4
"Autopsicografia" - análise O poeta é um fingidor Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor  A dor que deveras sente  E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, as s! a que eles não têm  E assim nas calhas de roda "ira, a entreter a ra#ão, Esse comboio de corda Que se chama cora$ão  Esta composi$ão poética é uma esplêndida s%ntese do que &essoa pensava sobre a génese e a nature#a da poesia' &odemos, pois, consider()lo como uma verdadeira "arte poética". O as sunt o do poema desenvol ve )se em três partes l!gica s, que correspondem a cada uma das estrofes' Na primeira parte, o primeiro verso contém a ideia fundamental do poema, na frase de tipo a*iom(tico +o poeta é um fingidor+, que, logo a seguir, é e*plicado, ou confirmado, por meio de uma particulari#a$ão centrada na dor' Quer isto di#er que a poesia não est( na dor e*perimentada, ou sentida realmente, mas no fingimento dela' sto é, a dor sentida, a dor real, para se elevar ao plano da arte, tem de ser fingida, imaginada, tem de ser e*pressa em linguagem poética, o poeta tem que partir da dor real, a dor que deveras sente' Não basta, para haver poesia, a e*pressão espont-nea dessa dor real, tal como o faria, por e*emplo, um doente relatando a sua dor ao médico' Não

Autopsicografia- análise do poema de Fernando Pessoa ortónimo

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Aqui faz-se uma análise do poema de Fernando Pessoa ortónimo "Autopsicografia". Divisão em partes, análise morfossintática e estilística.

Citation preview

Page 1: Autopsicografia- análise do poema de Fernando Pessoa ortónimo

7/17/2019 Autopsicografia- análise do poema de Fernando Pessoa ortónimo

http://slidepdf.com/reader/full/autopsicografia-analise-do-poema-de-fernando-pessoa-ortonimo 1/4

"Autopsicografia" - análise

O poeta é um fingidor Finge tão completamenteQue chega a fingir que é dor 

 A dor que deveras sente E os que lêem o que escreve,Na dor lida sentem bem,Não as duas que ele teve,as s! a que eles não têm E assim nas calhas de roda"ira, a entreter a ra#ão,Esse comboio de cordaQue se chama cora$ão

 

Esta composi$ão poética é uma esplêndida s%ntese do que &essoapensava sobre a génese e a nature#a da poesia' &odemos, pois, consider()locomo uma verdadeira "arte poética".

O assunto do poema desenvolve)se em três partes l!gicas, que

correspondem a cada uma das estrofes'Na primeira parte,  o primeiro verso contém a ideia fundamental do

poema, na frase de tipo a*iom(tico +o poeta é um fingidor+, que, logo a seguir,é e*plicado, ou confirmado, por meio de uma particulari#a$ão centrada na dor'

Quer isto di#er que a poesia não est( na dor e*perimentada, ou sentidarealmente, mas no fingimento dela' sto é, a dor sentida, a dor real, para seelevar ao plano da arte, tem de ser fingida, imaginada, tem de ser e*pressa emlinguagem poética, o poeta tem que partir da dor real, a dor que deveras sente'

Não basta, para haver poesia, a e*pressão espont-nea dessa dor real,tal como o faria, por e*emplo, um doente relatando a sua dor ao médico' Não

Page 2: Autopsicografia- análise do poema de Fernando Pessoa ortónimo

7/17/2019 Autopsicografia- análise do poema de Fernando Pessoa ortónimo

http://slidepdf.com/reader/full/autopsicografia-analise-do-poema-de-fernando-pessoa-ortonimo 2/4

h( poesia, não h( arte sem imagina$ão, sem que o real se.a imaginado deforma a e*primir)se artisticamente, de forma a surgir como um ob.etivo poético/art%stico0, de forma a concreti#ar)se em arte'

Esta concreti#a$ão da dor no poema opera na mem!ria do poeta o

retorno 1 sua dor inicial, parecendo)lhe a dor imaginada mais autêntica do quea dor real' 2 a sobreposi$ão do ob.eto art%stico 1 realidade ob.etiva que lheserviu de base3 4chega a fingir que é dor5a dor que deveras sente6' sto condu#)nos 1 ideia de frui$ão art%stica, da parte do poeta'

