[Balzac] a Mulher de Trinta Anos

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    1/253

    Honor de Balzac

    A Mulher de trinta anos

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    2/253

    Traduo: Jos Maria Machado

    Reviso da Traduo: Osmar Portugal FilhoEDITORA CLUBE DO LIVROSo Paulo 1988 Copyright 1988: Editora Clube do Livro Ltda.Todos os direitos reservados pela

    Fundador: Mrio GraciottiEditor: Nelson dos ReisAssistentes Editoriais: Bel RibeiroLuiz Baggio NetoProjeto Grfico e Capa: Luiz TrigoIlustrao da Capa: Detalhe do leo sobre tela Retrato

    da Senhora Henrio, de RenoirDados de Catalogao na Publicao (C Internacional(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Balzac, Honor de, 1799-1850.

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    3/253

    A moa

    No princpio do ms de abril de 1813, houve um

    domingo cuja manh prometia um desses dias radiosos em

    que os parisienses vem, pela primeira vez no ano, as ruas

    sem lama e o cu sem nuvens. Pouco antes do meio-dia,

    uma carruagem puxada por dois fogosos cavalos

    desembocava na rua de Rivoli pela rua Castiglione e parava

    por detrs de vrias outras, estacionadas junto da grade

    novamente aberta ao centro do terrao dos Feuillants. A

    veloz carruagem era dirigida por um homem de aspecto

    preocupado e doentio; seus grisalhos cabelos mal lhe

    cobriam o crnio amarelado e tornavam-no precocementevelho; entregou as rdeas ao lacaio que, a cavalo, seguia a

    carruagem, e desceu para tomar nos braos uma jovem,

    cuja beleza atraiu a ateno dos ociosos que passeavam no

    terrao. Ao se pr de p para fora da carruagem, a delicada

    mulher deixou-se complacentemente agarrar pela cintura e

    passou os braos em volta do pescoo do seu guia, que adeps no passeio sem amarrotar a guarnio do seu

    vestido de repes verde. Um amante no teria tido tanto

    cuidado. O desconhecido devia ser pai dessa criana, que,

    sem lhe agradecer, travou familiarmente seu brao e

    arrastou-o para o jardim. O velho pai notou os olhares

    maravilhados de alguns rapazes, e a tristeza de seu rostodesapareceu por um momento. Embora tivesse

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    4/253

    ultrapassado havia muito a idade em que os homens

    devem contentar-se com os falaciosos prazeres que a

    vaidade produz, ele sorriu.

    - Pensam que voc minha mulher - disse ao ouvido

    da jovem, recompondo-se e caminhando com uma lentido

    que a desesperou.

    Parecia mais envaidecido pela filha e gozava, tal vez

    mais do que ela, os olhares que os curiosos lanavam aos

    pezinhos bem calados, deliciosa cintura desenhada por

    um corpinho de rendas e ao vioso pescoo que um

    colarinho bordado no ocultava por completo. Os

    movimentos do andar erguiam por instantes a saia da

    jovem e deixavam ver acima das botinas a forma de uma

    perna finamente modelada por uma meia de seda

    transparente.

    Por isso, mais de um transeunte passou adiante dopar, a fim de admirar ou tornar a ver o rosto juvenil e

    moldurado por finos cabelos castanhos, e cuja brancura era

    realada tanto pelos reflexos do cetim rosa de seu elegante

    chapu como pelo desejo e impacincia que transpareciam

    no semblante dessa encantadora criatura. Uma doce

    malcia animava seus belos olhos negros e amendoados, desobrancelhas bem arqueadas e compridas pestanas. A vida

    e a mocidade ostentavam os seus tesouros naquele rosto

    vivido e naquele busto, gracioso ainda, no obstante o

    cinto ento usado sob o peito. Insensvel s homenagens, a

    jovem olhava com uma espcie de ansiedade para o

    palcio das Tulherias, a meta, sem dvida, do seualvoroado passeio. Faltavam quinze para o meio-dia.

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    5/253

    Apesar da hora matutina, algumas senhoras, que teriam

    desejado mostrar- se em lindas toilettes, voltavam do

    palcio, no sem lhe dirigir um olhar aborrecido, como se

    estivessem arrependidas de haver chegado demasiado

    tarde para apreciar um espetculo almejado. Algumas

    palavras, que haviam escapado ao mau humor dessas

    formosas passeantes desapontadas e que a jovem

    desconhecida ouvira, inquietaram-na sobremodo. O ancio

    observava, com um olhar mais curioso que zombeteiro, os

    sinais de impacincia e receio que se refletiam no gracioso

    rosto da sua companheira, e fazia-o talvez com demasiado

    cuidado para no se lhe notar qualquer inteno paternal.

    Esse domingo era o dcimo-terceiro do ano de 1813.

    Dois dias depois, Napoleo partia para aquela fatal

    campanha, durante a qual ia perder sucessivamente

    Bssieres e Duroc, ganhar as memorveis batalhas deLutzen e de Bautzen, ver-se trado pela ustria, Saxnia,

    Baviera, por Bernadotte, e disputar a terrvel batalha de

    Leipzig. A magnfica parada comandada pelo imperador

    devia ser a ltima daquelas que excitaram por tanto tempo

    a admirao dos parisienses e dos estrangeiros. A vetusta

    guarda ia executar pela ltima vez as sbias manobras,cuja pompa e preciso maravilharam, algumas vezes, at

    mesmo esse gigante, que se preparava ento para o seu

    duelo com a Europa. Um sentimento triste levava as

    Tulherias uma populao brilhante e curiosa. Cada um

    parecia adivinhar o futuro, e talvez pressentia que mais de

    uma vez a imaginao teria de retraar o quadro dessa

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    6/253

    cena, quando esses tempos hericos da Frana

    adquirissem, como hoje, cores quase fabulosas.

    - Vamos mais depressa, meu pai! - dizia a moa com

    ar travesso, arrastando o velho. - Ouo os tambores.

    - So as tropas que entram nas Tulherias - respondeu

    o velho.

    - Ou que desfilam ... Vejo toda a gente voltar!- replicou

    a jovem com um mau-humor infantil que fez o pai sorrir.

    - A parada s comea ao meio-dia e meia - disse o

    velho, quase correndo atrs da impaciente filha.

    Vendo-se o movimento que ela imprimia ao brao

    direito, dir-se-ia que assim acelerava o passo. A sua

    mozinha, bem enluvada, amarrotava impacientemente um

    leno e semelhava-se ao remo de um barco que sulca as

    ondas. O ancio sorria por momentos, mas de vez em

    quando certa preocupao entristecia-lhe o rosto magro.Seu amor por aquela encantadora criatura tanto o fazia

    admirar o presente como temer o futuro. Parecia dizer

    intimamente: Ela feliz hoje; ser sempre?. Porque os

    velhos geralmente tendem a turvar com seus pesares o

    futuro dos jovens. Quando o pai e a filha chegaram ao

    peristilo do pavilho em cujo topo flutuava a bandeiratricolor e por onde os passantes seguem do jardim das

    Tulherias para o Carrousel, os guardas gritaram-lhes:

    - No se passa mais!

    A jovem ps-se na ponta dos ps, e pde ver uma

    profuso de damas enfeitadas que atravancavam os dois

    lados da velha arcada em mrmore por onde de via passaro imperador.

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    7/253

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    8/253

    O imperador no gosta de esperar, e eu fui encarregado

    pelo marechal de dar o aviso.

    Enquanto falava, tomava com certa familiaridade o

    brao de Jlia e levava-a rapidamente para o Carrousel.

    Jlia notou com espanto uma multido enorme que se

    comprimia no pequeno espao entre as paredes cinzentas

    do palcio e os marcos unidos por correntes que cercavam

    grandes quadrados ensaibrados no meio do ptio das

    Tulherias. O cordo de sentinelas, formado para deixar uma

    passagem livre ao imperador e ao seu estado-maior, s a

    muito custo continha a massa impaciente e ruidosa como

    um enxame.

    - Ser mesmo uma maravilha? - perguntou Jlia,

    sorrindo.

    - Cuidado! - advertiu o oficial, que agarrou Jlia pela

    cintura e, erguendo-a com fora e rapidez, levou-a parajunto de uma coluna.

    Sem esse brusco movimento, a sua irrequieta parenta

    seria pisada pelo cavalo branco, ajaezado com uma sela de

    veludo verde e ouro, que o mameluco de Napoleo

    segurava pela rdea, quase sob a arcada, a dez passos

    atrs de todos os cavalos que esperavam os oficiaissuperiores, companheiros do imperador.

    O jovem colocou o pai e a filha perto do primeiro

    marco da direita frente da multido, e, por um sinal de

    cabea, recomendou-os aos dois velhos granadeiros, entre

    os quais se achavam. Quando o oficial voltou ao palcio, a

    felicidade e a alegria transpareciam no seu rosto, alteradoum momento pelo susto do perigo que Jlia correra; esta

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    9/253

    tinha-lhe apertado a mo misteriosamente, fosse para lhe

    agradecer a proteo que acabava de lhe prestar ou para

    lhe dizer: Enfim, vou v-lo! Inclinou at meigamente a

    cabea em resposta saudao respeitosa que, assim

    como ao pai, lhe fez o oficial antes de desaparecer com

    presteza. O velho, que parecia ter deixado de propsito os

    dois jovens juntos, permanecia numa atitude pensativa, um

    pouco atrs da filha; observava-a, porm, de soslaio e

    tentava inspirar-lhe uma falsa segurana, mostrando-se

    absorto na contemplao do esplndido espetculo que o

    Carrousel oferecia. Quando Jlia dirigiu ao pai o olhar de

    um discpulo com receio do mestre, o velho respondeu-lhe

    at com um sorriso de benevolente alegria; mas o seu olhar

    perscrutador seguira o oficial at a arcada e no perdera

    um gesto sequer daquela rpida cena.

    - Que belo espetculo! - exclamou Jlia em voz baixa,apertando a mo do pai.

