Upload
marcelle-j-silva
View
230
Download
4
Embed Size (px)
Citation preview
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
1/253
Honor de Balzac
A Mulher de trinta anos
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
2/253
Traduo: Jos Maria Machado
Reviso da Traduo: Osmar Portugal FilhoEDITORA CLUBE DO LIVROSo Paulo 1988 Copyright 1988: Editora Clube do Livro Ltda.Todos os direitos reservados pela
Fundador: Mrio GraciottiEditor: Nelson dos ReisAssistentes Editoriais: Bel RibeiroLuiz Baggio NetoProjeto Grfico e Capa: Luiz TrigoIlustrao da Capa: Detalhe do leo sobre tela Retrato
da Senhora Henrio, de RenoirDados de Catalogao na Publicao (C Internacional(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Balzac, Honor de, 1799-1850.
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
3/253
A moa
No princpio do ms de abril de 1813, houve um
domingo cuja manh prometia um desses dias radiosos em
que os parisienses vem, pela primeira vez no ano, as ruas
sem lama e o cu sem nuvens. Pouco antes do meio-dia,
uma carruagem puxada por dois fogosos cavalos
desembocava na rua de Rivoli pela rua Castiglione e parava
por detrs de vrias outras, estacionadas junto da grade
novamente aberta ao centro do terrao dos Feuillants. A
veloz carruagem era dirigida por um homem de aspecto
preocupado e doentio; seus grisalhos cabelos mal lhe
cobriam o crnio amarelado e tornavam-no precocementevelho; entregou as rdeas ao lacaio que, a cavalo, seguia a
carruagem, e desceu para tomar nos braos uma jovem,
cuja beleza atraiu a ateno dos ociosos que passeavam no
terrao. Ao se pr de p para fora da carruagem, a delicada
mulher deixou-se complacentemente agarrar pela cintura e
passou os braos em volta do pescoo do seu guia, que adeps no passeio sem amarrotar a guarnio do seu
vestido de repes verde. Um amante no teria tido tanto
cuidado. O desconhecido devia ser pai dessa criana, que,
sem lhe agradecer, travou familiarmente seu brao e
arrastou-o para o jardim. O velho pai notou os olhares
maravilhados de alguns rapazes, e a tristeza de seu rostodesapareceu por um momento. Embora tivesse
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
4/253
ultrapassado havia muito a idade em que os homens
devem contentar-se com os falaciosos prazeres que a
vaidade produz, ele sorriu.
- Pensam que voc minha mulher - disse ao ouvido
da jovem, recompondo-se e caminhando com uma lentido
que a desesperou.
Parecia mais envaidecido pela filha e gozava, tal vez
mais do que ela, os olhares que os curiosos lanavam aos
pezinhos bem calados, deliciosa cintura desenhada por
um corpinho de rendas e ao vioso pescoo que um
colarinho bordado no ocultava por completo. Os
movimentos do andar erguiam por instantes a saia da
jovem e deixavam ver acima das botinas a forma de uma
perna finamente modelada por uma meia de seda
transparente.
Por isso, mais de um transeunte passou adiante dopar, a fim de admirar ou tornar a ver o rosto juvenil e
moldurado por finos cabelos castanhos, e cuja brancura era
realada tanto pelos reflexos do cetim rosa de seu elegante
chapu como pelo desejo e impacincia que transpareciam
no semblante dessa encantadora criatura. Uma doce
malcia animava seus belos olhos negros e amendoados, desobrancelhas bem arqueadas e compridas pestanas. A vida
e a mocidade ostentavam os seus tesouros naquele rosto
vivido e naquele busto, gracioso ainda, no obstante o
cinto ento usado sob o peito. Insensvel s homenagens, a
jovem olhava com uma espcie de ansiedade para o
palcio das Tulherias, a meta, sem dvida, do seualvoroado passeio. Faltavam quinze para o meio-dia.
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
5/253
Apesar da hora matutina, algumas senhoras, que teriam
desejado mostrar- se em lindas toilettes, voltavam do
palcio, no sem lhe dirigir um olhar aborrecido, como se
estivessem arrependidas de haver chegado demasiado
tarde para apreciar um espetculo almejado. Algumas
palavras, que haviam escapado ao mau humor dessas
formosas passeantes desapontadas e que a jovem
desconhecida ouvira, inquietaram-na sobremodo. O ancio
observava, com um olhar mais curioso que zombeteiro, os
sinais de impacincia e receio que se refletiam no gracioso
rosto da sua companheira, e fazia-o talvez com demasiado
cuidado para no se lhe notar qualquer inteno paternal.
Esse domingo era o dcimo-terceiro do ano de 1813.
Dois dias depois, Napoleo partia para aquela fatal
campanha, durante a qual ia perder sucessivamente
Bssieres e Duroc, ganhar as memorveis batalhas deLutzen e de Bautzen, ver-se trado pela ustria, Saxnia,
Baviera, por Bernadotte, e disputar a terrvel batalha de
Leipzig. A magnfica parada comandada pelo imperador
devia ser a ltima daquelas que excitaram por tanto tempo
a admirao dos parisienses e dos estrangeiros. A vetusta
guarda ia executar pela ltima vez as sbias manobras,cuja pompa e preciso maravilharam, algumas vezes, at
mesmo esse gigante, que se preparava ento para o seu
duelo com a Europa. Um sentimento triste levava as
Tulherias uma populao brilhante e curiosa. Cada um
parecia adivinhar o futuro, e talvez pressentia que mais de
uma vez a imaginao teria de retraar o quadro dessa
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
6/253
cena, quando esses tempos hericos da Frana
adquirissem, como hoje, cores quase fabulosas.
- Vamos mais depressa, meu pai! - dizia a moa com
ar travesso, arrastando o velho. - Ouo os tambores.
- So as tropas que entram nas Tulherias - respondeu
o velho.
- Ou que desfilam ... Vejo toda a gente voltar!- replicou
a jovem com um mau-humor infantil que fez o pai sorrir.
- A parada s comea ao meio-dia e meia - disse o
velho, quase correndo atrs da impaciente filha.
Vendo-se o movimento que ela imprimia ao brao
direito, dir-se-ia que assim acelerava o passo. A sua
mozinha, bem enluvada, amarrotava impacientemente um
leno e semelhava-se ao remo de um barco que sulca as
ondas. O ancio sorria por momentos, mas de vez em
quando certa preocupao entristecia-lhe o rosto magro.Seu amor por aquela encantadora criatura tanto o fazia
admirar o presente como temer o futuro. Parecia dizer
intimamente: Ela feliz hoje; ser sempre?. Porque os
velhos geralmente tendem a turvar com seus pesares o
futuro dos jovens. Quando o pai e a filha chegaram ao
peristilo do pavilho em cujo topo flutuava a bandeiratricolor e por onde os passantes seguem do jardim das
Tulherias para o Carrousel, os guardas gritaram-lhes:
- No se passa mais!
A jovem ps-se na ponta dos ps, e pde ver uma
profuso de damas enfeitadas que atravancavam os dois
lados da velha arcada em mrmore por onde de via passaro imperador.
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
7/253
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
8/253
O imperador no gosta de esperar, e eu fui encarregado
pelo marechal de dar o aviso.
Enquanto falava, tomava com certa familiaridade o
brao de Jlia e levava-a rapidamente para o Carrousel.
Jlia notou com espanto uma multido enorme que se
comprimia no pequeno espao entre as paredes cinzentas
do palcio e os marcos unidos por correntes que cercavam
grandes quadrados ensaibrados no meio do ptio das
Tulherias. O cordo de sentinelas, formado para deixar uma
passagem livre ao imperador e ao seu estado-maior, s a
muito custo continha a massa impaciente e ruidosa como
um enxame.
- Ser mesmo uma maravilha? - perguntou Jlia,
sorrindo.
- Cuidado! - advertiu o oficial, que agarrou Jlia pela
cintura e, erguendo-a com fora e rapidez, levou-a parajunto de uma coluna.
Sem esse brusco movimento, a sua irrequieta parenta
seria pisada pelo cavalo branco, ajaezado com uma sela de
veludo verde e ouro, que o mameluco de Napoleo
segurava pela rdea, quase sob a arcada, a dez passos
atrs de todos os cavalos que esperavam os oficiaissuperiores, companheiros do imperador.
O jovem colocou o pai e a filha perto do primeiro
marco da direita frente da multido, e, por um sinal de
cabea, recomendou-os aos dois velhos granadeiros, entre
os quais se achavam. Quando o oficial voltou ao palcio, a
felicidade e a alegria transpareciam no seu rosto, alteradoum momento pelo susto do perigo que Jlia correra; esta
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
9/253
tinha-lhe apertado a mo misteriosamente, fosse para lhe
agradecer a proteo que acabava de lhe prestar ou para
lhe dizer: Enfim, vou v-lo! Inclinou at meigamente a
cabea em resposta saudao respeitosa que, assim
como ao pai, lhe fez o oficial antes de desaparecer com
presteza. O velho, que parecia ter deixado de propsito os
dois jovens juntos, permanecia numa atitude pensativa, um
pouco atrs da filha; observava-a, porm, de soslaio e
tentava inspirar-lhe uma falsa segurana, mostrando-se
absorto na contemplao do esplndido espetculo que o
Carrousel oferecia. Quando Jlia dirigiu ao pai o olhar de
um discpulo com receio do mestre, o velho respondeu-lhe
at com um sorriso de benevolente alegria; mas o seu olhar
perscrutador seguira o oficial at a arcada e no perdera
um gesto sequer daquela rpida cena.
- Que belo espetculo! - exclamou Jlia em voz baixa,apertando a mo do pai.