  Na segunda parte do poema, o poeta alude 1 frui$ão art%stica da partedo leitor' Este não sente a dor real /inicial0, que o poeta sentiu, nem a dor imagin(ria /dor em imagens0 que o poeta imaginou, ao ser art%fice do poema,nem a dor que eles /leitores0 têm, mas s! a que eles não têm' sto é, o que oleitor sente é uma quarta dor que se liberta do poema, que é interpretado 1maneira de cada leitor'

7( na segunda estrofe referência a quatro dores3 a dor sentida /real0, ador fingida pelo poeta, a dor real do leitor e a dor lida /dor intelectuali#ada queprovém da interpreta$ão do leitor e que é ob.eto da sua frui$ão'

A terceira parte  do poema, como a pr!pria e*pressão +E assim+prenuncia, constitui uma espécie de conclusão3 o cora$ão /s%mbolo dasensibilidade0 é um comboio de corda sempre a girar nas calhas da roda /que odestino fatalmente tra$ou0 para entreter a ra#ão' 7( aqui uma referência 1fun$ão l8dica da poesia, que come$a na frui$ão de que o pr!prio poeta go#a,no ato da cria$ão art%stica' 9ão aqui marcados os dois p!los em que seprocessa a cria$ão do poema: o coração  /as sensa$:es donde o poemanasce0 e a razão /a imagina$ão onde o poema é inventado0' Fecha)se nestefim do poema como que um c%rculo cu.a linha limite marca uma pista sem fimem que nunca se esgota a din-mica do .ogo sensa$ão)imagina$ão'

Quanto aos aspetos morfo)sint(ticos, desde logo a liga$ão por meio dos%ndeto /coordenativa +e+0 das três estrofes do poema impondo não s! adivisão do te*to em três partes l!gicas, mas também sugerindo uma sequêncial!gica no desenvolvimento do assunto'

Os verbos, com e*ce$ão da forma teve /pretérito perfeito0, encontram)seno presente, o que est( de acordo com a nature#a te!rica do poema, que éanunciada pelo t%tulo +Autopsicografia+ /estudo que o poeta fa# do fen!menopsicol!gico que nele se passa, no ato de cria$ão art%stica, portanto nopresente0'

 A forma do perfeito +teve+ e*plica)se porque é e*igida para marcar a prioridadetemporal em que o poeta e*perimentou as suas dores em rela$ão ao tempo/presente0 em que o leitor e*perimenta a dor lida'

 A e*pressão infinitiva +a entreter+ apresenta)se com um n%tido aspeto

durativo, insinuando a repeti$ão continuada do processo criativo' Note)se ainsistência do poeta no processo mais importante da cria$ão poética3 o

Page 3: Autopsicografia- análise do poema de Fernando Pessoa ortónimo

7/17/2019 Autopsicografia- análise do poema de Fernando Pessoa ortónimo

http://slidepdf.com/reader/full/autopsicografia-analise-do-poema-de-fernando-pessoa-ortonimo 3/4

fingimento' Este processo é marcado pelas formas verbais +finge+ e +fingir+ epelo substantivo +fingidor+' O verbo fingir /do latim +fingere + ; fingir, pintar,desenhar, construir0 aponta não apenas para disfar$ar, mas também paraconstruir, modelar, envolvendo, assim, todo o processo criativo desenvolvidopelo poeta na produ$ão do poema3 o poeta é um art%fice'

2 interessante a per%frase +os que lêem o que escreve+ /para significar os leitores0 por ser portadora de uma e*pressividade especial3 aponta para osdois intervenientes fundamentais do processo poético ))o emissor /poeta0 e osrecetores /leitores0'

 Além da reitera$ão /repeti$ão0, .( apontada, do verbo fingir, h( ainda ado verbo sentir, que não se deve desligar da repeti$ão do substantivo dor /trêsve#es0, além de outras três ve#es que se repete por intermédio de pronomes,ou e*press:es /+que+,+as duas+, +a que+0' A insistência na dor e no sentir est(de acordo com o facto de o poeta ter tomado a dor como tema e*emplificativo

da cria$ão poética e pelo facto de as sensa$:es /o sentir0 serem o ponto departida dessa cria$ão'

