Badiou São Paulo

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    S O P A U L OF U N D A O D O U N I V E R S A L I S M O

    A L A I N B A D I O UoTADG K d e STIO

    T R A D U O : W A N D A C A L D E I R A B R A N T

    E D I T O R I A L

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    Copyright Boitempo Editorial, 2009Copyright Presses Universitaires de France, 1997

    Edio original: Saint Paul, la fondation de luniversalisme (Paris, Presses Universitaires de France,

    1997, coleo Les essais du Collge International de Philosophie).

    COORDENAAO EDITORIAL

    EDITOR-ASSISTENTE

    ASSISTNCIA EDITORIAL

    TRADUO

    REVISO DA TRADU O

    PREPARAO

    REVISO

    CAPA E DIAGRAMAO

    PRODUO

    Ivana Jinkings

    Jorge Pereira FilhoFrederico Ventura e Elisa Andrade Buzzo

    Wanda Caldeira Brant

    Ronaldo Manzi Filho

    Tatiana Ferreira de Souza

    Vivian Miwa Matsushita

    Silvana de Barros Panzoldosobre leo de Etienne Parrocel, Saint Paul(sec. 18)

    Marcel lha

    CIP-BRASIL. CATALOGAO NA FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ________

    B126s

    Badiou, Alain, 1937-So Paulo : a fundao do universalismo / Alain Badiou ; traduo de Wanda

    Caldeira Brant. - So Paulo : Boitempo, 2009.il. - (Estado de Stio)

    Traduo de: Saint Paul : la fondation de luniversalismeInclui bibliografiaISBN 978-85-7559-150-5

    1. Paulo, Apstolo, Santo - Contribuio ao conceito de universalismo. 2.Bblia. N.T. Epstolas de Paulo - Crtica, interpretao, etc. 3. Universalismo -Ensinamentos bblicos. I. Ttulo. II. Ttulo: A fundao do universalismo.09-4771. CDD: 227

    CDU : 27-248A

    11.09.09 18.09.09 015215

    Cet ouvrage, publi dans le cadre de l 'Anne de la France

    au Brs i l et du Programme dAide la Publication Carlos

    Drummond de Andrade, bnficie du soutien du Ministre

    franais des Affaires Etrangres et Europennes.

    Frana.Br 2009 l 'Anne de la France au Brs i l (21 avril -1 5

    novembre) est organise :

    - en France, par le Com m issariat gnral franais, le Ministre

    des Affaires Etrangres et Europennes, le Ministre de la

    Culture et de la Com m unication et C ulturesfrance;

    - au B rsil, par le Co m m issariat gnral brsilien, le Ministre

    de la Cu lture et le Ministre des Relations Extrieures.

    Este livro, publicado no mbito do Ano da Frana no Brasil

    e do programa de Auxl io Publicao Carlos Drummond

    de Andrade, contou com o apoio do Ministrio francs das

    Relaes E xteriores e Europeias.

    Frana.Br 20 09 Ano da Frana no Bras il (21 d e abril a 15

    de n ovembro) organizado:

    - na Frana, pelo Comissariado geral francs, pelo Ministrio

    das Relaes Exteriores e Europeias, pelo Ministrio da C ultura

    e da Com unicao e por Culturesfrance;

    - no B rasil, pelo C om issariado geral brasileiro, pelo Ministrio

    da Cultura e pelo Ministrio das Relaes Exteriores.

    vedada, nos termos da lei, a reproduo de qualquerparte deste livro sem a expressa autorizao da editora.

    Ia edio: outubro de 2009

    BOITEMPO EDITORIALJinkings Editores Associados Ltda.Rua Pereira Leite, 37305442-000 So Paulo SPTel./fax: (11) 3875-72 50 / 3872-6869editor(2)boitempoeditorial.com.brwww.boitempoeditorial.com.br

    Libert Egalit Fraternit

    R p u b l i q u e F r a n a i s e

    http://www.boitempoeditorial.com.br/http://www.boitempoeditorial.com.br/
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    SUMRIO

    Prlogo.........................................................................................................7

    1 Contemporaneidade de Pau lo.......................................................11

    2 Quem Paulo?..................................................................................25

    3 Textos e contextos........................................................................... 41

    4 Teoria dos discursos.........................................................................51

    5 A diviso do Sujeito........................................................................67

    6 A antidialtica da morte eda ressurreio.................................77

    7 Paulo contra a l e i .............................................................................89

    8 O amor como fora universal..................................................101

    9 A esperana ................................................................................... 109

    10 Universalidade e travessiadas diferenas..............................115

    11 Para concluir................................................................................. 125

    Posfcio, por Yladimir Safatle........................................................131

    De que filosofia do acontecimento a esquerda precisa?

    Obras do autor..................................................................................143

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    PRLOGO

    Estranho empreendimento. H muito tempo esse personagem acompanha-me, ao lado de outros como Mallarm, Cantor,

    Arquimedes, Plato, Robespierre, Conrad... (para no entrar em nos

    so sculo). H quinze anos, escrevi uma pea, l Incident d Antioche,

    cuja herona chama-se Paula. A mudana de sexo criava barreira,

    sem dvida, para qualquer identificao demasiadamente clara. Na

    realidade, Paulo no , para mim, um apstolo ou um santo. Eu no

    tenho a menor necessidade da Nova que ele declara ou do culto quelhe foi consagrado. Mas ele uma figura subjetiva de importncia

    fundamental. Sempre li as epstolas como quando voltamos aos tex

    tos clssicos que nos so particularmente familiares, caminhos aber

    tos, detalhes abolidos, fora intacta. Nenhuma transcendncia, para

    mim, nada de sagrado, igualdade perfeita com qualquer outra obra,

    uma vez que ela me toca pessoalmente. Um homem inscreveu de

    maneira penosa essas frases, essas mensagens veementes e ternas, epodemos tom-las emprestado livremente, sem devoo nem repul

    sa. E ainda mais no meu caso, porque hereditariamente ateu, e at

    mesmo, por meus quatro avs preceptores, mais educado no desejo

    de esmagar a infmia clerical, descobri tarde as epstolas, como tex

    tos curiosos, cuja potica impressiona.

    Na realidade, jamais liguei Paulo religio. No foi desse ponto de

    vista, nem para testemunhar uma f qualquer, nem sequer uma antif,

    que me interessei por ele h muito tempo. Nem tampouco para dizer

    a verdade - mas a emoo foi menor - que me apropriei de Pascal, de

    Kierkegaard ou de Claudel, a partir do que havia de explcito em

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    So Paulo

    suas pregaes crists. De qualquer maneira, o caldeiro em que se

    cozinha o que ser uma obra de arte e de pensamento cheio de im

    purezas inominveis at a borda; contm obsesses, crenas, labirin

    tos infantis, perverses diversas, lembranas impartilhveis, leiturasde fragmentos das mais variadas origens, um grande nmero de bes

    teiras e quimeras. Entrar nessa alquimia no leva a muita coisa.

    Para mim, Paulo um pensador-poeta do acontecimento e, ao

    mesmo tempo, aquele que pratica e enuncia atos constantes carac

    tersticos do que se pode denominar a figura militante. Ele faz surgir

    a conexo, integralmente humana e cujo destino me fascina, entre

    a ideia geral de uma ruptura, de uma virada, e a de um pensamentoprtico, que a materialidade subjetiva dessa ruptura.

    Se, hoje, quero retraar em poucas pginas a singularidade dessa

    conexo feita por Paulo, sem dvida, porque trabalho por todos

    os ngulos, at com a negao de sua possibilidade, a busca de uma

    nova figura militante, demandada para suceder quela cujo lugar

    Lenin e os bolcheviques ocuparam, no incio do sculo passado, e

    que se pode dizer ter sido a do militante de partido.Quando est na ordem do dia dar um passo frente, pode-se,

    entre outras coisas, dar um maior para trs. Da essa reativao de

    Paulo. No sou o primeiro a arriscar a comparao que faz dele um

    Lenin, do qual o Cristo teria sido o Marx equvoco.

    Minha inteno, v-se, no nem de historiador, nem exegtica.

    Ela subjetiva do incio ao fim. Eu me limitei estritamente aos tex

    tos de Paulo autenticados pela crtica moderna e minha relao depensamento com esses textos.

    Para o original grego, usei o Novum Testamentum Graece [novo

    testamento grego], edio crtica de Nestl-Aland, publicado pela

    Deutsche Bibelgesellschaft em 1993.

    O texto francs que serviu de base, do qual revi algumas vezes as

    construes das frases, foi o de Louis Segond, Le Nouveau Testament

    [o novo testamento], publicado pela Trinitarian Bible Society, edio de 1993*.

    Nesta edio brasileira os trechos citados da Bblia foram traduzidos do francs,por fidelidade argumentao de Badiou. Na primeira ocorrncia das obras

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    Prlogo 9

    As referncias s epstolas seguem a disposio tradicional em

    captulos e versculos. Assim, Rm. 1. 25 quer dizer: epstola aos

    romanos, captulo 1, versculo 25. O mesmo ocorre com Gl. pa

    ra a epstola aos glatas, ICor. e 2Cor. para as duas epstolas aoscorntios, Fl. para os filipenses, lTs. para a primeira epstola aos

    tessalonicenses.Para quem quiser continuar por sua prpria conta, quero ressal

    tar, na colossal bibliografia relativa a Paulo:

    1. O consistente livrinho de Stanislas Breton, Saint Paul(Paris,

    PUF, 1988).

    2. Paul, aptre de Jsus-Christ,de Giinther Bornkamm, traduo

    de Lore Jeanneret (Genebra, Labor & Fides, 1971).

    Um catlico, um protestante. Para que formem um tringulo

    com o ateu.

    citadas pelo autor, h a indicao da edio brasileira correspondente quando

    houver. (N. E.)

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    CONTEMPORANEIDADE DE PAULO

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    Por que So Paulo? Por que requerer esse apstolo ainda maissuspeito porque se autoproclamou, sem dvida alguma, como tal e

    porque seu nome costuma ser associado s dimenses mais institucionais e menos abertas do cristianismo: a Igreja, a disciplina mo

    ral, o conservadorismo social, a desconfiana em relao aos judeus?

    Como inscrever esse nome no devir de nossa tentativa: refundar

    uma teoria do Sujeito que subordine a existncia dimenso alea

    tria do acontecimento e pura contingncia do ser-mltiplo, semsacrificar o motivo da verdade?

    Cabe perguntar tambm: que uso pretendemos fazer do dispo

    sitivo da f crist, da qual parece nitidamente impossvel dissociar

    a figura e os textos de Paulo? Por que invocar e analisar essa fbula?

    Que isso fique, de fato, bem claro: para ns, trata-se exatamente de

    uma fbula. E, particularmente, no caso de Paulo, que como ve

    remos reduz, por razes cruciais, o cristianismo a um nico enunciado: Jesus ressuscitou. Ora, esse exatamente o ponto fabuloso,

    uma vez que todo o resto nascimento, predicao, morte - pode,

    em ltima anlise, sustentar-se. fbula o que de uma narrativa

    no diz respeito, para ns, a algo real, a no ser segundo o resduo

    invisvel, e de acesso indireto, que adere a todo imaginrio patente.