O aspecto pitoresco e grandioso que o Carrousel
apresentava naquele momento fazia com que essa
exclamao fosse repetida por milhares de espectadores,
em cujos rostos se estampava a mais viva admirao. Uma
outra ala da multido, to compacta como aquela em quese achavam o ancio e sua filha, ocupava, numa linha
paralela ao palcio, o estreito espao que fica ao longo da
grade do Carrousel. Essa multido acabava de desenhar
nitidamente, pela variedade das toilettes das senhoras, o
imenso quadriltero que formam as construes das
Tulherias e a grade recm-colocada. Os regimentos davelha guarda que iam ser passados em revista enchiam
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
10/253
esse vasto terreno, onde formavam em frente ao palcio
imponentes linhas azuis de dez filas de fundo. Um pouco
mais longe do recinto e no Carrousel, achavam-se tambm
em linhas paralelas vrios regimentos de infantaria e
cavalaria, prontos a desfilar sob o arco triunfal que orna o
centro da grade e no topo do qual se viam, ento, os
magnficos cavalos de Veneza. A banda de msica dos
regimentos, colocada sob as galerias do Louvre, estava
escondida pelos lanceiros polacos de servio. Grande parte
do quadrado coberto de areia achava-se vazio como uma
arena preparada para os movimentos desses corpos
silenciosos, cujas massas dispostas com a simetria da arte
militar refletiam os raios solares nos focos triangulares de
dez mil baionetas. A brisa, agitando os penachos dos
soldados, fazia-os ondear como as rvores fustigadas numa
floresta sob um vento impetuoso. Esses velhos grupos,mudos e brilhantes, ofereciam mil contrastes de cores,
devido diversidade dos uniformes, dos ornamentos, das
armas, das agulhetas. Esse quadro imenso, miniatura de
um campo de batalha antes do combate, achava-se
poeticamente emoldurado, com todos os seus acessrios e
detalhes bizarros, pelas altas edificaes majestosas, cujaimobilidade parecia imitada pelos chefes e soldados. O
espectador involuntariamente comparava esses muros de
homens aos muros de pedra. O sol da primavera, que
lanava profusamente sua luz sobre os muros brancos,
construdos na vspera, e sobre os muros seculares,
iluminava plenamente aqueles inmeros rostos crestadosque atestavam os perigos passados e aguardavam
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
11/253
gravemente os perigos futuros. Os coronis de cada
regimento passavam de momento a momento frente
desses homens hericos. Por trs das colunas cerradas das
tropas matizadas de prata, de azul, de prpura e de ouro,
os curiosos podiam ver as bandeirolas tricolores presas nas
lanas de seis infatigveis cavaleiros polacos, que,
semelhantes aos ces conduzindo um rebanho por um
campo, voltejavam incessantemente entre as tropas e os
curiosos a fim de impedir que estes invadissem o pequeno
espao de terreno que lhes era concedido junto grade
imperial. Todos aqueles movimentos levavam a crer que se
estava no palcio da Bela Adormecida. A brisa da
primavera, agitando o plo dos bons dos granadeiros,
atestava a imobilidade dos soldados, assim como o surdo
murmrio da multido acusava o seu silncio. De raro em
raro, o rudo de um tambor, um leve toque dado porinadvertncia numa caixa e repetido pelos ecos do palcio
imperial, assemelhava-se aos troves ainda longnquos que
anunciam a tempestade. Aquela multido espera
continha um entusiasmo indescritvel. A Frana ia
apresentar suas despedidas a Napoleo, na vspera de
uma campanha cujos perigos eram previstos pelo ltimodos cidados. Tratava-se agora, para o imprio francs, de
ser ou no ser. Tal pensamento parecia animar a multido
civil e a militar, que se apinhava, igualmente silenciosa, no
recinto onde pairavam a guia e o gnio de Napoleo.
Esses soldados, esperana da Frana, esses soldados, sua
ltima gota de sangue, eram tambm objeto da inquietacuriosidade dos espectadores. Entre a maior parte dos
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
12/253
assistentes e dos militares, dizia-se um adeus que seria
talvez eterno; porm, todos os coraes, mesmo os mais
hostis ao imperador, dirigiam ardentes votos ao cu pela
glria da ptria. Os homens mais cansados da luta travada
entre a Europa e a Frana haviam todos depostos os seus
dios ao passar sob o arco do triunfo, compreendendo que,
no dia do perigo, Napoleo era toda a Frana. O relgio do
castelo bateu meia hora. Neste momento, cessou o rumor
da multido, e o silncio tornou-se to profundo que
poderia ouvir-se a voz de uma criana. O ancio e sua filha,
que pareciam viver pelos olhos, distinguiram ento um
rudo de esporas e um tinir de espadas que ecoaram sob o
sonoro peristilo do castelo.
Um homenzinho bastante gordo, de uniforme verde,
calas brancas e botas de montaria, apareceu de sbito,
tendo na cabea um chapu de trs bicos to prestigiosocomo a sua prpria pessoa; flutuava-lhe no peito a larga
fita vermelha da Legio de Honra, e da cintura pendia-lhe
um espadim. O homem foi visto por todos, e ao mesmo
tempo, de todos os pontos da praa. No mesmo instante,
rufaram os tambores, as duas orquestras comearam por
uma frase cuja expresso guerreira foi repetida por todosos instrumentos, desde a flauta mais suave at o maior dos
tambores. A esse belicoso apelo, as almas estremeceram,
as bandeiras saudaram, os soldados apresentaram armas
num movimento unnime e regular que agitou as
espingardas desde a primeira ltima fila do Carrousel. As
vozes de comando repetiram-se de fila em fila como umeco. Gritos de Viva o imperador! foram levantados pela
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
13/253
multido entusiasmada. Enfim, tudo estremeceu, tudo se
moveu, tudo se agitou. Napoleo montara o cavalo. Esse
movimento dera vida quelas massas silenciosas, voz aos
instrumentos, vo s guias e s bandeiras, emoo a
todos os rostos. As paredes das altas galerias daquele
velho castelo pareciam gritar tambm:
Viva o imperador!. No foi algo de humano, foi uma
magia, um simulacro do poder divino, ou melhor, uma
fugidia imagem desse fugidio reino. O homem cercado de
tanto amor, dedicao, entusiasmo, votos, para quem o sol
dispersara as nuvens do cu, permaneceu no seu cavalo,
trs passos frente do pequeno esquadro dourado que o
seguia, tendo o gro-marechal sua esquerda, e direita o
marechal de servio. Em meio a tantas emoes que ele
excitara, nenhum trao do seu rosto parecia alterado.
- Oh! meu Deus, sim. Em Wagran no meio do fogo, emMoscou entre os mortos, ele est sempre tranqilo como o
Batista.
Essa resposta a inmeras interrogaes era dada pelo
granadeiro, que se achava ao lado da jovem. Jlia
conservou-se durante um momento absorta na
contemplao daquele rosto, cuja serenidade indicava togrande segurana de poder. O imperador avistou a
senhorita de Chatillonest e inclinou-se para Duroc, dizendo-
lhe uma curta frase que fez sorrir o gro-marechal. As
manobras comearam. Se at ento a mocinha partilhara a
sua ateno entre o rosto impassvel do imperador e as
linhas azuis, verdes e vermelhas das tropas, nestemomento ocupou-se quase exclusivamente, em meio a
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
14/253
movimentos rpidos e regulares executados pelos velhos
soldados, de um jovem oficial que corria a cavalo entre as
linhas moventes e voltava com uma atividade infatigvel
para o grupo, frente do qual brilhava o simples Napoleo.
Esse oficial montava um admirvel cavalo negro e
distinguia-se entre aquela luzidia multido pelo belo
uniforme azul-celeste dos oficiais de ordenana do
imperador. Os bordados de sua farda brilhavam to
vivamente ao sol, e o penacho da barretina, estreito e
comprido, lanava tais reflexos, que os espectadores por
certo o compararam a um fogo-ftuo, a uma alma visvel
encarregada pelo imperador de animar, de conduzir esses
batalhes, cujas armas ondeantes faiscavam chamas
quando, a um sinal nico dos seus olhos, se quebravam, se
reuniam, se agitavam como as guas de um sorvedouro, ou
passavam pela sua frente como as vagas longas, retas ealtas que o oceano em clera atira sobre as praias.
Terminadas as manobras, o oficial de ordenana,
correndo a toda brida, parou junto ao imperador para
esperar as suas ordens. Nesse momento, achava-se ele a
vinte passos de Jlia, em frente do grupo imperial, numa
atitude assaz parecida com a que Grard deu ao generalRapp no quadro da Batalha de Austerlitz. Foi ento
permitido mocinha admirar o seu bem-amado em todo o
seu esplendor militar. O coronel Victor dAiglemont, com
apenas trinta anos, era alto, bem-feito, esbelto; e os seus
felizes dotes fsicos eram dignos de admirao,
principalmente, quando empregava sua fora em subjugarum cavalo, cujo dorso elegante e gil parecia vergar-se sob
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
15/253
o seu peso. O rosto msculo e trigueiro possua esse
encanto inexplicvel que uma perfeita regularidade de
feies comunica a semblantes juvenis. A fronte era larga e
alta. Os olhos de fogo, sombreados por espessas
sobrancelhas e orlados de compridas pestanas,
desenhavam-se como duas ovais brancas entre duas linhas
negras. O nariz oferecia a graciosa curva de um bico de
guia. O vermelho dos lbios era realado pelas
sinuosidades do inevitvel bigode preto. Suas faces amplas
e fortemente coloridas ofereciam tons castanhos e
amarelos que denotavam extraordinrio vigor. Seu rosto,
um desses em que a bravura estampou seu distintivo,
oferecia o tipo que o artista hoje procura quando pensa
representar um dos heris da Frana imperial. O cavalo,
coberto de suor e cuja cabea agitada revelava extrema
impacincia, as duas patas dianteiras afastadas ecolocadas numa mesma linha, agitava as longas crinas da
sua bela cauda, e a sua dedicao oferecia uma imagem
material da que o seu dono manifestava pelo imperador.
Vendo o bem-amado to ocupado em procurar os olhares
de Napoleo, Jlia experimentou um sentimento de cime,
pensando que ele ainda no havia olhado para ela. Desbito, o soberano pronuncia uma palavra. Victor esporeia
os flancos do cavalo e parte a galope; mas a sombra de um
marco projetada na areia assusta o animal, que se espanta,
recua e empina to bruscamente que o cavaleiro parece
estar em perigo. Jlia solta um grito, empalidece; todos
fitam-na com curiosidade; ela no v ningum: os seusolhos esto fixos no cavalo demasiado fogoso que o oficial
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
16/253
castiga enquanto corre a transmitir as ordens de Napoleo.
Esses quadros estonteantes absorviam Jlia de tal modo
que, sem perceber, se agarrara ao brao do pai, a quem
revelava involuntariamente seus pensamentos pela
presso mais ou menos viva dos seus dedos. Quando Victor
escapou de ser derrubado do cavalo, a mocinha agarrou-se
ainda mais violentamente ao pai, como se ela mesma
estivesse em perigo de cair. O velho contemplava com
dolorosa e sombria inquietao o rosto da filha, e
sentimentos de piedade, de cime e at de pesar
deslizaram em todas as suas rugas contradas. Mas quando
o brilho inusitado dos olhos de Jlia, o grito que soltara e o
movimento convulsivo dos seus dedos acabaram de lhe
desvendar um amor secreto, por certo ele teve algumas
tristes revelaes do futuro, por que seu rosto tomou ento
uma expresso sinistra. Nesse momento, a alma de Jliaparecia ter-se confundido com a do oficial. Um pensamento
mais cruel que todos aqueles que haviam assustado o
ancio crispou lhe as feies do rosto doloroso, quando viu
dAiglemont trocar, ao passar na sua frente, um olhar de
inteligncia com Jlia, que tinha os olhos midos e estava
vivamente corada. E bruscamente levou a filha para ojardim das Tulherias.
