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S O P A U L OF U N D A O D O U N I V E R S A L I S M O
A L A I N B A D I O UoTADG K d e STIO
T R A D U O : W A N D A C A L D E I R A B R A N T
E D I T O R I A L
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Copyright Boitempo Editorial, 2009Copyright Presses Universitaires de France, 1997
Edio original: Saint Paul, la fondation de luniversalisme (Paris, Presses Universitaires de France,
1997, coleo Les essais du Collge International de Philosophie).
COORDENAAO EDITORIAL
EDITOR-ASSISTENTE
ASSISTNCIA EDITORIAL
TRADUO
REVISO DA TRADU O
PREPARAO
REVISO
CAPA E DIAGRAMAO
PRODUO
Ivana Jinkings
Jorge Pereira FilhoFrederico Ventura e Elisa Andrade Buzzo
Wanda Caldeira Brant
Ronaldo Manzi Filho
Tatiana Ferreira de Souza
Vivian Miwa Matsushita
Silvana de Barros Panzoldosobre leo de Etienne Parrocel, Saint Paul(sec. 18)
Marcel lha
CIP-BRASIL. CATALOGAO NA FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ________
B126s
Badiou, Alain, 1937-So Paulo : a fundao do universalismo / Alain Badiou ; traduo de Wanda
Caldeira Brant. - So Paulo : Boitempo, 2009.il. - (Estado de Stio)
Traduo de: Saint Paul : la fondation de luniversalismeInclui bibliografiaISBN 978-85-7559-150-5
1. Paulo, Apstolo, Santo - Contribuio ao conceito de universalismo. 2.Bblia. N.T. Epstolas de Paulo - Crtica, interpretao, etc. 3. Universalismo -Ensinamentos bblicos. I. Ttulo. II. Ttulo: A fundao do universalismo.09-4771. CDD: 227
CDU : 27-248A
11.09.09 18.09.09 015215
Cet ouvrage, publi dans le cadre de l 'Anne de la France
au Brs i l et du Programme dAide la Publication Carlos
Drummond de Andrade, bnficie du soutien du Ministre
franais des Affaires Etrangres et Europennes.
Frana.Br 2009 l 'Anne de la France au Brs i l (21 avril -1 5
novembre) est organise :
- en France, par le Com m issariat gnral franais, le Ministre
des Affaires Etrangres et Europennes, le Ministre de la
Culture et de la Com m unication et C ulturesfrance;
- au B rsil, par le Co m m issariat gnral brsilien, le Ministre
de la Cu lture et le Ministre des Relations Extrieures.
Este livro, publicado no mbito do Ano da Frana no Brasil
e do programa de Auxl io Publicao Carlos Drummond
de Andrade, contou com o apoio do Ministrio francs das
Relaes E xteriores e Europeias.
Frana.Br 20 09 Ano da Frana no Bras il (21 d e abril a 15
de n ovembro) organizado:
- na Frana, pelo Comissariado geral francs, pelo Ministrio
das Relaes Exteriores e Europeias, pelo Ministrio da C ultura
e da Com unicao e por Culturesfrance;
- no B rasil, pelo C om issariado geral brasileiro, pelo Ministrio
da Cultura e pelo Ministrio das Relaes Exteriores.
vedada, nos termos da lei, a reproduo de qualquerparte deste livro sem a expressa autorizao da editora.
Ia edio: outubro de 2009
BOITEMPO EDITORIALJinkings Editores Associados Ltda.Rua Pereira Leite, 37305442-000 So Paulo SPTel./fax: (11) 3875-72 50 / 3872-6869editor(2)boitempoeditorial.com.brwww.boitempoeditorial.com.br
Libert Egalit Fraternit
R p u b l i q u e F r a n a i s e
http://www.boitempoeditorial.com.br/http://www.boitempoeditorial.com.br/8/10/2019 Badiou So Paulo
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SUMRIO
Prlogo.........................................................................................................7
1 Contemporaneidade de Pau lo.......................................................11
2 Quem Paulo?..................................................................................25
3 Textos e contextos........................................................................... 41
4 Teoria dos discursos.........................................................................51
5 A diviso do Sujeito........................................................................67
6 A antidialtica da morte eda ressurreio.................................77
7 Paulo contra a l e i .............................................................................89
8 O amor como fora universal..................................................101
9 A esperana ................................................................................... 109
10 Universalidade e travessiadas diferenas..............................115
11 Para concluir................................................................................. 125
Posfcio, por Yladimir Safatle........................................................131
De que filosofia do acontecimento a esquerda precisa?
Obras do autor..................................................................................143
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PRLOGO
Estranho empreendimento. H muito tempo esse personagem acompanha-me, ao lado de outros como Mallarm, Cantor,
Arquimedes, Plato, Robespierre, Conrad... (para no entrar em nos
so sculo). H quinze anos, escrevi uma pea, l Incident d Antioche,
cuja herona chama-se Paula. A mudana de sexo criava barreira,
sem dvida, para qualquer identificao demasiadamente clara. Na
realidade, Paulo no , para mim, um apstolo ou um santo. Eu no
tenho a menor necessidade da Nova que ele declara ou do culto quelhe foi consagrado. Mas ele uma figura subjetiva de importncia
fundamental. Sempre li as epstolas como quando voltamos aos tex
tos clssicos que nos so particularmente familiares, caminhos aber
tos, detalhes abolidos, fora intacta. Nenhuma transcendncia, para
mim, nada de sagrado, igualdade perfeita com qualquer outra obra,
uma vez que ela me toca pessoalmente. Um homem inscreveu de
maneira penosa essas frases, essas mensagens veementes e ternas, epodemos tom-las emprestado livremente, sem devoo nem repul
sa. E ainda mais no meu caso, porque hereditariamente ateu, e at
mesmo, por meus quatro avs preceptores, mais educado no desejo
de esmagar a infmia clerical, descobri tarde as epstolas, como tex
tos curiosos, cuja potica impressiona.
Na realidade, jamais liguei Paulo religio. No foi desse ponto de
vista, nem para testemunhar uma f qualquer, nem sequer uma antif,
que me interessei por ele h muito tempo. Nem tampouco para dizer
a verdade - mas a emoo foi menor - que me apropriei de Pascal, de
Kierkegaard ou de Claudel, a partir do que havia de explcito em
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suas pregaes crists. De qualquer maneira, o caldeiro em que se
cozinha o que ser uma obra de arte e de pensamento cheio de im
purezas inominveis at a borda; contm obsesses, crenas, labirin
tos infantis, perverses diversas, lembranas impartilhveis, leiturasde fragmentos das mais variadas origens, um grande nmero de bes
teiras e quimeras. Entrar nessa alquimia no leva a muita coisa.
Para mim, Paulo um pensador-poeta do acontecimento e, ao
mesmo tempo, aquele que pratica e enuncia atos constantes carac
tersticos do que se pode denominar a figura militante. Ele faz surgir
a conexo, integralmente humana e cujo destino me fascina, entre
a ideia geral de uma ruptura, de uma virada, e a de um pensamentoprtico, que a materialidade subjetiva dessa ruptura.
Se, hoje, quero retraar em poucas pginas a singularidade dessa
conexo feita por Paulo, sem dvida, porque trabalho por todos
os ngulos, at com a negao de sua possibilidade, a busca de uma
nova figura militante, demandada para suceder quela cujo lugar
Lenin e os bolcheviques ocuparam, no incio do sculo passado, e
que se pode dizer ter sido a do militante de partido.Quando est na ordem do dia dar um passo frente, pode-se,
entre outras coisas, dar um maior para trs. Da essa reativao de
Paulo. No sou o primeiro a arriscar a comparao que faz dele um
Lenin, do qual o Cristo teria sido o Marx equvoco.
Minha inteno, v-se, no nem de historiador, nem exegtica.
Ela subjetiva do incio ao fim. Eu me limitei estritamente aos tex
tos de Paulo autenticados pela crtica moderna e minha relao depensamento com esses textos.
Para o original grego, usei o Novum Testamentum Graece [novo
testamento grego], edio crtica de Nestl-Aland, publicado pela
Deutsche Bibelgesellschaft em 1993.
O texto francs que serviu de base, do qual revi algumas vezes as
construes das frases, foi o de Louis Segond, Le Nouveau Testament
[o novo testamento], publicado pela Trinitarian Bible Society, edio de 1993*.
Nesta edio brasileira os trechos citados da Bblia foram traduzidos do francs,por fidelidade argumentao de Badiou. Na primeira ocorrncia das obras
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Prlogo 9
As referncias s epstolas seguem a disposio tradicional em
captulos e versculos. Assim, Rm. 1. 25 quer dizer: epstola aos
romanos, captulo 1, versculo 25. O mesmo ocorre com Gl. pa
ra a epstola aos glatas, ICor. e 2Cor. para as duas epstolas aoscorntios, Fl. para os filipenses, lTs. para a primeira epstola aos
tessalonicenses.Para quem quiser continuar por sua prpria conta, quero ressal
tar, na colossal bibliografia relativa a Paulo:
1. O consistente livrinho de Stanislas Breton, Saint Paul(Paris,
PUF, 1988).
2. Paul, aptre de Jsus-Christ,de Giinther Bornkamm, traduo
de Lore Jeanneret (Genebra, Labor & Fides, 1971).
Um catlico, um protestante. Para que formem um tringulo
com o ateu.
citadas pelo autor, h a indicao da edio brasileira correspondente quando
houver. (N. E.)
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CONTEMPORANEIDADE DE PAULO
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Por que So Paulo? Por que requerer esse apstolo ainda maissuspeito porque se autoproclamou, sem dvida alguma, como tal e
porque seu nome costuma ser associado s dimenses mais institucionais e menos abertas do cristianismo: a Igreja, a disciplina mo
ral, o conservadorismo social, a desconfiana em relao aos judeus?
Como inscrever esse nome no devir de nossa tentativa: refundar
uma teoria do Sujeito que subordine a existncia dimenso alea
tria do acontecimento e pura contingncia do ser-mltiplo, semsacrificar o motivo da verdade?
Cabe perguntar tambm: que uso pretendemos fazer do dispo
sitivo da f crist, da qual parece nitidamente impossvel dissociar
a figura e os textos de Paulo? Por que invocar e analisar essa fbula?
Que isso fique, de fato, bem claro: para ns, trata-se exatamente de
uma fbula. E, particularmente, no caso de Paulo, que como ve
remos reduz, por razes cruciais, o cristianismo a um nico enunciado: Jesus ressuscitou. Ora, esse exatamente o ponto fabuloso,
uma vez que todo o resto nascimento, predicao, morte - pode,
em ltima anlise, sustentar-se. fbula o que de uma narrativa
no diz respeito, para ns, a algo real, a no ser segundo o resduo
invisvel, e de acesso indireto, que adere a todo imaginrio patente.