    Desse ponto de vista, somente como fbula que Paulo reconduz a

    narrativa crist, com a fora de quem sabe que, se essa questo for

    considerada real, ficamos sem todo o imaginrio que a cerca. Se

    possvel imediatamente falarmos de crena (mas a crena, ou a f,

    ou o que se supe com a palavra mcra todo o problema de Paulo) ,

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    So Paulo

    dizemos que, para ns, rigorosamente impossvel acreditar na res

    surreio do crucificado.

    Paulo uma figura longnqua num triplo sentido: o local histri

    co, o papel de fundador da Igreja, o foco instigante do pensamentoem seu elemento fabuloso.

    Devemos explicar por que levamos to longe o peso de uma pro

    ximidade filosfica, por que o forar fabuloso do real nos serve de

    mediao quando se trata, aqui e agora, de restituir o universal sua

    pura laicidade.

    Nisso, sem dvida, nos ajuda que, por exemplo, Hegel, Auguste

    Comte, Nietzsche, Freud, Heidegger, e ainda, em nossos dias,Jean-Franois Lyotard tambm tenham acreditado ser necessrio

    analisar a figura de Paulo, sempre de acordo com disposies extre

    mas (fundadoras ou regressivas, que remetem ao destino ou negli

    gentes, exemplares ou catastrficas), para organizarem seu prprio

    discurso especulativo.

    O que vai nos reter na obra de Paulo uma conexo singular, que

    formalmente possvel separar da fbula e da qual Paulo precisamente o inventor: a conexo que estabelece uma passagem entre uma

    proposio sobre o sujeito e uma interrogao sobre a lei. Digamosque, para Paulo, trata-se de explorar qual a lei que pode estruturar

    um sujeito sem qualquer identidade e suspenso a um acontecimento,

    cuja nica prova justamente sua declarao por um sujeito.

    Para ns, o essencial que essa conexo paradoxal entre um su

    jeito sem identidade e uma lei sem suporte funda a possibilidade nahistria de uma predicao universal. O gesto indito de Paulo sub

    trair a verdade da dominao comunitria, seja de um povo, de uma

    cidade, de um imprio, de um territrio ou de uma classe social. O

    que verdadeiro (ou justo, o que nesse caso tem o mesmo significa

    do) no se deixa remeter a nenhum conjunto objetivo, nem do pon

    to de vista de sua causa, nem do ponto de vista de seu destino.

    Objetaremos que verdade designe aqui, para ns, uma simplesfbula. Exatamente, mas o que importa o gesto subjetivo apreen

    dido na sua potncia fundadora no que se refere s condies ge

    nricas da universalidade. Mesmo que o contedo fabuloso seja

    abandonado, resta a forma dessas condies e, particularmente, a

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    Contemporaneidade de Paulo

    runa de toda atribuio do discurso da verdade a conjuntos hist

    ricos pr-constitudos.Separar arduamente cada processo de verdade da historicidade

    cultural na qual a opinio pblica pretende dissolv-lo: essa aoperao em que Paulo nos guia.

    Repensar esse gesto, desfazer suas divergncias, vivificar sua singularidade e fora instituinte , com toda certeza, uma necessidade

    contempornea.De fato, de que se compe nossa atualidade? A reduo pro

    gressiva da questo da verdade (portanto, do pensamento) forma

    lingustica do julgamento, ponto sobre o qual esto de acordo aideologia analtica anglo-saxnica e a tradio hermenutica (a dupla analtica/hermenutica tranca com cadeado a filosofia acadmi

    ca contempornea), chega a um relativismo cultural e histrico que,hoje, simultaneamente um tema da opinio pblica, uma motiva

    o poltica e um quadro de referncia para a pesquisa nas cinciashumanas. As formas extremas desse relativismo, j em ao, preten

    dem destinar a prpria matemtica a um conjunto ocidental aoqual se pode fazer equivaler qualquer dispositivo obscurantista ou

    simbolicamente irrisrio, contanto que se esteja em estado de nomear o subconjunto humano que porta esse dispositivo, ou melhor,

    que haja razes para acreditar que esse subconjunto composto por

    vtimas. na tentativa dessa interseo entre a ideologia culturalis-

    ta e a concepo vitimria do homem que sucumbe todo acesso ao

    universal, o qual no tolera que lhe seja atribuda uma particula

    ridade, nem mantm relao direta com o estatuto - dominante ou

    vitimrio - dos lugaresem que emerge a proposio.Qual o real unificador dessa promoo da virtude cultural dos

    subconjuntos oprimidos, desse elogio lingustico dos particularis

    mos comunitrios (os quais, em ltima anlise, remetem sempre

    no s lngua, mas raa, nao, religio ou ao sexo)? Noh dvida alguma de que a abstrao monetria, da qual o fal

    so universal suporta perfeitamente mesclas comunitaristas. A longa

    experincia das ditaduras comunistas tem o mrito de mostrar quea globalizao financeira e o reino sem restrio da universalidade

    vazia do capital tiveram como verdadeiro inimigo apenas um outro

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    projeto universal, ainda que pervertido e ensanguentado; que so

    mente Lenin e Mao realmente davam medo a quem se propunha

    exaltar sem restries os mritos liberais do equivalente geral ou as

    virtudes democrticas da comunicao comercial. A runa senil daURSS, paradigma dos Estados socialistas, elevou provisoriamen

    te o medo, desencadeou a abstrao vazia, abaixou o pensamento

    de todos. E certamente no renunciando ao universal concreto

    das verdades para afirmar o direito das minorias raciais, religio

    sas, nacionais ou sexuais que se reduzir a devastao. No, ns no

    deixaremos os direitos da verdade-pensamento terem como instn

    cias apenas o monetarismo de livre-cmbio e sua medocre polticasimultnea, o capital-parlamentarismo, cuja misria a bela palavra

    democracia acoberta cada vez mais desastrosamente.

    Por isso, Paulo, ele mesmo contemporneo de uma figura monu

    mental da destruio de toda poltica (os incios do despotismo mi

    litar denominado Imprio Romano), interessa-nos extremamente.

    Ele aquele que, destinando ao universal uma determinada conexo

    entre o sujeito e a lei, pergunta-se com o maior rigor qual o preoa pagar por essa destinao, tanto por parte do sujeito quanto por

    parte da lei. Essa pergunta exatamente a nossa. Supondo que conse

    guiremos refundar a conexo entre a verdade e o sujeito, que con

    sequncias a fora para mant-la dever ter, tanto no que diz respeito

    verdade (pertinente ao acontecimento e aleatria) quanto ao que

    se refere ao sujeito (raro e heroico)?

    com vistas a essa questo, e a nenhuma outra, que a filosofiapode assumir sua condio temporal, em vez de tornar-se uma apa

    relhagem para acobertar o pior. Que ela pode enfrentar a poca em

    vez de mascarar a inrcia selvagem.

    Se nos limitarmos ao nosso pas [Frana], ao destino pblico do

    seu Estado, o que se pode assinalar como tendncia marcante nos l

    timos quinze anos? Independentemente, bvio, da ampliao cons

    tante dos automatismos do capital, sob os significantes do liberalismoe da Europa; ampliao que, sendo a lei do mercado mundial, no

    poderia como tal singularizar a configurao de nosso local.

    Infelizmente, para responder a essa pergunta, vemos apenas o es

    tabelecimento irreversvel do partido de Le Pen, verdadeira singula

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    Contemporaneidade de Paulo

    ridade nacional da qual, para encontrar um equivalente, preciso ir,

    e isso no uma recomendao, at a ustria. E qual a mxima

    singular desse partido? A mxima a que nenhum dos partidos parla

    mentares ousa se opor frontalmente, de modo que todos votam outoleram as leis cada vez mais criminosas que dela decorrem implaca

    velmente? Essa mxima : A Frana para os franceses. O que, tra-

    tando-se do Estado, reconduz ao que foi o nome paradoxal dado

    por Ptain* a um governo fantoche, zeloso servidor do ocupante na

    zista: o Estado francs. O motivo pelo qual se instala no centro do

    espao pblico a questo deletria: o que um francs? Mas para

    essa questo, todos sabem que no existe nenhuma resposta sustentvel a no ser a perseguio de pessoas designadas arbitrariamente

    como no francesas. A nica polticareal da palavra francs, man

    tida por uma categoria fundadora no Estado, o estabelecimento,

    cada vez mais insistente, de medidas discriminatrias obstinadas

    que visam s pessoas que esto aqui, ou que procuram viver aqui. E

    particularmente assustador que essa perseguio real da lgica

    identitria (a Lei serve apenas para os franceses) rena sob a mesma

    bandeira, como mostra o triste caso denominado do foulard,os de

    fensores resignados da devastao capitalista (a perseguio seria ine

    vitvel, uma vez que o desemprego probe qualquer acolhida) e os

    defensores de uma fantasmagrica, assim como excepcional, rep

    blica francesa (os estrangeiros somente sero tolerados se eles se in

    tegrarem ao magnfico modelo que lhes propem nossas puras

    instituies, nossos surpreendentes sistemas de educao e de repre

    sentao). Prova que entre a lgica globalizada do capital e o fanatismo identitrio francs existe, no que se refere vida real das pessoas

    e do que lhes acontece, uma detestvel cumplicidade.

    Diante de ns, constri-se a comunitarizao do espao pblico,

    a renncia neutralidade transcendente da lei. O Estado teria de se

    garantir em primeiro lugar e constantemente cuidar da identidade

    genealgica, religiosa e racialmente certificvel daqueles pelos quais

    responsvel. Teria de definir duas regies distintas da lei, ou mesmo

    Philippe Ptain (18561951), chefe de Estado da Frana durante o regime deVichy (1940-1944). (N. E.)

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    1 6 * So Paulo

    trs, conforme se trate de verdadeiros franceses, de estrangeiros inte

    grados ou integrveis e, enfim, de estrangeiros que se declaram no

    integrados e mesmo no integrveis. A lei passaria assim sob o con

    trole de um modelo nacional sem qualquer princpio real, a noser o das perseguies em que ele se engaja. Todo princpio universal

    abandonado, a averiguao identitria, que sempre uma batida po

    licial, deveria preceder a definio ou a aplicao da lei. O que quer

    dizer que, como nos tempos de Ptain, quando os juristas no viam a

    menor malcia em definir sutilmente o judeu como prottipo do no

    francs, seria preciso que toda a legislao fosse acompanhada dos

    protocolos identitrios requeridos e que subconjuntos da populaofossem sempre definidos por seu estatuto especial.Isso segue seu cur

    so, cada um dos governos sucessivos d seu pequeno toque. Ns nos

    encontramos diante de uma petainizao rasteira do Estado.