- Mas, meu pai - dizia ela -, ainda h na praa do
Carrousel regimentos que vo manobrar.
- No, minha filha, as tropas j esto desfilando.
- Parece-me que se engana, meu pai. O senhor
dAiglemont deve t-las mandado avanar...
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
17/253
- Mas, minha filha, sinto-me mal e no quero demorar-
me.
Jlia no teve dificuldade em acreditar no pai, quando
olhou para seu rosto abatido por inquietaes paternais.
- Sofre muito, meu pai? - perguntou Jlia com
indiferena, to grande era a sua preocupao.
- Cada dia que passa no para mim um favor? -
respondeu o ancio.
- Vai ainda afligir-me falando da sua morte? Estava to
alegre! Quer fazer o favor de afugentar suas mrbidas
idias?
- Ah! - exclamou o pai, soltando um suspiro.
- Criana cheia de mimo! Os melhores coraes so s
vezes bem cruis. Consagrar-lhe a nossa vida, no pensar
seno em voc, preparar seu bem-estar, sacrificar nossos
gostos s suas fantasias, ador-la, dando lhe at nossosangue, isso no significa nada? s vezes voc aceita tudo
com indiferena. Para obter sempre seu sorriso e seu amor
desdenhoso, seria necessrio ter o poder de Deus. Pois
ento chega um outro! Um amante, um marido que nos
leva seu corao.
Jlia, atnita, fitou o pai, que caminhava lentamente,lanando-lhe turvos olhares.
- Voc se oculta at de ns - tornou o velho -, e talvez
de voc mesma...
- Que diz, meu pai?
- Parece-me, Jlia, que voc tem segredos para mim.
Voc est amando - tornou vivamente o ancio, notando orubor que subira ao rosto da filha. - Ah!, eu esperava v-la
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
18/253
fiel a seu velho pai at a minha morte; esperava conserv-
la junto de mim, feliz e radiante! Admir-la como estava
agora. Ignorando seu destino, teria podido acreditar num
futuro tranqilo para voc; mas agora impossvel ter
esperana de felicidade na sua vida, porque voc ama mais
o coronel do que o primo. J no posso ter dvidas.
- E por que me havia de ser proibido am-lo? - indagou
ela com viva expresso de curiosidade.
- Ah!, minha Jlia, voc no me compreenderia -
replicou o pai suspirando.
- Mas diga - tornou Jlia com um gesto de amuo.
- Pois bem, minha filha, escute-me. As moas sonham
muitas vezes com uns seres nobres encantadores, criaturas
perfeitamente ideais, e assim forjam quimeras acerca dos
homens, dos sentimentos e do mundo; depois atribuem
inocentemente a um carter as perfeies com quesonham e nele confiam; amam no homem da sua escolha
esse ente imaginrio; porm, mais tarde, quando j no
podem fugir desgraa, a aparncia enganadora que
embelezaram, o seu primeiro dolo, enfim, transforma-se
num esqueleto odioso. Jlia, eu preferia que voc amasse
um velho a v-la amar o coronel. Ah!, se voc pudesseadivinhar o que acontecer daqui a dez anos, faria justia
minha experincia. Conheo Victor: a sua alegria sem
esprito, alegria de caserna, no tem talento e perdulrio.
um desses homens que o cu criou para comer e digerir
quatro refeies por dia, dormir, amar a primeira que lhe
aparece e bater-se. No compreende a vida. O seu bomcorao, porque o tem, lev-lo- talvez a dar a bolsa a um
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
19/253
desgraado, a um camarada; porm, um indiferente, e
no possui essa delicadeza de corao que nos torna
escravos da felicidade de uma mulher; e ignorante,
egosta... e muita coisa mais.
- Mas, meu pai, ele necessariamente h de ter esprito
e inteligncia para ter chegado a ser coronel.
- Minha querida, Victor permanecer coronel toda a
sua vida. Ainda no encontrei ningum que fosse digno de
voc - tornou o ancio com certo entusiasmo.
Calou-se por um momento, contemplou a filha e
acrescentou:
- Mas, minha pobre Jlia, voc ainda muito jovem,
muito fraca, muito delicada para suportar os desgostos e as
responsabilidades do casamento. DAiglemont foi estragado
com mimos pelos pais, assim como voc por sua me e por
mim. Como esperar que vocs dois possam se entender,com vontades diferentes cujas tiranias sero inconciliveis?
Ser ou vtima ou tirano. Qualquer dessas alternativas
produz igual soma de males na vida de uma mulher.
Contudo, voc meiga e modesta, curvar-se- a princpio.
Enfim, voc tem - continuou com a voz alterada - uma
delicadeza de sentimentos que ficar desconhecida, eento
No acabou, as lgrimas embargaram-lhe a voz.
- Victor - retomou, aps uma pausa - h de ferir as
singelas qualidades de sua alma juvenil. Eu conheo os
militares, minha querida filha; vivi nos exrcitos. raro que
o corao dessa gente possa triunfar dos hbitos
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
20/253
produzidos, ou pelas desgraas em meio s quais vivem, ou
pelos azares de sua vida aventureira.
- Quer ento, meu pai - replicou Jlia num tom meio
srio, meio zombeteiro -, contrariar meus sentimentos,
casar-me a seu gosto e no ao meu?
- Casar-lhe a meu gosto! - exclamou o pai com um
gesto de surpresa. - Eu, de quem logo voc no mais ouvir
a voz to amigavelmente zangada. Sempre reconheci que
os filhos atribuem a um sentimento pessoal os sacrifcios
que lhes impem os pais! Case com Victor, minha Jlia. Um
dia voc deplorar amargamente a sua nulidade, a sua
falta de ordem, o seu egosmo, a sua falta de delicadeza, a
sua inpcia em amor e mil outros pesares que voc sofrer
por sua causa. Ento lembre-se de que sob estas rvores a
voz proftica de seu velho pai ressoou em vo aos seus
ouvidos!O velho calou-se. Tinha surpreendido a filha meneando
a cabea com ar de dvida. Ambos se dirigiram para a
grade onde a carruagem os esperava. Durante esse trajeto
silencioso, a jovem examinou furtivamente o rosto do pai, e
pouco a pouco foi-se tornando sria. A profunda dor
gravada na fronte inclinada do ancio causou-lhe vivssimaimpresso.
- Prometo-lhe, meu pai - disse Jlia com uma voz
meiga e alterada -, que no tornarei a falar de Victor, sem
que veja destrudas as prevenes que nutre contra ele.
O velho fitou a filha com pasmo. Duas grossas
lgrimas deslizaram-lhe ao longo das faces enrugadas. Nopde beijar a filha vista da multido que os rodeava,
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
21/253
porm apertou-lhe ternamente a mo. Subindo
carruagem, todos os pensamentos melanclicos haviam
desaparecido completamente. A atitude um pouco triste de
sua filha o inquietava bem menos que a alegria inocente,
cujo segredo escapara a Jlia durante a revista.
Nos primeiros dias do ms de maro de 1814, pouco
menos de um ano depois dessa revista do imperador, uma
calea rodava pela estrada de Amboise a Tours. Ao deixar a
abbada verde das nogueiras sob as quais se ocultava o
correio de Frilliere, o carro seguiu com tal rapidez que
depressa chegou ponte construda sobre o Cise, na
embocadura desse rio com o Loire, e ali parou. Acabava de
quebrar-se um tirante, devido ao movimento impetuoso
que o cocheiro, sob a ordem de seu patro, imprimira aos
quatro possantes cavalos. Assim, por obra do acaso, as
duas pessoas que se achavam na calea tiveram ocasiode contemplar um dos mais belos recantos que as
sedutoras margens do Loire apresentam. direita o
viajante abrange com um olhar todas as sinuosidades do
Cise, que se arrasta, como uma serpente prateada, pela
erva dos prados aos quais os primeiros rebentos da
primavera davam ento as cores da esmeralda. esquerdasurge o Loire em toda a sua magnificncia. Os raios do sol
cintilavam sobre aquela vasta extenso dgua. A cada
passo se sucediam ilhas verdejantes como as pedras
engastadas de um colar. Do lado oposto do rio, os mais
lindos campos da Touraine desenrolam os seus tesouros
numa extenso imensa. Ao longe, o olhar s encontra comolimites as colinas do Cher, cujos cimos desenhavam
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
22/253
naquele momento linhas luminosas sobre o transparente
azul do cu. Atravs da tnue folhagem das ilhas ao fundo
do quadro, Tours parece, como Veneza, emergir do seio
das guas. Os campanrios da sua velha catedral elevam-
se nos ares, onde se confundiam ento com as criaes
fantsticas de algumas nuvens esbranquiadas. Alm da
ponte sobre a qual parara o veculo, o viajante descobre na
sua frente, ao longo do Loire at Tours, uma cadeia de
rochedos, que por uma fantasia da natureza parece ter sido
colocada para servir de dique ao rio, cujas vagas minam
incessantemente a pedra, espetculo que sempre
maravilha o viajante. A aldeia de Vouvray acha-se como
que enterrada nos desfiladeiros desses rochedos, que
comeam a formar um cotovelo em frente da ponte do
Cise. De Vouvray at Tours, as medonhas sinuosidades
dessa colina so habitadas por uma populao devinhateiros. Em mais de um local existem trs patamares
de casas, abertas na rocha e reunidas por perigosas
escadas talhadas na prpria pedra. Por cima de um
telhado, uma moa de saia vermelha corre ao seu jardim. A
fumaa de uma chamin se eleva entre as cepas e as
parras nascentes de uma vinha. Homens cavam camposperpendiculares. Uma velha tranqilamente sentada sobre
um pedao de rochedo fia sombra de uma amendoeira, e
v passar os viajantes a seus ps, sorrindo do susto deles.
As fendas do solo preocupam-na tanto quanto as runas de
um velho muro, cujos alicerces so retidos apenas pelas
razes retorcidas de um manto de hera. O martelo dostanoeiros faz ressoar as cpulas das adegas. Enfim, a terra
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
23/253
est por toda a parte cultivada e fecundada, l onde a
natureza recusou terra indstria humana. Assim, nada
comparvel, no curso do Loire, ao rico panorama que a
Touraine apresenta aos olhos do viajante. O trplice quadro
dessa cena, cujos aspectos so apenas esboados, oferece
alma um desses espetculos que ela inscreve para
sempre na sua recordao; e, quando um poeta o
desfrutou, evoca-o muitas vezes em sonhos para
reconstruir seus fabulosos efeitos romnticos. No momento
em que a calea chegou ponte do Cise surgiram algumas
velas brancas entre as ilhas do Loire, dando assim nova
harmonia quele aprazvel lugar. O odor dos salgueiros que
orlam o rio mesclava seus perfumes penetrantes aos da
brisa mida. Os pssaros faziam ouvir seus prolixos
concertos; o canto montono de um guardador de cabras
juntava-lhes um tanto da sua melancolia, enquanto osgritos dos marinheiros anunciavam uma agitao distante.
