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FERNANDA PAULA OLIVEIRA Professora da Faculdade de Direito de Coimbra Pátio da Universidade 3004-545 Coimbra 1 Assunto: - Licenciamento de edifício destinado a indústria Coimbra, 07.12.2015 B. CONSULTA Foi-nos solicitada, na sequência do Despacho do Senhor Presidente da Câmara Municipal de Guimarães de 26 de outubro de 2015, a apreciação do processo referente ao licenciamento da construção de um edifício destinado a indústria (unidade industrial dirigida à gestão e valorização de resíduos, nomeadamente plásticos), da iniciativa da empresa ECOIBÉRIA, o qual tem suscitado ampla polémica por parte de alguns segmentos da população que pretendem o indeferimento daquela operação urbanística alegando ilegalidades várias no ato que eventualmente venha a ser emitido. Pretende o senhor Presidente que se afira se existem argumentos que permitam à Câmara Municipal, nesta fase do processo ou seja, num momento em que já foi aprovado o projeto de arquitetura , inviabilizar a referida pretensão em especial, segundo entendemos, se pode haver indeferimento do pedido de emissão da licença de obras de edificação por desconformidade com as condições impostas pelas várias entidades que se pronunciaram no âmbito do procedimento que deu origem à emissão do título de exploração e instalação da atividade industrial n.º 888/2015. Pretende ainda saber-se, caso a resposta à questão anterior seja positiva, que consequências daí decorrem do ponto de vista de uma eventual responsabilidade do Municipio perante a interessada, ECOIBÉRIA. B. PARECER Razão de ordem Tendo em conta a complexidade da presente situação, iniciaremos a nossa apreciação com o enquadramento jurídico dos procedimentos administrativos que aqui se posicionam. Com efeito, é necessário ter presente que nos encontramos, neste caso, perante uma situação complexa, na medida em que a pretensão principal da interessada é a instalação de uma atividade económica (no caso uma atividade industrial), que se encontra sujeita a um regime próprio de controlo preventivo

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FERNANDA PAULA OLIVEIRA

Professora da Faculdade de Direito de Coimbra

Pátio da Universidade 3004-545 Coimbra

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Assunto: - Licenciamento de edifício destinado a indústria

Coimbra, 07.12.2015

B. CONSULTA

Foi-nos solicitada, na sequência do Despacho do Senhor Presidente da

Câmara Municipal de Guimarães de 26 de outubro de 2015, a apreciação do

processo referente ao licenciamento da construção de um edifício destinado a

indústria (unidade industrial dirigida à gestão e valorização de resíduos,

nomeadamente plásticos), da iniciativa da empresa ECOIBÉRIA, o qual tem suscitado

ampla polémica por parte de alguns segmentos da população que pretendem o

indeferimento daquela operação urbanística alegando ilegalidades várias no ato que

eventualmente venha a ser emitido.

Pretende o senhor Presidente que se afira se existem argumentos que

permitam à Câmara Municipal, nesta fase do processo — ou seja, num momento

em que já foi aprovado o projeto de arquitetura —, inviabilizar a referida pretensão

— em especial, segundo entendemos, se pode haver indeferimento do pedido de

emissão da licença de obras de edificação por desconformidade com as condições

impostas pelas várias entidades que se pronunciaram no âmbito do procedimento

que deu origem à emissão do título de exploração e instalação da atividade industrial

n.º 888/2015.

Pretende ainda saber-se, caso a resposta à questão anterior seja positiva, que

consequências daí decorrem do ponto de vista de uma eventual responsabilidade do

Municipio perante a interessada, ECOIBÉRIA.

B. PARECER

Razão de ordem

Tendo em conta a complexidade da presente situação, iniciaremos a nossa

apreciação com o enquadramento jurídico dos procedimentos administrativos que

aqui se posicionam. Com efeito, é necessário ter presente que nos encontramos,

neste caso, perante uma situação complexa, na medida em que a pretensão principal

da interessada é a instalação de uma atividade económica (no caso uma atividade

industrial), que se encontra sujeita a um regime próprio de controlo preventivo —

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concretamente o regime do Sistema da Indústria Responsável aprovado pelo

Decreto-Lei n.º 169/2012, de 1 de agosto (SIR) —, surgindo a realização da operação

urbanística (a construção do edifício) como instrumental daquela (tal construção destina-

se, precisamente, à instalação da referida atividade económica), operação essa sujeita,

por sua vez, a um regime específico — concretamente o Regime Jurídico da

Urbanização e Edificação (RJUE).

Estando em causa regimes (e procedimentos) interligados — porque

referentes à mesma pretensão global —, mas com âmbitos e objetivos distintos,

torna-se necessário explicitar devidamente que âmbitos e objetivos são esses e como

é que eles se articulam. É sobre esta questão que incidiremos a nossa primeira

atenção no presente Parecer (1.). Nesta análise não deixaremos de retirar as

conclusões preliminares que relevam para o caso em apreciação.

Debruçar-nos-emos, num segundo momento, sobre o procedimento de

licenciamento urbanístico de uma obra de edificação — procedimento que se

encontra em curso no presente momento — de forma a identificar os seus vários

momentos e, em especial, de forma a determinar o conteúdo e efeitos do ato de

aprovação do projeto de arquitetura — precisamente porque, no presente

procedimento de licenciamento, esta fase já se encontra ultrapassada O

esclarecimento destas questões permitirá apontar a resposta às questões que se

colocam em relação ao presente procedimento — que é, relembre-se, o

procedimento de licenciamento da operação urbanística e não o da atividade

económica, que já está concluído — designadamente a questão de saber de que

poderes dispõem os órgãos autárquicos no presente momento (em que o projeto de

arquitetura já está aprovado) e que consequências advêm se a pretensão acabar por

ser inviabilizada com o indeferimento da licença de construção (2.)

Terminaremos o presente Parecer formulando as conclusões que se impõem.

1. A instalação de atividades económicas como procedimentos

complexos

1.1. Distintos tipos de procedimentos

A instalação de uma atividade económica (como a indústria, o turismo, o

comércio, os serviços, etc.) surgem, por regra, como uma pretensão complexa,

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envolvendo várias valências e vertentes (ambientais, urbanísticas, etc.), as quais são

objeto de procedimentos distintos de controlo [designadamente, Avaliação de

Impacte Ambiental, RJUE, etc.] que, embora conexos, incidem sobre aspetos

parcelares daquela pretensão. Torna-se, por isso, importante cruzar e articular a

legislação relativa ao exercício da atividade (isto é, relativa à instalação e ao

funcionamento dos estabelecimentos onde tal atividade se vai desenvolver) é a ela que se

refere, com relevo na presente situação, o SIR com os procedimentos de

controlo preventivo das operações urbanísticas que, por aquele motivo, tenham de

realizar-se (quer se trate de obras, quer da utilização dos edifícios onde aqueles

estabelecimentos ou instalações vão funcionar), e que são objeto do RJUE.1

Este cruzamento ocorre sempre que, para instalar um estabelecimento

destinado ao exercício de atividade industrial seja necessário realizar obras (pense-se

na construção de raiz do edifício onde a atividade vai funcionar ou em obras de

alteração ou ampliação de um edifício já existente para o mesmo fim) ou alterar o uso

que lhe está atribuído (porque, por exemplo, o edifício ou a fração onde se pretende

instalar a atividade industrial tem um uso urbanístico distinto, por exemplo,

comércio e serviços, que não permite esta atividade). Neste caso terão de ser

desencadeados os procedimentos referentes a estas operações urbanísticas,

precisamente os que constam do RJUE e que serão, consoante o caso, a licença, a

comunicação prévia ou a autorização, sem esquecer o pedido de informação prévia que aí

assume caráter facultativo.