    Como nessas condies soa claro o enunciado de Paulo, enun

    ciado realmente impressionante quando se conhecem as regras do

    mundo antigo: No h mais judeu nem grego, no h mais escravo

    nem livre, no mais homem nem mulher (GI. 3. 28)! E como, para ns que substituiremos sem dificuldade Deus por essa ou aquela

    verdade, e o Bem pelo servio que essa verdade exige, convm a mxima: Glria, honra e paz para qualquer um que faa o bem, para

    o judeu em primeiro lugar, em seguida, para o grego! Pois diante de

    Deus no h nenhuma distino entre as pessoas (Rm. 2. 10).

    Nosso mundo no de maneira alguma to complexo quanto

    querem aqueles que desejam garantir sua perpetuao. Ele at, em

    suas grandes linhas, de uma perfeita simplicidade.

    Por um lado, h uma ampliao contnua dos automatismos do

    capital, o que a realizao de uma predio genial de Marx: o

    mundo enfim configurado,mas como mercado, como mercado mun

    dial. Essa configurao faz prevalecer uma homogeneizao abstra

    ta. Tudo o que circula cai em uma unidade de conta e, inversamente,

    somente circula o que se deixa assim contar. Alm disso, essa nor

    ma que esclarece um paradoxo que poucos salientam: na hora dacirculao generalizada e do fantasma da comunicao cultural ins

    tantnea, multiplicam-se por toda parte as leis e os regulamentos

    para proibirem a circulao de pessoas. assim que, na Frana,

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    Contemporaneidade de Paulo

    jamais houve to poucos estrangeiros instalados como no ltimo

    perodo! Livre circulao do que se deixa contar, sim, e em primeiro

    lugar dos capitais, do que a conta da conta. Livre circulao da in

    contvel infinidade que uma vida humana singular, jamais! quea abstrao monetria capitalista certamente uma singularidade,

    mas uma singularidade que no tem relao com nenhuma singula

    ridade. Uma singularidade indiferente persistente infinidade daexistncia, assim como ao devir das verdades pertinentes aos

    acontecimentos.

    Por outro lado, h um processo de fragmentao em identidades

    fechadas, e a ideologia culturalista e relativista que acompanha essafragmentao.

    Esses dois processos so perfeitamente intricados. Pois cada iden

    tificao (criao ou bricolagem de identidade) cria uma figura que

    constitui matria para seu investimento pelo mercado. Nada mais

    cativo, para o investimento mercantil, nada mais oferecidopara a in

    veno de novas figuras da homogeneidade monetria, do que uma

    comunidade e seu ou seus territrios. E preciso a aparncia de umano equivalncia para que a prpria equivalncia seja um processo.

    Que futuro inesgotvel para os investimentos mercantis, tal qual o

    surgimento em forma de comunidade reivindicativa e de pretensa

    singularidade cultural das mulheres, dos homossexuais, dos defi

    cientes, dos rabes! E as combinaes infinitas de traos predicati

    vos, que oportunidade! O s homossexuais negros, os srvios invlidos,

    os catlicos pedfilos, os islamitas moderados, os padres casados, osjovens executivos ecologistas, os desempregados submissos*, os jo

    vens j velhos! Constantemente, uma imagem social autoriza pro

    dutos novos, revistas especializadas, centros comerciais adequados,

    rdios livres, redes publicitrias dirigidas a alvos especficos e,

    De acordo com Helena Hirata, embora, na Frana, existam diversas categorias

    institucionais de desempregados, chmeurs soumis [desempregados submissos]no consta na Anpe (Agence National pour 1Emploi). De maneira especfica, existem desempregados que se sujeitam s injunes institucionais para terdireito ao seguro-desemprego e, de maneira geral, possvel pensar naquelesque se sujeitam sua situao sem se revoltarem. Imagino que Alain Badiourefira-se, aqui, aos primeiros. (N. T.)

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    1 8 * So Paulo

    enfim, obstinados programas de debates nos horrios de grande

    ar iincia. Deleuze dizia exatamente isto: a desterritorializao capi

    talista tem necessidade de uma constante reterritorializao. O capi

    tal exige, para que seu princpio de movimento torne homogneoseu espao de exerccio, o permanente ressurgimento de identidades

    subjetivas e territoriais, as quais, alis, reivindicam apenas o direito

    de serem expostas, da mesma maneira que as outras, s prerrogativas

    uniformes do mercado. Lgica capitalista do equivalente geral e l

    gica identitria e cultural das comunidades ou das minorias formam

    um conjunto articulado.

    Essa articulao constrangedora em relao a qualquer processo de verdade. Ela organicamente sem verdade.

    Por um lado, todo processo de verdade encontra-se em ruptura

    com o princpio axiomtico que rege a situao e organiza suas s

    ries repetitivas. Um processo de verdade interrompe a repetio e,

    portanto, no pode se sustentar da permanncia abstrata de uma

    unidade de conta. Uma verdade sempre, de acordo com a lei de

    conta dominante, subtrada da conta. Nenhuma verdade pode, porconsequncia, sustentar-se da expanso homognea do capital.

    Mas, por outro lado, um processo de verdade no pode mais se

    ancorar no identitrio. Pois, se certo que toda verdade surge como

    singular, sua singularidade imediatamente universalizvel. A sin

    gularidade universalizvel necessariamente entra em ruptura com a

    singularidade identitria.

    Que haja histrias emaranhadas, culturas diferentes e, de modomais geral, diferenas j imensas em um nico e mesmo indiv

    duo, que o mundo seja heterogneo e que ele no deixe as pessoas

    viverem, comerem, vestirem-se, imaginarem e amarem como elas

    querem, no a que est a questo, como os falsos ingnuos que

    rem nos fazer crer. Essas evidncias liberais no custam caro e gosta

    ramos apenas que aqueles que as proclamam no se mostrassem to

    violentos quando aparece a menor tentativa mais ou menos sria dese distinguir de sua prpria pequena diferena liberal. O cosmopo

    litismo contemporneo uma realidade salutar. Demandaremos so

    mente que a viso de uma jovem que usa vu no coloque em transe

    seus defensores, o que tememos uma vez que eles no desejam, na

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    Contemporaneidade de Paulo

    realidade, mais do que um verdadeiro tecido de diferenas instveis,a ditadura uniforme do que acreditam ser a modernidade.

    A questo saber o que as categorias identitrias e comunitaris-

    tas tm a ver com os processos de verdade, por exemplo, os processos polticos. Respondemos: essas categorias devem ser ausentadasdo processo, sem o que nenhuma verdade tem a menor chance de

    estabelecer sua persistncia e de acumular sua infinidade imanente.

    Alis, sabemos que as polticas identitrias consequentes, como o

    nazismo, so guerreiras e criminosas. A ideia de' que se possa, mes

    mo sob a forma da identidade francesa republicana, manipular

    inocentemente essas categorias inconsistente. Oscilaremos forosamente entre o universal abstrato do capital e perseguies locais.

    O mundo contemporneo , assim, duplamente hostil aos pro

    cessos de verdade. O sintoma dessa hostilidade d-se por superposi

    es nominais: onde se deveria manter o nome de um procedimentode verdade, vem outro nome, que o recalca. O nome cultura vem

    obliterar o da arte. A palavra tcnica oblitera a palavra cincia. A pa

    lavra gesto oblitera a palavra poltica. A palavra sexualidade oblitera o amor. O sistema cultura-tcnica-gesto-sexualidade, que tem o

    imenso mrito de ser homogneo no mercado e cujos termos, alis,designam uma rubrica da apresentao mercantil, a superposio

    nominal moderna do sistema arte-cincia-poltica-amor, que iden

    tifica tipolgicamente os procedimentos de verdade.

    Ora, a lgica identitria, ou minoritria, longe de se voltar para

    uma apropriao dessa tipologia, prope apenas uma variante da superposio nominal capitalista. Ela polemiza contra todo conceito

    genrico da arte e o substitui por sua prpria conta pelo de cultura,

    concebido como cultura do grupo, amlgama subjetivo ou repre

    sentativo de sua existncia, cultura destinada a si e potencialmente

    no universalizvel. Alm disso, ela no hesita em enunciar que os

    elementos constitutivos dessa cultura so plenamente compreens

    veis somente se pertencerem ao subconjunto considerado. Da os

    enunciados catastrficos do gnero: somente um homossexual podecompreender o que significa ser homossexual, um rabe o que sig

    nifica ser rabe etc. Se, como pensamos, somente as verdades (o pen

    samento) permitem distinguir o homem do animal humano que o

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    subentende, no exagerado dizer que esses enunciados minorit

    rios so realmente brbaros.N o caso da cincia, o culturalismo pro

    move a particularidade tcnica dos subconjuntos equivalncia do

    pensamento cientfico, de modo que os antibiticos, o xamanismo,a imposio das mos ou as tisanas relaxantes so uniformizados. No

    caso da poltica, a considerao de traos identitrios encontra-se na

    base da determinao, seja ela estatal ou reivindicativa, e finalmen

    te se trata de inscrever, pelo direito ou pela fora bruta, uma gesto

    autoritria desses traos (nacionais, religiosos, sexuais etc.), consi

    derados como operadores polticos dominantes. E, enfim, no caso

    do amor, demanda-se simetricamente seja o direito gentico de verreconhecido como identidade minoritria esse ou aquele compor

    tamento sexual especfico, seja a volta pura e simples s concepes

    arcaicas, culturalmente estabelecidas, como a conjugabilidade estrita,

    o aprisionamento das mulheres etc. Os dois podem combinar perfei

    tamente, como na reivindicao dos homossexuais relativas ao direi

    to de unir o grande tradicionalismo do casamento e da famlia ou de

    vestir, com a bno do papa, os hbitos do monge.Os dois componentes do conjunto articulado (homogeneidade

    abstrata do capital e reivindicaes identitrias) encontram-se em uma

    relao espelhada e de dilogo. Quem pode pretender que seja evidente

    a superioridade do culto-competente-gerente-sexualmente-equilibra-

    do? Mas quem defendero religioso-corrompido-terrorista-polgamo?

    Ou celebrar o marginal-cultural-homeopata-miditico-transexual?

    Cada figura tira sua legitimidade tortuosa do descrdito do outro.

    Mas, de qualquer maneira, cada um utiliza os recursos do outro, pois

    a transformao em argumentos publicitrios e imagens vendveis

    das identidades comunitrias mais tpicas e mais recentes correspon

    de competncia, constantemente afinada, dos mais fechados ou

    violentos grupos, para especular nos mercados financeiros ou para

    fomentar em grande escala o comrcio de armas.

    Em ruptura com tudo isso (nem homogeneidade monetria,

    nem reivindicao identitria; nem universalidade abstrata do capital, nem particularidade dos interesses de um subconjunto), nossa

    questo formula-se claramente: quais so as condies de uma sin

    gularidade universal?