Desse ponto de vista, somente como fbula que Paulo reconduz a
narrativa crist, com a fora de quem sabe que, se essa questo for
considerada real, ficamos sem todo o imaginrio que a cerca. Se
possvel imediatamente falarmos de crena (mas a crena, ou a f,
ou o que se supe com a palavra mcra todo o problema de Paulo) ,
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So Paulo
dizemos que, para ns, rigorosamente impossvel acreditar na res
surreio do crucificado.
Paulo uma figura longnqua num triplo sentido: o local histri
co, o papel de fundador da Igreja, o foco instigante do pensamentoem seu elemento fabuloso.
Devemos explicar por que levamos to longe o peso de uma pro
ximidade filosfica, por que o forar fabuloso do real nos serve de
mediao quando se trata, aqui e agora, de restituir o universal sua
pura laicidade.
Nisso, sem dvida, nos ajuda que, por exemplo, Hegel, Auguste
Comte, Nietzsche, Freud, Heidegger, e ainda, em nossos dias,Jean-Franois Lyotard tambm tenham acreditado ser necessrio
analisar a figura de Paulo, sempre de acordo com disposies extre
mas (fundadoras ou regressivas, que remetem ao destino ou negli
gentes, exemplares ou catastrficas), para organizarem seu prprio
discurso especulativo.
O que vai nos reter na obra de Paulo uma conexo singular, que
formalmente possvel separar da fbula e da qual Paulo precisamente o inventor: a conexo que estabelece uma passagem entre uma
proposio sobre o sujeito e uma interrogao sobre a lei. Digamosque, para Paulo, trata-se de explorar qual a lei que pode estruturar
um sujeito sem qualquer identidade e suspenso a um acontecimento,
cuja nica prova justamente sua declarao por um sujeito.
Para ns, o essencial que essa conexo paradoxal entre um su
jeito sem identidade e uma lei sem suporte funda a possibilidade nahistria de uma predicao universal. O gesto indito de Paulo sub
trair a verdade da dominao comunitria, seja de um povo, de uma
cidade, de um imprio, de um territrio ou de uma classe social. O
que verdadeiro (ou justo, o que nesse caso tem o mesmo significa
do) no se deixa remeter a nenhum conjunto objetivo, nem do pon
to de vista de sua causa, nem do ponto de vista de seu destino.
Objetaremos que verdade designe aqui, para ns, uma simplesfbula. Exatamente, mas o que importa o gesto subjetivo apreen
dido na sua potncia fundadora no que se refere s condies ge
nricas da universalidade. Mesmo que o contedo fabuloso seja
abandonado, resta a forma dessas condies e, particularmente, a
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Contemporaneidade de Paulo
runa de toda atribuio do discurso da verdade a conjuntos hist
ricos pr-constitudos.Separar arduamente cada processo de verdade da historicidade
cultural na qual a opinio pblica pretende dissolv-lo: essa aoperao em que Paulo nos guia.
Repensar esse gesto, desfazer suas divergncias, vivificar sua singularidade e fora instituinte , com toda certeza, uma necessidade
contempornea.De fato, de que se compe nossa atualidade? A reduo pro
gressiva da questo da verdade (portanto, do pensamento) forma
lingustica do julgamento, ponto sobre o qual esto de acordo aideologia analtica anglo-saxnica e a tradio hermenutica (a dupla analtica/hermenutica tranca com cadeado a filosofia acadmi
ca contempornea), chega a um relativismo cultural e histrico que,hoje, simultaneamente um tema da opinio pblica, uma motiva
o poltica e um quadro de referncia para a pesquisa nas cinciashumanas. As formas extremas desse relativismo, j em ao, preten
dem destinar a prpria matemtica a um conjunto ocidental aoqual se pode fazer equivaler qualquer dispositivo obscurantista ou
simbolicamente irrisrio, contanto que se esteja em estado de nomear o subconjunto humano que porta esse dispositivo, ou melhor,
que haja razes para acreditar que esse subconjunto composto por
vtimas. na tentativa dessa interseo entre a ideologia culturalis-
ta e a concepo vitimria do homem que sucumbe todo acesso ao
universal, o qual no tolera que lhe seja atribuda uma particula
ridade, nem mantm relao direta com o estatuto - dominante ou
vitimrio - dos lugaresem que emerge a proposio.Qual o real unificador dessa promoo da virtude cultural dos
subconjuntos oprimidos, desse elogio lingustico dos particularis
mos comunitrios (os quais, em ltima anlise, remetem sempre
no s lngua, mas raa, nao, religio ou ao sexo)? Noh dvida alguma de que a abstrao monetria, da qual o fal
so universal suporta perfeitamente mesclas comunitaristas. A longa
experincia das ditaduras comunistas tem o mrito de mostrar quea globalizao financeira e o reino sem restrio da universalidade
vazia do capital tiveram como verdadeiro inimigo apenas um outro
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projeto universal, ainda que pervertido e ensanguentado; que so
mente Lenin e Mao realmente davam medo a quem se propunha
exaltar sem restries os mritos liberais do equivalente geral ou as
virtudes democrticas da comunicao comercial. A runa senil daURSS, paradigma dos Estados socialistas, elevou provisoriamen
te o medo, desencadeou a abstrao vazia, abaixou o pensamento
de todos. E certamente no renunciando ao universal concreto
das verdades para afirmar o direito das minorias raciais, religio
sas, nacionais ou sexuais que se reduzir a devastao. No, ns no
deixaremos os direitos da verdade-pensamento terem como instn
cias apenas o monetarismo de livre-cmbio e sua medocre polticasimultnea, o capital-parlamentarismo, cuja misria a bela palavra
democracia acoberta cada vez mais desastrosamente.
Por isso, Paulo, ele mesmo contemporneo de uma figura monu
mental da destruio de toda poltica (os incios do despotismo mi
litar denominado Imprio Romano), interessa-nos extremamente.
Ele aquele que, destinando ao universal uma determinada conexo
entre o sujeito e a lei, pergunta-se com o maior rigor qual o preoa pagar por essa destinao, tanto por parte do sujeito quanto por
parte da lei. Essa pergunta exatamente a nossa. Supondo que conse
guiremos refundar a conexo entre a verdade e o sujeito, que con
sequncias a fora para mant-la dever ter, tanto no que diz respeito
verdade (pertinente ao acontecimento e aleatria) quanto ao que
se refere ao sujeito (raro e heroico)?
com vistas a essa questo, e a nenhuma outra, que a filosofiapode assumir sua condio temporal, em vez de tornar-se uma apa
relhagem para acobertar o pior. Que ela pode enfrentar a poca em
vez de mascarar a inrcia selvagem.
Se nos limitarmos ao nosso pas [Frana], ao destino pblico do
seu Estado, o que se pode assinalar como tendncia marcante nos l
timos quinze anos? Independentemente, bvio, da ampliao cons
tante dos automatismos do capital, sob os significantes do liberalismoe da Europa; ampliao que, sendo a lei do mercado mundial, no
poderia como tal singularizar a configurao de nosso local.
Infelizmente, para responder a essa pergunta, vemos apenas o es
tabelecimento irreversvel do partido de Le Pen, verdadeira singula
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ridade nacional da qual, para encontrar um equivalente, preciso ir,
e isso no uma recomendao, at a ustria. E qual a mxima
singular desse partido? A mxima a que nenhum dos partidos parla
mentares ousa se opor frontalmente, de modo que todos votam outoleram as leis cada vez mais criminosas que dela decorrem implaca
velmente? Essa mxima : A Frana para os franceses. O que, tra-
tando-se do Estado, reconduz ao que foi o nome paradoxal dado
por Ptain* a um governo fantoche, zeloso servidor do ocupante na
zista: o Estado francs. O motivo pelo qual se instala no centro do
espao pblico a questo deletria: o que um francs? Mas para
essa questo, todos sabem que no existe nenhuma resposta sustentvel a no ser a perseguio de pessoas designadas arbitrariamente
como no francesas. A nica polticareal da palavra francs, man
tida por uma categoria fundadora no Estado, o estabelecimento,
cada vez mais insistente, de medidas discriminatrias obstinadas
que visam s pessoas que esto aqui, ou que procuram viver aqui. E
particularmente assustador que essa perseguio real da lgica
identitria (a Lei serve apenas para os franceses) rena sob a mesma
bandeira, como mostra o triste caso denominado do foulard,os de
fensores resignados da devastao capitalista (a perseguio seria ine
vitvel, uma vez que o desemprego probe qualquer acolhida) e os
defensores de uma fantasmagrica, assim como excepcional, rep
blica francesa (os estrangeiros somente sero tolerados se eles se in
tegrarem ao magnfico modelo que lhes propem nossas puras
instituies, nossos surpreendentes sistemas de educao e de repre
sentao). Prova que entre a lgica globalizada do capital e o fanatismo identitrio francs existe, no que se refere vida real das pessoas
e do que lhes acontece, uma detestvel cumplicidade.
Diante de ns, constri-se a comunitarizao do espao pblico,
a renncia neutralidade transcendente da lei. O Estado teria de se
garantir em primeiro lugar e constantemente cuidar da identidade
genealgica, religiosa e racialmente certificvel daqueles pelos quais
responsvel. Teria de definir duas regies distintas da lei, ou mesmo
Philippe Ptain (18561951), chefe de Estado da Frana durante o regime deVichy (1940-1944). (N. E.)
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trs, conforme se trate de verdadeiros franceses, de estrangeiros inte
grados ou integrveis e, enfim, de estrangeiros que se declaram no
integrados e mesmo no integrveis. A lei passaria assim sob o con
trole de um modelo nacional sem qualquer princpio real, a noser o das perseguies em que ele se engaja. Todo princpio universal
abandonado, a averiguao identitria, que sempre uma batida po
licial, deveria preceder a definio ou a aplicao da lei. O que quer
dizer que, como nos tempos de Ptain, quando os juristas no viam a
menor malcia em definir sutilmente o judeu como prottipo do no
francs, seria preciso que toda a legislao fosse acompanhada dos
protocolos identitrios requeridos e que subconjuntos da populaofossem sempre definidos por seu estatuto especial.Isso segue seu cur
so, cada um dos governos sucessivos d seu pequeno toque. Ns nos
encontramos diante de uma petainizao rasteira do Estado.