Há, de facto, várias formas possíveis de relacionamento entre a instalação da

atividade industrial (regulado no SIR) e o RJUE já que:

A instalação da atividade pode implicar a construção de uma nova

edificação (o que exige o controlo prévio das obras e a obtenção de uma

autorização de utilização);

A instalação da atividade pode ocorrer num edifício já existente:

com necessidade de realização obras sujeitas a controlo e com

1 Distingue-se, a este propósito, o estabelecimento industrial e o edifício onde o mesmo vai funcionar: trata-

se de dois objetos que não devem ser confundidos, tanto mais porque nada obriga a que o titular do estabelecimento (promotor da atividade, que no caso é a industrial) seja simultaneamente titular do referido edifício.

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eventual mudança de uso (controlo da obra e da utilização);

sem necessidade de realização obras, mas com eventual mudança

de uso (controlo da utilização);

com necessidade de realização obras, mas isentas de controlo

municipal (podendo, todavia, haver lugar a autorização de

utilização para mudança de uso, caso este ocorra).

1.2. Relacionamento entre os distintos procedimentos: solução

tradicional

Era o artigo 37.º do RJUE que fixava, nas suas versões iniciais, o esquema de

relacionamento supletivo entre os vários atos e procedimentos que compunham os

designados procedimentos especiais, precisamente os procedimentos de instalação e

funcionamento de atividades económicas (então, sempre da responsabilidade da

Administração central) que necessitassem de realização de operações urbanísticas

(da responsabilidade dos municípios). De acordo com esta regulamentação, os

órgãos municipais não poderiam aprovar informação prévia favorável nem deferir

pedidos de licença relativos a operações urbanísticas sem que o requerente

apresentasse documento comprovativo da aprovação da administração central, o

que significava que estes procedimentos se apresentavam como um pressuposto

lógico e necessário daqueles.

Segundo este modelo, este tipo de procedimentos especiais pressupunha a

prática de um conjunto de atos interligados: uma autorização prévia de localização pela

CCDR territorialmente competente emanada por referência aos instrumentos

urbanísticos em vigor (planos municipais, planos especiais ou licença de

loteamento); autorização da atividade económica em causa por parte do Estado;

procedimentos do RJUE referentes às operações urbanísticas tornadas necessárias para

se instalarem aquelas atividades (v.g. licenças de obras e autorizações de utilização)

da responsabilidade dos municípios; e autorização de funcionamento (ou de laboração),

novamente da responsabilidade do Estado.

Em causa estavam, assim, procedimentos complexos, compostos por um

conjunto de atos sucessivos, que se iam pronunciando sobre aspetos parcelares da

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mesma pretensão (procedimentos de guichet múltiplo em que o interessado tinha de

percorrer sucessivamente várias entidades que se iam pronunciando sobre aspetos

parciais da pretensão e que funcionavam como pré-decisões).2

E por isso se compreende que estes atos vinculassem as entidades

competentes para a decisão sobre um eventual pedido de informação prévia ou

licenciamento da operação urbanística a que respeitavam, apresentando-se como

pressuposto destas. Era precisamente nesta lógica que o artigo 37.º do RJUE

determinava que os procedimentos nele regulados (pedidos de informação prévia,

licenciamentos) apenas podiam ser decididos de forma favorável após a emissão da

autorização de instalação do estabelecimento industrial, sob pena de nulidade [alínea

c) do artigo 68.º do RJUE)].

O artigo 37.º do RJUE foi entretanto revogado pelo Decreto-Lei n.º 26/2010,

de 30 de março, motivo pelo qual o modo de relacionamento entre o RJUE e

aquelas legislações especiais, sempre que em causa esteja a realização de operações

urbanísticas sujeitas a controlo prévio, passou a ter de ser procurado nos termos

destes diplomas específicos, como sucede com o SIR. E são os artigos 17.º a 19.º

deste regime que desempenham esta função.

2 Têm natureza jurídica de pré-decisões os atos (decisões) que, precedendo o ato final de um

procedimento ou o ato que define a situação jurídica do interessado com caráter definitivo, decidem já, perentória ou vinculadamente sobre a existência de condições ou de requisitos, ainda que parciais, de que depende a prática de tal ato. Cfr. Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Vol. I, Coimbra, 2004, p. 344.

Esta categoria genérica admite uma subdivisão, abrangendo as subcategorias dos atos prévios e dos atos parciais. Estes consistem em “decisões constitutivas antecipadas no que respeita a uma parte ou a um aspeto da decisão (autorização) final global, com efeito ou carácter permissivo” enquanto os atos prévios são aqueles que “embora decidindo sobre um aspeto particular da decisão final, é dizer, da pretensão autorizatória formulada, não produzem qualquer efeito permissivo, não autorizam o interessado a realizar (mesmo que só parcialmente) a pretensão a que aspira”.

A autorização ou aprovação de localização e a autorização de instalação tal como, aliás, atualmente a

informação prévia favorável apresentavam-se claramente como atos prévios, isto é, atos que decidiam, de forma antecipada, ainda que definitiva, uma parte da pretensão. No que diz respeito à autorização de localização, como o próprio nome indicava, a parte da pretensão que ficava definitivamente decidida era, precisamente, a relativa à localização do estabelecimento industrial (ou seja a adequação dos usos ao local da pretensão), a qual ficava definitivamente fechada. Por isso estas questões não podiam voltar a ser apreciadas no âmbito do procedimento complexo tendente à instalação e funcionamento do estabelecimento industrial, designadamente no âmbito dos procedimentos de gestão urbanística que viessem a ser desencadeados posteriormente para a instalação efetiva mesmo. Tratava-se, neste caso, da efetiva antecipação de uma decisão que, não estivesse em causa um procedimento complexo, apenas seria tomada aquando do desencadeamento dos procedimentos de controlo da operação urbanística em causa para efeitos de instalação do estabelecimento industrial.

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1.3. Relacionamento entre os distintos procedimentos: a solução no

Decreto-Lei n.º 169/2012

O SIR regula os procedimentos atinentes à instalação e funcionamento

(exploração) da atividade industrial: nesses procedimentos controlam-se os

requisitos que esta atividade económica deve cumprir para que possa ser levada a

cabo. De facto, estando em causa atividades com um potencial de perigo para

interesses públicos (como a industrial), a lei define condições que devem ser

cumpridas para que os privados possam aceder e exercer as mesmas, sendo o objeto

especifico dos procedimentos definidos no SIR a verificação da conformidade da

pretensão privada (exercício da atividade industrial) com aqueles requisitos. O ato

autorizativo final desse procedimento é, precisamente, o título de instalação e

exploração.