    O aspecto pitoresco e grandioso que o Carrousel

    apresentava naquele momento fazia com que essa

    exclamao fosse repetida por milhares de espectadores,

    em cujos rostos se estampava a mais viva admirao. Uma

    outra ala da multido, to compacta como aquela em quese achavam o ancio e sua filha, ocupava, numa linha

    paralela ao palcio, o estreito espao que fica ao longo da

    grade do Carrousel. Essa multido acabava de desenhar

    nitidamente, pela variedade das toilettes das senhoras, o

    imenso quadriltero que formam as construes das

    Tulherias e a grade recm-colocada. Os regimentos davelha guarda que iam ser passados em revista enchiam

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    10/253

    esse vasto terreno, onde formavam em frente ao palcio

    imponentes linhas azuis de dez filas de fundo. Um pouco

    mais longe do recinto e no Carrousel, achavam-se tambm

    em linhas paralelas vrios regimentos de infantaria e

    cavalaria, prontos a desfilar sob o arco triunfal que orna o

    centro da grade e no topo do qual se viam, ento, os

    magnficos cavalos de Veneza. A banda de msica dos

    regimentos, colocada sob as galerias do Louvre, estava

    escondida pelos lanceiros polacos de servio. Grande parte

    do quadrado coberto de areia achava-se vazio como uma

    arena preparada para os movimentos desses corpos

    silenciosos, cujas massas dispostas com a simetria da arte

    militar refletiam os raios solares nos focos triangulares de

    dez mil baionetas. A brisa, agitando os penachos dos

    soldados, fazia-os ondear como as rvores fustigadas numa

    floresta sob um vento impetuoso. Esses velhos grupos,mudos e brilhantes, ofereciam mil contrastes de cores,

    devido diversidade dos uniformes, dos ornamentos, das

    armas, das agulhetas. Esse quadro imenso, miniatura de

    um campo de batalha antes do combate, achava-se

    poeticamente emoldurado, com todos os seus acessrios e

    detalhes bizarros, pelas altas edificaes majestosas, cujaimobilidade parecia imitada pelos chefes e soldados. O

    espectador involuntariamente comparava esses muros de

    homens aos muros de pedra. O sol da primavera, que

    lanava profusamente sua luz sobre os muros brancos,

    construdos na vspera, e sobre os muros seculares,

    iluminava plenamente aqueles inmeros rostos crestadosque atestavam os perigos passados e aguardavam

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    11/253

    gravemente os perigos futuros. Os coronis de cada

    regimento passavam de momento a momento frente

    desses homens hericos. Por trs das colunas cerradas das

    tropas matizadas de prata, de azul, de prpura e de ouro,

    os curiosos podiam ver as bandeirolas tricolores presas nas

    lanas de seis infatigveis cavaleiros polacos, que,

    semelhantes aos ces conduzindo um rebanho por um

    campo, voltejavam incessantemente entre as tropas e os

    curiosos a fim de impedir que estes invadissem o pequeno

    espao de terreno que lhes era concedido junto grade

    imperial. Todos aqueles movimentos levavam a crer que se

    estava no palcio da Bela Adormecida. A brisa da

    primavera, agitando o plo dos bons dos granadeiros,

    atestava a imobilidade dos soldados, assim como o surdo

    murmrio da multido acusava o seu silncio. De raro em

    raro, o rudo de um tambor, um leve toque dado porinadvertncia numa caixa e repetido pelos ecos do palcio

    imperial, assemelhava-se aos troves ainda longnquos que

    anunciam a tempestade. Aquela multido espera

    continha um entusiasmo indescritvel. A Frana ia

    apresentar suas despedidas a Napoleo, na vspera de

    uma campanha cujos perigos eram previstos pelo ltimodos cidados. Tratava-se agora, para o imprio francs, de

    ser ou no ser. Tal pensamento parecia animar a multido

    civil e a militar, que se apinhava, igualmente silenciosa, no

    recinto onde pairavam a guia e o gnio de Napoleo.

    Esses soldados, esperana da Frana, esses soldados, sua

    ltima gota de sangue, eram tambm objeto da inquietacuriosidade dos espectadores. Entre a maior parte dos

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    12/253

    assistentes e dos militares, dizia-se um adeus que seria

    talvez eterno; porm, todos os coraes, mesmo os mais

    hostis ao imperador, dirigiam ardentes votos ao cu pela

    glria da ptria. Os homens mais cansados da luta travada

    entre a Europa e a Frana haviam todos depostos os seus

    dios ao passar sob o arco do triunfo, compreendendo que,

    no dia do perigo, Napoleo era toda a Frana. O relgio do

    castelo bateu meia hora. Neste momento, cessou o rumor

    da multido, e o silncio tornou-se to profundo que

    poderia ouvir-se a voz de uma criana. O ancio e sua filha,

    que pareciam viver pelos olhos, distinguiram ento um

    rudo de esporas e um tinir de espadas que ecoaram sob o

    sonoro peristilo do castelo.

    Um homenzinho bastante gordo, de uniforme verde,

    calas brancas e botas de montaria, apareceu de sbito,

    tendo na cabea um chapu de trs bicos to prestigiosocomo a sua prpria pessoa; flutuava-lhe no peito a larga

    fita vermelha da Legio de Honra, e da cintura pendia-lhe

    um espadim. O homem foi visto por todos, e ao mesmo

    tempo, de todos os pontos da praa. No mesmo instante,

    rufaram os tambores, as duas orquestras comearam por

    uma frase cuja expresso guerreira foi repetida por todosos instrumentos, desde a flauta mais suave at o maior dos

    tambores. A esse belicoso apelo, as almas estremeceram,

    as bandeiras saudaram, os soldados apresentaram armas

    num movimento unnime e regular que agitou as

    espingardas desde a primeira ltima fila do Carrousel. As

    vozes de comando repetiram-se de fila em fila como umeco. Gritos de Viva o imperador! foram levantados pela

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    13/253

    multido entusiasmada. Enfim, tudo estremeceu, tudo se

    moveu, tudo se agitou. Napoleo montara o cavalo. Esse

    movimento dera vida quelas massas silenciosas, voz aos

    instrumentos, vo s guias e s bandeiras, emoo a

    todos os rostos. As paredes das altas galerias daquele

    velho castelo pareciam gritar tambm:

    Viva o imperador!. No foi algo de humano, foi uma

    magia, um simulacro do poder divino, ou melhor, uma

    fugidia imagem desse fugidio reino. O homem cercado de

    tanto amor, dedicao, entusiasmo, votos, para quem o sol

    dispersara as nuvens do cu, permaneceu no seu cavalo,

    trs passos frente do pequeno esquadro dourado que o

    seguia, tendo o gro-marechal sua esquerda, e direita o

    marechal de servio. Em meio a tantas emoes que ele

    excitara, nenhum trao do seu rosto parecia alterado.

    - Oh! meu Deus, sim. Em Wagran no meio do fogo, emMoscou entre os mortos, ele est sempre tranqilo como o

    Batista.

    Essa resposta a inmeras interrogaes era dada pelo

    granadeiro, que se achava ao lado da jovem. Jlia

    conservou-se durante um momento absorta na

    contemplao daquele rosto, cuja serenidade indicava togrande segurana de poder. O imperador avistou a

    senhorita de Chatillonest e inclinou-se para Duroc, dizendo-

    lhe uma curta frase que fez sorrir o gro-marechal. As

    manobras comearam. Se at ento a mocinha partilhara a

    sua ateno entre o rosto impassvel do imperador e as

    linhas azuis, verdes e vermelhas das tropas, nestemomento ocupou-se quase exclusivamente, em meio a

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    14/253

    movimentos rpidos e regulares executados pelos velhos

    soldados, de um jovem oficial que corria a cavalo entre as

    linhas moventes e voltava com uma atividade infatigvel

    para o grupo, frente do qual brilhava o simples Napoleo.

    Esse oficial montava um admirvel cavalo negro e

    distinguia-se entre aquela luzidia multido pelo belo

    uniforme azul-celeste dos oficiais de ordenana do

    imperador. Os bordados de sua farda brilhavam to

    vivamente ao sol, e o penacho da barretina, estreito e

    comprido, lanava tais reflexos, que os espectadores por

    certo o compararam a um fogo-ftuo, a uma alma visvel

    encarregada pelo imperador de animar, de conduzir esses

    batalhes, cujas armas ondeantes faiscavam chamas

    quando, a um sinal nico dos seus olhos, se quebravam, se

    reuniam, se agitavam como as guas de um sorvedouro, ou

    passavam pela sua frente como as vagas longas, retas ealtas que o oceano em clera atira sobre as praias.

    Terminadas as manobras, o oficial de ordenana,

    correndo a toda brida, parou junto ao imperador para

    esperar as suas ordens. Nesse momento, achava-se ele a

    vinte passos de Jlia, em frente do grupo imperial, numa

    atitude assaz parecida com a que Grard deu ao generalRapp no quadro da Batalha de Austerlitz. Foi ento

    permitido mocinha admirar o seu bem-amado em todo o

    seu esplendor militar. O coronel Victor dAiglemont, com

    apenas trinta anos, era alto, bem-feito, esbelto; e os seus

    felizes dotes fsicos eram dignos de admirao,

    principalmente, quando empregava sua fora em subjugarum cavalo, cujo dorso elegante e gil parecia vergar-se sob

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    15/253

    o seu peso. O rosto msculo e trigueiro possua esse

    encanto inexplicvel que uma perfeita regularidade de

    feies comunica a semblantes juvenis. A fronte era larga e

    alta. Os olhos de fogo, sombreados por espessas

    sobrancelhas e orlados de compridas pestanas,

    desenhavam-se como duas ovais brancas entre duas linhas

    negras. O nariz oferecia a graciosa curva de um bico de

    guia. O vermelho dos lbios era realado pelas

    sinuosidades do inevitvel bigode preto. Suas faces amplas

    e fortemente coloridas ofereciam tons castanhos e

    amarelos que denotavam extraordinrio vigor. Seu rosto,

    um desses em que a bravura estampou seu distintivo,

    oferecia o tipo que o artista hoje procura quando pensa

    representar um dos heris da Frana imperial. O cavalo,

    coberto de suor e cuja cabea agitada revelava extrema

    impacincia, as duas patas dianteiras afastadas ecolocadas numa mesma linha, agitava as longas crinas da

    sua bela cauda, e a sua dedicao oferecia uma imagem

    material da que o seu dono manifestava pelo imperador.

    Vendo o bem-amado to ocupado em procurar os olhares

    de Napoleo, Jlia experimentou um sentimento de cime,

    pensando que ele ainda no havia olhado para ela. Desbito, o soberano pronuncia uma palavra. Victor esporeia

    os flancos do cavalo e parte a galope; mas a sombra de um

    marco projetada na areia assusta o animal, que se espanta,

    recua e empina to bruscamente que o cavaleiro parece

    estar em perigo. Jlia solta um grito, empalidece; todos

    fitam-na com curiosidade; ela no v ningum: os seusolhos esto fixos no cavalo demasiado fogoso que o oficial

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    16/253

    castiga enquanto corre a transmitir as ordens de Napoleo.