Como nessas condies soa claro o enunciado de Paulo, enun
ciado realmente impressionante quando se conhecem as regras do
mundo antigo: No h mais judeu nem grego, no h mais escravo
nem livre, no mais homem nem mulher (GI. 3. 28)! E como, para ns que substituiremos sem dificuldade Deus por essa ou aquela
verdade, e o Bem pelo servio que essa verdade exige, convm a mxima: Glria, honra e paz para qualquer um que faa o bem, para
o judeu em primeiro lugar, em seguida, para o grego! Pois diante de
Deus no h nenhuma distino entre as pessoas (Rm. 2. 10).
Nosso mundo no de maneira alguma to complexo quanto
querem aqueles que desejam garantir sua perpetuao. Ele at, em
suas grandes linhas, de uma perfeita simplicidade.
Por um lado, h uma ampliao contnua dos automatismos do
capital, o que a realizao de uma predio genial de Marx: o
mundo enfim configurado,mas como mercado, como mercado mun
dial. Essa configurao faz prevalecer uma homogeneizao abstra
ta. Tudo o que circula cai em uma unidade de conta e, inversamente,
somente circula o que se deixa assim contar. Alm disso, essa nor
ma que esclarece um paradoxo que poucos salientam: na hora dacirculao generalizada e do fantasma da comunicao cultural ins
tantnea, multiplicam-se por toda parte as leis e os regulamentos
para proibirem a circulao de pessoas. assim que, na Frana,
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jamais houve to poucos estrangeiros instalados como no ltimo
perodo! Livre circulao do que se deixa contar, sim, e em primeiro
lugar dos capitais, do que a conta da conta. Livre circulao da in
contvel infinidade que uma vida humana singular, jamais! quea abstrao monetria capitalista certamente uma singularidade,
mas uma singularidade que no tem relao com nenhuma singula
ridade. Uma singularidade indiferente persistente infinidade daexistncia, assim como ao devir das verdades pertinentes aos
acontecimentos.
Por outro lado, h um processo de fragmentao em identidades
fechadas, e a ideologia culturalista e relativista que acompanha essafragmentao.
Esses dois processos so perfeitamente intricados. Pois cada iden
tificao (criao ou bricolagem de identidade) cria uma figura que
constitui matria para seu investimento pelo mercado. Nada mais
cativo, para o investimento mercantil, nada mais oferecidopara a in
veno de novas figuras da homogeneidade monetria, do que uma
comunidade e seu ou seus territrios. E preciso a aparncia de umano equivalncia para que a prpria equivalncia seja um processo.
Que futuro inesgotvel para os investimentos mercantis, tal qual o
surgimento em forma de comunidade reivindicativa e de pretensa
singularidade cultural das mulheres, dos homossexuais, dos defi
cientes, dos rabes! E as combinaes infinitas de traos predicati
vos, que oportunidade! O s homossexuais negros, os srvios invlidos,
os catlicos pedfilos, os islamitas moderados, os padres casados, osjovens executivos ecologistas, os desempregados submissos*, os jo
vens j velhos! Constantemente, uma imagem social autoriza pro
dutos novos, revistas especializadas, centros comerciais adequados,
rdios livres, redes publicitrias dirigidas a alvos especficos e,
De acordo com Helena Hirata, embora, na Frana, existam diversas categorias
institucionais de desempregados, chmeurs soumis [desempregados submissos]no consta na Anpe (Agence National pour 1Emploi). De maneira especfica, existem desempregados que se sujeitam s injunes institucionais para terdireito ao seguro-desemprego e, de maneira geral, possvel pensar naquelesque se sujeitam sua situao sem se revoltarem. Imagino que Alain Badiourefira-se, aqui, aos primeiros. (N. T.)
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enfim, obstinados programas de debates nos horrios de grande
ar iincia. Deleuze dizia exatamente isto: a desterritorializao capi
talista tem necessidade de uma constante reterritorializao. O capi
tal exige, para que seu princpio de movimento torne homogneoseu espao de exerccio, o permanente ressurgimento de identidades
subjetivas e territoriais, as quais, alis, reivindicam apenas o direito
de serem expostas, da mesma maneira que as outras, s prerrogativas
uniformes do mercado. Lgica capitalista do equivalente geral e l
gica identitria e cultural das comunidades ou das minorias formam
um conjunto articulado.
Essa articulao constrangedora em relao a qualquer processo de verdade. Ela organicamente sem verdade.
Por um lado, todo processo de verdade encontra-se em ruptura
com o princpio axiomtico que rege a situao e organiza suas s
ries repetitivas. Um processo de verdade interrompe a repetio e,
portanto, no pode se sustentar da permanncia abstrata de uma
unidade de conta. Uma verdade sempre, de acordo com a lei de
conta dominante, subtrada da conta. Nenhuma verdade pode, porconsequncia, sustentar-se da expanso homognea do capital.
Mas, por outro lado, um processo de verdade no pode mais se
ancorar no identitrio. Pois, se certo que toda verdade surge como
singular, sua singularidade imediatamente universalizvel. A sin
gularidade universalizvel necessariamente entra em ruptura com a
singularidade identitria.
Que haja histrias emaranhadas, culturas diferentes e, de modomais geral, diferenas j imensas em um nico e mesmo indiv
duo, que o mundo seja heterogneo e que ele no deixe as pessoas
viverem, comerem, vestirem-se, imaginarem e amarem como elas
querem, no a que est a questo, como os falsos ingnuos que
rem nos fazer crer. Essas evidncias liberais no custam caro e gosta
ramos apenas que aqueles que as proclamam no se mostrassem to
violentos quando aparece a menor tentativa mais ou menos sria dese distinguir de sua prpria pequena diferena liberal. O cosmopo
litismo contemporneo uma realidade salutar. Demandaremos so
mente que a viso de uma jovem que usa vu no coloque em transe
seus defensores, o que tememos uma vez que eles no desejam, na
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realidade, mais do que um verdadeiro tecido de diferenas instveis,a ditadura uniforme do que acreditam ser a modernidade.
A questo saber o que as categorias identitrias e comunitaris-
tas tm a ver com os processos de verdade, por exemplo, os processos polticos. Respondemos: essas categorias devem ser ausentadasdo processo, sem o que nenhuma verdade tem a menor chance de
estabelecer sua persistncia e de acumular sua infinidade imanente.
Alis, sabemos que as polticas identitrias consequentes, como o
nazismo, so guerreiras e criminosas. A ideia de' que se possa, mes
mo sob a forma da identidade francesa republicana, manipular
inocentemente essas categorias inconsistente. Oscilaremos forosamente entre o universal abstrato do capital e perseguies locais.
O mundo contemporneo , assim, duplamente hostil aos pro
cessos de verdade. O sintoma dessa hostilidade d-se por superposi
es nominais: onde se deveria manter o nome de um procedimentode verdade, vem outro nome, que o recalca. O nome cultura vem
obliterar o da arte. A palavra tcnica oblitera a palavra cincia. A pa
lavra gesto oblitera a palavra poltica. A palavra sexualidade oblitera o amor. O sistema cultura-tcnica-gesto-sexualidade, que tem o
imenso mrito de ser homogneo no mercado e cujos termos, alis,designam uma rubrica da apresentao mercantil, a superposio
nominal moderna do sistema arte-cincia-poltica-amor, que iden
tifica tipolgicamente os procedimentos de verdade.
Ora, a lgica identitria, ou minoritria, longe de se voltar para
uma apropriao dessa tipologia, prope apenas uma variante da superposio nominal capitalista. Ela polemiza contra todo conceito
genrico da arte e o substitui por sua prpria conta pelo de cultura,
concebido como cultura do grupo, amlgama subjetivo ou repre
sentativo de sua existncia, cultura destinada a si e potencialmente
no universalizvel. Alm disso, ela no hesita em enunciar que os
elementos constitutivos dessa cultura so plenamente compreens
veis somente se pertencerem ao subconjunto considerado. Da os
enunciados catastrficos do gnero: somente um homossexual podecompreender o que significa ser homossexual, um rabe o que sig
nifica ser rabe etc. Se, como pensamos, somente as verdades (o pen
samento) permitem distinguir o homem do animal humano que o
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subentende, no exagerado dizer que esses enunciados minorit
rios so realmente brbaros.N o caso da cincia, o culturalismo pro
move a particularidade tcnica dos subconjuntos equivalncia do
pensamento cientfico, de modo que os antibiticos, o xamanismo,a imposio das mos ou as tisanas relaxantes so uniformizados. No
caso da poltica, a considerao de traos identitrios encontra-se na
base da determinao, seja ela estatal ou reivindicativa, e finalmen
te se trata de inscrever, pelo direito ou pela fora bruta, uma gesto
autoritria desses traos (nacionais, religiosos, sexuais etc.), consi
derados como operadores polticos dominantes. E, enfim, no caso
do amor, demanda-se simetricamente seja o direito gentico de verreconhecido como identidade minoritria esse ou aquele compor
tamento sexual especfico, seja a volta pura e simples s concepes
arcaicas, culturalmente estabelecidas, como a conjugabilidade estrita,
o aprisionamento das mulheres etc. Os dois podem combinar perfei
tamente, como na reivindicao dos homossexuais relativas ao direi
to de unir o grande tradicionalismo do casamento e da famlia ou de
vestir, com a bno do papa, os hbitos do monge.Os dois componentes do conjunto articulado (homogeneidade
abstrata do capital e reivindicaes identitrias) encontram-se em uma
relao espelhada e de dilogo. Quem pode pretender que seja evidente
a superioridade do culto-competente-gerente-sexualmente-equilibra-
do? Mas quem defendero religioso-corrompido-terrorista-polgamo?
Ou celebrar o marginal-cultural-homeopata-miditico-transexual?
Cada figura tira sua legitimidade tortuosa do descrdito do outro.
Mas, de qualquer maneira, cada um utiliza os recursos do outro, pois
a transformao em argumentos publicitrios e imagens vendveis
das identidades comunitrias mais tpicas e mais recentes correspon
de competncia, constantemente afinada, dos mais fechados ou
violentos grupos, para especular nos mercados financeiros ou para
fomentar em grande escala o comrcio de armas.
Em ruptura com tudo isso (nem homogeneidade monetria,
nem reivindicao identitria; nem universalidade abstrata do capital, nem particularidade dos interesses de um subconjunto), nossa
questo formula-se claramente: quais so as condies de uma sin
gularidade universal?