Nestes procedimentos não se controlam, porém, as questões do foro

estritamente urbanístico, que se colocam apenas quando para instalar e exercer a

atividade seja necessário desencadear operações urbanísticas: nestes casos determina

o artigo 17.º que têm aplicação os procedimentos regulados no RJUE.

Por sua vez, também, quando estes têm lugar, o seu âmbito não é apreciar o

cumprimento dos requisitos que se prendem com o exercício da atividade (esta

verificação é feita no âmbito dos procedimentos do SIR), mas apenas dos requisitos

do foro estritamente urbanístico/ordenamento do território.

De acordo com o disposto no artigo 17.º do SIR, a articulação entre o regime

nele definido (destinado a controlar a conformidade do estabelecimento com as

regras da atividade) com o RJUE (destinado a verificar a conformidade da operação

urbanística com as normas que lhe são aplicáveis) diferencia-se consoante esteja em

causa um estabelecimento industrial de tipo 1 e 2 ou um estabelecimento industrial

de tipo 3.

Tratando-se de estabelecimentos deste último tipo (tipo 3) — que

correspondem àqueles que detêm menor risco ambiental e têm menor dimensão —,

sempre que a sua instalação, ampliação e alteração envolvam a realização de

operações urbanísticas sujeitas a controlo prévio, deverão ser desencadeados, em

primeiro lugar, os procedimentos previstos no RJUE, só depois podendo ser

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apresentada a mera comunicação prévia (que é o “procedimento” a desencadear para

este tipo de atividade). Nos termos do n.º 3 do artigo 17.º, a mera comunicação

prévia apenas pode ser apresentada após a emissão, pelo órgão municipal

competente, do título destinado à utilização do prédio ou fração onde pretende

instalar-se o estabelecimento (ou verificado o respetivo deferimento tácito).

Tratando-se de estabelecimentos de tipo 1 e 2, o requerente pode apresentar à

câmara municipal competente, antes de iniciado o procedimento de controlo da

atividade (que no Decreto-Lei n.º 169/2012 correspondia, respetivamente, ao

procedimento de autorização prévia ou de comunicação prévia com prazo3), pedido

de informação prévia sobre a operação urbanística, cuja decisão final pode ser emitida

mesmo antes da decisão da entidade coordenadora sobre o pedido de autorização

prévia ou da comunicação prévia com prazo da atividade.

Se optar por não fazer o pedido de informação prévia (que é facultativa) o

requerente pode desencadear os procedimentos do RJUE, mas a câmara municipal

só pode decidir sobre estes depois de proferida a decisão favorável ou favorável

condicionada no âmbito dos procedimentos do SIR.

Ou seja, e em suma, no caso de estabelecimentos de tipo 1 e 2, enquanto o

pedido de informação prévia do RJUE pode ser iniciado e, inclusive, decidido antes

da decisão dos procedimentos do SIR, o pedido de licenciamento da operação

urbanística, ainda que possa ser iniciado antes dos procedimentos tendentes ao

exercício da atividade (autorização prévia ou comunicação prévia com prazo),

apenas pode ser decidido após decisão favorável (ou favorável condicionada) destes

procedimentos.

Deste modo se conclui que:

No caso de estabelecimentos industriais de tipo 3, os procedimentos do

RJUE são um pressuposto indispensável para o desencadeamento dos

procedimentos do SIR para efeitos da instalação do estabelecimento;

No caso de estabelecimentos de tipo 1 e 2, pode ser desencadeado e

3 Dizemos “correspondia”, porque o SIR foi entretanto objeto de alteração pelo Decreto-Lei n.º

73/2015, de 11 de maio, tendo os procedimentos referidos no texto passado a corresponder aos procedimentos de instalação e exploração com vistoria prévia (para os estabelecimentos industriais de tipo 1) e de instalação e exploração sem vistoria prévia (para os estabelecimentos de tipo 2).

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decidido um pedido de informação prévia do RJUE antes de iniciados os

procedimentos do SIR, mas estes são um pressuposto indispensável para a

decisão do licenciamento do RJUE.

O que é referido no ponto anterior apenas não tem aplicação em relação

às autorizações de utilização: com efeito, uma vez que, havendo obras, a

autorização de utilização é sempre obtida em momento posterior ao

licenciamento destas (servindo para verificar se as obras foram executadas

de acordo com o projeto aprovado), e uma vez que a licença das obras

apenas pode ocorrer em momento posterior à autorização prévia ou ao

deferimento, expresso ou tácito, da comunicação prévia com prazo, por

maioria de razão a autorização também apenas poderá ser obtida após

estas. Nestes casos a autorização de utilização funciona como condição de

eficácia do ato praticado ao abrigo do SIR.4

1.4. Aplicação ao caso em apreço

Tendo em conta que, no caso em apreço, está em causa um estabelecimento

industrial de tipo 2, o procedimento aplicável à sua instalação e funcionamento foi o

de comunicação prévia com prazo (artigo 30.º e ss. do SIR).

O disposto no artigo 32.º, n.º 8, que identifica os motivos de indeferimento

desta comunicação, é elucidativo sobre o que se controlou neste domínio: (1) o

cumprimento dos condicionamentos legais e regulamentares em vigor relativos às

características e especificações da instalação industrial; (2) o cumprimento das

exigências referentes: (a) à emissão de gases com efeito de estufa; (b) à utilização de

recurso hídricos, (c) às operações de gestão de resíduos ou (d) à atribuição do

número de controlo veterinário, quando aplicável; (3) o cumprimento das questões

de localização definidas pela CCDR quando o interessado tenha decidido antecipar

para o procedimento do SIR a decisão quanto à localização.

Como determina a lei, apenas após ter obtido o título atinente à instalação e

exploração da atividade industrial, podem ser decididos os procedimentos urbanísticos

4 Compreende-se, assim, a condição imposta pelo IAPMEI anexa ao título de instalação e

exploração n.º 888/2015-1, de que o início da atividade do estabelecimento da ECOIBÉRIA depende da emissão de título de autorização de utilização.

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do RJUE, que se destinam a apreciar questões distintas das analisadas anteriormente

(exceto quanto à localização se ela tiver sido, a pedido do interessado, apreciada pela

CCDR nessa sede, o que não sucedeu no caso em apreço).

Sendo distintos os âmbitos de apreciação destes procedimentos e sendo

distintos os interesses públicos que em cada um deles se pretende salvaguardar,

resulta claro que as condições impostas no título de instalação e exploração se

dirigem à atividade industrial, em nada contendendo com o licenciamento urbanístico,

destinado a verificar as questões de ordenamento do território e urbanísticas (cfr.

artigo 24.º do RJUE).

Em suma, no caso em apreço está em causa um estabelecimento industrial de tipo 2

que foi sujeito ao procedimento legalmente exigido para a sua instalação: o

procedimento de comunicação prévia com prazo. Esse procedimento foi levado a

cabo nos termos legalmente exigidos (Decreto-Lei n.º 169/2012, de 1 de agosto na

versão então em vigor) e o referido estabelecimento industrial obteve, neste âmbito,

na sequência de decisão favorável sobre o respetivo pedido, título de instalação e

exploração (título n.º 888/2015-1) emitido pelo IAPMEI em 16 de outubro de 2015.