Lnguidos vapores, caprichosamente parados ao redor das
rvores esparsas, imprimiam uma ltima graa nessa
paisagem. Era a Touraine em toda a sua glria, a primavera
em todo o seu esplendor. Essa parte da Frana, a nica que
os exrcitos estrangeiros no deviam perturbar, era nomomento a nica que se achava tranqila: dir-se-ia que ela
desafiava a invaso.
Uma cabea coberta por um gorro de quartel apareceu
portinhola da calea assim que esta parou; em seguida,
um impaciente militar saltou para a estrada disposto a
invectivar o cocheiro. A percia com que esse nativo daregio consertava o tirante partido tranqilizou o coronel
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
24/253
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
25/253
- Voc sente alguma coisa? - perguntou-lhe o coronel
dAiglemont.
- Absolutamente nada - respondeu com momentnea
vivacidade.
Contemplou o marido sorrindo e acrescentou:
- Sinto vontade de dormir.
Ouviu-se de repente o galope de um cavalo. Victor
dAiglemont largou a mo da esposa e voltou a cabea para
o cotovelo que a estrada forma naquele lugar. No momento
em que Jlia deixou de ser vista pelo coronel, a expresso
de alegria que ela dera ao rosto plido desapareceu por
completo. No experimentando nem o desejo de tornar a
ver a paisagem nem a curiosidade de saber quem era o
cavaleiro que galopava com tal mpeto, voltou a encostar-
se ao canto da calea, e seus olhos fixaram-se sem
curiosidade na garupa dos cavalos. Tinha um ar toestpido como pode ser o de um campons breto ouvindo
o sermo do seu vigrio. Um rapaz montando um cavalo
puro-sangue surgiu de repente de um pequeno bosque de
choupos e de espinheiros em flor.
- um ingls - disse o coronel.
- Meu Deus! Sim, meu general - replicou o cocheiro. - Eda raa daqueles que querem comer a Frana, segundo
dizem por a.
O desconhecido era um desses viajantes que se
encontravam no continente quando Napoleo mandou
prender todos os ingleses, como represlia ao atentado
cometido contra o direito das gentes pelo ministrio deSaint-James, na ocasio da ruptura do Tratado de Amiens.
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
26/253
Submetidos ao capricho do poder imperial, nem todos
esses prisioneiros ficaram nas residncias onde tinham sido
encontrados, nem naquelas que tiveram primeiro a
liberdade de escolher. A maior parte dos que habitavam
ento a Touraine havia sido para a transferida de diversos
pontos do imprio, onde sua permanncia parecera
comprometer os interesses da poltica continental. O jovem
prisioneiro, que passeava naquele momento o seu tdio
matinal, era uma vtima do poder burocrtico. Havia dois
anos que uma ordem emanada do Ministrio das Relaes
Exteriores o arrancara ao clima de Montpellier, onde a
ruptura da paz o surpreendera enquanto procurava curar-
se de uma doena de peito. Logo que o jovem reconheceu
um militar na pessoa do conde dAiglemont, apressou-se a
evitar-lhe os olhares, voltando assaz bruscamente a cabea
para os prados do Cise.- Todos esses ingleses so insolentes como se o
mundo lhes pertencesse - murmurou o coronel. -
Felizmente, Soult vai dar-lhes o merecido castigo.
Quando o prisioneiro passou em frente da calea,
lanou ali um olhar; no obstante a rapidez, pde admirar a
expresso de melancolia que dava um encanto indefinvelao rosto pensativo da condessa. H muitos homens cujo
corao se comove poderosamente pela simples aparncia
de sofrimento numa mulher, para eles, a tristeza parece ser
uma promessa de constncia no amor. Inteiramente
absorta na contemplao de uma almofada, Jlia no
prestou ateno nem ao cavalo nem ao cavaleiro. O tirantefora rapidamente consertado com toda a solidez. O conde
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
27/253
subiu para o veculo. O cocheiro tratou de recuperar o
tempo perdido e conduziu com rapidez os dois viajantes
por um caminho ao longo dos rochedos, em meio aos quais
amadurecem os vinhos de Vouvray e de onde se erguem
bonitas casas. Vem-se, ao longe, as runas da to clebre
abadia de Marmoutiers, retiro de So Martinho.
- Que pretender de ns esse difano milorde? -
exclamou o coronel, voltando a cabea a fim de assegurar-
se de que o cavaleiro, que desde a ponta do Cise seguia a
calea, era o jovem ingls.
Como o desconhecido no cometia a menor
inconvenincia pela qual pudesse ser censurado, o coronel
contentava-se em lanar-lhe um olhar ameaador, mas no
pde, apesar da sua involuntria inimizade, impedir-se de
notar a beleza do cavalo e o garbo do cavaleiro, O rapaz
possua um desses rostos britnicos, cuja cor to suave, apele to fina e branca, que somos tentados por vezes a
supor que pertencem ao corpo delicado de uma donzela.
Era louro, alto e magro. Notava-se no seu traje esse
requinte de cuidado e asseio que distingue os elegantes da
grave Inglaterra. Dir-se-ia que ele ruborizava mais de pudor
que de prazer ao aspecto da condessa. Uma vez apenasJlia ergueu os olhos para o estrangeiro, mas foi por assim
dizer obrigada pelo marido, que queria faz-la admirar as
pernas de um cavalo de raa pura. Os olhos de Jlia
encontraram, ento, os do tmido ingls. A partir desse
momento, o cavaleiro, em vez de seguir ao lado da calea,
caminhava a alguns passos de distncia. A condessa malolhou para o desconhecido No notou nenhuma das
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
28/253
perfeies que lhe eram atribudas, e encostou-se de novo
ao fundo da calea, depois de ter feito um leve movimento
de plpebras, concordando com a opinio do marido. O
coronel adormeceu novamente, e os dois esposos
chegaram a Tours sem terem trocado uma s palavra e
sem que o panorama encantador, sempre renovado,
atrasse uma s vez o olhar de Jlia. Enquanto o marido
dormitava, a senhora dAiglemont contemplou-o vrias
vezes. Numa delas, um solavanco fez-lhe cair sobre o
regao uma medalha que usava, suspensa ao pescoo por
um cordo de luto, e apareceu-lhe de sbito o retrato do
pai. Ento as lgrimas, at ali contidas, correram-lhe pelas
faces. O ingls viu, talvez, os traos midos e brilhantes
que o pranto deixou por um momento no rosto plido da
condessa, mas que o ar prontamente secou. Encarregado
pelo imperador de transmitir as suas ordens ao marechalSoult, que devia defender a Frana da invaso dos ingleses
no Barn, o coronel dAiglemont aproveitava aquela misso
para subtrair a mulher aos perigos que ento ameaavam
Paris e a conduzia a Tours para a casa de uma velha
parenta. Logo a carruagem cruzou a ponte, na Grande-Rua,
e parou em frente do antigo palcio onde, havia tempos,residia a condessa de Listomre-Landon.
A condessa era uma dessas lindas velhas senhoras de
tez plida, cabelos brancos, que tm um sorriso fino e se
vestem e se penteiam seguindo uma moda desconhecida.
Retratos setuagenrios do sculo de Lus XV, essas
mulheres so quase sempre carinhosas e meigas, como seainda amassem; menos piedosas que devotas e ainda
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
29/253
menos devotas do que parecem; bastante perfumadas,
falando bem, conversando melhor, e rindo mais de uma
recordao do que de um gracejo. O modernismo as
desagrada. Quando uma idosa criada de quarto anunciou
condessa (pois cedo reaveria seu ttulo) a visita de um
sobrinho que no via desde o comeo da guerra da
Espanha, ela depressa tirou os culos, fechou a Galeria da
antiga corte, seu livro favorito; depois, encontrou certa
agilidade para chegar escadaria no momento em que os
dois subiam os degraus.
A tia e a sobrinha lanaram uma outra rpido olhar.
- Bom dia, minha tia - exclamou o coronel abraando a
condessa com precipitao. - Trago-lhe uma jovem para
cuidar. Venho confiar-lhe o meu tesouro. A minha Jlia no
vaidosa nem ciumenta; tem a doura de um anjo... Mas
espero que no se estrague aqui...- Atrevido! - respondeu a condessa, lanando- lhe um
olhar brincalho.
Com uma graa amvel, se ofereceu para beijar Jlia,
que permanecia pensativa e parecia mais embaraada que
curiosa.
- Vamos, pois, travar conhecimento, minha queridinha?- perguntou a condessa. - No se assuste muito comigo;
sempre que me encontro com gente nova, procuro no ser
velha.
Antes de entrar no salo, a condessa, segundo o
hbito da provncia, dera ordens para o almoo dos seus
dois hspedes; porm, o conde interrompeu a eloqnciada tia, dizendo-lhe muito seriamente que s podia
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
30/253
dispensar-lhe o tempo que o postilho levaria para mudar
os cavalos. Portanto, dirigiram-se imediatamente sala de
jantar, e o coronel teve apenas o tempo necessrio para
narrar tia os acontecimentos polticos e militares que o
obrigavam a pedir-lhe abrigo para sua jovem esposa.
Entrementes, a tia olhava alternadamente para o sobrinho,
que falava sem ser interrompido, e para a sobrinha, cuja
palidez e tristeza pareceram-lhe causadas por aquela
separao, e dizia intimamente: Ah! Estes amam-se de
verdade.
- Adeus, minha querida - disse ele beijando a mulher,
que o seguira at o ptio.
- Oh!, Victor, deixe-me acompanhar-lhe um pouco mais
longe - pedia Jlia, carinhosa -, no queria deixar-lhe...
- Voc pensa nisso?
- Bem, adeus - replicou Jlia -, j que voc quer assim.A carruagem desapareceu.
Voc ama muito o meu pobre Victor? - perguntou a
condessa sobrinha, interrogando-a com um desses
olhares perscrutadores que as velhas lanam s jovens.
- Ai!, minha senhora - respondeu Jlia -, no preciso
amar um homem para despos-lo?Essa ltima frase foi acentuada por um tom de
ingenuidade que traa ao mesmo tempo um corao puro
ou mistrios profundos. Ora, seria bem difcil a uma mulher,
amiga de Duclos e do marechal de Richelieu, no procurar
adivinhar o segredo daquele casal. A tia e a sobrinha, ainda
junto ao porto, achavam-se entretidas a ver a calea quese afastava. Os olhos da condessa no exprimiam o amor
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
31/253
como a marquesa o compreendia. A boa senhora era uma
provenal, e suas paixes tinham sido violentas.