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Contemporaneidade de Paulo
nesse ponto que convocamos So Paulo, pois sua questo exata
mente essa. O que quer Paulo? Sem dvida, tirar a Nova (o Evangelho)
da estrita cerca em que ela teria valor apenas para a comunidade ju
daica. Mas, de toda maneira, jamais a deixar ser determinada pelasgeneralidades disponveis, sejam elas estatais ou ideolgicas. A gene
ralidade estatal o juridismo romano e, particularmente, a cidada
nia romana, suas condies e os direitos a ela relacionados. Ainda
que, ele prprio, um cidado romano e feliz por s-lo, Paulo jamais
autorizar que qualquer categoria do direito identifique o sujeito
cristo. Sero, portanto, admitidos, sem restrio nem privilgio, os
escravos, as mulheres, as pessoas de todas as profisses e de todas asnacionalidades. Quanto generalidade ideolgica, evidentemente,
o discurso filosfico e moral grego. Paulo organizar uma distncia
determinada para esse discurso, para ele, simtrica a uma viso con
servadora da lei judaica. Em ltima anlise, trata-se de fazer valer
uma singularidade universal contra as abstraes estabelecidas (jur
dicas na poca, econmicas atualmente) e, ao mesmo tempo, contra
a reivindicao comunitria ou particularista.O caminho geral de Paulo o seguinte: se houve um aconteci
mento e se a verdade consiste em proclam-lo e, em seguida, ser fiel
a essa proclamao decorrem duas consequncias. Primeiro, sendo a
verdade pertinente ao acontecimento, ou da ordem do que advm,
ela singular. No estrutural, nem axiomtica, nem legal. Nenhuma
generalidade disponvel pode dar conta ou estruturar o sujeito que
se reporta a ela. No poderia, portanto, haver uma lei da verdade.Em seguida, sendo a verdade registrada a partir de uma declarao
de natureza subjetiva, nenhum subconjunto pr-constitudo a sus
tenta, nada de comunitrio ou de historicamente estabelecido em
presta sua substncia a seu processo. A verdade diagonal em relao
a todos os subconjuntos comunitrios, ela no comporta nenhuma
identidade e (esse ponto , evidentemente, o mais delicado) no
constitui nenhuma identidade. Ela oferecida a todos, ou destinadaa cada um, sem que uma condio de pertencimento possa limitar
essa oferta ou essa destinao.
A problemtica de Paulo, por mais sinuosa que seja sua orga
nizao - uma vez que os textos que nos foram transmitidos so
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todos intervenes circunstanciais e, portanto, textos comandados
por disputas tticas localizadas , segue implacavelmente as exign
cias da verdade como singularidade universal:
1. O sujeito cristo no preexiste ao acontecimento que ele declara (a Ressurreio do Cristo). Portanto, polemizaremos contra as
condies extrnsecas de sua existncia ou de sua identidade. No se
deve requerer nem que ele seja judeu (ou circuncidado), nem que
ele seja grego (ou sbio). Trata-se da teoria dos discursos (existem
trs: o judeu, o grego, o novo). Tambm no se deve requerer que
ele seja dessa ou daquela classe social (teoria da igualdade diante da
verdade) ou desse ou daquele sexo (teoria das mulheres).2. A verdade inteiramente subjetiva (ela da ordem de uma
declarao que revela uma convico relativa ao acontecimento).
Polemizaremos contra toda subsuno de seu futuro a uma lei.
preciso ultrapass-la por meio, simultaneamente, de uma crtica ra
dical da Lei judaica, que se tornou obsoleta e nociva, e da lei grega,
ou subordinao do destino ordem csmica, que nunca foi mais
do que uma ignorncia erudita dos caminhos da salvao.3. A fidelidade declarao crucial, pois a verdade um pro
cesso e no uma iluminao. Para pensar sobre ela, temos necessida
de de trs conceitos: o que nomeia o sujeito no ponto da declarao
(ixaii, geralmente traduzida por f, mas melhor seria convic
o); o que nomeia o sujeito no ponto da inteno militante de sua
convico (ymr], geralmente traduzida por caridade, mas me
lhor seria amor); o que nomeia o sujeito na fora do deslocamentoque lhe conferida pela suposio do carter acabadodo processo de
verdade (Xtu, geralmente traduzida por esperana, mas melhor
seria certeza).4. Uma verdade em si mesma indiferente ao estado da situao,
por exemplo, ao Estado romano. O que significa que ela subtrada
da organizao dos subconjuntos prescritos por esse estado. A subje
tividade que corresponde a essa subtrao umadistncia
necessriaem relao ao Estado e ao que lhe corresponde nas mentalidades: a
aparelhagem das opinies. Opinies, dir Paulo, no preciso dis
putar. Uma verdade um processo concentrado e srio, que jamais
deve entrar em competio com as opinies estabelecidas.
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No h uma dessas mximas, deixando de lado o contedo do
acontecimento, que no possa ser conveniente nossa situao e s
nossas tarefas filosficas. Resta desenvolver a organizao conceituai
a elas subjacente, ao mesmo tempo fazendo justia quele que, decidindo que ningum era exceo ao que uma verdade exige e extrain
do a verdade da Lei, solitrio, provocou uma revoluo cultural da
qual dependemos ainda.
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Poderamos comear no estilo beneditino das biografias usuais.
Paulo (na realidade, Saul, nome do primeiro rei de Israel) nasce
em Tarso, entre os anos 1 e 5 (impossvel, cientificamente, ser mais
preciso). Portanto, ele da mesma gerao de Jesus, que - como to
dos sabem, mas trata-se de uma circularidade interessante - nasceu
fundando ao mesmo tempo sua data de nascimento, que instituiu
o ano 1 de nossa era (sobretudo a dele). O pai de Paulo um arte
so comerciante que fabrica tendas. Cidado romano e, portanto,Paulo tambm o . Como o pai obteve a cidadania? O mais simples
imaginar, sem prova alguma, que a comprou. No est acima dos
recursos de um comerciante abastado corromper um funcionrio
romano. Paulo era um judeu da tendncia dos fariseus. Participa,
com ardor, da perseguio dos cristos, considerados hereges pelos
judeus ortodoxos e, por isso, legalmente perseguidos diante dos tri
bunais, mas tambm espancados, atacados com pedras, caados, tudo conforme a variao, no interior das comunidades judaicas, das
relaes de fora entre tendncias.
A execuo do Cristo data de mais ou menos 30. Estava-se sob
o domnio de Tibrio. Em 33 ou 34, Paulo foi surpreendido por
uma apario divina e converteu-se ao cristianismo na estrada para
Damasco. Inicia suas famosas viagens missionrias. E assim segue
sem parar.Para que tudo isso? Vejam os livros. Vamos direto doutrina.
E, no entanto, no. Paulo, veremos, uma grande figura da an-
tifilosofia. Ora, da essncia da antifilosofia que a posio subjetiva
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constitua argumento no discurso. Fragmentos existenciais, que s
vezes parecem casos, so elevados posio de garantia da verda
de. Imaginemos Rousseau sem as Confisses*, Kierkegaard sem que
sejamos instrudos dos detalhes de seu noivado com Rgine, ouNietzsche no nos tomando como testemunhas, ao longo de todo o
Ecce homo' , das razes que o autorizam a fazer a pergunta: Por que
sou um destino?. Para um antifilsofo, evidente que a posio
enunciativa faz parte do protocolo do enunciado. Nenhum discurso
pode pretender a verdade se no contiver uma resposta explcita
questo: quem fala?
Quando Paulo profere seus escritos, ele lembra sempre que
tem motivos para falar enquanto sujeito. E ele se tornou esse su
jeito. Ele se tornou esse sujeito repentinamente, na estrada para
Dam asco (se, nesse ponto, como acreditamos, podemos fazer uma
exceo e confiar na biografia maquiada de Paulo intitulada Atos
dos apstolospresente no Novo Testamento). Conhecemos a hist
ria: a caminho de Damasco, enquanto fariseu diligente, para per
seguir os cristos, Paulo ouviu uma voz misteriosa que lhe revelou
a verdade e sua vocao.A palavra converso convm ao que se passou no caminho de
Damasco? Trata-se de uma ao fulminante, de uma cesura e no
de uma transformao dialtica. Trata-se de uma requisio que ins
titui um novo sujeito: Pela graa de Deus, eu sou quem eu sou(e[Xi e(JLi) (ICor. 1 5 . 1 0 ) . E o eu sou como tal que convocado
no caminho de Damasco por uma interveno absolutamente casual.
Em certo sentido, essa converso no foi realizada por ningum:Paulo no foi convertido por representantes da Igreja, no se trata
de uma adeso. No lhe levaram o Evangelho. claro que o encon
tro na estrada simula o acontecimento fundador. Da mesma maneira
que a Ressurreio totalmente incalculvel e dela que preciso
Jean-Jacques Rousseau, As confisses de Jean-Jacques Rousseau (trad. WilsonLousada, Rio de Janeiro, Ediouro, 1992, Coleo Clssicos de bolso). (N. T.)
Friedrich Wilhelm Nietzsche, Ecce homo: como algum se torna o que (trad.Paulo Csar de Souza, So Paulo, Companhia das Letras, 2008, Coleo
Companhia de bolso). (N. T.)
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de qualquer selo oficial. Disso data essa convico inquebrantvel
relativa a seu prprio destino, que o opor diversas vezes ao ncleodos apstolos histricos, dos quais Pedro a personalidade central.
Desviando-se de qualquer outra autoridade que no seja a Voz que
o convocou pessoalmente para o vir-a-ser-sujeito, Paulo parte, naArbia, para anunciar o Evangelho, para declarar que o que aconte
ceu, aconteceu. Homem que, munido de um acontecimento pessoal,
teve bons motivos para proclamar esse acontecimento impessoal que
a Ressurreio.Paulo permanece na Arbia durante trs anos. Sem dvida, sua
prpria eficcia militante , para ele, uma garantia suficiente paraque possa, passado esse perodo, encontrar enfim os lderes hist
ricos. Veremos a seguir que, obstinado e at mesmo violento nosprincpios, Paulo tambm um poltico que conhece o valor dos
compromissos racionais e, particularmente, dos compromissos ver
bais, que ferem pouco sua liberdade de ao nos lugares e territrios que ele escolhe (aqueles, de preferncia, em que o adversrio
encontra-se menos implantado). Paulo passa ento em Jerusalm,onde encontra Pedro e os apstolos e, em seguida, parte novamen
te. Ignoramos todas as disputas desse primeiro encontro. precisocrer que ele no convence Paulo da necessidade de ter muitas vezes
como referente o centro jerosolimita, pois seu segundo perodode viagens militantes durar catorze anos! Cilicia, Sria, Turquia,
Macednia, Grcia. A dimenso descentrada da ao de Paulo a
subestrutura prtica de seu pensamento, o qual estabelece que todauniversalidade verdadeira no tem centro.
Sabemos muito pouco como funcionam essas peregrinaes mi
litantes. Naquela poca, o judasmo ainda era uma religio de pro
selitismo. Dirigir-se aos pagos no , como imaginam alguns, uma
inveno de Paulo. O proselitismo judaico consequente e desen
volvido. Ele divide sua audincia em dois crculos que poderiam ser
denominados, usando um anacronismo poltico arriscado, os simpatizantes e os adeptos.