O que significa que a ECOIBÉRIA dispõe já de título de instalação e funcionamento

da atividade industrial que pretende levar a cabo, obtido no âmbito de um

procedimento destinado a verificar (controlar) o cumprimento dos requisitos

atinentes ao acesso e exercício da atividade.

Porque, e na medida em que, para a instalação da referida atividade a

ECOIBÉRIA tem de construir de raiz um edifício, foi desencadeado, como devia, o

procedimento devido — no caso, o licenciamento de obras de edificação —, sendo

no domínio deste que o órgão competente (câmara municipal) se terá de pronunciar

sobre as questões urbanísticas/de ordenamento do território. É neste preciso

procedimento que nos encontramos no caso em apreço, e é esta decisão (licença de

construção) que agora tem de ser proferida.

Na medida em que estão em causa procedimentos destinados a apreciar

questões diferentes, nada impede que a pretensão da ECOIBÉRIA, ainda que já

disponha de título de instalação e funcionamento, seja inviabilizada no presente

momento: bastará, para que tal aconteça, que a edificação que se pretende levar a

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cabo não cumpra as normas legais e regulamentares que lhe são aplicáveis,

designadamente as de planeamento.

Aliás, é por isso mesmo que o próprio título de instalação e exploração da

atividade (título n.º 888/2015-1) faz depender os seus efeitos (início da exploração

do estabelecimento industrial) da emissão do título de autorização de utilização

(alvará) do edifício ou certificado o respetivo deferimento tácito (obtido no âmbito

dos procedimentos regulado no RJUE).

Não se estranhe que assim seja precisamente porque, como repetidamente

afirmamos, se trata de procedimentos com âmbitos de apreciação diferenciados.

É certo que uma solução legal como esta — que remete a decisão dos

procedimentos urbanísticos para um momento posterior aos procedimentos de

controlo da atividade — pode traduzir-se num desperdício de investimentos por

parte do promotor desta, já que de nada lhe servirá dispor de título de instalação e

exploração se não for viável a sua instalação na localização pretendida. Foi

precisamente tendo em conta esta realidade que o legislador veio, por um lado,

admitir a antecipação da consulta das entidades e, por isso, da apreciação da

localização dos estabelecimento industrial de tipo 1 ou 2, para os procedimentos de

autorização prévia ou comunicação prévia com prazo do SIR e, por outro lado

(como alternativa), a possibilidade de o interessado desencadear antes dos

procedimentos do SIR, um procedimento de informação prévia (no âmbito da qual

questione a viabilidade de o empreendimento ter a localização que pretende), cuja

decisão não está dependente da emissão do título de instalação e exploração e, por

isso, pode (deve) ser emitida antes deste.

Do afirmado decorrem duas conclusões com relevo no presente caso:

que o título de instalação e exploração da atividade em causa (título n.º

888/2015-1)não confere à ECOIBÉRIA o direito a obter o deferimento do

pedido de licenciamento da obra de edificação;

O procedimento de licenciamento da obra de edificação não se destina a

verificar o cumprimento das condições impostas título de instalação e

exploração da atividade (o momento adequado para isso é no âmbito de

vistorias de conformidade ao funcionamento do estabelecimento,

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realizadas nos termos do SIR).

Esta nossa última conclusão leva a responder, desde logo, de forma negativa à

questão suscitada pelo senhor Presidente da Câmara de saber se poderia o pedido de

licenciamento das obras de edificação ser indeferido por desconformidade do

projeto com as condições impostas pelas várias entidades que se pronunciaram no

âmbito do procedimento que deu lugar à emissão do título de exploração e

instalação da atividade industrial n.º 888/2015. Com efeito, não só o licenciamento

das obras não se destina a verificar o cumprimento das condições impostas no título

de instalação e funcionamento da atividade, como as condições impostas neste se

dirigem ao exercício da atividade e não às obras do edifício onde o mesmo se vai

instalar.

2. Processo de licenciamento de obras ao abrigo do RJUE

2.1. As fases do licenciamento de obras de edificação

O procedimento de licenciamento de obras de edificação encontra-se dividido

em dois momentos (subfases): a primeira, atinente à apreciação e aprovação do projeto de

arquitetura; a segunda, referente à apresentação dos projetos de engenharia de

especialidades (que têm de ser apresentados em determinados prazos sob pena de

caducidade do ato de aprovação do projeto de arquitetura), conduzindo, caso estes

não coloquem problemas específicos, ao licenciamento da obra.

O papel dos municípios no âmbito do procedimento de licenciamento é a de

proceder ao controlo das condições urbanísticas da sua realização, isto é, ao

controlo do cumprimento, pelas mesmas, dos instrumentos de planeamento e das

regras técnicas de construção que se destinam a salvaguardar o correto ordenamento do

território, portanto, das normas constantes de planos de municipais ordenamento do

território, de medidas preventivas, de servidões administrativas e restrições de

utilidade pública e, ainda, de quaisquer outras relativas ao aspeto exterior e à inserção

urbana e paisagística das edificações, bem como sobre o uso proposto. Estes aspetos

(e apenas eles) são objeto de verificação no âmbito da apreciação e aprovação do

projeto de arquitetura, conforme decorre do n.º 1 do artigo 20.º, sob pena de

indeferimento do pedido (artigo 24.º).

Isto significa que aos municípios apenas cabe avaliar nos procedimentos de

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licenciamento fazendo-o no âmbito da apreciação dos projetos de arquitetura ,

os aspetos urbanísticos da obra numa perspetiva do correto ordenamento do

território, atendendo-se, por isso, e exclusivamente, à dimensão exterior dos edifícios e

à integração urbana e paisagística das demais operações urbanísticas5.

Este entendimento, que vinha sendo acentuado nas várias versões do RJUE

— por isso se isentou de controlo preventivo as intervenções nos edifícios que

tenham um impacto meramente interno6, à exceção das que ocorram em edifícios

classificados7 —, admitia, porém, alguns desvios impostos por normas especiais,

como era o caso, a título de exemplo, do regime jurídico das acessibilidades, sendo o

próprio Decreto-Lei n.º 163/2006, de 8 de agosto, a prever um regime especial de

controlo pela Administração das exigências nele dispostas (a maior parte a cumprir

no interior dos edifícios), chegando mesmo a estabelecer mecanismos de

sancionamento disciplinar caso esse controlo não fosse efetuado.

Era também nesta lógica — de reservar para a Administração municipal o

controlo das operações de um ponto de vista estritamente urbanístico, feito no

âmbito exclusivo da apreciação do projeto de arquitetura, que é onde as questões

urbanísticas têm reflexo — que o RJUE vinha já dispensando a apreciação, por

parte dos serviços municipais, dos projetos de especialidades (fase subsequente à

aprovação do projeto de arquitetura) desde que os mesmos viessem acompanhados

de declaração de responsabilidade dos autores desses projetos, nos termos definidos

no n.º 8 do artigo 20.º (sendo os mesmos elementos instrutórios necessários do

pedido). A dispensa de apreciação destes projetos pelos serviços municipais não

significava, porém, a dispensa de sujeição de tais projetos a consulta, certificação,

autorização ou parecer legalmente exigidos por parte de entidades, normalmente

externas (que se responsabilizavam pela verificação do cumprimento das normas

aplicáveis), nem a dispensa de os juntar ao processo de licenciamento em curso no

município. Com o Decreto-Lei n.º 26/2010 deu-se um passo em frente,

5 Para mais desenvolvimentos cfr. o nosso «“Água mole em pedra dura…”, de novo o acto de

aprovação do projeto de arquitectura», anotação ao Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (2.º Juízo) de 28/10/2009, P. 4110/08, Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 84, novembro/dezembro de 2010.