- Deixou-se, ento, fascinar pelo patife do meu
sobrinho? - perguntou sobrinha.
A condessa estremeceu involuntariamente, porque o
tom e o olhar da velha senhora pareciam-lhe anunciar um
profundo conhecimento do carter de Victor. A senhora
dAiglemont, inquieta, mostrou uma dissimulao inbil,
primeiro refgio dos coraes ingnuos e sofredores. A
senhora de Listomre contentou-se com as respostas de
Jlia; mas pensou com prazer que sua solido ia ser
distrada por alguma intriga amorosa que a divertiria.
Quando a condessa dAiglemont se achou num grande
salo forrado de tapearias emolduradas por frisos
dourados, sentada em frente de um bom fogo, abrigada da
corrente de ar por um biombo chins, a sua tristeza noconseguiu dissipar-se. Era difcil poder nascer a alegria
entre decoraes antigas e mveis seculares. Contudo, a
jovem parisiense sentiu certo prazer naquela profunda
solido e no silncio da solene provncia. Depois de ter
trocado algumas palavras com aquela tia, a quem
escrevera apenas uma carta logo aps o casamento, ficousilenciosa como se estivesse ouvindo uma pera. Foi s
passadas duas horas de um sossego digno da Trappa que
Jlia notou a sua indelicadeza para com a tia; lembrou-se
de que s lhe havia dirigido respostas frias e indiferentes. A
velha senhora tinha respeitado o capricho da sua sobrinha
com esse instinto cheio de graa que caracteriza a gentede outro tempo. Nesse momento, a velha marquesa
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
32/253
tricotava. Tinha-se ausentado, com efeito, por diversas
vezes, para se ocupar de um certo quarto verde, onde a
condessa devia instalar-se e onde os criados da casa
colocavam a bagagem; mas voltara depois para seu lugar
numa grande poltrona, e olhava de soslaio para a jovem
sobrinha. Envergonhada por se ter abandonado sua
irresistvel meditao, Jlia tentou fazer-se perdoar
zombando de si mesma.
- Minha querida filha, ns conhecemos a dor das
vivas respondeu a tia.
Seria preciso ter quarenta anos para adivinhar a ironia
que os lbios da velha senhora exprimiam. No dia seguinte,
a condessa achava-se com melhor disposio; conversou. A
senhora de Listomre no mais desesperou de tornar
socivel aquela esposa novata, que primeiro considerara
como uma selvagem e estpida; falou-lhe sobre as belezasda regio, dos bailes e das casas que podiam freqentar.
Todas as perguntas da marquesa foram, durante esse dia,
outras tantas ciladas que ela, por antigo hbito da corte,
no pde deixar de fazer sobrinha, a fim de lhe adivinhar
o carter. Jlia resistiu durante alguns dias a todos os
pedidos que lhe fez a tia para procurar distraes fora decasa. No obstante o desejo que tinha a velha senhora de
mostrar orgulhosamente a sua linda sobrinha, acabou por
renunciar a apresent-la sociedade. A condessa achara
um pretexto para sua solido e tristeza no desgosto que lhe
causara a morte do pai, pelo qual ainda estava de luto.
Passados oito dias, a velha senhora encheu-se deadmirao pela doura anglica, a graa modesta, o
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
33/253
esprito indulgente de Jlia, e interessou-se desde ento
profundamente pela misteriosa melancolia que consumia
aquele corao. A condessa era uma dessas mulheres que
nasceram para ser amveis e que parecem trazer a
felicidade consigo. A sua companhia tornou-se to
agradvel e preciosa senhora de Listomre que esta se
apaixonou pela sobrinha e desejava nunca deix-la. Um
bastou para estabelecer entre as duas uma amizade
eterna. A velha senhora notou, no sem surpresa, as
mudanas que se operaram na fisionomia da senhora
dAiglemont. As cores vivas que lhe abrasavam o rosto
desvaneceram se insensivelmente e a tez ia se tornando
plida. Enquanto perdia seu esplendor primitivo, Jlia ia
ficando menos triste. Por vezes a boa senhora despertava
na sua jovem parenta mpetos de alegria, logo contidos por
um pensamento importuno. Adivinhou ela que no era arecordao do pai, nem a ausncia de Victor, a causa da
profunda melancolia que lanava um vu na existncia da
sua sobrinha; depois acorreram-lhe suspeitas to ms que
lhe foi difcil determinar a verdadeira causa do mal, pois a
verdade talvez s se encontra por acaso. Um dia, enfim,
Jlia fez brilhar aos olhos da tia espantada umesquecimento completo do casamento, uma loucura de
criana travessa, uma candura de esprito, urna digna da
infncia. Que esse esprito delicado, e por vezes to
profundo, que distingue as jovens francesas. A senhora de
Listomre resolveu, ento, sondar os mistrios daquela
alma, cuja extrema naturalidade equivalia a umadissimulao impenetrvel. Aproximava-se a noite, as duas
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
34/253
senhoras estavam sentadas junto de uma janela que dava
para a rua. Jlia tornara-se de novo pensativa. Passava
nesse momento um cavaleiro.
- A tem uma das suas vtimas - disse a velha
marquesa.
A senhora dAiglemont encarou a tia, manifestando um
espanto misturado com certa inquietao.
- um jovem ingls, um fidalgo, Artur Ormond, filho
mais velho de lorde Grenville. A sua histria interessante.
Veio a Montpellier em 1802 esperando que o ar desse
lugar, para onde foi mandado, pelos mdicos, o curaria de
uma doena de peito da qual podia morrer. Como todos os
seus compatriotas, foi preso por Bonaparte na ocasio da
guerra, porque esse monstro no pode nunca deixar de
guerrear. Como distrao, o ingls comeou a estudar a
sua doena, que julgavam mortal. Insensivelmente, tomougosto pela anatomia, pela medicina, apaixonou-se por
essas artes, o que extraordinrio num homem de
qualidades; mas tambm o regente dedicou-se qumica!
Em resumo, o senhor Artur fez espantosos progressos,
mesmo para os professores de Montpellier; o estudo
consolou-o do cativeiro, e ao mesmo tempo ele se curouradicalmente. Diz-se que esteve dois anos sem falar,
respirando raramente, dormindo numa estrebaria, bebendo
leite de uma vaca da Sua e alimentando-se de agries.
Desde que se encontra em Tours, no procurou ningum,
orgulhoso como um pavo, mas a minha querida fez
decerto a sua conquista, pois de fato no por minha
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
35/253
causa que ele passa debaixo das nossas janelas duas vezes
por dia desde que voc est aqui... Com certeza, ele a ama.
Essas ltimas palavras despertaram a condessa como
por magia. Sorriu de um modo que surpreendeu a
marquesa. Longe de testemunhar essa satisfao instintiva
que qualquer mulher, por mais severa que seja, sente ao
saber que h algum infeliz por sua causa, o olhar de Jlia
foi apagado e frio, O seu rosto indicava um sentimento de
repulsa, quase de horror. Essa proscrio no era aquela
que uma mulher amorvel fulmina sobre o mundo inteiro
em proveito de um nico ente: ela sabe ento rir e
gracejar; no, Jlia tinha, nesse instante, a atitude de
algum que sente ainda a recordao de um perigo que a
fez sofrer muitssimo. A tia, convencida de que a sua
sobrinha no amava o sobrinho, ficou estupefata ao
descobrir que tambm no amava outro. Tremeu ao ter dereconhecer em Jlia um corao desiludido, uma jovem a
quem a experincia de um dia, de uma noite talvez, havia
bastado para avaliar a nulidade de Victor.
- Se ela o conhece, tudo est dito - pensou -; o meu
sobrinho vir talvez a sofrer os inconvenientes do
matrimnio.Propunha-se converter Jlia s doutrinas monrquicas
do sculo de Lus XV; mas algumas horas mais tarde soube,
ou antes, adivinhou a situao bastante vulgar na
sociedade a que a condessa devia a sua extrema
melancolia. Jlia, que de sbito se tornara pensativa,
retirou-se para o quarto mais cedo que de costume. Depoisde a criada de quarto t-la ajudado a se despir, a jovem
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
36/253
senhora conservou-se perto da lareira, recostada numa
poltrona de veludo amarelo, mvel antigo, to favorvel
para os aflitos como para os venturosos; chorou, suspirou,
pensou; depois puxou para junto de si uma mesa pequena,
procurou papel e ps-se a escrever. As horas passaram
rapidamente, a confidncia que Jlia fazia nessa carta
parecia custar-lhe muito, cada frase provocava longas
meditaes; de repente, a jovem prorrompeu em lgrimas.
Nesse momento, os relgios davam duas horas. Inclinou
para o peito a cabea to pesada como a de um
agonizante; depois, quando a ergueu, Jlia viu aparecer de
sbito a tia, como uma personagem que se tivesse
despregado da tapearia que cobria as paredes.
- Que tem, minha filha? - indagou a velha marquesa. -
Por que vela at to tarde, e por que chora aqui sozinha, na
sua idade?Sentou-se sem cerimnia perto da sobrinha e devorou
com os olhos a carta comeada.
- Escrevia a seu marido?
- Por acaso sei onde ele est? - replicou a condessa.
A tia pegou o papel e leu. Trouxera consigo os culos,
havia nisto premeditao. A inocente criatura deixou-a ler acarta, sem fazer o mnimo reparo. No era nem por falta de
dignidade nem por qualquer sentimento de culpa secreta
que lhe roubasse toda a energia. No; a tia encontrou-a ali
num desses momentos de crise em que a alma est como
afrouxada, em que tudo se torna indiferente, o bem como o
mal, o silncio como a confiana. Semelhante a uma jovemvirtuosa que acabrunha o amante de improprios, mas que
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
37/253
noite se encontra to triste, to abandonada, que o
deseja e quer um corao onde deponha os seus
sofrimentos, Jlia deixou violar, sem proferir uma palavra, o
sigilo que a delicadeza imprime numa carta aberta, e ficou
pensativa enquanto a marquesa lia.
Minha querida Lusa, por que se h de reclamar
tantas vezes o cumprimento da promessa mais imprudente
que se possam fazer duas jovens ignorantes? Muitas vezes
voc se pergunta, escreve-me, indagando por que h seis
meses no respondo s suas perguntas. Se no
compreende meu silncio, hoje conhecer talvez a causa,
sabendo os mistrios que estou traindo. Os teria sepultado
no fundo do meu corao, se voc no me avisasse do seu
prximo casamento. Vai casar, Lusa. Esta notcia fez-me
tremer. Pobre criana, case; depois, dentro de alguns
meses, um dos seus mais amargos pesares ser causadopela recordao do que j fomos, quando uma noite, em
Ecouen, subindo as montanhas mais altas, contemplamos o
formoso vale que tnhamos a nossos ps para admirar o sol
poente, cujos reflexos nos envolviam. Sentamos-nos num
rochedo e camos num devaneio a que sucedeu a mais
doce melancolia. Voc foi a primeira a pensar que aquelesol distante nos falava do futuro. ramos ento curiosas e
tontas! Voc recorda todas as nossas extravagncias?