1. Os que temem Deus reconhecem a legitimidade global domonotesmo, mas so dispensados das prescries da Lei e, especial
mente, da circunciso.
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2. Os convertidos comeam a respeitar as prescries da Lei e
devem ser circuncidados. A circunciso atesta aqui sua funo de
identificao, de iniciao primordial.
Portanto, no diretamente a fala aos pagos que isola Paulo dacomunidade judaica. Alis, apoiando-se nas instituies dessa comu
nidade que Paulo inicia sua pregao. Quando chega a alguma cida
de, na sinagoga que ele intervm em primeiro lugar. Evidentemente,
as coisas no funcionam bem com os ortodoxos por razes doutrin
rias: a obstinao em afirmar que Jesus o Messias (lembremos que
Cristo simplesmente a palavra grega para messias, de modo
que o nico ponto de continuidade entre a Nova, segundo Paulo, eo judasmo proftico a equao Jesus = Cristo), afirmao que, do
ponto de vista da maioria dos judeus, e por motivos extremamente
fortes e legtimos, sustenta uma impostura. Aps incidentes que, nas
condies da poca podem ser muito violentos, e nos quais, em su
ma, arrisca sua vida, Paulo abandona a sinagoga e se recolhe na casa
de um simpatizante local. L, tenta formar um grupo que mistura
judeo-cristos e pagos-cristos. Parece que, rapidamente, os adeptosdo grupo sero em sua maioria pagos-cristos. No de se espantar,
se considerarmos as trs fracas concesses que Paulo faz herana ju
daica, particularmente no que diz respeito aos ritos. Uma vez que, pa
ra ele, o grupo tornou-se suficientemente consolidado (diremos ento
que ele ecclsia,de onde vem, sem dvida, igreja, mas que preci
so ser apresentado como um pequeno conjunto de militantes), Paulo
confia sua direo queles cuja convico ele aprecia e que vo se tornar seus substitutos. Em seguida, continua sua viagem.
Nada mais significativo da certeza de Paulo em relao ao futuro
de sua ao que a identificao, que ele faz constantemente, entre
o pequeno ncleo de fiis constitudo em uma cidade e a regio in
teira. Quem so, de fato, esses tessalonicenses, esses corntios, sem
falar nos romanos, aos quais Paulo dirige, em tom animado e majes
toso, suas epstolas? Provavelmente, alguns irmos, forma arcaicade camaradas, perdidos na cidade. O fato de serem comensurveis
a uma verdade transforma sempre indivduos annimos em vetores
de toda a humanidade. Digamos que o punhado de resistentes dos
anos 1940 ou 1941 encontrava-se na mesma situao embaraada
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que os corntios de Paulo: a eles, e somente a eles, que lcito di
rigir-se, se se trata de apontar algo real da Frana.
Paulo jamais perde de vista, por mais longe que esteja, os n
cleos de fiis cuja criao ele estimulou. Suas epstolas so simplesmente intervenes na vida desses ncleos e tm tudo da paixo
poltica. Luta contra as divises internas, evocao de princpios
fundamentais, renovao da confiana nos dirigentes locais, anlises
de questes litigiosas, exigncia imperativa de uma ao de proseli
tismo sustentada, organizao das finanas... Nada falta daquilo que
um ativista de qualquer causa organizada pode reconhecer como as
preocupaes e as veemncias da interveno coletiva.
No final desses catorze anos de andana organizadora, dos quais
no nos resta uma linha escrita, estamos quase no ano 50. Havia
mais ou menos vinte anos que o Cristo morrera. Havia dezessete
anos que Paulo recebera a convocao na estrada de Damasco. Ele ti
nha aproximadamente cinquenta anos de idade e se autodenominava
o velho Paulo. Seus primeiros textos que nos chegaram datam dessa
poca. Por qu? Podemos, nesse ponto, levantar algumas hipteses.
Responsvel por vrios grupos essencialmente constitudos depagos-cristos, nessa poca Paulo reside na Antioquia, uma cidade
muito grande, a terceira do Imprio, depois de Roma e Alexandria.
Lembremos que Paulo nasceu em uma famlia abastada de Tarso, que
era um homem da cidade, no um campons. Isso importante. Seu
estilo no tem nada das imagens e metforas rurais que, em compen
sao, so abundantes nas parbolas do Cristo. Se sua viso das coi
sas abarca com fervor a dimenso do mundo, se vai at os extremoslimites do Imprio (seu voto mais claro ir Espanha, como se ele, o
oriental, s pudesse levar a cabo sua misso no extremo Ocidente),
porque o cosmopolitismo urbano e as longas viagens transformaram
sua amplitude. O universalismo de Paulo tambm uma geografia
interna, que no a do pequeno proprietrio fundirio.
Pensamos que, se Paulo comea a escrever sobre questes dou
trinrias, se seus textos foram recopiados e circulam, porque lheaparece a necessidade de combater em grande escala. As circuns
tncias o obrigam a se conceber como o lder de um partido ou de
uma faco.
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Durante o tempo em que Paulo permaneceu na Antioquia, chegaram os judeo-cristos de estrita observncia. Eles se opem aoapstolo, semeiam a discrdia, exigem a circunciso de todos os
fiis. Mais uma vez, o que est em jogo no o proselitismo voltado para os no judeus. A questo que Paulo consente distinguirapenas dois crculos entre os que ele agrupa, os simpatizantes dadoutrina e os verdadeiros convertidos, ritualizados e circuncidados. Para ele (e nesse ponto estamos de acordo), o processo de umaverdade tal, que no comporta graus. Ou dela participamos, declaramos o acontecimento fundador e tiramos suas consequncias,
ou dela permanecemos fora. Essa distino sem intermedirio nemmediao inteiramente subjetiva. Os traos distintivos externose os ritos no podem servir para fundament-la, nem sequer para matiz-la. o preo do estatuto da verdade como singularidadeuniversal. O processo de uma verdade somente universal se umreconhecimento subjetivo imediato de sua singularidade o sustentacomo seu ponto real. Caso contrrio, preciso retomar observn-
cias ou smbolos particulares, o que possibilita apenas fixar a Novano espao comunitrio e bloquear seu desenvolvimento universal.Portanto, Paulo considera todos os convertidos como fiis em plenoexerccio, qualquer que seja sua origem, sejam ou no circuncida
dos. Os judeo-cristos de estrita observncia mantm a prtica dosgraus de adeso e acham realmente escandaloso que sejam consideradas como iguais pessoas que no tm os traos distintivos nem as
prticas rituais da comunidade. Em suma, pessoas que no tm nenhum tipo de conhecimento da Lei nem de respeito a ela.Surge uma grave querela. Finalmente, decide-se resolver a ques
to em Jerusalm com os apstolos histricos. D-se o segundoencontro entre Paulo e Pedro e, dessa vez, deixaram-nos clara suadisputa. Trata-se de um conflito maior, que introduz o destino danova doutrina. At que ponto ela continua submetida sua origem,
comunidade judaica? Em minhas palavras: qual a relao exataentre a suposta universalidade da verdade ps-acontecimento (o quese infere de o Cristo ressuscitou) e o local do acontecimento, que
O autor usa a palavra site que, em francs, entre diversas acepes, tem a deconfigurao de um lugar em relao a seu destino. Dada a forte conotao
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, sem dvida alguma, o povo que consolida o Antigo Testamento?
Qual a importncia dos traos distintivos tradicionais de pertencer
comunidade judaica para a construo dessa verdade, para o seu
desdobramento entre os povos do Imprio?Sobre essas questes, que organizam o entrelaamento da sin
gularidade e da universalidade, a Assembleia de Jerusalm (em 50?
51?) tem uma importncia decisiva. Sua disputa particular a cir
cunciso e Paulo tomou o cuidado de ir a Jerusalm acompanhado
de Tito, um fiel no circuncidado. Mas, no pano de fundo, as ques
tes so: Quem foi eleito? O que a eleio? H signos visveis dela?
E finalmente: Quem sujeito? O que distingueum sujeito?O campo judeo-cristo de estrita observncia afirma que o acon-
tecimento-Cristo no abole o espao antigo. Sua concepo do su
jeito dialtica. No se trata de negar a potncia do acontecimento.
Trata-se de afirmar que sua novidade conserva e eleva o local tradi
cional da crena, incorpora-o por meio da superao. O aconteci-
mento-Cristo obedece Lei, no a rescinde. Os traos distintivos
herdados da tradio (a circunciso, por exemplo) so, portanto,sempre necessrios. Pode-se at dizer que, retomados e elevados pela
nova notcia, so transfigurados e ainda mais ativos.
Paulo encontra-se frente do grupo oposto. Para ele, o aconte
cimento torna obsoletos os traos distintivos anteriores, e a nova
universalidade no sustenta a menor relao privilegiada com a co
munidade judaica. Certamente, os componentes do acontecimento,
seu lugar, tudo o que ele mobiliza, tm como local essa comunidade. O prprio Paulo de cultura judaica e cita muito mais vezes o
Antigo Testamento do que as supostas palavras do Cristo vivo. Mas,
se no seu ser o acontecimento dependente de seu local, nos seus
efeitos de verdade preciso que, dele, seja independente. Portanto,
no que os traos distintivos comunitrios (a circunciso, os ritos,
a observncia minuciosa da Lei) sejam indefensveis ou errneos;
que o imperativo ps-acontecimento da verdade os tornam (o que
que a palavra stiotem em portugus, sugerindo ideias que no correspondem do autor neste contexto, parece melhor traduzi-la por local,em sua acepode servir a um propsito . (N . T.)
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pior) indiferentes. Eles no tm mais significao, nem positiva,
nem negativa. Paulo no se ops circunciso. Seu enunciado ri
goroso : A circunciso no nada e a incircunciso tambm no
(ICor. 7. 19). Esse enunciado evidentemente um sacrilgio paraos judeo-cristos. Observemos que, no entanto, no um enuncia
do pago-cristo, uma vez que nele a incircunciso no tem valor
particular algum, nem de maneira alguma exigvel.
O debate, filosoficamente reconstitudo, baseia-se em trs con
ceitos. A interrupo (o que um acontecimento interrompe e o
que ele preserva?). A fidelidade (o que ser fiel interrupo perti
nente a um acontecimento?). Os traos distintivos (existem traosou sinais visveis da fidelidade?). Na interseo desses trs concei
tos elabora-se a pergunta fundamental: quem sujeito do processo
de verdade?