6 Cfr. alínea b) do n.º 1 do artigo 6.º do RJUE. 7 Alínea d) do n.º 2 do artigo 4.º do RJUE.

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13 13

dispensando-se não apenas a apreciação dos projetos de especialidade pelos serviços municipais

nos termos supra referidos, mas também da junção ao processo das consultas, certificações,

aprovações ou pareceres sobre os mesmos emitidos, desde que, nos termos do n.º 9 do artigo

13.º do RJUE, o respetivo projeto fosse acompanhado de termo de responsabilidade

subscrito por técnico autor de projeto legalmente habilitado que atestasse o seu

cumprimento.8

A solução referida apreciação apenas, por parte dos órgãos municipais, das

questões externas do projeto de arquitetura e não apreciação das especialidades é

reforçada com a alteração efetuada ao RJUE pelo Decreto-Lei n.º 136/2014, de 9 de

setembro ao determinar, por um lado, que “[a]s declarações de responsabilidade dos autores

dos projetos de arquitetura, no que respeita aos aspetos interiores das edificações (…) constituem

garantia bastante do cumprimento das normas legais e regulamentares aplicáveis, excluindo a sua

apreciação prévia, salvo quando as declarações sejam formuladas nos termos do n.º 5 do artigo

10.º” (n.º 8 do artigo 20.º) permitindo, deste modo, que, mesmo nos casos

especiais a que nos referimos supra (designadamente no âmbito do regime das

acessibilidades), o município não tenha de se ater a questões internas da edificação9

e ao prever, por outro lado que “[o]s projetos (…) de especialidades (…), quando

acompanhados por termo de responsabilidade subscrito por técnico autor de projeto legalmente

habilitado nos termos da lei (…), ficam dispensados da apresentação na câmara municipal de

consultas, certificações, aprovações ou pareceres externos, sem prejuízo da necessidade da sua

obtenção quando legalmente prevista”.10

8 A exceção a esta regra ficou a valer apenas para os projetos de eletricidade e do gás (cfr. a Lei

n.º 28/2010, de 2 de setembro). 9 Em consonância com esta solução, o Decreto-Lei n.º 136/2014 (artigo 5.º) procede a uma

alteração do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 163/2006, de forma a articular ambos os regimes. 10 Esta é uma solução que visa reforçar a simplificação procedimental (e a desburocratização), tornando

inexigível a junção ao processo de licenciamento de elementos (autorizações, pareceres e certificações)

desnecessários no seu âmbito, já que, ainda que aí constem, a Administração municipal não está

habilitada a proceder ao respetivo controlo, nem o efetua. Fundamental é, assim, no que aos projetos de

especialidade diz respeito, que o município garanta a existência no processo de quem se

responsabilizasse por eles; e esse alguém é, ou a entidade que o autoriza (emite parecer ou o certifica), ou

o técnico legalmente habilitado que se responsabiliza pela sua obtenção. Um ou outro destes

documentos apresenta-se, deste modo, como elemento instrutório indispensável para o prosseguimento

do procedimento, com vista à emissão do ato final de licenciamento, e que, não sendo apresentados,

geram a rejeição liminar do processo.

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2.2. Do ato de aprovação do projeto de arquitetura: natureza e funções

Correspondendo a apreciação do projeto de arquitetura à primeira fase do

procedimento de licenciamento, muitas foram as dúvidas que se colocaram a

propósito da função e da natureza jurídica deste ato.

No que concerne à respetiva natureza jurídica, a doutrina vem unanimemente

concluindo, de há muito (tendo apenas posteriormente sido secundada pela

jurisprudência), pela recondução deste ato à categoria genérica das pré-decisões,

assumindo a configuração de um ato prévio e não de um ato parcial, dada a ausência de

efeitos permissivos deles decorrentes.

Por seu turno, não restam dúvidas de que o ato de aprovação do projeto de

arquitetura desempenha no procedimento de licenciamento uma função muito

específica, que é a de decidir as condições urbanísticas da realização da obra (por isso, tal

apreciação corresponde a uma fase autónoma daquele procedimento, que

condiciona todo o andamento posterior do mesmo). Daí que a doutrina tenha

afirmado que a licença corresponde a um ato complexo que engloba vários atos

autónomos, sendo um deles a aprovação do projeto de arquitetura11. Por intermédio

deste ato a Administração municipal aprecia as condições (urbanísticas) que a obra

deve respeitar, decidindo sobre elas de forma definitiva por não estar previsto no

decurso do procedimento uma nova pronúncia sobre estas questões. Por isso se

afirma que a aprovação do projeto de arquitetura é um ato constitutivo de direitos (pelo

menos do direito a que estas questões não voltem a ser postas em causa e discutidas

no decurso do procedimento de licenciamento se aquela apreciação for válida),

sendo vinculativo para a câmara municipal aquando da deliberação final (isto é, da

prolação do ato de licenciamento).

Se a doutrina era, mais ou menos unânime, o mesmo não se podia dizer da

jurisprudência. Só com o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (2.º

11 Vide, a este propósito, o nosso “Duas questões no direito do urbanismo: aprovação de projecto

de arquitectura (acto administrativo ou acto preparatório) e eficácia de alvará de loteamento (desuso?)”, anotação ao Acórdão do STA de 5/5/1998, P. 43 497, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 13, janeiro/fevereiro de 1999; MÁRIO ARAÚJO TORRES, “Ainda a (in)impugnabilidade da aprovação do projecto de arquitectura”, in CJA, n.º 27, maio/junho de 2001; JOÃO GOMES ALVES, “Natureza jurídica do acto de aprovação do projecto de arquitectura”, anotação ao Acórdão do STA de 5/5/1998, P. 43 497, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 17, setembro/outubro de 1999; e ANTÓNIO DUARTE DE ALMEIDA, “A natureza da aprovação do projeto de arquitectura e a responsabilidade pela confiança no Direito do Urbanismo”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 45, maio/junho de 2004.

