psicologiatambém imanente. Especialmente, investimos em buscar algumas pistas que elas nos dãopara pensar a clínica psicológica. Nas ressonâncias que surgiram das aproximações quefizemos entre esses autores, encontramos a íntima relação entre conhecimento e afeto, aimportância da variação bem como das regularidades, sem que uma precise superar a ou-tra. E a clínica que vimos emergir daí é atenta à singularidade e preocupada com o viver,mais que com o sobreviver. Uma clínica cujo fio condutor é contribuir com o desenvol-vimento de uma forma de relação com o conhecimento e com os afetos que favoreça, emúltima análise, a construção de autonomia dos sujeitos, através da qual ele pode exercere continuar sempre inventando seu(s) modo(s) de vida singulare(s).

Não temos a pretensão de ter esgotado as relações possíveis entre essas teorias, masacreditamos que as relações que estabelecemos aqui podem servir de estímulo para maioresdesenvolvimentos nesse sentido, focando a clínica ou outras questões.

Em nossa introdução levantamos que a psicologia encontra certos entraves em seutrabalho por tomar como objeto de estudo privilegiado leis, regras e princípios invarian-tes e recorrer a certos operadores conceituais. Neste trabalho, em consonância com umcampo epistemológico nascente na psicologia, nos empenharmos em outra lógica. Nãopartimos em busca de nenhum princípio invariante e, de fato, ao longo das discussões,não encontramos qualquer resultado de processos afetivos ou cognitivos que se afastassedo campo da experiência para determiná-la; pelo contrário, fomos reenviados repetidasvezes à experiência efetiva, fosse ao tratar de regularidades, fosse de variações.

Nossos operadores conceituais foram condizentes com essa proposta inicial. Ao per-mitir que a ideia de variação se desdobrasse, não encontramos o desequilíbrio como algoruim, mas como uma força que coexiste com os equilíbrios e os permite se renovarem,como é o caso da produção de mundos. Desinvestindo a representação, encontramos umapsicologia que se preocupa com a ação como o elemento chave da constituição do sujeitoe do mundo. Aliás, com Espinosa, vimos que a representação é imaginação e que as ideiasque mais contribuem com a vida são aquelas que aumentam a capacidade do homem agirautonomamente. Trabalhando com as ideias de determinismo estrutural, paixão e ação,reconhecemos que a autonomia é tanto uma característica fundamental do funcionamentovivo, quanto a posição mais saudável no domínio relacional, diferentemente das ideias te-leonômicas presentes quando se acredita o funcionamento psíquico é melhor quanto maisconsegue representar a realidade ou adaptar-se a ela.

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72 Conclusão

Encerramos então este trabalho esperando que ele possa sinalizar a riqueza que aTeoria da Autopoiese e a Filosofia de Espinosa possuem para a psicologia e muito alémdela; e ser, ao mesmo tempo, uma contribuição para o modo imanente de fazer psicologiaque, ao nosso ver, a leva no sentido de superar embaraços importantes e de uma práticaviva.

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