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    Contemporaneidade de Paulo

    nesse ponto que convocamos So Paulo, pois sua questo exata

    mente essa. O que quer Paulo? Sem dvida, tirar a Nova (o Evangelho)

    da estrita cerca em que ela teria valor apenas para a comunidade ju

    daica. Mas, de toda maneira, jamais a deixar ser determinada pelasgeneralidades disponveis, sejam elas estatais ou ideolgicas. A gene

    ralidade estatal o juridismo romano e, particularmente, a cidada

    nia romana, suas condies e os direitos a ela relacionados. Ainda

    que, ele prprio, um cidado romano e feliz por s-lo, Paulo jamais

    autorizar que qualquer categoria do direito identifique o sujeito

    cristo. Sero, portanto, admitidos, sem restrio nem privilgio, os

    escravos, as mulheres, as pessoas de todas as profisses e de todas asnacionalidades. Quanto generalidade ideolgica, evidentemente,

    o discurso filosfico e moral grego. Paulo organizar uma distncia

    determinada para esse discurso, para ele, simtrica a uma viso con

    servadora da lei judaica. Em ltima anlise, trata-se de fazer valer

    uma singularidade universal contra as abstraes estabelecidas (jur

    dicas na poca, econmicas atualmente) e, ao mesmo tempo, contra

    a reivindicao comunitria ou particularista.O caminho geral de Paulo o seguinte: se houve um aconteci

    mento e se a verdade consiste em proclam-lo e, em seguida, ser fiel

    a essa proclamao decorrem duas consequncias. Primeiro, sendo a

    verdade pertinente ao acontecimento, ou da ordem do que advm,

    ela singular. No estrutural, nem axiomtica, nem legal. Nenhuma

    generalidade disponvel pode dar conta ou estruturar o sujeito que

    se reporta a ela. No poderia, portanto, haver uma lei da verdade.Em seguida, sendo a verdade registrada a partir de uma declarao

    de natureza subjetiva, nenhum subconjunto pr-constitudo a sus

    tenta, nada de comunitrio ou de historicamente estabelecido em

    presta sua substncia a seu processo. A verdade diagonal em relao

    a todos os subconjuntos comunitrios, ela no comporta nenhuma

    identidade e (esse ponto , evidentemente, o mais delicado) no

    constitui nenhuma identidade. Ela oferecida a todos, ou destinadaa cada um, sem que uma condio de pertencimento possa limitar

    essa oferta ou essa destinao.

    A problemtica de Paulo, por mais sinuosa que seja sua orga

    nizao - uma vez que os textos que nos foram transmitidos so

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    22 So Paulo

    todos intervenes circunstanciais e, portanto, textos comandados

    por disputas tticas localizadas , segue implacavelmente as exign

    cias da verdade como singularidade universal:

    1. O sujeito cristo no preexiste ao acontecimento que ele declara (a Ressurreio do Cristo). Portanto, polemizaremos contra as

    condies extrnsecas de sua existncia ou de sua identidade. No se

    deve requerer nem que ele seja judeu (ou circuncidado), nem que

    ele seja grego (ou sbio). Trata-se da teoria dos discursos (existem

    trs: o judeu, o grego, o novo). Tambm no se deve requerer que

    ele seja dessa ou daquela classe social (teoria da igualdade diante da

    verdade) ou desse ou daquele sexo (teoria das mulheres).2. A verdade inteiramente subjetiva (ela da ordem de uma

    declarao que revela uma convico relativa ao acontecimento).

    Polemizaremos contra toda subsuno de seu futuro a uma lei.

    preciso ultrapass-la por meio, simultaneamente, de uma crtica ra

    dical da Lei judaica, que se tornou obsoleta e nociva, e da lei grega,

    ou subordinao do destino ordem csmica, que nunca foi mais

    do que uma ignorncia erudita dos caminhos da salvao.3. A fidelidade declarao crucial, pois a verdade um pro

    cesso e no uma iluminao. Para pensar sobre ela, temos necessida

    de de trs conceitos: o que nomeia o sujeito no ponto da declarao

    (ixaii, geralmente traduzida por f, mas melhor seria convic

    o); o que nomeia o sujeito no ponto da inteno militante de sua

    convico (ymr], geralmente traduzida por caridade, mas me

    lhor seria amor); o que nomeia o sujeito na fora do deslocamentoque lhe conferida pela suposio do carter acabadodo processo de

    verdade (Xtu, geralmente traduzida por esperana, mas melhor

    seria certeza).4. Uma verdade em si mesma indiferente ao estado da situao,

    por exemplo, ao Estado romano. O que significa que ela subtrada

    da organizao dos subconjuntos prescritos por esse estado. A subje

    tividade que corresponde a essa subtrao umadistncia

    necessriaem relao ao Estado e ao que lhe corresponde nas mentalidades: a

    aparelhagem das opinies. Opinies, dir Paulo, no preciso dis

    putar. Uma verdade um processo concentrado e srio, que jamais

    deve entrar em competio com as opinies estabelecidas.

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    Contemporaneidade de Paulo

    No h uma dessas mximas, deixando de lado o contedo do

    acontecimento, que no possa ser conveniente nossa situao e s

    nossas tarefas filosficas. Resta desenvolver a organizao conceituai

    a elas subjacente, ao mesmo tempo fazendo justia quele que, decidindo que ningum era exceo ao que uma verdade exige e extrain

    do a verdade da Lei, solitrio, provocou uma revoluo cultural da

    qual dependemos ainda.

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    QUEM PAULO?

    2

    Poderamos comear no estilo beneditino das biografias usuais.

    Paulo (na realidade, Saul, nome do primeiro rei de Israel) nasce

    em Tarso, entre os anos 1 e 5 (impossvel, cientificamente, ser mais

    preciso). Portanto, ele da mesma gerao de Jesus, que - como to

    dos sabem, mas trata-se de uma circularidade interessante - nasceu

    fundando ao mesmo tempo sua data de nascimento, que instituiu

    o ano 1 de nossa era (sobretudo a dele). O pai de Paulo um arte

    so comerciante que fabrica tendas. Cidado romano e, portanto,Paulo tambm o . Como o pai obteve a cidadania? O mais simples

    imaginar, sem prova alguma, que a comprou. No est acima dos

    recursos de um comerciante abastado corromper um funcionrio

    romano. Paulo era um judeu da tendncia dos fariseus. Participa,

    com ardor, da perseguio dos cristos, considerados hereges pelos

    judeus ortodoxos e, por isso, legalmente perseguidos diante dos tri

    bunais, mas tambm espancados, atacados com pedras, caados, tudo conforme a variao, no interior das comunidades judaicas, das

    relaes de fora entre tendncias.

    A execuo do Cristo data de mais ou menos 30. Estava-se sob

    o domnio de Tibrio. Em 33 ou 34, Paulo foi surpreendido por

    uma apario divina e converteu-se ao cristianismo na estrada para

    Damasco. Inicia suas famosas viagens missionrias. E assim segue

    sem parar.Para que tudo isso? Vejam os livros. Vamos direto doutrina.

    E, no entanto, no. Paulo, veremos, uma grande figura da an-

    tifilosofia. Ora, da essncia da antifilosofia que a posio subjetiva

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    So Paulo

    constitua argumento no discurso. Fragmentos existenciais, que s

    vezes parecem casos, so elevados posio de garantia da verda

    de. Imaginemos Rousseau sem as Confisses*, Kierkegaard sem que

    sejamos instrudos dos detalhes de seu noivado com Rgine, ouNietzsche no nos tomando como testemunhas, ao longo de todo o

    Ecce homo' , das razes que o autorizam a fazer a pergunta: Por que

    sou um destino?. Para um antifilsofo, evidente que a posio

    enunciativa faz parte do protocolo do enunciado. Nenhum discurso

    pode pretender a verdade se no contiver uma resposta explcita

    questo: quem fala?

    Quando Paulo profere seus escritos, ele lembra sempre que

    tem motivos para falar enquanto sujeito. E ele se tornou esse su

    jeito. Ele se tornou esse sujeito repentinamente, na estrada para

    Dam asco (se, nesse ponto, como acreditamos, podemos fazer uma

    exceo e confiar na biografia maquiada de Paulo intitulada Atos

    dos apstolospresente no Novo Testamento). Conhecemos a hist

    ria: a caminho de Damasco, enquanto fariseu diligente, para per

    seguir os cristos, Paulo ouviu uma voz misteriosa que lhe revelou

    a verdade e sua vocao.A palavra converso convm ao que se passou no caminho de

    Damasco? Trata-se de uma ao fulminante, de uma cesura e no

    de uma transformao dialtica. Trata-se de uma requisio que ins

    titui um novo sujeito: Pela graa de Deus, eu sou quem eu sou(e[Xi e(JLi) (ICor. 1 5 . 1 0 ) . E o eu sou como tal que convocado

    no caminho de Damasco por uma interveno absolutamente casual.

    Em certo sentido, essa converso no foi realizada por ningum:Paulo no foi convertido por representantes da Igreja, no se trata

    de uma adeso. No lhe levaram o Evangelho. claro que o encon

    tro na estrada simula o acontecimento fundador. Da mesma maneira

    que a Ressurreio totalmente incalculvel e dela que preciso

    Jean-Jacques Rousseau, As confisses de Jean-Jacques Rousseau (trad. WilsonLousada, Rio de Janeiro, Ediouro, 1992, Coleo Clssicos de bolso). (N. T.)

    Friedrich Wilhelm Nietzsche, Ecce homo: como algum se torna o que (trad.Paulo Csar de Souza, So Paulo, Companhia das Letras, 2008, Coleo

    Companhia de bolso). (N. T.)

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    de qualquer selo oficial. Disso data essa convico inquebrantvel

    relativa a seu prprio destino, que o opor diversas vezes ao ncleodos apstolos histricos, dos quais Pedro a personalidade central.

    Desviando-se de qualquer outra autoridade que no seja a Voz que

    o convocou pessoalmente para o vir-a-ser-sujeito, Paulo parte, naArbia, para anunciar o Evangelho, para declarar que o que aconte

    ceu, aconteceu. Homem que, munido de um acontecimento pessoal,

    teve bons motivos para proclamar esse acontecimento impessoal que

    a Ressurreio.Paulo permanece na Arbia durante trs anos. Sem dvida, sua

    prpria eficcia militante , para ele, uma garantia suficiente paraque possa, passado esse perodo, encontrar enfim os lderes hist

    ricos. Veremos a seguir que, obstinado e at mesmo violento nosprincpios, Paulo tambm um poltico que conhece o valor dos

    compromissos racionais e, particularmente, dos compromissos ver

    bais, que ferem pouco sua liberdade de ao nos lugares e territrios que ele escolhe (aqueles, de preferncia, em que o adversrio

    encontra-se menos implantado). Paulo passa ento em Jerusalm,onde encontra Pedro e os apstolos e, em seguida, parte novamen

    te. Ignoramos todas as disputas desse primeiro encontro. precisocrer que ele no convence Paulo da necessidade de ter muitas vezes

    como referente o centro jerosolimita, pois seu segundo perodode viagens militantes durar catorze anos! Cilicia, Sria, Turquia,

    Macednia, Grcia. A dimenso descentrada da ao de Paulo a

    subestrutura prtica de seu pensamento, o qual estabelece que todauniversalidade verdadeira no tem centro.