    Esses quadros estonteantes absorviam Jlia de tal modo

    que, sem perceber, se agarrara ao brao do pai, a quem

    revelava involuntariamente seus pensamentos pela

    presso mais ou menos viva dos seus dedos. Quando Victor

    escapou de ser derrubado do cavalo, a mocinha agarrou-se

    ainda mais violentamente ao pai, como se ela mesma

    estivesse em perigo de cair. O velho contemplava com

    dolorosa e sombria inquietao o rosto da filha, e

    sentimentos de piedade, de cime e at de pesar

    deslizaram em todas as suas rugas contradas. Mas quando

    o brilho inusitado dos olhos de Jlia, o grito que soltara e o

    movimento convulsivo dos seus dedos acabaram de lhe

    desvendar um amor secreto, por certo ele teve algumas

    tristes revelaes do futuro, por que seu rosto tomou ento

    uma expresso sinistra. Nesse momento, a alma de Jliaparecia ter-se confundido com a do oficial. Um pensamento

    mais cruel que todos aqueles que haviam assustado o

    ancio crispou lhe as feies do rosto doloroso, quando viu

    dAiglemont trocar, ao passar na sua frente, um olhar de

    inteligncia com Jlia, que tinha os olhos midos e estava

    vivamente corada. E bruscamente levou a filha para ojardim das Tulherias.

    - Mas, meu pai - dizia ela -, ainda h na praa do

    Carrousel regimentos que vo manobrar.

    - No, minha filha, as tropas j esto desfilando.

    - Parece-me que se engana, meu pai. O senhor

    dAiglemont deve t-las mandado avanar...

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    17/253

    - Mas, minha filha, sinto-me mal e no quero demorar-

    me.

    Jlia no teve dificuldade em acreditar no pai, quando

    olhou para seu rosto abatido por inquietaes paternais.

    - Sofre muito, meu pai? - perguntou Jlia com

    indiferena, to grande era a sua preocupao.

    - Cada dia que passa no para mim um favor? -

    respondeu o ancio.

    - Vai ainda afligir-me falando da sua morte? Estava to

    alegre! Quer fazer o favor de afugentar suas mrbidas

    idias?

    - Ah! - exclamou o pai, soltando um suspiro.

    - Criana cheia de mimo! Os melhores coraes so s

    vezes bem cruis. Consagrar-lhe a nossa vida, no pensar

    seno em voc, preparar seu bem-estar, sacrificar nossos

    gostos s suas fantasias, ador-la, dando lhe at nossosangue, isso no significa nada? s vezes voc aceita tudo

    com indiferena. Para obter sempre seu sorriso e seu amor

    desdenhoso, seria necessrio ter o poder de Deus. Pois

    ento chega um outro! Um amante, um marido que nos

    leva seu corao.

    Jlia, atnita, fitou o pai, que caminhava lentamente,lanando-lhe turvos olhares.

    - Voc se oculta at de ns - tornou o velho -, e talvez

    de voc mesma...

    - Que diz, meu pai?

    - Parece-me, Jlia, que voc tem segredos para mim.

    Voc est amando - tornou vivamente o ancio, notando orubor que subira ao rosto da filha. - Ah!, eu esperava v-la

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    18/253

    fiel a seu velho pai at a minha morte; esperava conserv-

    la junto de mim, feliz e radiante! Admir-la como estava

    agora. Ignorando seu destino, teria podido acreditar num

    futuro tranqilo para voc; mas agora impossvel ter

    esperana de felicidade na sua vida, porque voc ama mais

    o coronel do que o primo. J no posso ter dvidas.

    - E por que me havia de ser proibido am-lo? - indagou

    ela com viva expresso de curiosidade.

    - Ah!, minha Jlia, voc no me compreenderia -

    replicou o pai suspirando.

    - Mas diga - tornou Jlia com um gesto de amuo.

    - Pois bem, minha filha, escute-me. As moas sonham

    muitas vezes com uns seres nobres encantadores, criaturas

    perfeitamente ideais, e assim forjam quimeras acerca dos

    homens, dos sentimentos e do mundo; depois atribuem

    inocentemente a um carter as perfeies com quesonham e nele confiam; amam no homem da sua escolha

    esse ente imaginrio; porm, mais tarde, quando j no

    podem fugir desgraa, a aparncia enganadora que

    embelezaram, o seu primeiro dolo, enfim, transforma-se

    num esqueleto odioso. Jlia, eu preferia que voc amasse

    um velho a v-la amar o coronel. Ah!, se voc pudesseadivinhar o que acontecer daqui a dez anos, faria justia

    minha experincia. Conheo Victor: a sua alegria sem

    esprito, alegria de caserna, no tem talento e perdulrio.

    um desses homens que o cu criou para comer e digerir

    quatro refeies por dia, dormir, amar a primeira que lhe

    aparece e bater-se. No compreende a vida. O seu bomcorao, porque o tem, lev-lo- talvez a dar a bolsa a um

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    19/253

    desgraado, a um camarada; porm, um indiferente, e

    no possui essa delicadeza de corao que nos torna

    escravos da felicidade de uma mulher; e ignorante,

    egosta... e muita coisa mais.

    - Mas, meu pai, ele necessariamente h de ter esprito

    e inteligncia para ter chegado a ser coronel.

    - Minha querida, Victor permanecer coronel toda a

    sua vida. Ainda no encontrei ningum que fosse digno de

    voc - tornou o ancio com certo entusiasmo.

    Calou-se por um momento, contemplou a filha e

    acrescentou:

    - Mas, minha pobre Jlia, voc ainda muito jovem,

    muito fraca, muito delicada para suportar os desgostos e as

    responsabilidades do casamento. DAiglemont foi estragado

    com mimos pelos pais, assim como voc por sua me e por

    mim. Como esperar que vocs dois possam se entender,com vontades diferentes cujas tiranias sero inconciliveis?

    Ser ou vtima ou tirano. Qualquer dessas alternativas

    produz igual soma de males na vida de uma mulher.

    Contudo, voc meiga e modesta, curvar-se- a princpio.

    Enfim, voc tem - continuou com a voz alterada - uma

    delicadeza de sentimentos que ficar desconhecida, eento

    No acabou, as lgrimas embargaram-lhe a voz.

    - Victor - retomou, aps uma pausa - h de ferir as

    singelas qualidades de sua alma juvenil. Eu conheo os

    militares, minha querida filha; vivi nos exrcitos. raro que

    o corao dessa gente possa triunfar dos hbitos

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    20/253

    produzidos, ou pelas desgraas em meio s quais vivem, ou

    pelos azares de sua vida aventureira.

    - Quer ento, meu pai - replicou Jlia num tom meio

    srio, meio zombeteiro -, contrariar meus sentimentos,

    casar-me a seu gosto e no ao meu?

    - Casar-lhe a meu gosto! - exclamou o pai com um

    gesto de surpresa. - Eu, de quem logo voc no mais ouvir

    a voz to amigavelmente zangada. Sempre reconheci que

    os filhos atribuem a um sentimento pessoal os sacrifcios

    que lhes impem os pais! Case com Victor, minha Jlia. Um

    dia voc deplorar amargamente a sua nulidade, a sua

    falta de ordem, o seu egosmo, a sua falta de delicadeza, a

    sua inpcia em amor e mil outros pesares que voc sofrer

    por sua causa. Ento lembre-se de que sob estas rvores a

    voz proftica de seu velho pai ressoou em vo aos seus

    ouvidos!O velho calou-se. Tinha surpreendido a filha meneando

    a cabea com ar de dvida. Ambos se dirigiram para a

    grade onde a carruagem os esperava. Durante esse trajeto

    silencioso, a jovem examinou furtivamente o rosto do pai, e

    pouco a pouco foi-se tornando sria. A profunda dor

    gravada na fronte inclinada do ancio causou-lhe vivssimaimpresso.

    - Prometo-lhe, meu pai - disse Jlia com uma voz

    meiga e alterada -, que no tornarei a falar de Victor, sem

    que veja destrudas as prevenes que nutre contra ele.

    O velho fitou a filha com pasmo. Duas grossas

    lgrimas deslizaram-lhe ao longo das faces enrugadas. Nopde beijar a filha vista da multido que os rodeava,

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    21/253

    porm apertou-lhe ternamente a mo. Subindo

    carruagem, todos os pensamentos melanclicos haviam

    desaparecido completamente. A atitude um pouco triste de

    sua filha o inquietava bem menos que a alegria inocente,

    cujo segredo escapara a Jlia durante a revista.

    Nos primeiros dias do ms de maro de 1814, pouco

    menos de um ano depois dessa revista do imperador, uma

    calea rodava pela estrada de Amboise a Tours. Ao deixar a

    abbada verde das nogueiras sob as quais se ocultava o

    correio de Frilliere, o carro seguiu com tal rapidez que

    depressa chegou ponte construda sobre o Cise, na

    embocadura desse rio com o Loire, e ali parou. Acabava de

    quebrar-se um tirante, devido ao movimento impetuoso

    que o cocheiro, sob a ordem de seu patro, imprimira aos

    quatro possantes cavalos. Assim, por obra do acaso, as

    duas pessoas que se achavam na calea tiveram ocasiode contemplar um dos mais belos recantos que as

    sedutoras margens do Loire apresentam. direita o

    viajante abrange com um olhar todas as sinuosidades do

    Cise, que se arrasta, como uma serpente prateada, pela

    erva dos prados aos quais os primeiros rebentos da

    primavera davam ento as cores da esmeralda. esquerdasurge o Loire em toda a sua magnificncia. Os raios do sol

    cintilavam sobre aquela vasta extenso dgua. A cada

    passo se sucediam ilhas verdejantes como as pedras

    engastadas de um colar. Do lado oposto do rio, os mais

    lindos campos da Touraine desenrolam os seus tesouros

    numa extenso imensa. Ao longe, o olhar s encontra comolimites as colinas do Cher, cujos cimos desenhavam

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    22/253

    naquele momento linhas luminosas sobre o transparente

    azul do cu. Atravs da tnue folhagem das ilhas ao fundo

    do quadro, Tours parece, como Veneza, emergir do seio

    das guas. Os campanrios da sua velha catedral elevam-

    se nos ares, onde se confundiam ento com as criaes

    fantsticas de algumas nuvens esbranquiadas. Alm da

    ponte sobre a qual parara o veculo, o viajante descobre na

    sua frente, ao longo do Loire at Tours, uma cadeia de

    rochedos, que por uma fantasia da natureza parece ter sido

    colocada para servir de dique ao rio, cujas vagas minam

    incessantemente a pedra, espetculo que sempre

    maravilha o viajante. A aldeia de Vouvray acha-se como

    que enterrada nos desfiladeiros desses rochedos, que

    comeam a formar um cotovelo em frente da ponte do

    Cise. De Vouvray at Tours, as medonhas sinuosidades

    dessa colina so habitadas por uma populao devinhateiros. Em mais de um local existem trs patamares

    de casas, abertas na rocha e reunidas por perigosas

    escadas talhadas na prpria pedra. Por cima de um

    telhado, uma moa de saia vermelha corre ao seu jardim. A

    fumaa de uma chamin se eleva entre as cepas e as

    parras nascentes de uma vinha. Homens cavam camposperpendiculares. Uma velha tranqilamente sentada sobre

    um pedao de rochedo fia sombra de uma amendoeira, e

    v passar os viajantes a seus ps, sorrindo do susto deles.