Beijemo-nos como dois amantes, dizamos. Juramos
ambas que a primeira que casasse narraria fielmente
outra esses segredos do himeneu, essas alegrias que as
nossas almas juvenis nos afiguravam to deliciosas. Essanoite ser o seu desespero, Luisa. Naquele tempo voc era
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
38/253
nova, formosa, despreocupada, se no feliz; um marido ir
torn-la, em poucos dias, o que eu j sou: feia, doente e
velha. Dizer-lhe como me sentia altiva, vaidosa e feliz por
desposar o coronel Victor dAiglemont seria uma loucura! E
como havia de dizer agora? J nem me lembro sequer de
mim. E poucos instantes, a minha infncia tornou-se como
um sonho. A minha atitude durante o dia solene, que
consagrava um vnculo cuja extenso ignoro, no foi isenta
de censuras. Meu pai mais uma vez tentou reprimir a
minha alegria, que se tornava inconveniente, e as minhas
palavras, que revelavam malcia, justamente por que no a
tinham. Fazia mil criancices com o vu nupcial, o vestido e
as flores. Quando me vi sozinha, noite, no aposento a que
fora conduzida com grande aparato, pensei pregar uma
pea a Victor e, enquanto o esperava, sentia palpitaes de
corao semelhantes s que noutro tempo se apoderavamde mim nesses dias solenes de 31 de dezembro, quando,
sem ser vista, me introduzia no salo em que estavam
reunidos os brinquedos. Meu marido procurou-me ao entrar
no quarto, e o riso sufocado que fiz ouvir sob as musselinas
que me serviam de esconderijo foi a ltima nota dessa
suave alegria que animou os brinquedos da nossainfncia....
Quando a velha marquesa terminou a leitura dessa
carta que, em vista do seu comeo, devia conter
observaes bem tristes, colocou lentamente os culos
sobre a mesa e, segurando a carta, fitou a sobrinha com
seus olhos verdes, cujo brilho no fora amortecido pelosanos.
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
39/253
Minha filha - disse -, uma senhora casada, escrevendo
deste modo a uma menina, falta s convenincias...
- Era o que eu pensava - respondeu Jlia,
interrompendo sua tia -, e tinha vergonha de mim,
enquanto a senhora lia...
- Se mesa uma iguaria no nos agrada, no devemos
por isso enjoar as outras pessoas, minha filha - replicou a
velha senhora com bondade -, principalmente quando,
desde Eva at ns, o casamento foi considerado uma coisa
to excelente...
J no tem me? - perguntou a marquesa.
A condessa estremeceu, depois ergueu docemente a
cabea e disse:
- Tenho lamentado mais de uma vez a sua falta, de um
ano para c. Mas fiz mal em no seguir os conselhos de
meu pai, que no queria Victor para genro.Olhou para a tia, e um frmito de alegria lhe secou as
lgrimas quando viu o ar de bondade que animava aquele
velho rosto. Estendeu a mo marquesa, que parecia
pedir-lhe; e, quando seus dedos se estreitaram, as duas
mulheres acabaram por se compreender.
- Pobre rf! - acrescentou a marquesa.Essas palavras foram para Jlia um ltimo raio de luz.
Pareceu-lhe ouvir ainda a voz proftica do pai.
- As suas mos ardem! Esto sempre assim? -
perguntou a bondosa velha.
- H apenas sete ou oito dias que a febre me deixou -
respondeu Jlia.- Tinha febre e nada me dizia!
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
40/253
- H um ano que a tenho - disse Jlia com certa
ansiedade pudica.
- Assim, meu anjinho - tornou a tia -, o casamento no
tem sido para voc mais que um longo sofrimento?
A condessa no ousou responder; mas fez um gesto
afirmativo que traa todas as suas angstias.
- E infeliz, ento?
- Oh!, no, minha tia. Victor me ama com idolatria, e
eu o adoro; ele to bom!
- Sim, ama-o; mas foge dele, no verdade?
- Sim... Algumas vezes. Ele me procura
constantemente.
- Quando se v sozinha, no lhe perturba a idia de
que ele a surpreenda?
- verdade, minha tia. Mas amo-o muitssimo,
asseguro-lhe.- No se acusa, em segredo, de no saber ou no
poder partilhar os seus prazeres? No lhe acode, por vezes,
a idia de que o amor legtimo mais difcil de ser vivido
do que uma paixo criminosa?
- Oh! E isso mesmo - disse Jlia chorando. - Adivinha,
pois, tudo onde s encontro enigmas? Os meus sentidosesto adormecidos, no tenho idias; em suma, vivo
dificilmente. Minha alma acha-se oprimida por uma
indefinvel apreenso que paralisa meus sentimentos e me
lana num torpor contnuo. Sinto me sem voz para queixar-
me, sem palavras para exprimir minha dor. Sofro e tenho
vergonha de sofrer, vendo Victor feliz com o que me mata.
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
41/253
- Tudo isso so criancices, insignificantes! - exclamou a
tia, cujo rosto emagrecido animou-se de repente por um
alegre sorriso, reflexo das alegrias da sua mocidade.
- E a senhora tambm se ri! - disse com desespero a
condessa.
- Fui assim mesmo - replicou prontamente a marquesa.
- Agora que Victor a deixou s, no se sente melhor e mais
tranqila; sem prazeres, mas sem sofrimentos?
Jlia abriu os olhos espantados.
- Enfim, meu anjo, adora Victor, no assim? Mas
preferiria ser sua irm a ser sua mulher, e no se d bem
com o casamento.
- E isso mesmo, minha tia. Mas por que sorri?
- Oh!, tem razo, pobre criana; no h nada de alegre
em tudo isto. O seu futuro seria bem negro se eu no a
tomasse sob minha proteo e se a minha velhaexperincia no soubesse adivinhar a causa bem inocente
dos seus desgostos. Meu sobrinho no merecia ser to feliz,
o tolo! No reinado do nosso bem-amado Lus XV, uma
jovem esposa que se encontrasse na situao em que a
vejo depressa teria castigado o marido por proceder como
um reles mercenrio. Os militares s ordens desse tiranoimperial so todos uns vis ignorantes. Tomam a brutalidade
por galanteria, conhecem tanto as mulheres como sabem
am-las; julgam que, por terem de ir ao encontro da morte
no dia seguinte, esto dispensados de terem, na vspera,
cuidados e atenes conosco. Noutros tempos sabia-se to
bem amar como morrer com propsito. Minha queridasobrinha, hei de ensin-lo a voc. Porei termo ao triste
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
42/253
desacordo, bastante natural, que os levaria a odiarem-se
mutuamente, a desejarem o divrcio, caso no morresse
antes de ser dominada pelo desespero.
Jlia escutava a sua tia com pasmo e assombro,
surpreendida por encontrar nas suas palavras uma
sensatez que pressentia melhor que compreendia e
deveras assustada por ouvir de uma parenta cheia de
experincia, embora sob forma mais suave, a opinio
formulada por seu pai a respeito de Victor. Ela teve, talvez,
uma ntida intuio do futuro e sentiu o peso das desgraas
que haviam de acabrunh-la, pois rompeu em pranto, e
lanou-se nos braos da outra dizendo:
- Seja minha me!
A tia no chorou, porque a Revoluo deixou poucas
lgrimas nos olhos das mulheres da antiga monarquia.
Outrora, o amor e, mais tarde, o Terror familiarizaram-nascom as peripcias mais pungentes, de modo que
conservam em meio aos perigos da vida uma dignidade
fria, uma afeio sincera, mas pouco expansiva, que lhes
permite manterem-se sempre fiis etiqueta e a uma
nobreza de porte que os novos costumes tolamente
repudiaram. A velha marquesa abraou a jovem, beijou-ana fronte com uma ternura e uma graa que muitas vezes
se encontram mais nas maneiras e nos hbitos dessas
mulheres do que no seu corao; consolou a sobrinha com
palavras meigas, prometeu-lhe um futuro feliz, embalou-a
com promessas de amor, enquanto a ajudava a se deitar
como se ela fosse sua filha, uma filha querida, cujaesperana e tristeza partilhava; revia-se nova, inexperiente
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
43/253
e linda em sua sobrinha. A condessa adormeceu feliz por
ter encontrado uma amiga, uma me a quem doravante
tudo poderia confiar. Na manh seguinte, quando a tia e a
sobrinha se beijaram com essa cordialidade e esse ar de
inteligncia que atestam um progresso no sentimento, uma
harmonia mais perfeita entre duas almas, ouviram os trotes
de um cavalo, voltaram a cabea ao mesmo tempo e viram
o jovem ingls que passava vagarosamente, segundo o seu
costume. Parecia ter feito certo levantamento sobre a vida
das duas mulheres solitrias, e nunca deixava de passar
enquanto almoavam ou jantavam. O cavalo retardava o
trote sem necessidade de aviso; depois, durante o tempo
que levava a percorrer o espao ocupado pelas duas
janelas da sala de jantar, Artur lanava um olhar
melanclico, quase sempre desdenhado pela condessa, que
no lhe prestava a mnima ateno. Mas, habituada a essascuriosidades mesquinhas que se do s mais pequeninas
coisas, a fim de animar a vida de provncia, e das quais
dificilmente se ocupam os espritos superiores, a marquesa
divertia-se com o amor tmido e srio to tacitamente
expresso pelo ingls. Aqueles olhares peridicos tinham-se
tornado um hbito para ela, e todos os dias assinalava apassagem de Artur com novos gracejos. Tomando lugar
mesa, as duas senhoras olharam simultaneamente para o
ilhu. Os olhos de Jlia e de Artur encontraram-se dessa
vez com tal preciso de sentimento que a jovem ruborizou.
Imediatamente, ele apressou o cavalo e partiu a galope.
- Que devo fazer? - perguntou Jlia tia. - Quem viresse ingls aqui pode supor que sou...
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
44/253
- Sim - respondeu a tia, interrompendo-a.
- E ento posso dizer-lhe que no passeie por aqui?
- No seria faz-lo pensar que perigoso? E, de resto,
pode impedir-se um homem de passar por onde lhe
apetea? Amanh, deixaremos de fazer as refeies nesta
sala; quando j no nos vir aqui, o jovem cavaleiro h de
cessar de am-la pela janela. Eis, minha querida criana,
como procede uma mulher que tem experincia da vida.