    Sabemos muito pouco como funcionam essas peregrinaes mi

    litantes. Naquela poca, o judasmo ainda era uma religio de pro

    selitismo. Dirigir-se aos pagos no , como imaginam alguns, uma

    inveno de Paulo. O proselitismo judaico consequente e desen

    volvido. Ele divide sua audincia em dois crculos que poderiam ser

    denominados, usando um anacronismo poltico arriscado, os simpatizantes e os adeptos.

    1. Os que temem Deus reconhecem a legitimidade global domonotesmo, mas so dispensados das prescries da Lei e, especial

    mente, da circunciso.

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    Quem Paulo?

    2. Os convertidos comeam a respeitar as prescries da Lei e

    devem ser circuncidados. A circunciso atesta aqui sua funo de

    identificao, de iniciao primordial.

    Portanto, no diretamente a fala aos pagos que isola Paulo dacomunidade judaica. Alis, apoiando-se nas instituies dessa comu

    nidade que Paulo inicia sua pregao. Quando chega a alguma cida

    de, na sinagoga que ele intervm em primeiro lugar. Evidentemente,

    as coisas no funcionam bem com os ortodoxos por razes doutrin

    rias: a obstinao em afirmar que Jesus o Messias (lembremos que

    Cristo simplesmente a palavra grega para messias, de modo

    que o nico ponto de continuidade entre a Nova, segundo Paulo, eo judasmo proftico a equao Jesus = Cristo), afirmao que, do

    ponto de vista da maioria dos judeus, e por motivos extremamente

    fortes e legtimos, sustenta uma impostura. Aps incidentes que, nas

    condies da poca podem ser muito violentos, e nos quais, em su

    ma, arrisca sua vida, Paulo abandona a sinagoga e se recolhe na casa

    de um simpatizante local. L, tenta formar um grupo que mistura

    judeo-cristos e pagos-cristos. Parece que, rapidamente, os adeptosdo grupo sero em sua maioria pagos-cristos. No de se espantar,

    se considerarmos as trs fracas concesses que Paulo faz herana ju

    daica, particularmente no que diz respeito aos ritos. Uma vez que, pa

    ra ele, o grupo tornou-se suficientemente consolidado (diremos ento

    que ele ecclsia,de onde vem, sem dvida, igreja, mas que preci

    so ser apresentado como um pequeno conjunto de militantes), Paulo

    confia sua direo queles cuja convico ele aprecia e que vo se tornar seus substitutos. Em seguida, continua sua viagem.

    Nada mais significativo da certeza de Paulo em relao ao futuro

    de sua ao que a identificao, que ele faz constantemente, entre

    o pequeno ncleo de fiis constitudo em uma cidade e a regio in

    teira. Quem so, de fato, esses tessalonicenses, esses corntios, sem

    falar nos romanos, aos quais Paulo dirige, em tom animado e majes

    toso, suas epstolas? Provavelmente, alguns irmos, forma arcaicade camaradas, perdidos na cidade. O fato de serem comensurveis

    a uma verdade transforma sempre indivduos annimos em vetores

    de toda a humanidade. Digamos que o punhado de resistentes dos

    anos 1940 ou 1941 encontrava-se na mesma situao embaraada

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    que os corntios de Paulo: a eles, e somente a eles, que lcito di

    rigir-se, se se trata de apontar algo real da Frana.

    Paulo jamais perde de vista, por mais longe que esteja, os n

    cleos de fiis cuja criao ele estimulou. Suas epstolas so simplesmente intervenes na vida desses ncleos e tm tudo da paixo

    poltica. Luta contra as divises internas, evocao de princpios

    fundamentais, renovao da confiana nos dirigentes locais, anlises

    de questes litigiosas, exigncia imperativa de uma ao de proseli

    tismo sustentada, organizao das finanas... Nada falta daquilo que

    um ativista de qualquer causa organizada pode reconhecer como as

    preocupaes e as veemncias da interveno coletiva.

    No final desses catorze anos de andana organizadora, dos quais

    no nos resta uma linha escrita, estamos quase no ano 50. Havia

    mais ou menos vinte anos que o Cristo morrera. Havia dezessete

    anos que Paulo recebera a convocao na estrada de Damasco. Ele ti

    nha aproximadamente cinquenta anos de idade e se autodenominava

    o velho Paulo. Seus primeiros textos que nos chegaram datam dessa

    poca. Por qu? Podemos, nesse ponto, levantar algumas hipteses.

    Responsvel por vrios grupos essencialmente constitudos depagos-cristos, nessa poca Paulo reside na Antioquia, uma cidade

    muito grande, a terceira do Imprio, depois de Roma e Alexandria.

    Lembremos que Paulo nasceu em uma famlia abastada de Tarso, que

    era um homem da cidade, no um campons. Isso importante. Seu

    estilo no tem nada das imagens e metforas rurais que, em compen

    sao, so abundantes nas parbolas do Cristo. Se sua viso das coi

    sas abarca com fervor a dimenso do mundo, se vai at os extremoslimites do Imprio (seu voto mais claro ir Espanha, como se ele, o

    oriental, s pudesse levar a cabo sua misso no extremo Ocidente),

    porque o cosmopolitismo urbano e as longas viagens transformaram

    sua amplitude. O universalismo de Paulo tambm uma geografia

    interna, que no a do pequeno proprietrio fundirio.

    Pensamos que, se Paulo comea a escrever sobre questes dou

    trinrias, se seus textos foram recopiados e circulam, porque lheaparece a necessidade de combater em grande escala. As circuns

    tncias o obrigam a se conceber como o lder de um partido ou de

    uma faco.

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    Quem Paulo?

    Durante o tempo em que Paulo permaneceu na Antioquia, chegaram os judeo-cristos de estrita observncia. Eles se opem aoapstolo, semeiam a discrdia, exigem a circunciso de todos os

    fiis. Mais uma vez, o que est em jogo no o proselitismo voltado para os no judeus. A questo que Paulo consente distinguirapenas dois crculos entre os que ele agrupa, os simpatizantes dadoutrina e os verdadeiros convertidos, ritualizados e circuncidados. Para ele (e nesse ponto estamos de acordo), o processo de umaverdade tal, que no comporta graus. Ou dela participamos, declaramos o acontecimento fundador e tiramos suas consequncias,

    ou dela permanecemos fora. Essa distino sem intermedirio nemmediao inteiramente subjetiva. Os traos distintivos externose os ritos no podem servir para fundament-la, nem sequer para matiz-la. o preo do estatuto da verdade como singularidadeuniversal. O processo de uma verdade somente universal se umreconhecimento subjetivo imediato de sua singularidade o sustentacomo seu ponto real. Caso contrrio, preciso retomar observn-

    cias ou smbolos particulares, o que possibilita apenas fixar a Novano espao comunitrio e bloquear seu desenvolvimento universal.Portanto, Paulo considera todos os convertidos como fiis em plenoexerccio, qualquer que seja sua origem, sejam ou no circuncida

    dos. Os judeo-cristos de estrita observncia mantm a prtica dosgraus de adeso e acham realmente escandaloso que sejam consideradas como iguais pessoas que no tm os traos distintivos nem as

    prticas rituais da comunidade. Em suma, pessoas que no tm nenhum tipo de conhecimento da Lei nem de respeito a ela.Surge uma grave querela. Finalmente, decide-se resolver a ques

    to em Jerusalm com os apstolos histricos. D-se o segundoencontro entre Paulo e Pedro e, dessa vez, deixaram-nos clara suadisputa. Trata-se de um conflito maior, que introduz o destino danova doutrina. At que ponto ela continua submetida sua origem,

    comunidade judaica? Em minhas palavras: qual a relao exataentre a suposta universalidade da verdade ps-acontecimento (o quese infere de o Cristo ressuscitou) e o local do acontecimento, que

    O autor usa a palavra site que, em francs, entre diversas acepes, tem a deconfigurao de um lugar em relao a seu destino. Dada a forte conotao

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    So Paulo

    , sem dvida alguma, o povo que consolida o Antigo Testamento?

    Qual a importncia dos traos distintivos tradicionais de pertencer

    comunidade judaica para a construo dessa verdade, para o seu

    desdobramento entre os povos do Imprio?Sobre essas questes, que organizam o entrelaamento da sin

    gularidade e da universalidade, a Assembleia de Jerusalm (em 50?

    51?) tem uma importncia decisiva. Sua disputa particular a cir

    cunciso e Paulo tomou o cuidado de ir a Jerusalm acompanhado

    de Tito, um fiel no circuncidado. Mas, no pano de fundo, as ques

    tes so: Quem foi eleito? O que a eleio? H signos visveis dela?

    E finalmente: Quem sujeito? O que distingueum sujeito?O campo judeo-cristo de estrita observncia afirma que o acon-

    tecimento-Cristo no abole o espao antigo. Sua concepo do su

    jeito dialtica. No se trata de negar a potncia do acontecimento.

    Trata-se de afirmar que sua novidade conserva e eleva o local tradi

    cional da crena, incorpora-o por meio da superao. O aconteci-

    mento-Cristo obedece Lei, no a rescinde. Os traos distintivos

    herdados da tradio (a circunciso, por exemplo) so, portanto,sempre necessrios. Pode-se at dizer que, retomados e elevados pela

    nova notcia, so transfigurados e ainda mais ativos.

    Paulo encontra-se frente do grupo oposto. Para ele, o aconte

    cimento torna obsoletos os traos distintivos anteriores, e a nova

    universalidade no sustenta a menor relao privilegiada com a co

    munidade judaica. Certamente, os componentes do acontecimento,

    seu lugar, tudo o que ele mobiliza, tm como local essa comunidade. O prprio Paulo de cultura judaica e cita muito mais vezes o

    Antigo Testamento do que as supostas palavras do Cristo vivo. Mas,

    se no seu ser o acontecimento dependente de seu local, nos seus

    efeitos de verdade preciso que, dele, seja independente. Portanto,

    no que os traos distintivos comunitrios (a circunciso, os ritos,

    a observncia minuciosa da Lei) sejam indefensveis ou errneos;

    que o imperativo ps-acontecimento da verdade os tornam (o que

    que a palavra stiotem em portugus, sugerindo ideias que no correspondem do autor neste contexto, parece melhor traduzi-la por local,em sua acepode servir a um propsito . (N . T.)

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    Quem Paulo?

    pior) indiferentes. Eles no tm mais significao, nem positiva,

    nem negativa. Paulo no se ops circunciso. Seu enunciado ri

    goroso : A circunciso no nada e a incircunciso tambm no

    (ICor. 7. 19). Esse enunciado evidentemente um sacrilgio paraos judeo-cristos. Observemos que, no entanto, no um enuncia

    do pago-cristo, uma vez que nele a incircunciso no tem valor

    particular algum, nem de maneira alguma exigvel.

    O debate, filosoficamente reconstitudo, baseia-se em trs con

    ceitos. A interrupo (o que um acontecimento interrompe e o

    que ele preserva?). A fidelidade (o que ser fiel interrupo perti

    nente a um acontecimento?). Os traos distintivos (existem traosou sinais visveis da fidelidade?). Na interseo desses trs concei

    tos elabora-se a pergunta fundamental: quem sujeito do processo

    de verdade?