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15 15

Juízo), de 28 de outubro de 2009, P. 4110/08, se veio a confirmar a inversão da até

aí dominante jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (STA), que

sempre havia afirmado uniformemente que o ato de aprovação do projeto de

arquitetura se apresentava como um ato preliminar do procedimento de licenciamento

(que embora contribuísse, em parte, para o conteúdo do ato de licenciamento, não

assumia “autonomia funcional” nem, por este motivo, eficácia imediatamente lesiva

em face de terceiros), e que “a deliberação que se limita a aprovar o projeto de arquitetura e a

legitimar a prossecução do procedimento não se traduz num ato constitutivo de direitos…”12. Isto

muito embora se denotasse já uma tendência para o STA começar a trilhar um

caminho distinto, pois já vinha afirmando ser aquele o ato que se destina, de forma

final, a pronunciar sobre a conformidade da obra com os instrumentos de

planeamento aplicáveis (cfr. Acórdão de 12 de março de 2007, proferido no âmbito

do P. 620/07) e equiparando-o ao ato de licenciamento para efeitos

indemnizatórios, considerando que “…a deliberação camarária que… aprova o projeto de

arquitetura, não sendo embora o ato final do procedimento de licenciamento… é, no entanto,

constitutiva de direitos para o próprio particular requerente, criando em favor deste expectativas

legítimas no licenciamento, que a partir daí… já não poderá ser recusado com fundamento em

qualquer desvalor desse mesmo projeto…” (cfr. Acórdão do STA de 16 de maio de 2001,

P. 46 227).

Com efeito, de acordo com aquele Acórdão do Tribunal Central

Administrativo Sul de 28 de outubro de 2009 (no mesmo sentido, vide, a título de

exemplo, o Acórdão deste mesmo Tribunal de 28 de outubro de 2008, proferido no

P. 4399/08): “I. Relativamente aos requisitos referidos no art. 20.º, n.º 1, do RJUE, sobre que

incide a apreciação do projeto de arquitetura, a pronúncia da Administração é final e vinculativa.

II. Por isso, embora a aprovação do projeto de arquitetura seja um ato prévio do procedimento de

licenciamento de obras de edificação, ela define determinados elementos que o ato final do

procedimento tem de acolher. II. Assim, porque a questão da conformidade da pretensão com o

plano é verificada no momento da apreciação do projeto de arquitetura é irrelevante a alteração

posterior do PDM para efeitos de emissão da licença de construção, salvo se este dispuser noutro

12 Para uma abordagem genérica desta jurisprudência, cfr. MARIA CRISTINA GALLEGO DOS

SANTOS, “Apreciação e aprovação do projecto de arquitectura – o esquiço, o projecto e a complexidade da norma – artigo 20.º do RJUE”, in O Urbanismo, o Ordenamento do Território e os Tribunais, coordenação FERNANDA PAULA OLIVEIRA, Coimbra, Almedina, 2010, pp. 191 e segs.

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16 16

sentido”.

Assim se confirmou uma viragem definitiva na linha jurisprudencial, passando

a permitir abordar-se de uma perspetiva diferente as várias questões que se

colocavam em relação ao ato de aprovação do projeto de arquitetura: a da sua

impugnabilidade judicial13; a do respetivo carácter constitutivo de direitos para o

requerente; a da forma como o mesmo se comporta quando ocorre, em momento

posterior à sua prática e antes da prolação do ato final de licenciamento, a alteração

das normas urbanísticas aplicáveis (precisamente a questão em apreciação no

acórdão cujo sumário transcrevemos acima); e a da possibilidade de indemnização

nas situações em que este ato é colocado em causa por plano superveniente ou pela

prática de um ato administrativo posterior que determinem a sua caducidade,

anulação, declaração de nulidade ou revogação.

Tudo isto porque o ato de aprovação do projeto de arquitetura se apresenta,

de facto, como o ato pelo qual os municípios procedem ao controlo das condições

urbanísticas da realização das obras de edificação, isto é, procedem à verificação do

cumprimento, pelas mesmas, dos instrumentos de planeamento (incluindo os planos

especiais) e das regras técnicas de construção. Decididas estas questões com a

aprovação do projeto de arquitetura — e com esta aprovação aquelas questões

ficam definitivamente decididas —, o procedimento de licenciamento continua com

a apresentação dos projetos das especialidades, em relação aos quais os instrumentos

de planeamento já nada têm a dizer, não se aplicando, por isso, nesta fase

subsequente.

Por isso se afirma hoje que o ato de aprovação do projeto de arquitetura,

embora pronunciando-se apenas sobre um dos projetos da obra, se apresenta como

13 O Acórdão do STA de 9 de dezembro de 2009, P. 19/09 (2.ª subsecção do contencioso

administrativo), veio afirmar que “constitui ato administrativo impugnável, o ato que aprovou projeto de arquitectura praticado no âmbito de um processo de legalização de uma obra de construção, que havia sido levada a efeito em desconformidade com um anterior licenciamento, o qual permitiu a implantação daquela obra de molde a não permitir um correto arejamento, iluminação natural e exposição à luz solar de um prédio vizinho”, denotando uma inflexão jurisprudencial decorrente da consideração do artigo 51.º, n.º 1, do CPTA, à luz do qual o tribunal afere da recorribilidade do ato, levando a que se reconheça a aprovação do projeto de arquitetura como um ato prévio, com conteúdo decisório, que produz efeitos externos e lesivo de interesses de terceiros.

O caso subjacente a este aresto tinha no entanto uma especificidade que justificou a solução que lhe foi dada por este tribunal à revelia das decisões anteriores: tratava-se de uma legalização, portanto, de uma situação em que a obra se encontrava já concretizada, sendo, por isso, evidente a lesividade do ato de aprovação do projeto de arquitetura em face de terceiros.

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o ato central do procedimento de licenciamento (cuja apreciação antecede e condiciona os

restantes projetos, ainda que tenham sido entregues em simultâneo), traduzindo-se,

afinal, no único ato onde, no procedimento de licenciamento, o município formula

um juízo próprio e autónomo em relação à obra, ficando todos os restantes aspetos da

edificação (referentes aos projetos das especialidades) fora do seu poder de

apreciação e, por isso, da sua responsabilidade.

O que significa que, aprovado o projeto de arquitetura, seguem-se os restantes

aspetos da obra: aqueles que têm projeção nos respetivos projetos das

especialidades; em todo o caso, precisamente porque já não estão em causa questões

urbanísticas, mas questões eminentemente técnicas, a apreciação subsequente passa

à margem do município, sendo a sua aprovação, parecer ou certificação, em regra,

da responsabilidade de entidades externas, cabendo ao município apenas garantir

que os projetos de especialidades são atempadamente entregues (sob pena de

caducidade do ato de aprovação do projeto de arquitetura com a consequente

extinção do procedimento de licenciamento) e objeto de consulta, aprovação,

parecer ou certificação legalmente exigidos.

Assim, estando aprovado o projeto de arquitetura e tendo as entidades

competentes aprovado, emitido parecer ou certificação legalmente exigidos sobre os

projetos das especialidades, o ato final do procedimento — a licença de construção

— surge como um ato devido que não contém uma pronúncia autónoma e inovadora,

limitando-se a confirmar a existência de anteriores atos (aprovação do projeto de

arquitetura e aprovações, pareceres ou certificações dos projetos das especialidades),

procedendo a uma mera confederação de todos eles.

2.3. Da aplicação ao caso em apreço

i. Tendo em consideração o que foi referido anteriormente — que o ato de

aprovação do projeto de arquitetura é um ato administrativo (ainda que prévio), que

define de forma definitiva as questões urbanísticas/de ordenamento do território da

obra, apresentando-se, por isso, do ponto de vista jurídico, como um ato constitutivo

de direitos para o respetivo destinatário a que se aplica, em consequência, o regime

previsto para os atos constitutivos de direitos — e tendo presente que na situação

aqui em análise este ato foi já praticado pela Câmara Municipal, terá de concluir que,

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se este órgão pretender inviabilizar agora aquela edificação, não pode ignorar a

decisão que já tomou, motivo pelo qual terá, necessariamente, de rever o ato

praticado, isto é, de reapreciar a decisão tomada e afasta-la.