Somente temos conhecimento da existncia e das disputas da
Assembleia de Jerusalm pela breve narrativa do prprio Paulo e
pela encenao dos Atos. Certamente, ela terminou com um com
promisso, uma espcie de delimitao das esferas de influncia. Afrmula : h apstolos que trabalham no meio judaico e outros,
no meio pago. Pedro apstolo dos judeus, Paulo dos gentios, dos
edvoL (traduzida como naes e que designa de fato os povos di
ferentes do judeu).
Paulo relata o episdio na epstola aos glatas, 2. 1. 10.
Catorze anos depois, subi novamente a Jerusalm com Barnab, levando tambm Tito comigo; e foi depois de uma revelao que ali subi.
Eu lhes expus o Evangelho que prego entre os pagos, expus particular
mente aos que so os mais considerados, a fim de no correr ou de ter
corrido em vo. Mas Tito, que estava comigo e que era grego, no foi
obrigado a ser circuncidado. E isso por causa dos falsos irmos que, fur
tivamente, se introduziram e se infiltraram entre ns para espiar a liber
dade que temos em Jesus Cristo, com a inteno de nos escravizar. Nocedemos a eles nem um instante e resistimos s suas exigncias, para
que a verdade do Evangelho fosse mantida entre vs. Aqueles que so
os mais considerados independentemente do que tenham sido outro-
ra, isso no me importa: Deus no faz distino das pessoas - aqueles
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que so os mais considerados no me impuseram nada. Ao contrrio,
ao verem que o Evangelho me havia sido confiado para os incircun-
cidados, assim como a Pedro para os circuncidados - pois aquele que
fez de Pedro o apstolo dos circuncidados tambm fez de mim o apstolo dos pagos e tendo reconhecido a graa que me foi concedida,
Tiago, Cefas e Joo, que so vistos como os pilares, deram a mim e a
Barnab a mo da parceria, a fim de que fssemos em direo aos pa
gos e eles rumo aos circuncidados. Eles nos recomendaram apenas
lembrarmos dos pobres, o que tenho tido muito cuidado de fazer.
Trata-se de um texto inteiramente poltico, do qual convm fixar
pelo menos trs pontos:1. Independentemente do carter ponderado do discurso, pre-
sume-se que a batalha foi dura. Os judeo-cristos de estrita obser
vncia (aqueles que, sem dvida, tinham aumentado a discrdia na
Antioquia) foram qualificados de falsos irmos, e trata-se de saber
se cederam ou no presso. Houve mediao dos apstolos his
tricos, Pedro (Cefas), Tiago e Joo, que, assumindo de maneira
racional suas funes simblicas dirigentes, deram seu aval a umaespcie de dualidade militante emprica. Ressaltemos, no entanto,
que nada nessa concluso indica claramente a posio assumida so
bre as questes fundamentais. Que Paulo se ocupe dos pagos uma
coisa, que no lhes imponham nem os ritos nem as marcas outra,
sobre a qual aparentemente a Assembleia no decide.
2. O momento chave do texto aquele em que Paulo declara que
seus adversrios espiavam a liberdade que temos em Jesus Cristo,com a inteno de nos escravizar, pois a liberdade pe em discusso
a questo da lei, que ser central na pregao de Paulo. Qual , em
ltima anlise, a relao entre a lei e o sujeito? Ser que todo sujeito
est na figura de uma sujeio legal? A Assembleia de Jerusalm nada
decide, mas deixa que se desenvolvam experincias antinmicas.
3. Tudo mostra, inclusive o tom defensivo de Paulo (visivelmente,
ele defende um direito reconhecido de continuar sua ao), que ocompromisso era instvel. O que no significa que no tivesse impacto
histrico. Ao contrrio, esse impacto considervel. Ao deixar a ao
de Paulo desenvolver-se ao mesmo tempo que a dos judeo-cristos de
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estrita observncia, a Assembleia de Jerusalm evitou que o cristianismo
fosse, definitivamente, apenas uma seita judaica, uma ciso precria
(como muitas outras). Mas, ao conter o zelo dos pagos-cristos hostis
ao judasmo e talvez o prprio zelo de Paulo, ela evitou que o cristianismo fosse apenas um novo iluminismo, tambm muito precrio,
uma vez que no tinha enraizamento algum no judasmo histrico. A
Assembleia de Jerusalm realmente fundadora, pois dota o cristianis
mo de um duplo princpio de abertura e de historicidade. Mantm,
assim, cerrado o curso do acontecimento como iniciao de um pro
cesso de verdade. O fato de o acontecimento ser novo no deve, efeti
vamente, jamais levar a esquecer que ele o somente em relao a umasituao determinada, em que mobiliza os elementos de seu local.
Certamente, a Assembleia no parece em condies de fixar o conte
do desse difcil emparelhamento entre a pertinncia do acontecimento
e a imanncia situao. J muito que ela organize empiricamente a
possibilidade disso. Se verdade que Paulo foi o arteso do compro
misso de Jerusalm, ele merece seu ttulo de pedra angular da Igreja.
Que a situao, mesmo aps a Assembleia, continuasse muito tensa foi comprovado pelo famoso incidente de Antioquia, que Paulo
menciona logo aps sua narrativa sobre a Assembleia e que parece ter
ocorrido no fim do mesmo ano. Esse incidente no foi mencionado
nos Atos,prova entre outras de que se trata de um documento oficial,
encarregado de apresentar a verso das primeiras dcadas do cristia
nismo de forma mais uniforme, organizacional e romana possvel.
Do que se trata? Pedro est em Antioquia (uma turn de inspeo?),para onde Paulo voltou. A questo saber se possvel fazer as refeies
rituais com no judeus. No incio, Pedro comea fazendo mas, ao ver
entrarem os discpulos de Tiago, ele se afasta da mesa. Paulo o censura
com severidade. Ele v, no comportamento de Pedro, sem dvida al
guma, um retrocesso do compromisso inicial e uma posio hipcrita.
O texto traz tambm a marca de um verdadeiro furor:
Mas quando Cefas veio Antioquia, eu me opus diretamente a ele
porque mereceu uma repreenso. N a realidade, antes da chegada de al
gumas pessoas enviadas por Tiago, ele comia com os pagos; e quando
elas chegaram, ele se esquivou e manteve-se distncia, por temor dos
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circuncidados. Com ele, os outros judeus usaram tambm de dissimu
lao, de modo que Barnab foi conquistado pela hipocrisia deles. Ao
ver que eles no se conduziam de acordo com a verdade do Evangelho,
eu disse a Cefas, na presena de todos: se voc, que judeu, vive comoos pagos e no como os judeus, por que obriga os pagos a se conver
terem ao judasmo?
Paulo romper, em seguida, com Barnab, que foi conquistado
por Pedro. Tudo mostra que ele no brincava com a fidelidade aos
princpios.O enigma aparente o seguinte: por que Paulo disse a Pedro
que ele (Pedro), que judeu, vive como os pagos? A resposta supeuma referncia implcita aos acordos de Jerusalm. O que fez Pedro,
em relao a esses acordos, foi uma duplicidade. Trata-se do desres
peito hipcrita de uma conveno. Para algum que invoca a Lei, uma falta grave. Pode-se dizer que Paulo recrimina Pedro por agir
de uma maneira nada apropriada imagem que o prprio Pedropretendia dar do que ser um judeu. Ele perde, assim, qualquer
direito de obrigar os pagos a se conformarem com essa imagem ea praticarem ritos externos.No se deveria subestimar a importncia do incidente de Antioquia.
O fato de Pedro ter se mostrado inconsequente em relao a seus
prprios princpios e infiel ao compromisso anterior enraza em
Paulo a ideia de que so necessrios novos princpios. O que esse
incidente lhe mostra que a Lei, em seu antigo imperativo, no
mais suportvel mesmo para aqueles que a invocam. Isso alimenta
r uma tese essencial de Paulo, a de que a Lei tornou-seuma imagem da morte. A situao de Pedro deu-lhe a prova concreta disso,
no prprio centro do fraco aparelho cristo; situao precria, hi
pcrita, repreensvel e, em suma, mortfera, no que diz respeitos exigncias da ao. Para Paulo, no mais possvel manter o
equilbrio entre a Lei, que , para a verdade que surgiu, um princ
pio de morte, e a declarao pertinente ao acontecimento, que
seu princpio de vida.A partir de ento, chefe de um movimento e instrudo por gran
des lutas na cpula, Paulo reinicia a viagem (Macednia, Grcia).
Dessas viagens, os Atosdo uma verso em technicolor. Um famoso
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feita de fora, conforme o penoso trnsito dos idiomas. na prpria
lngua viva que h conflito.
A sabedoria munida de retrica, Paulo ope uma demonstrao
de esprito (~vs[j.c/., a inspirao) e de poder (Sva^ii). A sabedoriados homens ope-se ao poder de Deus. Trata-se, ento, de intervir o x v CTOCpa Xyou sem a sabedoria da linguagem. Essa mxi
ma envolve uma antifilosofia radical, no se trata de uma proposta
que possa suportar uma cpiXoaocpot. A base da questo que um
surgimento subjetivo no pode se dar como construo retrica de
um ajuste pessoal s leis do universo ou da natureza.
O balano de Paulo parece sincero. Houve uma derrota diante
dos gregos. Os judeus colocam a questo da lei, os gregos a da sa
bedoria, da filosofia. Esses so os dois referenciais histricos da obra
de Paulo. preciso encontrar o caminho de um pensamento que
evite ambos os referenciais. Nas circunstncias pblicas, essa tentati
va diagonal tem raros xitos, consegue reunir apenas companheiros
annimos e pouco numerosos. Assim comea toda verdade.
Estamos, ento, sob o imprio de Nero e o desejo de Paulo - j
o mencionamos - de ir Espanha, que representa, na poca, o fimdo mundo. No momento da partida, surge uma nova questo mili
tante, a da coleta.
Em todos os grupos ligados declarao crist, arrecadavam-se
fundos destinados comunidade de Jerusalm. O que significava es
sa cotizao? Encontramos aqui a luta de tendncias arbitrada pelo
fraco compromisso da Assembleia de Jerusalm.
Os judeo-cristos veem no pagamento desse tributo o reconhecimento da primazia dos apstolos histricos (Pedro e os outros) e, ao
mesmo tempo, o smbolo que elege Jerusalm, com o Templo, centro
evidente da comunidade judaica, como naturalmente o centro do mo
vimento cristo. A coleta assegura, portanto, uma continuidade entre
o comunitarismo judaico e a expanso crist. Em ltima anlise, pela
coleta, os grupos externos reconhecem que so como uma dispora.