Mas a desgraa de Jlia devia ser completa. Logo que
as duas senhoras se levantaram da mesa, chegou o criado
de Victor, inesperadamente. Vinha de Bourges a todo
galope, por atalhos, e trazia para a condessa uma carta de
seu marido. Victor, que havia abandonado o imperador,
anunciava esposa a queda do regime imperial, a tomada
de Paris e o entusiasmo que se declarava a favor dos
Bourbons em todos os pontos da Frana; mas, no sabendocomo penetrar em Tours, rogava-lhe se dirigisse a toda
pressa a Orleans, onde esperava encontrar-se com
passaportes para ela. Esse criado, antigo militar, devia
acompanhar Jlia de Tours a Orleans, caminho que Victor
julgava ainda livre.
- A senhora no tem um instante a perder - disse ocriado -; os prussianos, os austracos e os ingleses vo
fazer sua juno em Blois ou em Orleans...
Em poucas horas, a jovem condessa fez seus
preparativos e partiu numa antiga sege que a tia lhe em
prestou.
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
45/253
- Por que no vem conosco a Paris? - perguntou Jlia
na despedida, beijando a marquesa. - Agora que os
Bourbons voltam ao poder, encontraria l...
- Sem esse regresso inesperado, teria ido da mesma
forma, minha pobre criana, porque meus conselhos so
necessrios a voc e a Victor. Vou, pois, preparar-me para
encontrar-me com vocs brevemente.
Jlia partiu acompanhada pela sua criada de quarto e
pelo velho militar, que galopava ao lado da sege, velando
pela segurana da sua patroa. noite, quando chegaram
ao ponto onde deviam trocar os cavalos, um pouco adiante
de Blois, Jlia, inquieta por ouvir um carro que a seguia
desde Amboise, ps-se portinhola, a fim de ver quais
eram os seus companheiros de jornada. A claridade da lua
permitiu-lhe avistar Artur de p, a trs passos de distncia,
com os olhos fixos na sege. Os seus olhares encontraram-se. A condessa recuou vivamente para o fundo da
carruagem, mas com um sentimento de medo que a fez
palpitar. Como a maior parte das jovens realmente
inocentes e sem experincia, via uma falta no amor que
involuntariamente inspirara a um homem. Sentia um horror
instintivo, que lhe dava talvez a conscincia da suafraqueza perante to audaciosa agresso. Das mais fortes
do homem esse terrvel poder de atrair a preocupao de
uma mulher cuja imaginao, naturalmente mutvel, se
assusta ou se ofende com uma perseguio. A condessa
recordou-se do conselho da tia e resolveu no tornar a
mostrar-se durante a viagem, mas, a cada parada, ouvia oingls, que passeava entre as duas seges; e, na estrada, o
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
46/253
rudo importuno do carro que a seguia ressoava
incessantemente a seus ouvidos. Pensou que logo que se
reunisse ao marido, Victor saberia defend-la contra essa
singular perseguio.
- Mas, e se esse rapaz no me amasse?
Essa foi a ltima reflexo que ela fez. Ao chegar a
Orleans, a sua sege de posta foi detida por ordem dos
prussianos, levada para o ptio de uma estalagem e
guardada por soldados. A resistncia era impossvel. Os
estrangeiros explicaram aos trs viajantes ,por meio de
sinais imperiosos, que tinham recebido ordem de no
deixar sair ningum do carro. A condessa chorou durante
duas horas, prisioneira entre soldados que fumavam, riam
e por vezes fitavam-na com insolente curiosidade;
finalmente, viu-os afastaram-se com certo respeito,
ouvindo um galopar de cavalos. Eram oficiais superioresque chegavam tendo frente um general austraco, que se
acercou da sege.
- Senhora - disse o general - queira receber nossas
desculpas; houve um engano, pode continuar a viagem
sem receio, e aqui tem um passaporte que lhe evitar
qualquer outra contrariedade...Jlia, toda trmula, pegou no papel e balbuciou umas
palavras vagas. Via, junto do general e com o uniforme de
oficial ingls, Artur, a quem, sem dvida, devia aquela
pronta libertao. Alegre e melanclico ao mesmo tempo, o
jovem ingls voltou a cabea, e no ousou olhar para Jlia
seno de soslaio. Graas ao passaporte, a condessadAiglemont chegou a Paris sem outro contratempo. A
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
47/253
encontrou o marido, que, desligado do juramento de
fidelidade ao imperador, havia recebido o mais lisonjeiro
acolhimento da parte do conde dArtois, nomeado general-
chefe do reino por seu irmo Luis XVIII. Victor teve um
posto eminente na guarda pessoal, que correspondia ao
grau de general.
Todavia, em meio s festas que assinalaram o
regresso dos Bourbons, a pobre Jlia sofreu um profundo
desgosto que muito devia influir na sua vida: perdeu a
marquesa de Listomre-Landon. A velha senhora morreu de
alegria e da gota que lhe subiu ao corao, vendo
novamente em Tours o duque de Angoulme.
Assim, a nica pessoa que, por conselhos sensatos,
poderia tornar mais perfeito o acordo entre a mulher e o
marido, essa pessoa morreu. Jlia sentiu toda a extenso
dessa perda. No havia mais ningum entre ela e o marido;mas, jovem e tmida, devia preferir o sofrimento queixa. A
prpria perfeio do seu carter opunha-se a que ela
ousasse subtrair-se aos deveres ou tentasse procurar a
causa de suas dores, porque faz-las cessar seria coisa
muito delicada. Jlia teria medo de ofender seu pudor de
moa.Uma palavra sobre o destino do senhor dAiglemont
sob a Restaurao.
No se encontram muitos homens cuja profunda
nulidade um segredo para a maior parte das pessoas que
os conhecem? Uma posio elevada, um nascimento
ilustre, atribuies importantes, certo verniz de polidez,grande reserva no procedimento ou prestgio da fortuna
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
48/253
so para eles como guardas que impedem os crticos de
penetrar a sua existncia ntima. Essa gente se parece com
os reis, cuja verdadeira estatura, carter e costumes nunca
podem ser bem conhecidos nem justamente apreciados,
porque so vistos de muito longe ou de muito perto. Essas
personagens de mrito factcio interrogam em vez de falar,
possuem a arte de dispor os outros em cena para evitar
posar diante deles; depois, com grande habilidade,
movimentam cada um pelo fio das suas paixes ou dos
seus interesses e zombam assim de homens que lhes so
realmente superiores, fazem deles fantoches e julgam-nos
pequenos por que os rebaixaram at as suas pessoas.
Obtm ento o triunfo natural de um pensamento
mesquinho, porm fixo, sobre a mobilidade dos grandes
pensamentos. De sorte que, para apreciar esses crebros
ocos e pesar-lhes os valores negativos, o observador devepossuir um esprito mais sutil que superior, mais pacincia
que alcance de vista, mais finura e tato que elevao e
grandeza nas idias. No obstante, por maior habilidade
que empreguem esses usurpadores em defender seus
pontos fracos, -lhes bem difcil enganar as esposas, as
mes, os filhos ou o amigo da casa. Esses, porm, quasesempre lhes guardam o segredo sobre um assunto que de
algum modo toca honra comum, e muitas vezes at os
ajudam a impor-se sociedade. Se, graas a essas
conspiraes domsticas, muitos tolos passam por homens
superiores, compensam o nmero de homens superiores
que passam por tolos, de sorte que o estado social temsempre a mesma massa de capacidades aparentes.
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
49/253
Pensem agora no papel que deve representar uma mulher
de esprito e de sentimento na presena de um marido
desse gnero; no se conseguem perceber existncias
cheias de dores e dedicao cujos coraes ternos e
delicados coisa alguma neste mundo poderia recompensar.
Encontrando-se uma mulher forte nessa horrvel situao,
sair dela por meio de um crime, como fez Catarina II, no
obstante denominada A Grande. Mas, como nem todas as
mulheres se encontram sentadas num trono, sofrem quase
todas as desgraas domsticas, que, por serem obscuras,
no so menos terrveis. Aquelas que procuram neste
mundo consolaes imediatas aos seus males conseguem,
apenas substitu-los por outros, quando querem conservar-
se fiis aos seus deveres, ou cometem faltas, se violam as
leis em proveito dos seus prazeres. Estas reflexes so
inteiramente aplicveis histria secreta de Jlia. EnquantoNapoleo se manteve no poder, o conde dAiglemont,
coronel como tantos outros, bom oficial de ordenana,
excelente para cumprir uma misso perigosa, porm
incapaz de um comando de certa importncia, no excitou
a mnima inveja, passou por um dos bravos que o
imperador favorecia e foi o que os militares vulgarmentechamam um bom camarada. A Restaurao, restituindo-lhe
o ttulo de marqus, no o encontrou ingrato; os Bouiions a
Gand. Esse ato de lgica e de fidelidade fez mentir o
horscopo que outrora o sogro tirara, predizendo que o
genro permaneceria sempre coronel. No segundo regresso,
nomeado general-de-diviso e tendo reconquistado seuttulo de marqus, o senhor dAiglemont, com a ambio de
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
50/253
chegar ao pariato, adotou as mximas e a poltica do
Conservador; envolveu-se numa dissimulao que no
ocultava coisa alguma, tornou-se grave, interrogador, de
poucas falas, e foi tido como homem profundo. Usando
sempre de uma extrema polidez, munido de frmulas,
retendo e prodigalizando as frases j feitas que se cunham
regularmente em Paris para dar em troco aos tolos o
sentido das grandes idias ou fatos, as pessoas de suas
relaes reputaram-no homem de gosto e saber. Teimoso
nas suas opinies aristocrticas, foi citado como possuidor
de esplndido carter. Se, por acaso, tornava-se
descuidado ou alegre como fora noutro tempo, a
significncia e a estultcia das suas frases tinham para os
outros sutilezas diplomticas.
- Oh! Ele s diz o que lhe interessa - pensavam as
pessoas de categoria.Serviam-no to bem as suas qualidades como os seus
defeitos. A sua bravura valera-lhe alta reputao militar,
que coisa alguma desmentia, porque nunca tivera comando
algum. Seu rosto msculo e nobre refletia pensamentos
vastos, e s para a esposa era uma impostura. Ouvindo
todo o mundo prestar justia aos seus talentos postios, omarqus dAiglemont acabou por se persuadir de que era
um dos homens mais notveis da corte, onde, graas s
aparncias, soube agradar e onde seus diferentes mritos
foram aceitos sem protesto. Contudo, o senhor dAiglemont
era modesto em sua casa, sentia instintivamente a
superioridade da esposa, apesar de muito nova; e desseinvoluntrio respeito nasceu um poder oculto que a
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
51/253
marquesa viu-se obrigada a aceitar, apesar de todos os
seus esforos para afastar de si o pesado fardo.
Conselheira do marido, ela dirigia-lhe os atos e a fortuna.