Em rela$ão 1 sensação do sujeito lírico e dos leitores, sãoe*pressivos os advérbios3 +Finge tão completamente+<''' =everas sente+<+'''sentem bem+' Estes advérbios sugerem a veemência, o rigor com que asensa$ão da dor se imp:e, quer ao poeta quer aos leitores' Os advérbios estãopois a marcar a inten$ão do autor3 e*por a sua teoria poética com rigor' O atode fingir é tão importante que o poeta o superlativou não apenas pelae*pressão adverbial +tão completamente+, mas também por meio dasubordinada consecutiva +que chega a fingir+' Notemos que a subordina$ão/hipota*e0 é muito mais importante do que a coordena$ão, o que est( deharmonia com um discurso te!rico que tem por finalidade apresentar umateoria da cria$ão poética'

>epare)se na e*pressividade das duas met(foras, de valor altamentesimb!lico, que se encontram na 8ltima estrofe3 calhas de roda e comboio decorda' Esse comboio de corda /o cora$ão0, ultrapassando o significadodenotativo de brinquedo, aponta sobretudo para um sentido simb!licorelacionado com a fun$ão l8dica da poesia', e assim, gira nas calhas de roda'?ambém essas calhas de roda ultrapassam o significado de carris

/correspondente ao sentido de comboio de corda0 para apontaremsimbolicamente para um rumo necess(rio, marcado pelo destino, qualquer coisa que sucede por fatalidade, na vida /na roda da vida0'

O poeta, é pois, um ser predestinado a brincar intelectualmente com assensa$:es, elevando)as ao n%vel da arte poética, transformando)as numob.etivo, art%stico, que é o poema, também ob.eto de frui$ão l8dica para osleitores'

No que toca 1 forma do poema, aos seus aspetos f!nicos, parecer)nos)(estranho que &essoa tenha escolhido o verso de redondilha /verso curto de

sete s%labas0, de fei$ão r%tmica popular, distribu%dos em quadras, para e*por uma teoria intelectuali#ada e de alto n%vel mental' ?rata)se de um entre tantos

Page 4: Autopsicografia- análise do poema de Fernando Pessoa ortónimo

7/17/2019 Autopsicografia- análise do poema de Fernando Pessoa ortónimo

http://slidepdf.com/reader/full/autopsicografia-analise-do-poema-de-fernando-pessoa-ortonimo 4/4

parado*os de que o proceder de &essoa é fértil' Note)se que os casosfrequentes de transporte, verificados em grande parte dos versos vem redu#ir as dificuldades que o metro curto poderia oferecer ao desbobinar do racioc%niodo poeta'

 A rima é sempre cruzada, apresentando uma certa irregularidade nos

versos @ e B da 8ltima estrofe' Notar os dois pares rim(ticos fingidor5dor era#ão5cora$ão, em que se poder( ver uma certa inten$ão e*pressiva, serelacionarmos ra#ão com fingidor e o cora$ão com dor3 ficariam assim em lugar de destaque, bem marcados os dois p!los de cria$ão poética C as sensa$:es eo fingimento'

O título do poema pode levar-nos conclusão de !ue o poeta !uer eplicar o processo psí!uico !ue nele se passa, ao elaborar um te*topoético' Domo se e*plica, então que o poeta nunca empregue o pronome +eu+,nem qualquer verbo na primeira pessoa, e que parte precisamente de umaafirma$ão a*iom(tica, +O poeta é um fingidor+, de aplica$ão universal, aplic(vel

a todos os poetas +Este poema est( constru%do na B pessoa como a lei deNeGton, ou qualquer outro enunciado cient%fico+ C afirma A' H' 9araiva C +parasignificar que é a inteligência, como um ser aut!nomo, que e*plica o processode cria$ão poética+'

&or meio do t%tulo, o autor quis significar que a teoria da cria$ão poética,e*posta no poema, de valor universal porque aplic(vel a todo o verdadeiropoeta, foi elaborada por via da auto)introspe$ão, por meio da qual Fernando&essoa verificou o processo em si pr!prio' O t%tulo aponta para o palco dee*perimenta$ão e verifica$ão de uma teoria poética que o autor .ulgou de valor universal'