    As fendas do solo preocupam-na tanto quanto as runas de

    um velho muro, cujos alicerces so retidos apenas pelas

    razes retorcidas de um manto de hera. O martelo dostanoeiros faz ressoar as cpulas das adegas. Enfim, a terra

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    23/253

    est por toda a parte cultivada e fecundada, l onde a

    natureza recusou terra indstria humana. Assim, nada

    comparvel, no curso do Loire, ao rico panorama que a

    Touraine apresenta aos olhos do viajante. O trplice quadro

    dessa cena, cujos aspectos so apenas esboados, oferece

    alma um desses espetculos que ela inscreve para

    sempre na sua recordao; e, quando um poeta o

    desfrutou, evoca-o muitas vezes em sonhos para

    reconstruir seus fabulosos efeitos romnticos. No momento

    em que a calea chegou ponte do Cise surgiram algumas

    velas brancas entre as ilhas do Loire, dando assim nova

    harmonia quele aprazvel lugar. O odor dos salgueiros que

    orlam o rio mesclava seus perfumes penetrantes aos da

    brisa mida. Os pssaros faziam ouvir seus prolixos

    concertos; o canto montono de um guardador de cabras

    juntava-lhes um tanto da sua melancolia, enquanto osgritos dos marinheiros anunciavam uma agitao distante.

    Lnguidos vapores, caprichosamente parados ao redor das

    rvores esparsas, imprimiam uma ltima graa nessa

    paisagem. Era a Touraine em toda a sua glria, a primavera

    em todo o seu esplendor. Essa parte da Frana, a nica que

    os exrcitos estrangeiros no deviam perturbar, era nomomento a nica que se achava tranqila: dir-se-ia que ela

    desafiava a invaso.

    Uma cabea coberta por um gorro de quartel apareceu

    portinhola da calea assim que esta parou; em seguida,

    um impaciente militar saltou para a estrada disposto a

    invectivar o cocheiro. A percia com que esse nativo daregio consertava o tirante partido tranqilizou o coronel

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    24/253

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    25/253

    - Voc sente alguma coisa? - perguntou-lhe o coronel

    dAiglemont.

    - Absolutamente nada - respondeu com momentnea

    vivacidade.

    Contemplou o marido sorrindo e acrescentou:

    - Sinto vontade de dormir.

    Ouviu-se de repente o galope de um cavalo. Victor

    dAiglemont largou a mo da esposa e voltou a cabea para

    o cotovelo que a estrada forma naquele lugar. No momento

    em que Jlia deixou de ser vista pelo coronel, a expresso

    de alegria que ela dera ao rosto plido desapareceu por

    completo. No experimentando nem o desejo de tornar a

    ver a paisagem nem a curiosidade de saber quem era o

    cavaleiro que galopava com tal mpeto, voltou a encostar-

    se ao canto da calea, e seus olhos fixaram-se sem

    curiosidade na garupa dos cavalos. Tinha um ar toestpido como pode ser o de um campons breto ouvindo

    o sermo do seu vigrio. Um rapaz montando um cavalo

    puro-sangue surgiu de repente de um pequeno bosque de

    choupos e de espinheiros em flor.

    - um ingls - disse o coronel.

    - Meu Deus! Sim, meu general - replicou o cocheiro. - Eda raa daqueles que querem comer a Frana, segundo

    dizem por a.

    O desconhecido era um desses viajantes que se

    encontravam no continente quando Napoleo mandou

    prender todos os ingleses, como represlia ao atentado

    cometido contra o direito das gentes pelo ministrio deSaint-James, na ocasio da ruptura do Tratado de Amiens.

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    26/253

    Submetidos ao capricho do poder imperial, nem todos

    esses prisioneiros ficaram nas residncias onde tinham sido

    encontrados, nem naquelas que tiveram primeiro a

    liberdade de escolher. A maior parte dos que habitavam

    ento a Touraine havia sido para a transferida de diversos

    pontos do imprio, onde sua permanncia parecera

    comprometer os interesses da poltica continental. O jovem

    prisioneiro, que passeava naquele momento o seu tdio

    matinal, era uma vtima do poder burocrtico. Havia dois

    anos que uma ordem emanada do Ministrio das Relaes

    Exteriores o arrancara ao clima de Montpellier, onde a

    ruptura da paz o surpreendera enquanto procurava curar-

    se de uma doena de peito. Logo que o jovem reconheceu

    um militar na pessoa do conde dAiglemont, apressou-se a

    evitar-lhe os olhares, voltando assaz bruscamente a cabea

    para os prados do Cise.- Todos esses ingleses so insolentes como se o

    mundo lhes pertencesse - murmurou o coronel. -

    Felizmente, Soult vai dar-lhes o merecido castigo.

    Quando o prisioneiro passou em frente da calea,

    lanou ali um olhar; no obstante a rapidez, pde admirar a

    expresso de melancolia que dava um encanto indefinvelao rosto pensativo da condessa. H muitos homens cujo

    corao se comove poderosamente pela simples aparncia

    de sofrimento numa mulher, para eles, a tristeza parece ser

    uma promessa de constncia no amor. Inteiramente

    absorta na contemplao de uma almofada, Jlia no

    prestou ateno nem ao cavalo nem ao cavaleiro. O tirantefora rapidamente consertado com toda a solidez. O conde

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    27/253

    subiu para o veculo. O cocheiro tratou de recuperar o

    tempo perdido e conduziu com rapidez os dois viajantes

    por um caminho ao longo dos rochedos, em meio aos quais

    amadurecem os vinhos de Vouvray e de onde se erguem

    bonitas casas. Vem-se, ao longe, as runas da to clebre

    abadia de Marmoutiers, retiro de So Martinho.

    - Que pretender de ns esse difano milorde? -

    exclamou o coronel, voltando a cabea a fim de assegurar-

    se de que o cavaleiro, que desde a ponta do Cise seguia a

    calea, era o jovem ingls.

    Como o desconhecido no cometia a menor

    inconvenincia pela qual pudesse ser censurado, o coronel

    contentava-se em lanar-lhe um olhar ameaador, mas no

    pde, apesar da sua involuntria inimizade, impedir-se de

    notar a beleza do cavalo e o garbo do cavaleiro, O rapaz

    possua um desses rostos britnicos, cuja cor to suave, apele to fina e branca, que somos tentados por vezes a

    supor que pertencem ao corpo delicado de uma donzela.

    Era louro, alto e magro. Notava-se no seu traje esse

    requinte de cuidado e asseio que distingue os elegantes da

    grave Inglaterra. Dir-se-ia que ele ruborizava mais de pudor

    que de prazer ao aspecto da condessa. Uma vez apenasJlia ergueu os olhos para o estrangeiro, mas foi por assim

    dizer obrigada pelo marido, que queria faz-la admirar as

    pernas de um cavalo de raa pura. Os olhos de Jlia

    encontraram, ento, os do tmido ingls. A partir desse

    momento, o cavaleiro, em vez de seguir ao lado da calea,

    caminhava a alguns passos de distncia. A condessa malolhou para o desconhecido No notou nenhuma das

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    28/253

    perfeies que lhe eram atribudas, e encostou-se de novo

    ao fundo da calea, depois de ter feito um leve movimento

    de plpebras, concordando com a opinio do marido. O

    coronel adormeceu novamente, e os dois esposos

    chegaram a Tours sem terem trocado uma s palavra e

    sem que o panorama encantador, sempre renovado,

    atrasse uma s vez o olhar de Jlia. Enquanto o marido

    dormitava, a senhora dAiglemont contemplou-o vrias

    vezes. Numa delas, um solavanco fez-lhe cair sobre o

    regao uma medalha que usava, suspensa ao pescoo por

    um cordo de luto, e apareceu-lhe de sbito o retrato do

    pai. Ento as lgrimas, at ali contidas, correram-lhe pelas

    faces. O ingls viu, talvez, os traos midos e brilhantes

    que o pranto deixou por um momento no rosto plido da

    condessa, mas que o ar prontamente secou. Encarregado

    pelo imperador de transmitir as suas ordens ao marechalSoult, que devia defender a Frana da invaso dos ingleses

    no Barn, o coronel dAiglemont aproveitava aquela misso

    para subtrair a mulher aos perigos que ento ameaavam

    Paris e a conduzia a Tours para a casa de uma velha

    parenta. Logo a carruagem cruzou a ponte, na Grande-Rua,

    e parou em frente do antigo palcio onde, havia tempos,residia a condessa de Listomre-Landon.

    A condessa era uma dessas lindas velhas senhoras de

    tez plida, cabelos brancos, que tm um sorriso fino e se

    vestem e se penteiam seguindo uma moda desconhecida.

    Retratos setuagenrios do sculo de Lus XV, essas

    mulheres so quase sempre carinhosas e meigas, como seainda amassem; menos piedosas que devotas e ainda

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    29/253

    menos devotas do que parecem; bastante perfumadas,

    falando bem, conversando melhor, e rindo mais de uma

    recordao do que de um gracejo. O modernismo as

    desagrada. Quando uma idosa criada de quarto anunciou

    condessa (pois cedo reaveria seu ttulo) a visita de um

    sobrinho que no via desde o comeo da guerra da

    Espanha, ela depressa tirou os culos, fechou a Galeria da

    antiga corte, seu livro favorito; depois, encontrou certa

    agilidade para chegar escadaria no momento em que os

    dois subiam os degraus.

    A tia e a sobrinha lanaram uma outra rpido olhar.

    - Bom dia, minha tia - exclamou o coronel abraando a

    condessa com precipitao. - Trago-lhe uma jovem para

    cuidar. Venho confiar-lhe o meu tesouro. A minha Jlia no

    vaidosa nem ciumenta; tem a doura de um anjo... Mas

    espero que no se estrague aqui...- Atrevido! - respondeu a condessa, lanando- lhe um

    olhar brincalho.

    Com uma graa amvel, se ofereceu para beijar Jlia,

    que permanecia pensativa e parecia mais embaraada que

    curiosa.

    - Vamos, pois, travar conhecimento, minha queridinha?- perguntou a condessa. - No se assuste muito comigo;

    sempre que me encontro com gente nova, procuro no ser

    velha.