    Somente temos conhecimento da existncia e das disputas da

    Assembleia de Jerusalm pela breve narrativa do prprio Paulo e

    pela encenao dos Atos. Certamente, ela terminou com um com

    promisso, uma espcie de delimitao das esferas de influncia. Afrmula : h apstolos que trabalham no meio judaico e outros,

    no meio pago. Pedro apstolo dos judeus, Paulo dos gentios, dos

    edvoL (traduzida como naes e que designa de fato os povos di

    ferentes do judeu).

    Paulo relata o episdio na epstola aos glatas, 2. 1. 10.

    Catorze anos depois, subi novamente a Jerusalm com Barnab, levando tambm Tito comigo; e foi depois de uma revelao que ali subi.

    Eu lhes expus o Evangelho que prego entre os pagos, expus particular

    mente aos que so os mais considerados, a fim de no correr ou de ter

    corrido em vo. Mas Tito, que estava comigo e que era grego, no foi

    obrigado a ser circuncidado. E isso por causa dos falsos irmos que, fur

    tivamente, se introduziram e se infiltraram entre ns para espiar a liber

    dade que temos em Jesus Cristo, com a inteno de nos escravizar. Nocedemos a eles nem um instante e resistimos s suas exigncias, para

    que a verdade do Evangelho fosse mantida entre vs. Aqueles que so

    os mais considerados independentemente do que tenham sido outro-

    ra, isso no me importa: Deus no faz distino das pessoas - aqueles

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    34 So Paulo

    que so os mais considerados no me impuseram nada. Ao contrrio,

    ao verem que o Evangelho me havia sido confiado para os incircun-

    cidados, assim como a Pedro para os circuncidados - pois aquele que

    fez de Pedro o apstolo dos circuncidados tambm fez de mim o apstolo dos pagos e tendo reconhecido a graa que me foi concedida,

    Tiago, Cefas e Joo, que so vistos como os pilares, deram a mim e a

    Barnab a mo da parceria, a fim de que fssemos em direo aos pa

    gos e eles rumo aos circuncidados. Eles nos recomendaram apenas

    lembrarmos dos pobres, o que tenho tido muito cuidado de fazer.

    Trata-se de um texto inteiramente poltico, do qual convm fixar

    pelo menos trs pontos:1. Independentemente do carter ponderado do discurso, pre-

    sume-se que a batalha foi dura. Os judeo-cristos de estrita obser

    vncia (aqueles que, sem dvida, tinham aumentado a discrdia na

    Antioquia) foram qualificados de falsos irmos, e trata-se de saber

    se cederam ou no presso. Houve mediao dos apstolos his

    tricos, Pedro (Cefas), Tiago e Joo, que, assumindo de maneira

    racional suas funes simblicas dirigentes, deram seu aval a umaespcie de dualidade militante emprica. Ressaltemos, no entanto,

    que nada nessa concluso indica claramente a posio assumida so

    bre as questes fundamentais. Que Paulo se ocupe dos pagos uma

    coisa, que no lhes imponham nem os ritos nem as marcas outra,

    sobre a qual aparentemente a Assembleia no decide.

    2. O momento chave do texto aquele em que Paulo declara que

    seus adversrios espiavam a liberdade que temos em Jesus Cristo,com a inteno de nos escravizar, pois a liberdade pe em discusso

    a questo da lei, que ser central na pregao de Paulo. Qual , em

    ltima anlise, a relao entre a lei e o sujeito? Ser que todo sujeito

    est na figura de uma sujeio legal? A Assembleia de Jerusalm nada

    decide, mas deixa que se desenvolvam experincias antinmicas.

    3. Tudo mostra, inclusive o tom defensivo de Paulo (visivelmente,

    ele defende um direito reconhecido de continuar sua ao), que ocompromisso era instvel. O que no significa que no tivesse impacto

    histrico. Ao contrrio, esse impacto considervel. Ao deixar a ao

    de Paulo desenvolver-se ao mesmo tempo que a dos judeo-cristos de

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    Quem Paulo?

    estrita observncia, a Assembleia de Jerusalm evitou que o cristianismo

    fosse, definitivamente, apenas uma seita judaica, uma ciso precria

    (como muitas outras). Mas, ao conter o zelo dos pagos-cristos hostis

    ao judasmo e talvez o prprio zelo de Paulo, ela evitou que o cristianismo fosse apenas um novo iluminismo, tambm muito precrio,

    uma vez que no tinha enraizamento algum no judasmo histrico. A

    Assembleia de Jerusalm realmente fundadora, pois dota o cristianis

    mo de um duplo princpio de abertura e de historicidade. Mantm,

    assim, cerrado o curso do acontecimento como iniciao de um pro

    cesso de verdade. O fato de o acontecimento ser novo no deve, efeti

    vamente, jamais levar a esquecer que ele o somente em relao a umasituao determinada, em que mobiliza os elementos de seu local.

    Certamente, a Assembleia no parece em condies de fixar o conte

    do desse difcil emparelhamento entre a pertinncia do acontecimento

    e a imanncia situao. J muito que ela organize empiricamente a

    possibilidade disso. Se verdade que Paulo foi o arteso do compro

    misso de Jerusalm, ele merece seu ttulo de pedra angular da Igreja.

    Que a situao, mesmo aps a Assembleia, continuasse muito tensa foi comprovado pelo famoso incidente de Antioquia, que Paulo

    menciona logo aps sua narrativa sobre a Assembleia e que parece ter

    ocorrido no fim do mesmo ano. Esse incidente no foi mencionado

    nos Atos,prova entre outras de que se trata de um documento oficial,

    encarregado de apresentar a verso das primeiras dcadas do cristia

    nismo de forma mais uniforme, organizacional e romana possvel.

    Do que se trata? Pedro est em Antioquia (uma turn de inspeo?),para onde Paulo voltou. A questo saber se possvel fazer as refeies

    rituais com no judeus. No incio, Pedro comea fazendo mas, ao ver

    entrarem os discpulos de Tiago, ele se afasta da mesa. Paulo o censura

    com severidade. Ele v, no comportamento de Pedro, sem dvida al

    guma, um retrocesso do compromisso inicial e uma posio hipcrita.

    O texto traz tambm a marca de um verdadeiro furor:

    Mas quando Cefas veio Antioquia, eu me opus diretamente a ele

    porque mereceu uma repreenso. N a realidade, antes da chegada de al

    gumas pessoas enviadas por Tiago, ele comia com os pagos; e quando

    elas chegaram, ele se esquivou e manteve-se distncia, por temor dos

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    circuncidados. Com ele, os outros judeus usaram tambm de dissimu

    lao, de modo que Barnab foi conquistado pela hipocrisia deles. Ao

    ver que eles no se conduziam de acordo com a verdade do Evangelho,

    eu disse a Cefas, na presena de todos: se voc, que judeu, vive comoos pagos e no como os judeus, por que obriga os pagos a se conver

    terem ao judasmo?

    Paulo romper, em seguida, com Barnab, que foi conquistado

    por Pedro. Tudo mostra que ele no brincava com a fidelidade aos

    princpios.O enigma aparente o seguinte: por que Paulo disse a Pedro

    que ele (Pedro), que judeu, vive como os pagos? A resposta supeuma referncia implcita aos acordos de Jerusalm. O que fez Pedro,

    em relao a esses acordos, foi uma duplicidade. Trata-se do desres

    peito hipcrita de uma conveno. Para algum que invoca a Lei, uma falta grave. Pode-se dizer que Paulo recrimina Pedro por agir

    de uma maneira nada apropriada imagem que o prprio Pedropretendia dar do que ser um judeu. Ele perde, assim, qualquer

    direito de obrigar os pagos a se conformarem com essa imagem ea praticarem ritos externos.No se deveria subestimar a importncia do incidente de Antioquia.

    O fato de Pedro ter se mostrado inconsequente em relao a seus

    prprios princpios e infiel ao compromisso anterior enraza em

    Paulo a ideia de que so necessrios novos princpios. O que esse

    incidente lhe mostra que a Lei, em seu antigo imperativo, no

    mais suportvel mesmo para aqueles que a invocam. Isso alimenta

    r uma tese essencial de Paulo, a de que a Lei tornou-seuma imagem da morte. A situao de Pedro deu-lhe a prova concreta disso,

    no prprio centro do fraco aparelho cristo; situao precria, hi

    pcrita, repreensvel e, em suma, mortfera, no que diz respeitos exigncias da ao. Para Paulo, no mais possvel manter o

    equilbrio entre a Lei, que , para a verdade que surgiu, um princ

    pio de morte, e a declarao pertinente ao acontecimento, que

    seu princpio de vida.A partir de ento, chefe de um movimento e instrudo por gran

    des lutas na cpula, Paulo reinicia a viagem (Macednia, Grcia).

    Dessas viagens, os Atosdo uma verso em technicolor. Um famoso

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    38 So Paulo

    feita de fora, conforme o penoso trnsito dos idiomas. na prpria

    lngua viva que h conflito.

    A sabedoria munida de retrica, Paulo ope uma demonstrao

    de esprito (~vs[j.c/., a inspirao) e de poder (Sva^ii). A sabedoriados homens ope-se ao poder de Deus. Trata-se, ento, de intervir o x v CTOCpa Xyou sem a sabedoria da linguagem. Essa mxi

    ma envolve uma antifilosofia radical, no se trata de uma proposta

    que possa suportar uma cpiXoaocpot. A base da questo que um

    surgimento subjetivo no pode se dar como construo retrica de

    um ajuste pessoal s leis do universo ou da natureza.

    O balano de Paulo parece sincero. Houve uma derrota diante

    dos gregos. Os judeus colocam a questo da lei, os gregos a da sa

    bedoria, da filosofia. Esses so os dois referenciais histricos da obra

    de Paulo. preciso encontrar o caminho de um pensamento que

    evite ambos os referenciais. Nas circunstncias pblicas, essa tentati

    va diagonal tem raros xitos, consegue reunir apenas companheiros

    annimos e pouco numerosos. Assim comea toda verdade.

    Estamos, ento, sob o imprio de Nero e o desejo de Paulo - j

    o mencionamos - de ir Espanha, que representa, na poca, o fimdo mundo. No momento da partida, surge uma nova questo mili

    tante, a da coleta.

    Em todos os grupos ligados declarao crist, arrecadavam-se

    fundos destinados comunidade de Jerusalm. O que significava es

    sa cotizao? Encontramos aqui a luta de tendncias arbitrada pelo

    fraco compromisso da Assembleia de Jerusalm.

    Os judeo-cristos veem no pagamento desse tributo o reconhecimento da primazia dos apstolos histricos (Pedro e os outros) e, ao

    mesmo tempo, o smbolo que elege Jerusalm, com o Templo, centro

    evidente da comunidade judaica, como naturalmente o centro do mo

    vimento cristo. A coleta assegura, portanto, uma continuidade entre

    o comunitarismo judaico e a expanso crist. Em ltima anlise, pela

    coleta, os grupos externos reconhecem que so como uma dispora.