Essa influncia antinatural foi para ela uma espcie de
humilhao e a origem de muitos desgostos que sepultara
no corao. Dizia-lhe seu instinto, to delicadamente
feminino, que muito mais belo obedecer a um homem de
talento que guiar um parvo e que uma esposa jovem,
obrigada a pensar e a proceder como um homem, no
nem mulher nem homem, abdica de todas as graas do seu
sexo sem perder seus desgostos nem adquirir nenhum dos
privilgios que as leis conferiram aos mais fortes. A sua
existncia ocultava uma irriso bem amarga. No era ela
obrigada a honrar um dolo oco? A proteger seu protetor,
pobre ser que, por salrio de uma dedicao contnua, lhe
oferecia o amor egosta dos maridos, s via nela umamulher, no se dignava ou no sabia - injria igualmente
profunda - inquietar-se com seus prazeres nem cuidar de
sua tristeza e do seu definhamento? Como a maior parte
dos maridos que sentem o jugo de um esprito superior, o
marqus salvava seu amor-prprio deduzindo da fraqueza
fsica a fraqueza moral de Jlia, que ele se comprazia emlastimar, pedindo contas ao destino por ter-lhe dado por
esposa uma mulher doentia. Enfim, dizia- se vtima, quando
era o carrasco. A marquesa, sobre carregada com todos os
pesares daquela triste existncia, devia ainda sorrir ao seu
imbecil senhor, ornamentar de flores uma casa de luto e
ostentar felicidade num rosto empalidecido por secretossuplcios. Essa responsabilidade de honra, essa abnegao
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
52/253
magnfica deram insensivelmente jovem marquesa uma
dignidade de mulher, uma conscincia de virtude que lhe
ser viram de escudo contra os perigos do mundo. Alm
disso, para sondar a fundo aquele corao, talvez o
sofrimento ntimo e oculto que coroava seu primeiro, seu
ingnuo amor, a fizesse considerar com horror as paixes;
talvez no conhecesse nem o arrebatamento nem as
alegrias ilcitas mas delirantes que levam certas mulheres a
esquecer as leis da prudncia, os princpios da virtude
sobre os quais repousa a sociedade. Renunciando, como a
um sonho, s douras, terna harmonia que a velha
experincia da senhora de Listomre Landon lhe havia
prometido, esperou com resignao o fim das suas penas,
desejando morrer cedo. Desde seu regresso de Touraine,
sua sade alterara-se cada vez mais, e a vida parecia-lhe
medida pelo sofrimento; sofrimento, alis, elegante,doena quase voluptuosa na aparncia, e que podia passar
aos olhos de pessoas superficiais por uma fantasia de
mulher afetada. Os mdicos tinham condenado a marquesa
a conservar-se deitada num div, onde se estiolava entre
as flores que a rodeavam, murchando com elas. A sua
fraqueza proibia-lhe os passeios e o ar livre; s saa emcarruagem fechada. Sempre rodeada de todas as
maravilhas do luxo e da indstria moderna, mais se
assemelhava a uma rainha indolente que a uma enferma.
Alguns amigos, talvez pelo seu infortnio e fraqueza, certos
de a encontrarem sempre em casa e especulando sem
dvida tambm sobre sua boa sade futura, iam levar-lhenotcias e inform-la dos mil acontecimentos insignificantes
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
53/253
que tornam em Paris a existncia to variada. Sua
melancolia, conquanto grave e profunda, era a melancolia
da opulncia. A marquesa dAiglemont assemelhava-se a
uma linda flor cuja raiz roda por um inseto nocivo.
Aparecia algumas vezes nos sales, no por gosto, mas
para obedecer s exigncias da posio a que aspirava seu
marido. Sua voz e a perfeio do seu canto podiam
permitir-lhe obter aplausos que geralmente agradam a uma
jovem, mas para que lhe serviam xitos que ela no ligava
a sentimentos nem a esperanas? O marido no gostava de
msica. Enfim, sentia-se quase sempre contrafeita nos
sales onde sua beleza lhe atraa homenagens
interesseiras. Ali sua situao excitava certa compaixo
cruel, uma curiosidade triste. Jlia sofria de uma inflamao
geralmente mortal, que as mulheres confiam ao ouvido
umas das outras e para a qual a nossa neologia ainda noachou nome. Apesar do silncio em que se escoava a sua
vida, a causa do seu sofrimento no era segredo para
ningum. Sempre jovem, no obstante o casamento, o
mais rpido olhar a envergonhava. De sorte que, para
evitar o rubor, mostrava-se sempre risonha, contente;
afetava uma falsa alegria, dizia-se sempre bem ou afastavaas perguntas acerca de sua sade com pudicas mentiras.
Entretanto, em 1817, um fato contribuiu muito para
modificar o estado deplorvel em que Jlia se afundara at
ento. Teve uma filha e quis cri-la. Durante dois anos, as
vivas distraes e as inquietas alegrias que do os
cuidados maternais tornaram-lhe a existncia menosinfeliz. Separou-se necessariamente do marido. Os mdicos
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
54/253
prognosticaram-lhe melhor sade mas a marquesa no deu
crdito queles pressgios. Como toda gente para quem a
vida no tem encanto, via talvez na morte um desenlace
feliz. No comeo do ano de 1819, a vida tornou-se-lhe mais
cruel que nunca. No momento em que aplaudia a felicidade
negativa que soubera conquistar, entreviu abismos
medonhos; o marido, pouco a pouco, desabituara-se dela.
Esse resfriamento de uma afeio j to morna e egosta
podia ser origem de mais um infortnio que o seu fino tato
e a sua prudncia lhe faziam prever. Ainda que estivesse
certa de conservar um grande poder sobre Victor e de
haver obtido sua estima para sempre, temia a influncia
das paixes sobre um homem to nulo e to vaidosamente
irrefletido. Muitas vezes, seus amigos surpreendiam Jlia
em longas meditaes; os menos perspicazes
perguntavam-lhe a causa gracejando, como se uma jovems pudesse pensar em frivolidades, como se no existisse
quase sempre um sentido profundo nos pensamentos de
uma me-de-famlia. De resto, tanto a desgraa como a
verdadeira felicidade nos levam ao devaneio. s vezes,
brincando com sua Helena, Jlia fitava-a com um olhar
sombrio e cessava de responder a essas interrogaesinfantis que causam tanto prazer s mes, para pedir conta
do seu destino ao presente e ao futuro. Seus olhos
enchiam-se ento de lgrimas quando, de repente,
qualquer recordao lhe reavivava a cena de revista nas
Tulherias. As palavras previdentes do pai ressoavam-lhe de
novo ao ouvido, e a conscincia censurava-a por no as teratendido. Dessa insensata desobedincia provinham todos
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
55/253
os seus infortnios, e muitas vezes no sabia, entre todos,
qual era o mais penoso. No somente os doces tesouros de
sua alma permaneciam ignorados, como nunca conseguira
fazer-se compreender pelo seu marido, nem mesmo nas
coisas mais comezinhas. No momento em que a faculdade
de amar se desenvolvia nela mais forte e ativa, o amor
permitido, o amor conjugal extinguia-se em meio a graves
sofrimentos fsicos e morais. Ademais, tinha pelo marido
essa compaixo vizinha do desprezo, que destri com o
tempo todos os sentimentos. Enfim, se as conversas com
alguns amigos, se os exemplos ou se certas aventuras da
alta sociedade no lhe tivessem mostrado que o amor pode
causar imensa felicidade, seus desgostos ter-lhe-iam feito
adivinhar as alegrias ntimas e puras que devem unir almas
fraternais. No quadro que a memria lhe traava do
passado, desenhava-se o rosto cndido de Artur cada diamais puro e mais belo, mas rapidamente, pois no ousava
demorar-se nessa lembrana. O amor silencioso e tmido do
jovem ingls era o nico acontecimento que, depois do
casamento, lhe havia deixado alguns vestgios suaves no
corao sombrio e solitrio. Talvez todos os desenganos,
todos os desejos frustrados que, gradualmente,entristeciam o esprito de Jlia remontassem, por um
capricho natural da imaginao, a esse homem, cujos
modos, sentimentos e carter pareciam oferecer tanta
semelhana com os seus. Todavia, esse pensamento tinha
sempre a aparncia de um capricho, de um sonho. Aps
esse sonho impossvel, que morria sempre num suspiro,Jlia despertava mais infeliz e sentia mais suas dores
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
56/253
latentes quando as ha via adormecido sob as asas de uma
felicidade imaginria. s vezes seus queixumes assumiam
um carter de loucura e de audcia, queria obter prazeres
a todo custo; porm, mais freqentemente ainda, era presa
de um terror estpido, escutava sem compreender, ou
concebia pensamentos to vagos, to indecisos, que no
encontraria palavras para os traduzir. Magoada nos seus
mais ntimos desejos, nos costumes que em jovem sonhara,
via-se obrigada a reter suas lgrimas. A quem havia de
queixar-se? Quem a escutaria? Alm disso, ela possua essa
extrema delicadeza de mulher, esse delicioso pudor de
sentimento que consiste em calar uma queixa intil, em
no desejar um triunfo que deve humilhar o vencedor e o
vencido. Jlia tentava incutir sua capacidade, suas prprias
virtudes ao senhor dAiglemont, e lisonjeava-se de gozar a
felicidade que lhe faltava.Toda sua sabedoria de mulher era inutilmente
empregada em atenes ignoradas por aquele cujo
despotismo perpetuavam. Havia momentos em que o
desgosto deixava-a como que embriagada, sem idias,
meio louca; mas felizmente um sentimento de verdadeira
piedade logo a reconciliava com uma suprema esperana;refugiava-se na vida futura, crena admirvel que a fazia
aceitar de novo a sua dolorosa tarefa. Esses combates to
terrveis, essas angstias ntimas eram obscuras, essas
longas melancolias eram desconhecidas; criatura alguma
recolhia seus gemidos, seus olhares ternos, suas lgrimas
amargas derramadas na solido.
7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos
57/253
Os perigos da crtica situao a que insensivelmente
chegara por fora das circunstncias revelaram-se em toda
sua gravidade numa noite do ms de janeiro de 1820.
Quando dois esposos se conhecem perfeitamente e
esto muito habituados um ao outro, quando uma mulher
sabe interpretar os gestos mais insignificantes de um
homem e pode penetrar seus sentimentos ou as coisas que
ele lhe oculta, sucede que brilha uma repentina claridade,
devido s reflexes e reparos dados pelo acaso, ou tecidos
a princpio descuidadamente. Amide, uma mulher
desperta, de repente, beira ou no fundo de um abismo.
Assim a marquesa, feliz por se achar s havia alguns dias,
adivinhou o segredo da sua solido. Inconstante ou
enfastiado, generoso ou cheio de compaixo por ela, seu
marido no lhe pertencia mais. Nesse momento, Jlia no
pensou em si nem nos seus sofrimentos, nem nos seussacrifcios