    Antes de entrar no salo, a condessa, segundo o

    hbito da provncia, dera ordens para o almoo dos seus

    dois hspedes; porm, o conde interrompeu a eloqnciada tia, dizendo-lhe muito seriamente que s podia

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    30/253

    dispensar-lhe o tempo que o postilho levaria para mudar

    os cavalos. Portanto, dirigiram-se imediatamente sala de

    jantar, e o coronel teve apenas o tempo necessrio para

    narrar tia os acontecimentos polticos e militares que o

    obrigavam a pedir-lhe abrigo para sua jovem esposa.

    Entrementes, a tia olhava alternadamente para o sobrinho,

    que falava sem ser interrompido, e para a sobrinha, cuja

    palidez e tristeza pareceram-lhe causadas por aquela

    separao, e dizia intimamente: Ah! Estes amam-se de

    verdade.

    - Adeus, minha querida - disse ele beijando a mulher,

    que o seguira at o ptio.

    - Oh!, Victor, deixe-me acompanhar-lhe um pouco mais

    longe - pedia Jlia, carinhosa -, no queria deixar-lhe...

    - Voc pensa nisso?

    - Bem, adeus - replicou Jlia -, j que voc quer assim.A carruagem desapareceu.

    Voc ama muito o meu pobre Victor? - perguntou a

    condessa sobrinha, interrogando-a com um desses

    olhares perscrutadores que as velhas lanam s jovens.

    - Ai!, minha senhora - respondeu Jlia -, no preciso

    amar um homem para despos-lo?Essa ltima frase foi acentuada por um tom de

    ingenuidade que traa ao mesmo tempo um corao puro

    ou mistrios profundos. Ora, seria bem difcil a uma mulher,

    amiga de Duclos e do marechal de Richelieu, no procurar

    adivinhar o segredo daquele casal. A tia e a sobrinha, ainda

    junto ao porto, achavam-se entretidas a ver a calea quese afastava. Os olhos da condessa no exprimiam o amor

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    31/253

    como a marquesa o compreendia. A boa senhora era uma

    provenal, e suas paixes tinham sido violentas.

    - Deixou-se, ento, fascinar pelo patife do meu

    sobrinho? - perguntou sobrinha.

    A condessa estremeceu involuntariamente, porque o

    tom e o olhar da velha senhora pareciam-lhe anunciar um

    profundo conhecimento do carter de Victor. A senhora

    dAiglemont, inquieta, mostrou uma dissimulao inbil,

    primeiro refgio dos coraes ingnuos e sofredores. A

    senhora de Listomre contentou-se com as respostas de

    Jlia; mas pensou com prazer que sua solido ia ser

    distrada por alguma intriga amorosa que a divertiria.

    Quando a condessa dAiglemont se achou num grande

    salo forrado de tapearias emolduradas por frisos

    dourados, sentada em frente de um bom fogo, abrigada da

    corrente de ar por um biombo chins, a sua tristeza noconseguiu dissipar-se. Era difcil poder nascer a alegria

    entre decoraes antigas e mveis seculares. Contudo, a

    jovem parisiense sentiu certo prazer naquela profunda

    solido e no silncio da solene provncia. Depois de ter

    trocado algumas palavras com aquela tia, a quem

    escrevera apenas uma carta logo aps o casamento, ficousilenciosa como se estivesse ouvindo uma pera. Foi s

    passadas duas horas de um sossego digno da Trappa que

    Jlia notou a sua indelicadeza para com a tia; lembrou-se

    de que s lhe havia dirigido respostas frias e indiferentes. A

    velha senhora tinha respeitado o capricho da sua sobrinha

    com esse instinto cheio de graa que caracteriza a gentede outro tempo. Nesse momento, a velha marquesa

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    32/253

    tricotava. Tinha-se ausentado, com efeito, por diversas

    vezes, para se ocupar de um certo quarto verde, onde a

    condessa devia instalar-se e onde os criados da casa

    colocavam a bagagem; mas voltara depois para seu lugar

    numa grande poltrona, e olhava de soslaio para a jovem

    sobrinha. Envergonhada por se ter abandonado sua

    irresistvel meditao, Jlia tentou fazer-se perdoar

    zombando de si mesma.

    - Minha querida filha, ns conhecemos a dor das

    vivas respondeu a tia.

    Seria preciso ter quarenta anos para adivinhar a ironia

    que os lbios da velha senhora exprimiam. No dia seguinte,

    a condessa achava-se com melhor disposio; conversou. A

    senhora de Listomre no mais desesperou de tornar

    socivel aquela esposa novata, que primeiro considerara

    como uma selvagem e estpida; falou-lhe sobre as belezasda regio, dos bailes e das casas que podiam freqentar.

    Todas as perguntas da marquesa foram, durante esse dia,

    outras tantas ciladas que ela, por antigo hbito da corte,

    no pde deixar de fazer sobrinha, a fim de lhe adivinhar

    o carter. Jlia resistiu durante alguns dias a todos os

    pedidos que lhe fez a tia para procurar distraes fora decasa. No obstante o desejo que tinha a velha senhora de

    mostrar orgulhosamente a sua linda sobrinha, acabou por

    renunciar a apresent-la sociedade. A condessa achara

    um pretexto para sua solido e tristeza no desgosto que lhe

    causara a morte do pai, pelo qual ainda estava de luto.

    Passados oito dias, a velha senhora encheu-se deadmirao pela doura anglica, a graa modesta, o

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    33/253

    esprito indulgente de Jlia, e interessou-se desde ento

    profundamente pela misteriosa melancolia que consumia

    aquele corao. A condessa era uma dessas mulheres que

    nasceram para ser amveis e que parecem trazer a

    felicidade consigo. A sua companhia tornou-se to

    agradvel e preciosa senhora de Listomre que esta se

    apaixonou pela sobrinha e desejava nunca deix-la. Um

    bastou para estabelecer entre as duas uma amizade

    eterna. A velha senhora notou, no sem surpresa, as

    mudanas que se operaram na fisionomia da senhora

    dAiglemont. As cores vivas que lhe abrasavam o rosto

    desvaneceram se insensivelmente e a tez ia se tornando

    plida. Enquanto perdia seu esplendor primitivo, Jlia ia

    ficando menos triste. Por vezes a boa senhora despertava

    na sua jovem parenta mpetos de alegria, logo contidos por

    um pensamento importuno. Adivinhou ela que no era arecordao do pai, nem a ausncia de Victor, a causa da

    profunda melancolia que lanava um vu na existncia da

    sua sobrinha; depois acorreram-lhe suspeitas to ms que

    lhe foi difcil determinar a verdadeira causa do mal, pois a

    verdade talvez s se encontra por acaso. Um dia, enfim,

    Jlia fez brilhar aos olhos da tia espantada umesquecimento completo do casamento, uma loucura de

    criana travessa, uma candura de esprito, urna digna da

    infncia. Que esse esprito delicado, e por vezes to

    profundo, que distingue as jovens francesas. A senhora de

    Listomre resolveu, ento, sondar os mistrios daquela

    alma, cuja extrema naturalidade equivalia a umadissimulao impenetrvel. Aproximava-se a noite, as duas

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    34/253

    senhoras estavam sentadas junto de uma janela que dava

    para a rua. Jlia tornara-se de novo pensativa. Passava

    nesse momento um cavaleiro.

    - A tem uma das suas vtimas - disse a velha

    marquesa.

    A senhora dAiglemont encarou a tia, manifestando um

    espanto misturado com certa inquietao.

    - um jovem ingls, um fidalgo, Artur Ormond, filho

    mais velho de lorde Grenville. A sua histria interessante.

    Veio a Montpellier em 1802 esperando que o ar desse

    lugar, para onde foi mandado, pelos mdicos, o curaria de

    uma doena de peito da qual podia morrer. Como todos os

    seus compatriotas, foi preso por Bonaparte na ocasio da

    guerra, porque esse monstro no pode nunca deixar de

    guerrear. Como distrao, o ingls comeou a estudar a

    sua doena, que julgavam mortal. Insensivelmente, tomougosto pela anatomia, pela medicina, apaixonou-se por

    essas artes, o que extraordinrio num homem de

    qualidades; mas tambm o regente dedicou-se qumica!

    Em resumo, o senhor Artur fez espantosos progressos,

    mesmo para os professores de Montpellier; o estudo

    consolou-o do cativeiro, e ao mesmo tempo ele se curouradicalmente. Diz-se que esteve dois anos sem falar,

    respirando raramente, dormindo numa estrebaria, bebendo

    leite de uma vaca da Sua e alimentando-se de agries.

    Desde que se encontra em Tours, no procurou ningum,

    orgulhoso como um pavo, mas a minha querida fez

    decerto a sua conquista, pois de fato no por minha

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    35/253

    causa que ele passa debaixo das nossas janelas duas vezes

    por dia desde que voc est aqui... Com certeza, ele a ama.

    Essas ltimas palavras despertaram a condessa como

    por magia. Sorriu de um modo que surpreendeu a

    marquesa. Longe de testemunhar essa satisfao instintiva

    que qualquer mulher, por mais severa que seja, sente ao

    saber que h algum infeliz por sua causa, o olhar de Jlia

    foi apagado e frio, O seu rosto indicava um sentimento de

    repulsa, quase de horror. Essa proscrio no era aquela

    que uma mulher amorvel fulmina sobre o mundo inteiro

    em proveito de um nico ente: ela sabe ento rir e

    gracejar; no, Jlia tinha, nesse instante, a atitude de

    algum que sente ainda a recordao de um perigo que a

    fez sofrer muitssimo. A tia, convencida de que a sua

    sobrinha no amava o sobrinho, ficou estupefata ao

    descobrir que tambm no amava outro. Tremeu ao ter dereconhecer em Jlia um corao desiludido, uma jovem a

    quem a experincia de um dia, de uma noite talvez, havia

    bastado para avaliar a nulidade de Victor.

    - Se ela o conhece, tudo est dito - pensou -; o meu

    sobrinho vir talvez a sofrer os inconvenientes do

    matrimnio.Propunha-se converter Jlia s doutrinas monrquicas

    do sculo de Lus XV; mas algumas horas mais tarde soube,

    ou antes, adivinhou a situao bastante vulgar na

    sociedade a que a condessa devia a sua extrema

    melancolia. Jlia, que de sbito se tornara pensativa,

    retirou-se para o quarto mais cedo que de costume. Depoisde a criada de quarto t-la ajudado a se despir, a jovem

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    36/253

    senhora conservou-se perto da lareira, recostada numa

    poltrona de veludo amarelo, mvel antigo, to favorvel

    para os aflitos como para os venturosos; chorou, suspirou,

    pensou; depois puxou para junto de si uma mesa pequena,

    procurou papel e ps-se a escrever. As horas passaram

    rapidamente, a confidncia que Jlia fazia nessa carta

    parecia custar-lhe muito, cada frase provocava longas

    meditaes; de repente, a jovem prorrompeu em lgrimas.