    Paulo interpreta a coleta de maneira exatamente oposta. Ao acei

    tar seus donativos, o centro confirma a legitimidade dos grupos

    pagos-cristos. Ele manifesta que nem o fato de pertencer comu

    nidade judaica, nem os traos distintivos de pertencer a ela, nem a

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    Quem Paulo?

    localizao na terra de Israel so critrios pertinentes para decidir se

    um grupo constitudo faz, ou no, parte da rbita crist.

    Com o desejo de supervisionar o destino da coleta e o sentido

    que lhe dado, Paulo decide acompanhar os fundos at Jerusalmem vez de ir para a Espanha.

    O que ocorre, ento, no pode ser reconstrudo. A narrativa

    mais plausvel a seguinte. Em Jerusalm, Paulo encontra-se, de

    certa maneira, na goela do lobo. Exige-se dele que siga alguns ri

    tuais judaicos. Paulo aceita, pois, como escreveu, ele sabe se tornar

    judeu com os judeus, assim como grego com os gregos: a verdade

    subjetiva indiferente aos costumes. Paulo vai ao templo. H ento uma sublevao contra ele, pois acusado de ter introduzido

    no templo algum que no era judeu. Uma ao como essa , aos

    olhos da administrao religiosa judaica, seguida nesse ponto pelo

    ocupante romano que tem o hbito de manter os costumes locais,

    passvel da pena capital.

    Paulo realmente cometeu o crime que lhe foi imputado? A maio

    ria dos historiadores pensa que no. Para falar a verdade, nada se

    sabe sobre isso. Paulo um ativista e ningum pode excluir que ele

    tenha achado possvel, e til, uma provocao. De qualquer ma

    neira, ele foi preso por um destacamento de soldados romanos nomomento em que seria linchado. So os romanos que vo instruir a

    acusao. Conduziram Paulo guarnio de Cesareia. Ele compa

    receu, por volta do ano 59, diante do governador Festo (isso certo). Como a acusao pode levar pena de morte, ele faz valer seusdireitos de cidado romano: um cidado contra o qual feita uma

    acusao capital tem o direito de ser julgado em Roma. Ele ento

    transferido, e parece que permaneceu preso ali de 60 a 62. Uma

    breve aluso de Clment, por volta de 90, permite pensar que Paulofoi finalmente executado, seja no fim de um processo regular, seja

    durante uma perseguio, ningum tem como sab-lo.Nenhum texto de Paulo se refere a esses episdios, por uma ra

    zo evidente: todos os textos autnticos a que temos acesso so cer

    tamente anteriores sua priso; ou seja, no que diz respeito aos

    ltimos anos da vida de Paulo, na realidade, permanecemos na mais

    completa ignorncia. A transferncia para Roma foi narrada com

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    So Paulo

    grande riqueza de detalhes nos Atos,de acordo com as melhores re

    gras do romance de aventuras martimas. impossvel distinguir o

    verdadeiro do falso. Os Atosterminam curiosamente no pelo mar

    trio de Paulo, mas pelo espetculo edificante de um apstolo quecontinua em Roma, com toda tranquilidade, sua atividade aposto

    lar. O que testemunha, com muitos outros detalhes, a benevolncia

    pr-romana dos autos dos Atos.

    No entanto, acima de tudo, o prprio Paulo nos ensina que o

    que importa no so os signos de poder, nem as vidas exemplares,

    mas uma convico de que se capaz, aqui, agora e para sempre.

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    TEXTOS E CONTEXTOS

    3

    Os textos de Paulo so cartas escritas, por um dirigente, aos gru

    pos que ele fundou ou apoiou. Elas abarcam um perodo muito bre

    ve (de 50 a 58). So documentos militantes enviados a pequenos

    ncleos de convertidos. No so, de maneira alguma, narrativas co

    mo os Evangelhos, nem tratados tericos como escrevero mais tarde

    os doutores da Igreja, e tampouco profecias lricas como o Apocalipse

    atribudo a Joo. Trata-se de intervenes.Desse ponto de vista, pa

    recem mais com os textos de Lenin do que com O capital', de Marx;

    mais com a maioria dos textos de Lacan do que com A interpretao

    dos sonhos", de Freud; mais com os tratados de Wittgenstein do que

    com os Principia M athem aticd"[princpios bsicos matemticos], de

    Russell. Encontraremos nessa forma, em que a oportunidade da

    ao prevalece sobre a preocupao de se valorizar por publicaes

    (Lacan dizia poubellications

    "*), um tratado do antifilsofo: ele noescreve um sistema terico, nem um compndio, nem sequer real

    mente um livro. Ele prope uma palavra de ruptura e a escrita segue

    quando necessria.

    Karl Marx, O capital (trad. Reginaldo SantAnna, Rio de Janeiro, Civilizao

    Brasileira, 2006/2008, 6 v.). (N. E.)

    Sigmund Freud, A interpretao dos sonhos (Rio de Janeiro, Imago, 1999).(N. E.)

    Bertrand Russell e Alfred North Whitehead, Principia Mathematica

    (Cambridge, Universidade Cambridge, 1910/1913, 3 v.). (N. E.)

    Cabe lembrar que poubelle, em francs, significa lixeira. (N . T.)

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    42 So Paulo

    O enigma , sobretudo, saber como esses textos de conjuntura

    chegaram at ns e quem comandou sua solene e suspeita incluso

    no sacrossanto corpusconhecido pelo nome de Novo Testamento.

    A coletnea cannica das epstolas de Paulo tardia. Data provavelmente do fim do sculo II. As cpias mais antigas das quais dispomos

    so do incio do sculo III e so apenas fragmentos. Alm disso, como

    assinalamos, das treze cartas contidas no Novo Testamento, pelo me

    nos seis so certamente apcrifas, mesmo que se possa pensar, no caso

    de algumas delas, que provm do crculo de Paulo.

    Por que e como esse corpus foi sacralizado? Lembremos que

    Paulo no tem legitimidade histrica evidente. Ele no um dosdoze apstolos. Ele no conheceu nada da vida do Senhor. Deu

    muitas preocupaes ao centro histrico de Jerusalm.

    Quatro importantes observaes podem esclarecer essasingularidade.

    1. No deixaremos de relembrar por que uma iluso tenaz, de

    vido ordem cannica multissecular do Novo Testamento, impe

    nossa opinio espontnea uma certeza contrria:as epstolas de

    Paulo so anteriores, e muito, redao dos Evangelhos.Ou melhor:

    as epstolas de Paulo so simplesmente os textos cristos mais antigos

    que chegaram at ns.Obviamente, narrativas orais da vida de Jesus,

    de seus milagres, de sua morte deviam circular abundantemente na

    poca da pregao de Paulo. Mas no nos chegou nenhum docu

    mento escrito que fixe essa histria e seja anterior ao ano 70, ou

    seja, cerca de dez anos aps a morte de Paulo. Se datamos de 50 a

    primeira epstola aos tessalonicenses, o que plausvel, a distncia

    que a separa do primeiro evangelho redigido (o de Marcos) de

    vinte anos. H uma ntida anterioridade de Paulo no que diz res

    peito circulao escrita da doutrina crist. E como suas cartas fo

    ram copiadas e circularam muito cedo, sem dvida, teria sido difcil

    pura e simplesmente ignor-las quando chegou o momento (muito

    tarde, no fim do sculo III) de reunir os documentos fundadores danova religio.

    2. Os Evangelhos, salvo o de Joo (que mais tardio, talvez em

    torno do ano 90), formam com as epstolas de Paulo um verdadeiro

    contraste, ao qual deveremos voltar. O objetivo deles visivelmente

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    Textos e contextos

    evidenciar as faanhas de Jesus, a singularidade excepcional de sua

    vida. Todos os grandes clssicos da taumaturgia e do charlatanismo

    religioso so ali abundantemente citados: curas milagrosas, cami

    nhada sobre as guas, adivinhaes e comunicados, mortos ressuscitados, fenmenos meteorolgicos anormais, imposio de mos,

    multiplicao instantnea de vveres... O estilo de Jesus, tal como

    nos restitudo pelos Evangelhos, est de acordo em seu conjunto

    com a parafernlia do mgico itinerante. Certamente, ele brilha pe

    lo sabor de seus aforismos e pela vontade de ruptura a que ele sabe

    dar forma. E influenciado tambm pelas leis do gnero: parbolas

    com duplo sentido, metforas obscuras, imagens apocalpticas, ir-resolubilidade sabiamente construda da identidade do personagem

    (Profeta? Messias? Enviado de Deus? Filho de Deus? Novo Deus

    que desceu sobre a terra?).Os textos de Paulo no levam em considerao quase nada disso,

    o que, no entanto, devia ser narrado com muitos detalhes no meio

    cristo da primeira gerao. Observamos, muitas vezes, que a vida

    emprica de Jesus no foi praticamente mencionada nas epstolas,

    alis, da mesma maneira que nenhuma das famosas parbolas do

    mestre. O ensinamento de Jesus, assim como seus milagres, so-

    berbamente ignorado. Tudo reduzido a um nico ponto: Jesus,

    filho de Deus (o que isso quer dizer, veremos) e Cristo por essa ra

    zo, morreu na cruz e ressuscitou. O resto, todo o resto, no tem a

    menor importncia real. Digamos at que o resto (o que Jesus disse

    e fez) no o real da convico, mas a obstrui e at mesmo a falsifica.

    A essa reduo s convm um estilo concentrado e sem as manias da

    literatura proftica e taumaturga. Certamente, Paulo um gran

    de escritor, conciso, formulador, que sabe deixar para o momento

    oportuno raras e poderosas imagens. Como nos salientou o poetaHenry Bauchau, algumas passagens, que combinam uma espcie

    de abstrao violenta e rupturas de tom na tentativa de convencer

    o leitor, de modo a no lhe possibilitar nenhum descanso, so se

    melhantes a monlogos de Shakespeare. Mas o que importa nessa

    prosa definitivamente a argumentao e a delimitao, a forte ma

    nifestao de um ncleo essencial do pensamento. No h, ento,

    parbolas, nem obscuridades complicadas, nem indeciso subjetiva

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    44 So Paulo

    ou deformao da verdade. O paradoxo da f deve ser produzido tal

    como , levado pela prosa luz de sua novidade radical.

    De tudo isso, resulta que as epstolas de Paulo so os nicos ver

    dadeiros textos doutrinriosdo Novo Testamento. E possvel com

    preender - por exemplo - que Lutero tenha afirmado que as epstolasde Paulo, e somente elas, continham o sentido da Revelao e no

    tenha escondido sua pouca estima pelos evangelhos sinpticos, particularmente pelo de Lucas.

    Sem os textos de Paulo, a mensagem crist permaneceria ambgua e mal desembaraada da literatura proftica e apocalptica supe

    rabundante na poca. Este um importante motivo de sua presena

    no corpuscannico.3. O que aconteceu entre a redao dos textos de Paulo e a dos

    Evangelhos? Um acontecimento capital: a sublevao judaica con

    tra a ocupao romana, desencadeada em 66 (muito provavelmente

    aps a morte de Paulo) e que terminou em 70 com a destruio dotemplo de Jerusalm por Tito. Trata-se do verdadeiro incio da dis-

    pora judaica. Trata-se, sobretudo, do fim do significado central

    de Jerusalm para o movimento cristo. A partir daquela poca,tem incio o processo que, aos poucos, far de Roma a verdadeira

    capital do cristianismo e riscar historicamente sua origem oriental

    e judaica, da qual Jerusalm, onde residiam os apstolos histricos,

    era o smbolo.