Paulo interpreta a coleta de maneira exatamente oposta. Ao acei
tar seus donativos, o centro confirma a legitimidade dos grupos
pagos-cristos. Ele manifesta que nem o fato de pertencer comu
nidade judaica, nem os traos distintivos de pertencer a ela, nem a
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Quem Paulo?
localizao na terra de Israel so critrios pertinentes para decidir se
um grupo constitudo faz, ou no, parte da rbita crist.
Com o desejo de supervisionar o destino da coleta e o sentido
que lhe dado, Paulo decide acompanhar os fundos at Jerusalmem vez de ir para a Espanha.
O que ocorre, ento, no pode ser reconstrudo. A narrativa
mais plausvel a seguinte. Em Jerusalm, Paulo encontra-se, de
certa maneira, na goela do lobo. Exige-se dele que siga alguns ri
tuais judaicos. Paulo aceita, pois, como escreveu, ele sabe se tornar
judeu com os judeus, assim como grego com os gregos: a verdade
subjetiva indiferente aos costumes. Paulo vai ao templo. H ento uma sublevao contra ele, pois acusado de ter introduzido
no templo algum que no era judeu. Uma ao como essa , aos
olhos da administrao religiosa judaica, seguida nesse ponto pelo
ocupante romano que tem o hbito de manter os costumes locais,
passvel da pena capital.
Paulo realmente cometeu o crime que lhe foi imputado? A maio
ria dos historiadores pensa que no. Para falar a verdade, nada se
sabe sobre isso. Paulo um ativista e ningum pode excluir que ele
tenha achado possvel, e til, uma provocao. De qualquer ma
neira, ele foi preso por um destacamento de soldados romanos nomomento em que seria linchado. So os romanos que vo instruir a
acusao. Conduziram Paulo guarnio de Cesareia. Ele compa
receu, por volta do ano 59, diante do governador Festo (isso certo). Como a acusao pode levar pena de morte, ele faz valer seusdireitos de cidado romano: um cidado contra o qual feita uma
acusao capital tem o direito de ser julgado em Roma. Ele ento
transferido, e parece que permaneceu preso ali de 60 a 62. Uma
breve aluso de Clment, por volta de 90, permite pensar que Paulofoi finalmente executado, seja no fim de um processo regular, seja
durante uma perseguio, ningum tem como sab-lo.Nenhum texto de Paulo se refere a esses episdios, por uma ra
zo evidente: todos os textos autnticos a que temos acesso so cer
tamente anteriores sua priso; ou seja, no que diz respeito aos
ltimos anos da vida de Paulo, na realidade, permanecemos na mais
completa ignorncia. A transferncia para Roma foi narrada com
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grande riqueza de detalhes nos Atos,de acordo com as melhores re
gras do romance de aventuras martimas. impossvel distinguir o
verdadeiro do falso. Os Atosterminam curiosamente no pelo mar
trio de Paulo, mas pelo espetculo edificante de um apstolo quecontinua em Roma, com toda tranquilidade, sua atividade aposto
lar. O que testemunha, com muitos outros detalhes, a benevolncia
pr-romana dos autos dos Atos.
No entanto, acima de tudo, o prprio Paulo nos ensina que o
que importa no so os signos de poder, nem as vidas exemplares,
mas uma convico de que se capaz, aqui, agora e para sempre.
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TEXTOS E CONTEXTOS
3
Os textos de Paulo so cartas escritas, por um dirigente, aos gru
pos que ele fundou ou apoiou. Elas abarcam um perodo muito bre
ve (de 50 a 58). So documentos militantes enviados a pequenos
ncleos de convertidos. No so, de maneira alguma, narrativas co
mo os Evangelhos, nem tratados tericos como escrevero mais tarde
os doutores da Igreja, e tampouco profecias lricas como o Apocalipse
atribudo a Joo. Trata-se de intervenes.Desse ponto de vista, pa
recem mais com os textos de Lenin do que com O capital', de Marx;
mais com a maioria dos textos de Lacan do que com A interpretao
dos sonhos", de Freud; mais com os tratados de Wittgenstein do que
com os Principia M athem aticd"[princpios bsicos matemticos], de
Russell. Encontraremos nessa forma, em que a oportunidade da
ao prevalece sobre a preocupao de se valorizar por publicaes
(Lacan dizia poubellications
"*), um tratado do antifilsofo: ele noescreve um sistema terico, nem um compndio, nem sequer real
mente um livro. Ele prope uma palavra de ruptura e a escrita segue
quando necessria.
Karl Marx, O capital (trad. Reginaldo SantAnna, Rio de Janeiro, Civilizao
Brasileira, 2006/2008, 6 v.). (N. E.)
Sigmund Freud, A interpretao dos sonhos (Rio de Janeiro, Imago, 1999).(N. E.)
Bertrand Russell e Alfred North Whitehead, Principia Mathematica
(Cambridge, Universidade Cambridge, 1910/1913, 3 v.). (N. E.)
Cabe lembrar que poubelle, em francs, significa lixeira. (N . T.)
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O enigma , sobretudo, saber como esses textos de conjuntura
chegaram at ns e quem comandou sua solene e suspeita incluso
no sacrossanto corpusconhecido pelo nome de Novo Testamento.
A coletnea cannica das epstolas de Paulo tardia. Data provavelmente do fim do sculo II. As cpias mais antigas das quais dispomos
so do incio do sculo III e so apenas fragmentos. Alm disso, como
assinalamos, das treze cartas contidas no Novo Testamento, pelo me
nos seis so certamente apcrifas, mesmo que se possa pensar, no caso
de algumas delas, que provm do crculo de Paulo.
Por que e como esse corpus foi sacralizado? Lembremos que
Paulo no tem legitimidade histrica evidente. Ele no um dosdoze apstolos. Ele no conheceu nada da vida do Senhor. Deu
muitas preocupaes ao centro histrico de Jerusalm.
Quatro importantes observaes podem esclarecer essasingularidade.
1. No deixaremos de relembrar por que uma iluso tenaz, de
vido ordem cannica multissecular do Novo Testamento, impe
nossa opinio espontnea uma certeza contrria:as epstolas de
Paulo so anteriores, e muito, redao dos Evangelhos.Ou melhor:
as epstolas de Paulo so simplesmente os textos cristos mais antigos
que chegaram at ns.Obviamente, narrativas orais da vida de Jesus,
de seus milagres, de sua morte deviam circular abundantemente na
poca da pregao de Paulo. Mas no nos chegou nenhum docu
mento escrito que fixe essa histria e seja anterior ao ano 70, ou
seja, cerca de dez anos aps a morte de Paulo. Se datamos de 50 a
primeira epstola aos tessalonicenses, o que plausvel, a distncia
que a separa do primeiro evangelho redigido (o de Marcos) de
vinte anos. H uma ntida anterioridade de Paulo no que diz res
peito circulao escrita da doutrina crist. E como suas cartas fo
ram copiadas e circularam muito cedo, sem dvida, teria sido difcil
pura e simplesmente ignor-las quando chegou o momento (muito
tarde, no fim do sculo III) de reunir os documentos fundadores danova religio.
2. Os Evangelhos, salvo o de Joo (que mais tardio, talvez em
torno do ano 90), formam com as epstolas de Paulo um verdadeiro
contraste, ao qual deveremos voltar. O objetivo deles visivelmente
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Textos e contextos
evidenciar as faanhas de Jesus, a singularidade excepcional de sua
vida. Todos os grandes clssicos da taumaturgia e do charlatanismo
religioso so ali abundantemente citados: curas milagrosas, cami
nhada sobre as guas, adivinhaes e comunicados, mortos ressuscitados, fenmenos meteorolgicos anormais, imposio de mos,
multiplicao instantnea de vveres... O estilo de Jesus, tal como
nos restitudo pelos Evangelhos, est de acordo em seu conjunto
com a parafernlia do mgico itinerante. Certamente, ele brilha pe
lo sabor de seus aforismos e pela vontade de ruptura a que ele sabe
dar forma. E influenciado tambm pelas leis do gnero: parbolas
com duplo sentido, metforas obscuras, imagens apocalpticas, ir-resolubilidade sabiamente construda da identidade do personagem
(Profeta? Messias? Enviado de Deus? Filho de Deus? Novo Deus
que desceu sobre a terra?).Os textos de Paulo no levam em considerao quase nada disso,
o que, no entanto, devia ser narrado com muitos detalhes no meio
cristo da primeira gerao. Observamos, muitas vezes, que a vida
emprica de Jesus no foi praticamente mencionada nas epstolas,
alis, da mesma maneira que nenhuma das famosas parbolas do
mestre. O ensinamento de Jesus, assim como seus milagres, so-
berbamente ignorado. Tudo reduzido a um nico ponto: Jesus,
filho de Deus (o que isso quer dizer, veremos) e Cristo por essa ra
zo, morreu na cruz e ressuscitou. O resto, todo o resto, no tem a
menor importncia real. Digamos at que o resto (o que Jesus disse
e fez) no o real da convico, mas a obstrui e at mesmo a falsifica.
A essa reduo s convm um estilo concentrado e sem as manias da
literatura proftica e taumaturga. Certamente, Paulo um gran
de escritor, conciso, formulador, que sabe deixar para o momento
oportuno raras e poderosas imagens. Como nos salientou o poetaHenry Bauchau, algumas passagens, que combinam uma espcie
de abstrao violenta e rupturas de tom na tentativa de convencer
o leitor, de modo a no lhe possibilitar nenhum descanso, so se
melhantes a monlogos de Shakespeare. Mas o que importa nessa
prosa definitivamente a argumentao e a delimitao, a forte ma
nifestao de um ncleo essencial do pensamento. No h, ento,
parbolas, nem obscuridades complicadas, nem indeciso subjetiva
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ou deformao da verdade. O paradoxo da f deve ser produzido tal
como , levado pela prosa luz de sua novidade radical.
De tudo isso, resulta que as epstolas de Paulo so os nicos ver
dadeiros textos doutrinriosdo Novo Testamento. E possvel com
preender - por exemplo - que Lutero tenha afirmado que as epstolasde Paulo, e somente elas, continham o sentido da Revelao e no
tenha escondido sua pouca estima pelos evangelhos sinpticos, particularmente pelo de Lucas.
Sem os textos de Paulo, a mensagem crist permaneceria ambgua e mal desembaraada da literatura proftica e apocalptica supe
rabundante na poca. Este um importante motivo de sua presena
no corpuscannico.3. O que aconteceu entre a redao dos textos de Paulo e a dos
Evangelhos? Um acontecimento capital: a sublevao judaica con
tra a ocupao romana, desencadeada em 66 (muito provavelmente
aps a morte de Paulo) e que terminou em 70 com a destruio dotemplo de Jerusalm por Tito. Trata-se do verdadeiro incio da dis-
pora judaica. Trata-se, sobretudo, do fim do significado central
de Jerusalm para o movimento cristo. A partir daquela poca,tem incio o processo que, aos poucos, far de Roma a verdadeira
capital do cristianismo e riscar historicamente sua origem oriental
e judaica, da qual Jerusalm, onde residiam os apstolos histricos,
era o smbolo.