    Nesse momento, os relgios davam duas horas. Inclinou

    para o peito a cabea to pesada como a de um

    agonizante; depois, quando a ergueu, Jlia viu aparecer de

    sbito a tia, como uma personagem que se tivesse

    despregado da tapearia que cobria as paredes.

    - Que tem, minha filha? - indagou a velha marquesa. -

    Por que vela at to tarde, e por que chora aqui sozinha, na

    sua idade?Sentou-se sem cerimnia perto da sobrinha e devorou

    com os olhos a carta comeada.

    - Escrevia a seu marido?

    - Por acaso sei onde ele est? - replicou a condessa.

    A tia pegou o papel e leu. Trouxera consigo os culos,

    havia nisto premeditao. A inocente criatura deixou-a ler acarta, sem fazer o mnimo reparo. No era nem por falta de

    dignidade nem por qualquer sentimento de culpa secreta

    que lhe roubasse toda a energia. No; a tia encontrou-a ali

    num desses momentos de crise em que a alma est como

    afrouxada, em que tudo se torna indiferente, o bem como o

    mal, o silncio como a confiana. Semelhante a uma jovemvirtuosa que acabrunha o amante de improprios, mas que

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    37/253

    noite se encontra to triste, to abandonada, que o

    deseja e quer um corao onde deponha os seus

    sofrimentos, Jlia deixou violar, sem proferir uma palavra, o

    sigilo que a delicadeza imprime numa carta aberta, e ficou

    pensativa enquanto a marquesa lia.

    Minha querida Lusa, por que se h de reclamar

    tantas vezes o cumprimento da promessa mais imprudente

    que se possam fazer duas jovens ignorantes? Muitas vezes

    voc se pergunta, escreve-me, indagando por que h seis

    meses no respondo s suas perguntas. Se no

    compreende meu silncio, hoje conhecer talvez a causa,

    sabendo os mistrios que estou traindo. Os teria sepultado

    no fundo do meu corao, se voc no me avisasse do seu

    prximo casamento. Vai casar, Lusa. Esta notcia fez-me

    tremer. Pobre criana, case; depois, dentro de alguns

    meses, um dos seus mais amargos pesares ser causadopela recordao do que j fomos, quando uma noite, em

    Ecouen, subindo as montanhas mais altas, contemplamos o

    formoso vale que tnhamos a nossos ps para admirar o sol

    poente, cujos reflexos nos envolviam. Sentamos-nos num

    rochedo e camos num devaneio a que sucedeu a mais

    doce melancolia. Voc foi a primeira a pensar que aquelesol distante nos falava do futuro. ramos ento curiosas e

    tontas! Voc recorda todas as nossas extravagncias?

    Beijemo-nos como dois amantes, dizamos. Juramos

    ambas que a primeira que casasse narraria fielmente

    outra esses segredos do himeneu, essas alegrias que as

    nossas almas juvenis nos afiguravam to deliciosas. Essanoite ser o seu desespero, Luisa. Naquele tempo voc era

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    38/253

    nova, formosa, despreocupada, se no feliz; um marido ir

    torn-la, em poucos dias, o que eu j sou: feia, doente e

    velha. Dizer-lhe como me sentia altiva, vaidosa e feliz por

    desposar o coronel Victor dAiglemont seria uma loucura! E

    como havia de dizer agora? J nem me lembro sequer de

    mim. E poucos instantes, a minha infncia tornou-se como

    um sonho. A minha atitude durante o dia solene, que

    consagrava um vnculo cuja extenso ignoro, no foi isenta

    de censuras. Meu pai mais uma vez tentou reprimir a

    minha alegria, que se tornava inconveniente, e as minhas

    palavras, que revelavam malcia, justamente por que no a

    tinham. Fazia mil criancices com o vu nupcial, o vestido e

    as flores. Quando me vi sozinha, noite, no aposento a que

    fora conduzida com grande aparato, pensei pregar uma

    pea a Victor e, enquanto o esperava, sentia palpitaes de

    corao semelhantes s que noutro tempo se apoderavamde mim nesses dias solenes de 31 de dezembro, quando,

    sem ser vista, me introduzia no salo em que estavam

    reunidos os brinquedos. Meu marido procurou-me ao entrar

    no quarto, e o riso sufocado que fiz ouvir sob as musselinas

    que me serviam de esconderijo foi a ltima nota dessa

    suave alegria que animou os brinquedos da nossainfncia....

    Quando a velha marquesa terminou a leitura dessa

    carta que, em vista do seu comeo, devia conter

    observaes bem tristes, colocou lentamente os culos

    sobre a mesa e, segurando a carta, fitou a sobrinha com

    seus olhos verdes, cujo brilho no fora amortecido pelosanos.

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    39/253

    Minha filha - disse -, uma senhora casada, escrevendo

    deste modo a uma menina, falta s convenincias...

    - Era o que eu pensava - respondeu Jlia,

    interrompendo sua tia -, e tinha vergonha de mim,

    enquanto a senhora lia...

    - Se mesa uma iguaria no nos agrada, no devemos

    por isso enjoar as outras pessoas, minha filha - replicou a

    velha senhora com bondade -, principalmente quando,

    desde Eva at ns, o casamento foi considerado uma coisa

    to excelente...

    J no tem me? - perguntou a marquesa.

    A condessa estremeceu, depois ergueu docemente a

    cabea e disse:

    - Tenho lamentado mais de uma vez a sua falta, de um

    ano para c. Mas fiz mal em no seguir os conselhos de

    meu pai, que no queria Victor para genro.Olhou para a tia, e um frmito de alegria lhe secou as

    lgrimas quando viu o ar de bondade que animava aquele

    velho rosto. Estendeu a mo marquesa, que parecia

    pedir-lhe; e, quando seus dedos se estreitaram, as duas

    mulheres acabaram por se compreender.

    - Pobre rf! - acrescentou a marquesa.Essas palavras foram para Jlia um ltimo raio de luz.

    Pareceu-lhe ouvir ainda a voz proftica do pai.

    - As suas mos ardem! Esto sempre assim? -

    perguntou a bondosa velha.

    - H apenas sete ou oito dias que a febre me deixou -

    respondeu Jlia.- Tinha febre e nada me dizia!

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    40/253

    - H um ano que a tenho - disse Jlia com certa

    ansiedade pudica.

    - Assim, meu anjinho - tornou a tia -, o casamento no

    tem sido para voc mais que um longo sofrimento?

    A condessa no ousou responder; mas fez um gesto

    afirmativo que traa todas as suas angstias.

    - E infeliz, ento?

    - Oh!, no, minha tia. Victor me ama com idolatria, e

    eu o adoro; ele to bom!

    - Sim, ama-o; mas foge dele, no verdade?

    - Sim... Algumas vezes. Ele me procura

    constantemente.

    - Quando se v sozinha, no lhe perturba a idia de

    que ele a surpreenda?

    - verdade, minha tia. Mas amo-o muitssimo,

    asseguro-lhe.- No se acusa, em segredo, de no saber ou no

    poder partilhar os seus prazeres? No lhe acode, por vezes,

    a idia de que o amor legtimo mais difcil de ser vivido

    do que uma paixo criminosa?

    - Oh! E isso mesmo - disse Jlia chorando. - Adivinha,

    pois, tudo onde s encontro enigmas? Os meus sentidosesto adormecidos, no tenho idias; em suma, vivo

    dificilmente. Minha alma acha-se oprimida por uma

    indefinvel apreenso que paralisa meus sentimentos e me

    lana num torpor contnuo. Sinto me sem voz para queixar-

    me, sem palavras para exprimir minha dor. Sofro e tenho

    vergonha de sofrer, vendo Victor feliz com o que me mata.

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    41/253

    - Tudo isso so criancices, insignificantes! - exclamou a

    tia, cujo rosto emagrecido animou-se de repente por um

    alegre sorriso, reflexo das alegrias da sua mocidade.

    - E a senhora tambm se ri! - disse com desespero a

    condessa.

    - Fui assim mesmo - replicou prontamente a marquesa.

    - Agora que Victor a deixou s, no se sente melhor e mais

    tranqila; sem prazeres, mas sem sofrimentos?

    Jlia abriu os olhos espantados.

    - Enfim, meu anjo, adora Victor, no assim? Mas

    preferiria ser sua irm a ser sua mulher, e no se d bem

    com o casamento.

    - E isso mesmo, minha tia. Mas por que sorri?

    - Oh!, tem razo, pobre criana; no h nada de alegre

    em tudo isto. O seu futuro seria bem negro se eu no a

    tomasse sob minha proteo e se a minha velhaexperincia no soubesse adivinhar a causa bem inocente

    dos seus desgostos. Meu sobrinho no merecia ser to feliz,

    o tolo! No reinado do nosso bem-amado Lus XV, uma

    jovem esposa que se encontrasse na situao em que a

    vejo depressa teria castigado o marido por proceder como

    um reles mercenrio. Os militares s ordens desse tiranoimperial so todos uns vis ignorantes. Tomam a brutalidade

    por galanteria, conhecem tanto as mulheres como sabem

    am-las; julgam que, por terem de ir ao encontro da morte

    no dia seguinte, esto dispensados de terem, na vspera,

    cuidados e atenes conosco. Noutros tempos sabia-se to

    bem amar como morrer com propsito. Minha queridasobrinha, hei de ensin-lo a voc. Porei termo ao triste

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    42/253

    desacordo, bastante natural, que os levaria a odiarem-se

    mutuamente, a desejarem o divrcio, caso no morresse

    antes de ser dominada pelo desespero.

    Jlia escutava a sua tia com pasmo e assombro,

    surpreendida por encontrar nas suas palavras uma

    sensatez que pressentia melhor que compreendia e

    deveras assustada por ouvir de uma parenta cheia de

    experincia, embora sob forma mais suave, a opinio

    formulada por seu pai a respeito de Victor. Ela teve, talvez,

    uma ntida intuio do futuro e sentiu o peso das desgraas

    que haviam de acabrunh-la, pois rompeu em pranto, e

    lanou-se nos braos da outra dizendo:

    - Seja minha me!

    A tia no chorou, porque a Revoluo deixou poucas

    lgrimas nos olhos das mulheres da antiga monarquia.