Essa revisão poderá ser feita por uma das seguintes formas:

Mediante declaração de nulidade do ato e indeferimento do pedido de

licenciamento, se a aprovação do projeto de arquitetura estiver ferida de um

vício gerador de nulidade;

Mediante anulação administrativa, caso aquele ato esteja ferido de vícios que

determinam a respetiva anulabilidade, só o podendo, contudo, fazer nos

termos do artigo 168.º do CPA no que respeita à anulação dos atos

constitutivos de direitos;

Mediante revogação do ato, por considerar que a sua aprovação já não é

oportuna ou conveniente para o interesse público, aplicando-se, neste caso, o

regime previsto no artigo 167.º do CPA para a revogação dos atos

constitutivos de direitos.

Sobre as duas primeiras situações — onde que está em causa um juízo sobre a

invalidade do ato — consideramos que dificilmente as mesmas podem ser invocadas

no presente momento.

Com efeito, todas as normas que têm sido invocadas no caso em apreço como

tendo sido violadas (tendo presente que, de todas elas, apenas gera nulidade a

violação do Plano Direito Municipal), são normas conferem um amplo espaço de

apreciação à Câmara Municipal (isto é, que conferem à Câmara Municipal

discricionariedade administrativa14) o que significa que a invocação de invalidade

com base na sua violação apenas pode ser baseada em vícios de discricionariedade que,

quanto a nós, não é manifesto que existam no caso em apreço.

Efetivamente, nem a decisão foi tomada com erro de facto (que existira se a

decisão se tivesse baseada em factos inexistentes ou falseados), nem com erro

14 Em causa estão, de facto, normas que lançam mão de conceitos indeterminados que remetem a

Administração para a formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa, como é o caso dos conceitos “afetar negativamente a envolvente do ponto de vista ambiental, paisagístico e funcional”, “criar condições de incompatibilidade, designadamente por darem lugar a ruídos, fumos ou condições de insalubridade”; de “perturbarem as condições de trânsito e de estacionamento”, de “gerarem situações urbanísticas ou técnicas deficientes, desajustadas ou lesivas da qualidade ambiental”, etc.

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manifesto de apreciação (que ocorre quando, embora a decisão se tenha baseado em

factos verdadeiros, se torna evidente que a Administração avaliou ou qualificou de

forma manifestamente desacertada e inaceitável a realidade), nem existe uma violação

manifesta de qualquer princípio jurídico.15

Refira-se que apenas nestas situações poderia um Tribunal Administrativo, no

controlo que fosse chamado a fazer da atuação administrativa, anular o ato em causa

(ou declarar a sua nulidade): tratando-se do exercício de poderes discricionários, o

poder de controlo judicial é atenuado de forma a dar cumprimento ao princípio da

separação de poderes: um controlo de mera fiscalização e não de reexame.

Foi precisamente neste sentido que conclui o Ministério Público junto do

Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga ao reconhecer que, embora a decisão

pudesse ter sido outra, a que foi tomada não só não ofende o Plano Diretor

Municipal como “… se contém nas margens do poder discricionário da Administração — artº

3º nº 1 do C.P.T.A. — e que, por isso, não pode nem deve ser sindicada pelo tribunal….” .

É certo que estando em causa uma declaração administrativa da nulidade do

ato (ou uma sua anulação administrativa) não se colocariam iguais limites que à

declaração judicial. Mas, na medida em que todas as questões foram já devidamente

colocadas e ponderadas pelo órgão competente e levaram, ainda assim, a uma

decisão favorável à pretensão16, uma nova decisão, em sentido desfavorável, com

base nas mesmas normas que anteriormente levaram a um juízo distinto, poderia ser

visto como uma violação manifesta do princípio da boa-fé e da proteção da

confiança dos particulares, geradora de invalidade desta nova decisão.

15 Mesmo o princípio da igualdade, que parece ter sido invocado quando se comparou o atual

deferimento com um anterior indeferimento de um projeto de loteamento, surge aqui violado na medida em que a Câmara Municipal forneceu uma fundamentação adequada e convincente para que a referida solução fosse distinta. Com efeito, os serviços apresentaram fundamentação adequada que permite justificar que as mesmas normas (os mesmos critérios) podem levar a soluções distintas em função da natureza e das características das operações urbanísticas em causa, afirmando (e bem) que o ato final de gestão urbanística é sempre o equilíbrio e o compromisso entre as várias realidades presentes no território (seja a legal, ambiental e urbanística, a económica, cultural e social), medindo sempre o impacto e o benefício em presença para a formulação da decisão final. E, como os serviços municipais confirmam, foram devidamente ponderados no caso em apreço os distintos interesses em presença: o económico (investimento); o social (postos de trabalho a criar); o funcional (questões ambientais).

16 Refira-se que a explicitação dos argumentos que levaram à aprovação do projeto de arquitetura foi feita de forma clara e expressa na resposta que dada pelo órgão autárquico ao Ministério Público em sede de impugnação judicial daquele ato. Com efeito, para efeitos de defesa do Município, foi elaborado um documento técnico, enviado ao Ministério Público, com uma apreciação exaustiva dos vários argumentos que levaram à aprovação do projeto de arquitetura, rebatendo, até, as várias denuncias feitas.

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Resulta do afirmado que no presente momento o afastamento do ato

praticado (aprovação do projeto de arquitetura) apenas poderia ser deliberado pela

Câmara Municipal com fundamento na sua inoportunidade atual para o interesse

público, isto é, por razões de mérito, inconveniência ou inoportunidade. E neste

caso, o “afastamento” da aprovação do projeto de arquitetura seria feito mediante

revogação.

Estando, porém, em causa, um ato constitutivo de direitos, a revogação, não

sendo afastada, está sujeita a um conjunto de condicionalismos identificados no n.º

2 do artigo 167.º do CPA. E não se verificando manifestamente, no caso em apreço,

as situações a que se referem as alíneas a), b) e d), também não nos parece que se

possa invocar a alínea c) para fundamentar a revogação na medida em que não nos

parece existir dados supervenientes à decisão inicial. Pelo contrário, os dados são os

mesmos e já foram todos devidamente ponderados.

ii. Ainda que a Câmara Municipal entendesse haver motivos para declarar a

nulidade, anular ou revogar o ato de aprovação do projeto de arquitetura, deve ter

presente que tal decisão pode ter consequências indemnizatórias. É isso que

decorre, desde logo, do disposto do n.º 2 do artigo 70.º do RJUE ao prever a

“responsabilidade por prejuízos resultantes de operações urbanísticas executadas com base em atos

de controlo prévio ilegais, nomeadamente em caso de revogação, anulação ou declaração de nulidade

de licenças ou autorizações de utilização, sempre que a causa de revogação, anulação ou declaração

de nulidade resulte de uma conduta ilícita dos titulares dos seus órgãos ou dos seus funcionários e

agentes”.