Ora, Paulo por mais de uma razo o precursor desse deslocamento, por sua viso universal e descentralizada da construo
dos ncleos cristos. Certamente, para ele, a estrutura do Imprio
Romano, que significa o mundo entre o Oriente e a Espanha, maisimportante do que a preeminncia de Jerusalm. O fato de seu texto
mais desenvolvido, mais construdo, mais decisivo, especialmente
no que diz respeito ruptura com a Lei judaica, ser uma epstola
aos romanos faz parte desse gnero de acasos cuja funo simbli
ca inevitvel. Mais uma razo importante para inscrever Paulo no
corpusoficial.
4. Todos sabem que uma organizao constitui a coletneade seus textos de referncia quando ela deve fixar sua orientaocontra desvios perigosos ou lutar contra cises ameaadoras. Em
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relao a isso, os primeiros sculos do cristianismo foram particu
larmente atormentados. Para a questo que nos ocupa, essencial
levar em conta o surgimento, desde o incio do sculo II, de uma
heresia que pode muito bem ser chamada de ultrapaulina, a heresiade Marcio.
Marcio, dando o sinal de partida da longa srie de heresias de
orientao maniquesta, sustenta que a ruptura entre cristianismo e
judasmo, (para ns) entre Antigo Testamento e Novo Testamento,
deve ser considerada absoluta em um sentido preciso: no do mes
mo Deus que tratam as duas religies.O Antigo Testamento trata do
Deus que criou o mundo e, como a considerao do mundo tal como ele existe suficiente para estabelec-lo, esse Deus um ser ma
lfico. Acima desse Deus criador, existe um Deus verdadeiramente
bom, cuja imagem a de um Pai e no a de um criador. poss
vel dizer que, para Marcio, o pai simblico (revelado apenas pelo
cristianismo) deve ser distinguido do pai criador ou real. O Deus
do cristianismo (o Pai simblico) no conhecido com o mesmo
sentido que o Deus do Antigo Testamento (o genitor). O segundo
diretamente revelado pela narrativa de seus obscuros e capricho
sos malefcios. O primeiro, de quem o mundo no nos d nenhu
ma pista e do qual, portanto, no poderia haver um conhecimento
direto ou, no estilo da narrativa, somente acessvel por meio da
vinda de seu Filho. O resultado disso que a Nova crist , pura e
simplesmente, uma revelao mediadora do verdadeiro Deus, acontecimento do Pai, que ao mesmo tempo revela a impostura do Deus
criador do qual nos fala o Antigo Testamento.O tratado de Marcio, que chegou at ns, denomina-se
Antithses [antteses]. Questo crucial: sustenta que o nico apstolo
autntico foi Paulo; os outros pretensos apstolos, liderados por
Pedro, continuaram sob o imperativo do obscuro Deus criador.
Houve, certamente, boas razes para que o herege recrutasse assimo apstolo das naes: a luta de Paulo contra os judeo-cristos de
estrita observncia, sua concepo do cristianismo como pertinen
te ao acontecimento e sua polmica relativa dimenso mortfera
da Lei. Exagerando um pouco, poderamos chegar concepo de
Marcio: o novo Evangelho um comeo absoluto.
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No entanto, no h dvida de que se trata de uma manipulao.
No existe nenhum texto de Paulo do qual se possa extrair algo quese assemelhe doutrina de Marcio, isto , que o Deus de quem
Jesus Cristo o filho seja o Deus do qual fala o Antigo Testamento,
o Deus dos judeus, seja para Paulo uma evidncia constantemente
mencionada. Se h uma figura da qual Paulo sente-se prximo e
utiliza sutilmente para seus prprios fins a de Abrao. Que Paulo
enfatize a ruptura com o judasmo, mais do que a continuidade, no
h dvida. Mas uma tese militante e no uma tese ontolgica. A
unicidade divina atravessa as duas situaes separadas pelo aconteci-mento-Cristo e ela no tem nenhum momento duvidoso.
Para combater a perigosa heresia de Marcio (a qual, de fato,
renega abruptamente o compromisso de Jerusalm e corre o risco
de tornar o cristianismo uma seita sem qualquer profundidade his
trica), os doutores da Igreja estabeleceram certamente contra o
ultrapaulinismo uma figura racional e centrista de Paulo. , semdvida, dessa poca, que data a construo do Paulo oficial, no
sem truques e desvios diversos. Na verdade, somente conhecemos
Marcio por seus adversrios ortodoxos, Irineu ou Jernimo. E, simetricamente, conhecemos Paulo pela imagem dele que foi precisoconstruir contra aqueles que, numa viso extremista da ruptura
crist, apoderaram-se dos enunciados mais radicais do fundador.
Assim se explica, em parte, a incluso das epstolas de Paulo no cor-pus final: mais vale para a Igreja em vias de sedimentao ter com
ela um Paulo racional do que um Paulo inteiramente virado para o
lado da heresia. Mas possvel que, pelas necessidades da causa, aofiltrar os verdadeiros textos e fabricar falsos, tenha-se adireitado
um pouco o apstolo ou, pelo menos, acalmado seu radicalismo.
Operao em que, desde o fim do sculo I, se engajou, como vi
mos, o redator dos Atos.Mas, apesar de tudo, quando se l Paulo, surpreende-se, nas
poucas linhas deixadas de sua prosa pela poca, com os gneros e
as circunstncias. Existe ali, sob o imperativo do acontecimento,algo vigoroso e atemporal, algo que, precisamente porque se trata
de destinar um pensamento ao universal em sua singularidade nas
cente, mas independentemente de qualquer particularidade, nos
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Textos e contextos
inteligvel sem termos de recorrer a pesadas mediaes histricas (o
que est longe de ser o caso de diversas passagens dos Evangelhos,
para no falar do opaco Apocalipse).
Sem dvida, ningum melhor esclareceu essa contemporaneidade
perptua da prosa de Paulo que um dos maiores poetas de nossos tem
pos, Pier Paolo Pasolini, quem, verdade que com seus dois preno-
mes, simplesmente pelo significante, estava no cerne do problema.
Pasolini, para quem a questo do cristianismo cruzava a do comu
nismo, ou ainda a questo da santidade cruzava a do militante, queria
fazer um filme sobre So Paulo transposto para o mundo atual. O filme no foi rodado, mas temos seu roteiro detalhado, traduzido para
o francs pelas edies Flammarion.O objetivo de Pasolini era fazer de Paulo um contemporneo
sem modificar nada em seus enunciados. Ele queria restituir, de mo
do mais direto, mais violento, a convico de uma atualidade inte
gral de Paulo. No se tratava de dizer explicitamente ao espectador
que se poderia imaginar Paulo aqui, hoje, entre ns, em sua plena
existncia fsica, que nossa sociedade que Paulo se dirige, que
por ns que ele chora, ameaa e perdoa, agride e abraa com ternura. Ele queria dizer: Paulo nosso contemporneo fictcio porque o
contedo universal de sua pregao, inclusive obstculos e derrotas,
ainda absolutamente real.
Para Pasolini, Paulo desejou destruir de maneira revolucionria
um modelo de sociedade baseado na desigualdade social, no impe
rialismo e na escravido. Existe nele o santo querer da destruio.
Certamente, no filme planejado, Paulo fracassa e esse fracasso maisinterno do que pblico. Mas ele pronuncia a verdade do mundo, eo faz sem que seja necessrio mudar nada, nos mesmos termos emque falou h quase dois mil anos.
A tese de Pasolini tripla:
1. Paulo nosso contemporneo porque o acaso fulgurante, o
acontecimento, o simples encontro esto sempre na origem de uma
santidade. Ora, a figura do santo atualmente nos necessria, mesmo que os contedos do encontro instituinte possam variar.
2. Se transportamos Paulo e todos os seus enunciados para nos
so sculo, veremos que, na verdade, eles encontram uma sociedade
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real to criminosa e corrompida quanto a do Imprio Romano, mas
infinitamente mais resistente e flexvel.
3. Os enunciados de Paulo so atemporalmente legtimos.A temtica central situa-se na relao entre a atualidade e a santi
dade. Quando o mundo da histria tende a se dissipar no mistrio,na abstrao, na pura interrogao, o mundo do divino (da santidade) que, descido entre os humanos sob a forma de acontecimento, se torna concreto, operante.
O filme o trajeto de uma santidade numa atualidade. Como sefaz a transposio?
Roma Nova York, capital do imperialismo norte-americano. O
centro cultural que Jerusalm ocupada pelos romanos, centro tambm do conformismo intelectual, Paris sob a ocupao alem. A pe
quena comunidade crist balbuciante representada pelos membrosda Resistncia, enquanto os fariseus so os partidrios de Ptain.
Paulo um francs, originrio da burguesia, colaborador, quepersegue os resistentes.
Damasco a Barcelona da Espanha de Franco. O fascista Paulo
segue em misso junto a franquistas. No caminho para Barcelona,enquanto atravessava o sudoeste da Frana, ele tem uma iluminao. Passa para o campo antifascista e resistente.
Em seguida, continua seu priplo para pregar a resistncia, naItlia, na Espanha e na Alemanha. Atenas, aquela dos sofistas quese recusaram a ouvir Paulo, representada pela Roma contempor
nea, pelos pequenos intelectuais e crticos italianos, detestados porPasolini. Finalmente, Paulo vai a Nova York, onde trado, preso e
executado em condies srdidas.Nesse itinerrio, o aspecto central torna-se progressivamen
te o da traio, cujo resultado que o que Paulo cria (a Igreja, a
Organizao, o Partido) volta-se contra sua prpria santidade in
terna. Pasolini baseia-se, aqui, numa grande tradio (ns a estu
daremos) que v, em Paulo, mais o infatigvel criador da Igreja do
que um terico do acontecimento cristo. Um homem de apare
lho, em suma, um militante da III Internacional. Para Pasolini, meditando por meio de Paulo sobre o comunismo, o Partido, pelas
exigncias fechadas da militncia, inverte aos poucos a santidade,
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transformando-a em sacerdcio. Como a autntica santidade (que
Pasolini reconhece absolutamente em Paulo) pode suportar a prova
de uma histria fugidia e monumental ao mesmo tempo em que ela
uma exceo e no uma operao? Ela s o consegue endurecendo-se, tornando-se autoritria e organizada. Mas esse