    Outrora, o amor e, mais tarde, o Terror familiarizaram-nascom as peripcias mais pungentes, de modo que

    conservam em meio aos perigos da vida uma dignidade

    fria, uma afeio sincera, mas pouco expansiva, que lhes

    permite manterem-se sempre fiis etiqueta e a uma

    nobreza de porte que os novos costumes tolamente

    repudiaram. A velha marquesa abraou a jovem, beijou-ana fronte com uma ternura e uma graa que muitas vezes

    se encontram mais nas maneiras e nos hbitos dessas

    mulheres do que no seu corao; consolou a sobrinha com

    palavras meigas, prometeu-lhe um futuro feliz, embalou-a

    com promessas de amor, enquanto a ajudava a se deitar

    como se ela fosse sua filha, uma filha querida, cujaesperana e tristeza partilhava; revia-se nova, inexperiente

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    43/253

    e linda em sua sobrinha. A condessa adormeceu feliz por

    ter encontrado uma amiga, uma me a quem doravante

    tudo poderia confiar. Na manh seguinte, quando a tia e a

    sobrinha se beijaram com essa cordialidade e esse ar de

    inteligncia que atestam um progresso no sentimento, uma

    harmonia mais perfeita entre duas almas, ouviram os trotes

    de um cavalo, voltaram a cabea ao mesmo tempo e viram

    o jovem ingls que passava vagarosamente, segundo o seu

    costume. Parecia ter feito certo levantamento sobre a vida

    das duas mulheres solitrias, e nunca deixava de passar

    enquanto almoavam ou jantavam. O cavalo retardava o

    trote sem necessidade de aviso; depois, durante o tempo

    que levava a percorrer o espao ocupado pelas duas

    janelas da sala de jantar, Artur lanava um olhar

    melanclico, quase sempre desdenhado pela condessa, que

    no lhe prestava a mnima ateno. Mas, habituada a essascuriosidades mesquinhas que se do s mais pequeninas

    coisas, a fim de animar a vida de provncia, e das quais

    dificilmente se ocupam os espritos superiores, a marquesa

    divertia-se com o amor tmido e srio to tacitamente

    expresso pelo ingls. Aqueles olhares peridicos tinham-se

    tornado um hbito para ela, e todos os dias assinalava apassagem de Artur com novos gracejos. Tomando lugar

    mesa, as duas senhoras olharam simultaneamente para o

    ilhu. Os olhos de Jlia e de Artur encontraram-se dessa

    vez com tal preciso de sentimento que a jovem ruborizou.

    Imediatamente, ele apressou o cavalo e partiu a galope.

    - Que devo fazer? - perguntou Jlia tia. - Quem viresse ingls aqui pode supor que sou...

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    44/253

    - Sim - respondeu a tia, interrompendo-a.

    - E ento posso dizer-lhe que no passeie por aqui?

    - No seria faz-lo pensar que perigoso? E, de resto,

    pode impedir-se um homem de passar por onde lhe

    apetea? Amanh, deixaremos de fazer as refeies nesta

    sala; quando j no nos vir aqui, o jovem cavaleiro h de

    cessar de am-la pela janela. Eis, minha querida criana,

    como procede uma mulher que tem experincia da vida.

    Mas a desgraa de Jlia devia ser completa. Logo que

    as duas senhoras se levantaram da mesa, chegou o criado

    de Victor, inesperadamente. Vinha de Bourges a todo

    galope, por atalhos, e trazia para a condessa uma carta de

    seu marido. Victor, que havia abandonado o imperador,

    anunciava esposa a queda do regime imperial, a tomada

    de Paris e o entusiasmo que se declarava a favor dos

    Bourbons em todos os pontos da Frana; mas, no sabendocomo penetrar em Tours, rogava-lhe se dirigisse a toda

    pressa a Orleans, onde esperava encontrar-se com

    passaportes para ela. Esse criado, antigo militar, devia

    acompanhar Jlia de Tours a Orleans, caminho que Victor

    julgava ainda livre.

    - A senhora no tem um instante a perder - disse ocriado -; os prussianos, os austracos e os ingleses vo

    fazer sua juno em Blois ou em Orleans...

    Em poucas horas, a jovem condessa fez seus

    preparativos e partiu numa antiga sege que a tia lhe em

    prestou.

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    45/253

    - Por que no vem conosco a Paris? - perguntou Jlia

    na despedida, beijando a marquesa. - Agora que os

    Bourbons voltam ao poder, encontraria l...

    - Sem esse regresso inesperado, teria ido da mesma

    forma, minha pobre criana, porque meus conselhos so

    necessrios a voc e a Victor. Vou, pois, preparar-me para

    encontrar-me com vocs brevemente.

    Jlia partiu acompanhada pela sua criada de quarto e

    pelo velho militar, que galopava ao lado da sege, velando

    pela segurana da sua patroa. noite, quando chegaram

    ao ponto onde deviam trocar os cavalos, um pouco adiante

    de Blois, Jlia, inquieta por ouvir um carro que a seguia

    desde Amboise, ps-se portinhola, a fim de ver quais

    eram os seus companheiros de jornada. A claridade da lua

    permitiu-lhe avistar Artur de p, a trs passos de distncia,

    com os olhos fixos na sege. Os seus olhares encontraram-se. A condessa recuou vivamente para o fundo da

    carruagem, mas com um sentimento de medo que a fez

    palpitar. Como a maior parte das jovens realmente

    inocentes e sem experincia, via uma falta no amor que

    involuntariamente inspirara a um homem. Sentia um horror

    instintivo, que lhe dava talvez a conscincia da suafraqueza perante to audaciosa agresso. Das mais fortes

    do homem esse terrvel poder de atrair a preocupao de

    uma mulher cuja imaginao, naturalmente mutvel, se

    assusta ou se ofende com uma perseguio. A condessa

    recordou-se do conselho da tia e resolveu no tornar a

    mostrar-se durante a viagem, mas, a cada parada, ouvia oingls, que passeava entre as duas seges; e, na estrada, o

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    46/253

    rudo importuno do carro que a seguia ressoava

    incessantemente a seus ouvidos. Pensou que logo que se

    reunisse ao marido, Victor saberia defend-la contra essa

    singular perseguio.

    - Mas, e se esse rapaz no me amasse?

    Essa foi a ltima reflexo que ela fez. Ao chegar a

    Orleans, a sua sege de posta foi detida por ordem dos

    prussianos, levada para o ptio de uma estalagem e

    guardada por soldados. A resistncia era impossvel. Os

    estrangeiros explicaram aos trs viajantes ,por meio de

    sinais imperiosos, que tinham recebido ordem de no

    deixar sair ningum do carro. A condessa chorou durante

    duas horas, prisioneira entre soldados que fumavam, riam

    e por vezes fitavam-na com insolente curiosidade;

    finalmente, viu-os afastaram-se com certo respeito,

    ouvindo um galopar de cavalos. Eram oficiais superioresque chegavam tendo frente um general austraco, que se

    acercou da sege.

    - Senhora - disse o general - queira receber nossas

    desculpas; houve um engano, pode continuar a viagem

    sem receio, e aqui tem um passaporte que lhe evitar

    qualquer outra contrariedade...Jlia, toda trmula, pegou no papel e balbuciou umas

    palavras vagas. Via, junto do general e com o uniforme de

    oficial ingls, Artur, a quem, sem dvida, devia aquela

    pronta libertao. Alegre e melanclico ao mesmo tempo, o

    jovem ingls voltou a cabea, e no ousou olhar para Jlia

    seno de soslaio. Graas ao passaporte, a condessadAiglemont chegou a Paris sem outro contratempo. A

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    47/253

    encontrou o marido, que, desligado do juramento de

    fidelidade ao imperador, havia recebido o mais lisonjeiro

    acolhimento da parte do conde dArtois, nomeado general-

    chefe do reino por seu irmo Luis XVIII. Victor teve um

    posto eminente na guarda pessoal, que correspondia ao

    grau de general.

    Todavia, em meio s festas que assinalaram o

    regresso dos Bourbons, a pobre Jlia sofreu um profundo

    desgosto que muito devia influir na sua vida: perdeu a

    marquesa de Listomre-Landon. A velha senhora morreu de

    alegria e da gota que lhe subiu ao corao, vendo

    novamente em Tours o duque de Angoulme.

    Assim, a nica pessoa que, por conselhos sensatos,

    poderia tornar mais perfeito o acordo entre a mulher e o

    marido, essa pessoa morreu. Jlia sentiu toda a extenso

    dessa perda. No havia mais ningum entre ela e o marido;mas, jovem e tmida, devia preferir o sofrimento queixa. A

    prpria perfeio do seu carter opunha-se a que ela

    ousasse subtrair-se aos deveres ou tentasse procurar a

    causa de suas dores, porque faz-las cessar seria coisa

    muito delicada. Jlia teria medo de ofender seu pudor de

    moa.Uma palavra sobre o destino do senhor dAiglemont

    sob a Restaurao.

    No se encontram muitos homens cuja profunda

    nulidade um segredo para a maior parte das pessoas que

    os conhecem? Uma posio elevada, um nascimento

    ilustre, atribuies importantes, certo verniz de polidez,grande reserva no procedimento ou prestgio da fortuna

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    48/253

    so para eles como guardas que impedem os crticos de

    penetrar a sua existncia ntima. Essa gente se parece com

    os reis, cuja verdadeira estatura, carter e costumes nunca

    podem ser bem conhecidos nem justamente apreciados,

    porque so vistos de muito longe ou de muito perto. Essas

    personagens de mrito factcio interrogam em vez de falar,

    possuem a arte de dispor os outros em cena para evitar

    posar diante deles; depois, com grande habilidade,

    movimentam cada um pelo fio das suas paixes ou dos

    seus interesses e zombam assim de homens que lhes so

    realmente superiores, fazem deles fantoches e julgam-nos

    pequenos por que os rebaixaram at as suas pessoas.

    Obtm ento o triunfo natural de um pensamento

    mesquinho, porm fixo, sobre a mobilidade dos grandes

    pensamentos. De sorte que, para apreciar esses crebros

    ocos e pesar-lhes os valores negativos, o observador devepossuir um esprito mais sutil que superior, mais pacincia

    que alcance de vista, mais finura e tato que elevao e

    grandeza nas idias. No obstante, por maior habilidade

    que empreguem esses usurpadores em defender seus

    pontos fracos, -lhes bem difcil enganar as esposas, as

    mes, os filhos ou o amigo da casa. Esses, porm, quasesempre lhes guardam o segredo sobre um assunto que de

    algum modo toca honra comum, e muitas vezes at os

    ajudam a impor-se sociedade. Se, graas a essas

    conspiraes domsticas, muitos tolos passam por homens

    superiores, compensam o nmero de homens superiores

    que passam por tolos, de sorte que o estado social temsempre a mesma massa de capacidades aparentes.

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    49/253

    Pensem agora no papel que deve representar uma mulher

    de esprito e de sentimento na presena de um marido

    desse gnero; no se conseguem perceber existncias

    cheias de dores e dedicao cujos coraes ternos e

    delicados coisa alguma neste mundo poderia recompensar.