    Ora, Paulo por mais de uma razo o precursor desse deslocamento, por sua viso universal e descentralizada da construo

    dos ncleos cristos. Certamente, para ele, a estrutura do Imprio

    Romano, que significa o mundo entre o Oriente e a Espanha, maisimportante do que a preeminncia de Jerusalm. O fato de seu texto

    mais desenvolvido, mais construdo, mais decisivo, especialmente

    no que diz respeito ruptura com a Lei judaica, ser uma epstola

    aos romanos faz parte desse gnero de acasos cuja funo simbli

    ca inevitvel. Mais uma razo importante para inscrever Paulo no

    corpusoficial.

    4. Todos sabem que uma organizao constitui a coletneade seus textos de referncia quando ela deve fixar sua orientaocontra desvios perigosos ou lutar contra cises ameaadoras. Em

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    Textos e contextos

    relao a isso, os primeiros sculos do cristianismo foram particu

    larmente atormentados. Para a questo que nos ocupa, essencial

    levar em conta o surgimento, desde o incio do sculo II, de uma

    heresia que pode muito bem ser chamada de ultrapaulina, a heresiade Marcio.

    Marcio, dando o sinal de partida da longa srie de heresias de

    orientao maniquesta, sustenta que a ruptura entre cristianismo e

    judasmo, (para ns) entre Antigo Testamento e Novo Testamento,

    deve ser considerada absoluta em um sentido preciso: no do mes

    mo Deus que tratam as duas religies.O Antigo Testamento trata do

    Deus que criou o mundo e, como a considerao do mundo tal como ele existe suficiente para estabelec-lo, esse Deus um ser ma

    lfico. Acima desse Deus criador, existe um Deus verdadeiramente

    bom, cuja imagem a de um Pai e no a de um criador. poss

    vel dizer que, para Marcio, o pai simblico (revelado apenas pelo

    cristianismo) deve ser distinguido do pai criador ou real. O Deus

    do cristianismo (o Pai simblico) no conhecido com o mesmo

    sentido que o Deus do Antigo Testamento (o genitor). O segundo

    diretamente revelado pela narrativa de seus obscuros e capricho

    sos malefcios. O primeiro, de quem o mundo no nos d nenhu

    ma pista e do qual, portanto, no poderia haver um conhecimento

    direto ou, no estilo da narrativa, somente acessvel por meio da

    vinda de seu Filho. O resultado disso que a Nova crist , pura e

    simplesmente, uma revelao mediadora do verdadeiro Deus, acontecimento do Pai, que ao mesmo tempo revela a impostura do Deus

    criador do qual nos fala o Antigo Testamento.O tratado de Marcio, que chegou at ns, denomina-se

    Antithses [antteses]. Questo crucial: sustenta que o nico apstolo

    autntico foi Paulo; os outros pretensos apstolos, liderados por

    Pedro, continuaram sob o imperativo do obscuro Deus criador.

    Houve, certamente, boas razes para que o herege recrutasse assimo apstolo das naes: a luta de Paulo contra os judeo-cristos de

    estrita observncia, sua concepo do cristianismo como pertinen

    te ao acontecimento e sua polmica relativa dimenso mortfera

    da Lei. Exagerando um pouco, poderamos chegar concepo de

    Marcio: o novo Evangelho um comeo absoluto.

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    No entanto, no h dvida de que se trata de uma manipulao.

    No existe nenhum texto de Paulo do qual se possa extrair algo quese assemelhe doutrina de Marcio, isto , que o Deus de quem

    Jesus Cristo o filho seja o Deus do qual fala o Antigo Testamento,

    o Deus dos judeus, seja para Paulo uma evidncia constantemente

    mencionada. Se h uma figura da qual Paulo sente-se prximo e

    utiliza sutilmente para seus prprios fins a de Abrao. Que Paulo

    enfatize a ruptura com o judasmo, mais do que a continuidade, no

    h dvida. Mas uma tese militante e no uma tese ontolgica. A

    unicidade divina atravessa as duas situaes separadas pelo aconteci-mento-Cristo e ela no tem nenhum momento duvidoso.

    Para combater a perigosa heresia de Marcio (a qual, de fato,

    renega abruptamente o compromisso de Jerusalm e corre o risco

    de tornar o cristianismo uma seita sem qualquer profundidade his

    trica), os doutores da Igreja estabeleceram certamente contra o

    ultrapaulinismo uma figura racional e centrista de Paulo. , semdvida, dessa poca, que data a construo do Paulo oficial, no

    sem truques e desvios diversos. Na verdade, somente conhecemos

    Marcio por seus adversrios ortodoxos, Irineu ou Jernimo. E, simetricamente, conhecemos Paulo pela imagem dele que foi precisoconstruir contra aqueles que, numa viso extremista da ruptura

    crist, apoderaram-se dos enunciados mais radicais do fundador.

    Assim se explica, em parte, a incluso das epstolas de Paulo no cor-pus final: mais vale para a Igreja em vias de sedimentao ter com

    ela um Paulo racional do que um Paulo inteiramente virado para o

    lado da heresia. Mas possvel que, pelas necessidades da causa, aofiltrar os verdadeiros textos e fabricar falsos, tenha-se adireitado

    um pouco o apstolo ou, pelo menos, acalmado seu radicalismo.

    Operao em que, desde o fim do sculo I, se engajou, como vi

    mos, o redator dos Atos.Mas, apesar de tudo, quando se l Paulo, surpreende-se, nas

    poucas linhas deixadas de sua prosa pela poca, com os gneros e

    as circunstncias. Existe ali, sob o imperativo do acontecimento,algo vigoroso e atemporal, algo que, precisamente porque se trata

    de destinar um pensamento ao universal em sua singularidade nas

    cente, mas independentemente de qualquer particularidade, nos

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    Textos e contextos

    inteligvel sem termos de recorrer a pesadas mediaes histricas (o

    que est longe de ser o caso de diversas passagens dos Evangelhos,

    para no falar do opaco Apocalipse).

    Sem dvida, ningum melhor esclareceu essa contemporaneidade

    perptua da prosa de Paulo que um dos maiores poetas de nossos tem

    pos, Pier Paolo Pasolini, quem, verdade que com seus dois preno-

    mes, simplesmente pelo significante, estava no cerne do problema.

    Pasolini, para quem a questo do cristianismo cruzava a do comu

    nismo, ou ainda a questo da santidade cruzava a do militante, queria

    fazer um filme sobre So Paulo transposto para o mundo atual. O filme no foi rodado, mas temos seu roteiro detalhado, traduzido para

    o francs pelas edies Flammarion.O objetivo de Pasolini era fazer de Paulo um contemporneo

    sem modificar nada em seus enunciados. Ele queria restituir, de mo

    do mais direto, mais violento, a convico de uma atualidade inte

    gral de Paulo. No se tratava de dizer explicitamente ao espectador

    que se poderia imaginar Paulo aqui, hoje, entre ns, em sua plena

    existncia fsica, que nossa sociedade que Paulo se dirige, que

    por ns que ele chora, ameaa e perdoa, agride e abraa com ternura. Ele queria dizer: Paulo nosso contemporneo fictcio porque o

    contedo universal de sua pregao, inclusive obstculos e derrotas,

    ainda absolutamente real.

    Para Pasolini, Paulo desejou destruir de maneira revolucionria

    um modelo de sociedade baseado na desigualdade social, no impe

    rialismo e na escravido. Existe nele o santo querer da destruio.

    Certamente, no filme planejado, Paulo fracassa e esse fracasso maisinterno do que pblico. Mas ele pronuncia a verdade do mundo, eo faz sem que seja necessrio mudar nada, nos mesmos termos emque falou h quase dois mil anos.

    A tese de Pasolini tripla:

    1. Paulo nosso contemporneo porque o acaso fulgurante, o

    acontecimento, o simples encontro esto sempre na origem de uma

    santidade. Ora, a figura do santo atualmente nos necessria, mesmo que os contedos do encontro instituinte possam variar.

    2. Se transportamos Paulo e todos os seus enunciados para nos

    so sculo, veremos que, na verdade, eles encontram uma sociedade

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    real to criminosa e corrompida quanto a do Imprio Romano, mas

    infinitamente mais resistente e flexvel.

    3. Os enunciados de Paulo so atemporalmente legtimos.A temtica central situa-se na relao entre a atualidade e a santi

    dade. Quando o mundo da histria tende a se dissipar no mistrio,na abstrao, na pura interrogao, o mundo do divino (da santidade) que, descido entre os humanos sob a forma de acontecimento, se torna concreto, operante.

    O filme o trajeto de uma santidade numa atualidade. Como sefaz a transposio?

    Roma Nova York, capital do imperialismo norte-americano. O

    centro cultural que Jerusalm ocupada pelos romanos, centro tambm do conformismo intelectual, Paris sob a ocupao alem. A pe

    quena comunidade crist balbuciante representada pelos membrosda Resistncia, enquanto os fariseus so os partidrios de Ptain.

    Paulo um francs, originrio da burguesia, colaborador, quepersegue os resistentes.

    Damasco a Barcelona da Espanha de Franco. O fascista Paulo

    segue em misso junto a franquistas. No caminho para Barcelona,enquanto atravessava o sudoeste da Frana, ele tem uma iluminao. Passa para o campo antifascista e resistente.

    Em seguida, continua seu priplo para pregar a resistncia, naItlia, na Espanha e na Alemanha. Atenas, aquela dos sofistas quese recusaram a ouvir Paulo, representada pela Roma contempor

    nea, pelos pequenos intelectuais e crticos italianos, detestados porPasolini. Finalmente, Paulo vai a Nova York, onde trado, preso e

    executado em condies srdidas.Nesse itinerrio, o aspecto central torna-se progressivamen

    te o da traio, cujo resultado que o que Paulo cria (a Igreja, a

    Organizao, o Partido) volta-se contra sua prpria santidade in

    terna. Pasolini baseia-se, aqui, numa grande tradio (ns a estu

    daremos) que v, em Paulo, mais o infatigvel criador da Igreja do

    que um terico do acontecimento cristo. Um homem de apare

    lho, em suma, um militante da III Internacional. Para Pasolini, meditando por meio de Paulo sobre o comunismo, o Partido, pelas

    exigncias fechadas da militncia, inverte aos poucos a santidade,

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    Textos e contextos

    transformando-a em sacerdcio. Como a autntica santidade (que

    Pasolini reconhece absolutamente em Paulo) pode suportar a prova

    de uma histria fugidia e monumental ao mesmo tempo em que ela

    uma exceo e no uma operao? Ela s o consegue endurecendo-se, tornando-se autoritria e organizada. Mas esse