Responsabilidade que, no caso de revogação propriamente dita (por razões de

mérito, inconveniência ou inoportunidade) é reforçada no n.º 5 do artigo 167.º do

CPA ao determinar que “na situação prevista na alínea c) do n.º 2, os beneficiários de boa-fé

do ato revogado têm direito a ser indemnizados, nos termos do regime geral aplicável às situações de

indemnização pelo sacrifício, mas quando a afetação do direito, pela sua gravidade ou intensidade,

elimine ou restrinja o conteúdo essencial desse direito, o beneficiário de boa-fé do ato revogado tem

direito a uma indemnização correspondente ao valor económico do direito eliminado ou da parte do

direito que tiver sido restringida”.

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C. CONCLUSÕES

Tendo em conta tudo quanto foi afirmado, podemos formular o seguinte

quadro conclusivo que não dispensa a leitura atenta do presente Parecer:

A.

1 .º Não devem confundir-se os procedimentos tendentes à instalação dos

estabelecimentos industriais — procedimentos que se encontram regulados no

Sistema da Indústria Responsável (SIR) —, com os procedimentos a que se

encontram sujeitas as operações urbanísticas necessárias para que os referidos

estabelecimentos se possam instalar — os procedimentos regulados no

Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE);

2 .º Trata-se de regimes (e procedimentos) interligados — porque referentes à

mesma pretensão global —, mas com âmbitos e objetivos distintos: o primeiro

destina-se a controlar o cumprimento das condições do exercício da atividade; o

segundo a controlar o impacto da operação urbanística no ordenamento do território.

3 .º No caso em apreço, está em causa a instalação de um estabelecimento industrial de

tipo 2 a que se aplicou o procedimento de comunicação prévia com prazo prevista

no artigo 30.º e ss. do SIR;

4 .º O artigo 32.º, n.º 8 deste regime legal, que identifica os motivos de

indeferimento desta comunicação, é elucidativo sobre o que se controlou neste

âmbito:

o cumprimento dos condicionamentos legais e regulamentares em vigor

relativos às características e especificações da instalação industrial;

o cumprimento das exigências referentes à emissão de gases com efeito

de estufa; à utilização de recurso hídricos, às operações de gestão de

resíduos e à atribuição do número de controlo veterinário, quando

aplicável;

o cumprimento das questões de localização definidas pela CCDR

quando o interessado tenha decidido antecipar para o procedimento do

SIR a decisão quanto à localização.

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5 .º De acordo com o disposto no artigo 17.º do SIR, os procedimentos

urbanísticos do RJUE apenas podem ser decididos após obtenção do título

atinente à instalação e exploração da atividade industrial;

6 .º Sendo distintos os âmbitos de apreciação dos procedimentos do SIR e do

RJUE, e sendo distintos os interesses públicos que em cada um deles se

pretende salvaguardar, resulta claro que as condições impostas no título de

instalação e exploração se dirigem à atividade industrial, em nada contendendo

com o licenciamento urbanístico, destinado a verificar as questões de

ordenamento do território e urbanísticas (cfr. artigo 24.º do RJUE) e que

apenas deve ser decidido em momento posterior;

7 .º Donde resulta que o título de instalação e exploração n.º 888/2015-1 de que é

titular a ECOIBÉRIA não lhe confere o direito a obter o deferimento do pedido

de licenciamento da obra de edificação;

8 .º Mas donde resulta também que o licenciamento da obra de edificação não se

destina a verificar o cumprimento das condições impostas no título de

instalação e exploração da atividade; para o efeito existem as vistorias de

conformidade ao funcionamento do estabelecimento, realizadas nos termos do

SIR.

9 .º Conclui-se, assim, que não pode o pedido de licenciamento das obras de

edificação ser indeferido por desconformidade do projeto com as condições

impostas pelas várias entidades que se pronunciaram no âmbito do

procedimento que deu lugar à emissão do título de exploração e instalação da

atividade industrial n.º 888/2015.

B.

10.º O ato de aprovação do projeto de arquitetura é um ato administrativo (ainda que

prévio), que define de forma definitiva as questões urbanísticas/de ordenamento

do território da obra;

11.º Apresenta-se, por isso, do ponto de vista jurídico, como um ato constitutivo de

direitos para o respetivo destinatário a que se aplica, em consequência, o regime

previsto para os atos constitutivos de direitos;

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12.º Tendo este ato já sido praticado pela Câmara Municipal de Guimarães no quie

se refere à pretensão da ECOIBÉRIA, se este órgão pretender inviabilizar agora

aquela edificação, terá de rever a sua decisão.

13.º Essa revisão poderá ser feita por uma das seguintes formas:

Mediante declaração de nulidade do ato e indeferimento do pedido de

licenciamento, se a aprovação do projeto de arquitetura estiver ferida de

um vício gerador de nulidade;

Mediante anulação administrativa, caso aquele ato esteja ferido de vícios

que determinam a respetiva anulabilidade, só podendo, contudo, ser feito

nos termos do artigo 168.º do CPA no que respeita à anulação dos atos

constitutivos de direitos;

Mediante revogação do ato, por se considerar que a sua aprovação já não

é oportuna ou conveniente para o interesse público, aplicando-se, neste

caso, o regime previsto no artigo 167.º do CPA para a revogação dos

atos constitutivos de direitos.

14.º No caso em apreço não resulta claro nem óbvio que a decisão tomada seja

inválida (nula ou meramente anulável);

15.º Foi neste sentido que conclui o Ministério Público junto do Tribunal

Administrativo e Fiscal de Braga ao reconhecer que embora a decisão pudesse

ter sido outra, a que foi tomada não só não ofende o Plano Diretor Municipal

como “… se contém nas margens do poder discricionário da Administração — artº 3º nº

1 do C.P.T.A. — e que, por isso, não pode nem deve ser sindicada pelo tribunal….” .

16.º Acresce que uma declaração administrativa de nulidade ou uma anulação

administrativa do ato — na medida em que todas as questões foram

devidamente colocadas e ponderadas pela Câmara Municipal e levaram, ainda

assim, a uma decisão favorável à pretensão —, poderia ser vista como

manifestamente violadora do princípio da boa-fé e da proteção da confiança

da ECOIBÉRIA, geradora da sua invalidade.

17.º Já uma revogação (por razões de mérito, inconveniência ou inoportunidade),

Page 24: B. CONSULTA - cm-guimaraes.pt · que depende a prática de tal ato. Cfr. Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos

FERNANDA PAULA OLIVEIRA

Professora da Faculdade de Direito de Coimbra

Pátio da Universidade 3004-545 Coimbra

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porque se trata de um ato constitutivo de direitos, só poderá ser deliberada

verificados que estejam os condicionalismos identificados no n.º 2 do artigo

167.º do CPA, o que não resulta claro na presente situação;

18.º Em todo o caso, ainda que a Câmara Municipal entendesse haver motivos

para declarar a nulidade, anular ou revogar o ato de aprovação do projeto de

arquitetura, sempre esta decisão poderá ter consequências indemnizatórias.

19.º É isso que decorre do disposto do n.º 2 do artigo 70.º do RJUE reforçado

pelo n.º 5 do artigo 167.º do CPA.

Este é, salvo melhor, o nosso parecer

(Fernanda Paula Oliveira)