    Encontrando-se uma mulher forte nessa horrvel situao,

    sair dela por meio de um crime, como fez Catarina II, no

    obstante denominada A Grande. Mas, como nem todas as

    mulheres se encontram sentadas num trono, sofrem quase

    todas as desgraas domsticas, que, por serem obscuras,

    no so menos terrveis. Aquelas que procuram neste

    mundo consolaes imediatas aos seus males conseguem,

    apenas substitu-los por outros, quando querem conservar-

    se fiis aos seus deveres, ou cometem faltas, se violam as

    leis em proveito dos seus prazeres. Estas reflexes so

    inteiramente aplicveis histria secreta de Jlia. EnquantoNapoleo se manteve no poder, o conde dAiglemont,

    coronel como tantos outros, bom oficial de ordenana,

    excelente para cumprir uma misso perigosa, porm

    incapaz de um comando de certa importncia, no excitou

    a mnima inveja, passou por um dos bravos que o

    imperador favorecia e foi o que os militares vulgarmentechamam um bom camarada. A Restaurao, restituindo-lhe

    o ttulo de marqus, no o encontrou ingrato; os Bouiions a

    Gand. Esse ato de lgica e de fidelidade fez mentir o

    horscopo que outrora o sogro tirara, predizendo que o

    genro permaneceria sempre coronel. No segundo regresso,

    nomeado general-de-diviso e tendo reconquistado seuttulo de marqus, o senhor dAiglemont, com a ambio de

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    50/253

    chegar ao pariato, adotou as mximas e a poltica do

    Conservador; envolveu-se numa dissimulao que no

    ocultava coisa alguma, tornou-se grave, interrogador, de

    poucas falas, e foi tido como homem profundo. Usando

    sempre de uma extrema polidez, munido de frmulas,

    retendo e prodigalizando as frases j feitas que se cunham

    regularmente em Paris para dar em troco aos tolos o

    sentido das grandes idias ou fatos, as pessoas de suas

    relaes reputaram-no homem de gosto e saber. Teimoso

    nas suas opinies aristocrticas, foi citado como possuidor

    de esplndido carter. Se, por acaso, tornava-se

    descuidado ou alegre como fora noutro tempo, a

    significncia e a estultcia das suas frases tinham para os

    outros sutilezas diplomticas.

    - Oh! Ele s diz o que lhe interessa - pensavam as

    pessoas de categoria.Serviam-no to bem as suas qualidades como os seus

    defeitos. A sua bravura valera-lhe alta reputao militar,

    que coisa alguma desmentia, porque nunca tivera comando

    algum. Seu rosto msculo e nobre refletia pensamentos

    vastos, e s para a esposa era uma impostura. Ouvindo

    todo o mundo prestar justia aos seus talentos postios, omarqus dAiglemont acabou por se persuadir de que era

    um dos homens mais notveis da corte, onde, graas s

    aparncias, soube agradar e onde seus diferentes mritos

    foram aceitos sem protesto. Contudo, o senhor dAiglemont

    era modesto em sua casa, sentia instintivamente a

    superioridade da esposa, apesar de muito nova; e desseinvoluntrio respeito nasceu um poder oculto que a

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    51/253

    marquesa viu-se obrigada a aceitar, apesar de todos os

    seus esforos para afastar de si o pesado fardo.

    Conselheira do marido, ela dirigia-lhe os atos e a fortuna.

    Essa influncia antinatural foi para ela uma espcie de

    humilhao e a origem de muitos desgostos que sepultara

    no corao. Dizia-lhe seu instinto, to delicadamente

    feminino, que muito mais belo obedecer a um homem de

    talento que guiar um parvo e que uma esposa jovem,

    obrigada a pensar e a proceder como um homem, no

    nem mulher nem homem, abdica de todas as graas do seu

    sexo sem perder seus desgostos nem adquirir nenhum dos

    privilgios que as leis conferiram aos mais fortes. A sua

    existncia ocultava uma irriso bem amarga. No era ela

    obrigada a honrar um dolo oco? A proteger seu protetor,

    pobre ser que, por salrio de uma dedicao contnua, lhe

    oferecia o amor egosta dos maridos, s via nela umamulher, no se dignava ou no sabia - injria igualmente

    profunda - inquietar-se com seus prazeres nem cuidar de

    sua tristeza e do seu definhamento? Como a maior parte

    dos maridos que sentem o jugo de um esprito superior, o

    marqus salvava seu amor-prprio deduzindo da fraqueza

    fsica a fraqueza moral de Jlia, que ele se comprazia emlastimar, pedindo contas ao destino por ter-lhe dado por

    esposa uma mulher doentia. Enfim, dizia- se vtima, quando

    era o carrasco. A marquesa, sobre carregada com todos os

    pesares daquela triste existncia, devia ainda sorrir ao seu

    imbecil senhor, ornamentar de flores uma casa de luto e

    ostentar felicidade num rosto empalidecido por secretossuplcios. Essa responsabilidade de honra, essa abnegao

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    52/253

    magnfica deram insensivelmente jovem marquesa uma

    dignidade de mulher, uma conscincia de virtude que lhe

    ser viram de escudo contra os perigos do mundo. Alm

    disso, para sondar a fundo aquele corao, talvez o

    sofrimento ntimo e oculto que coroava seu primeiro, seu

    ingnuo amor, a fizesse considerar com horror as paixes;

    talvez no conhecesse nem o arrebatamento nem as

    alegrias ilcitas mas delirantes que levam certas mulheres a

    esquecer as leis da prudncia, os princpios da virtude

    sobre os quais repousa a sociedade. Renunciando, como a

    um sonho, s douras, terna harmonia que a velha

    experincia da senhora de Listomre Landon lhe havia

    prometido, esperou com resignao o fim das suas penas,

    desejando morrer cedo. Desde seu regresso de Touraine,

    sua sade alterara-se cada vez mais, e a vida parecia-lhe

    medida pelo sofrimento; sofrimento, alis, elegante,doena quase voluptuosa na aparncia, e que podia passar

    aos olhos de pessoas superficiais por uma fantasia de

    mulher afetada. Os mdicos tinham condenado a marquesa

    a conservar-se deitada num div, onde se estiolava entre

    as flores que a rodeavam, murchando com elas. A sua

    fraqueza proibia-lhe os passeios e o ar livre; s saa emcarruagem fechada. Sempre rodeada de todas as

    maravilhas do luxo e da indstria moderna, mais se

    assemelhava a uma rainha indolente que a uma enferma.

    Alguns amigos, talvez pelo seu infortnio e fraqueza, certos

    de a encontrarem sempre em casa e especulando sem

    dvida tambm sobre sua boa sade futura, iam levar-lhenotcias e inform-la dos mil acontecimentos insignificantes

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    53/253

    que tornam em Paris a existncia to variada. Sua

    melancolia, conquanto grave e profunda, era a melancolia

    da opulncia. A marquesa dAiglemont assemelhava-se a

    uma linda flor cuja raiz roda por um inseto nocivo.

    Aparecia algumas vezes nos sales, no por gosto, mas

    para obedecer s exigncias da posio a que aspirava seu

    marido. Sua voz e a perfeio do seu canto podiam

    permitir-lhe obter aplausos que geralmente agradam a uma

    jovem, mas para que lhe serviam xitos que ela no ligava

    a sentimentos nem a esperanas? O marido no gostava de

    msica. Enfim, sentia-se quase sempre contrafeita nos

    sales onde sua beleza lhe atraa homenagens

    interesseiras. Ali sua situao excitava certa compaixo

    cruel, uma curiosidade triste. Jlia sofria de uma inflamao

    geralmente mortal, que as mulheres confiam ao ouvido

    umas das outras e para a qual a nossa neologia ainda noachou nome. Apesar do silncio em que se escoava a sua

    vida, a causa do seu sofrimento no era segredo para

    ningum. Sempre jovem, no obstante o casamento, o

    mais rpido olhar a envergonhava. De sorte que, para

    evitar o rubor, mostrava-se sempre risonha, contente;

    afetava uma falsa alegria, dizia-se sempre bem ou afastavaas perguntas acerca de sua sade com pudicas mentiras.

    Entretanto, em 1817, um fato contribuiu muito para

    modificar o estado deplorvel em que Jlia se afundara at

    ento. Teve uma filha e quis cri-la. Durante dois anos, as

    vivas distraes e as inquietas alegrias que do os

    cuidados maternais tornaram-lhe a existncia menosinfeliz. Separou-se necessariamente do marido. Os mdicos

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    54/253

    prognosticaram-lhe melhor sade mas a marquesa no deu

    crdito queles pressgios. Como toda gente para quem a

    vida no tem encanto, via talvez na morte um desenlace

    feliz. No comeo do ano de 1819, a vida tornou-se-lhe mais

    cruel que nunca. No momento em que aplaudia a felicidade

    negativa que soubera conquistar, entreviu abismos

    medonhos; o marido, pouco a pouco, desabituara-se dela.

    Esse resfriamento de uma afeio j to morna e egosta

    podia ser origem de mais um infortnio que o seu fino tato

    e a sua prudncia lhe faziam prever. Ainda que estivesse

    certa de conservar um grande poder sobre Victor e de

    haver obtido sua estima para sempre, temia a influncia

    das paixes sobre um homem to nulo e to vaidosamente

    irrefletido. Muitas vezes, seus amigos surpreendiam Jlia

    em longas meditaes; os menos perspicazes

    perguntavam-lhe a causa gracejando, como se uma jovems pudesse pensar em frivolidades, como se no existisse

    quase sempre um sentido profundo nos pensamentos de

    uma me-de-famlia. De resto, tanto a desgraa como a

    verdadeira felicidade nos levam ao devaneio. s vezes,

    brincando com sua Helena, Jlia fitava-a com um olhar

    sombrio e cessava de responder a essas interrogaesinfantis que causam tanto prazer s mes, para pedir conta

    do seu destino ao presente e ao futuro. Seus olhos

    enchiam-se ento de lgrimas quando, de repente,

    qualquer recordao lhe reavivava a cena de revista nas

    Tulherias. As palavras previdentes do pai ressoavam-lhe de

    novo ao ouvido, e a conscincia censurava-a por no as teratendido. Dessa insensata desobedincia provinham todos

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    55/253

    os seus infortnios, e muitas vezes no sabia, entre todos,

    qual era o mais penoso. No somente os doces tesouros de

    sua alma permaneciam ignorados, como nunca conseguira

    fazer-se compreender pelo seu marido, nem mesmo nas

    coisas mais comezinhas. No momento em que a faculdade

    de amar se desenvolvia nela mais forte e ativa, o amor

    permitido, o amor conjugal extinguia-se em meio a graves

    sofrimentos fsicos e morais. Ademais, tinha pelo marido

    essa compaixo vizinha do desprezo, que destri com o

    tempo todos os sentimentos. Enfim, se as conversas com

    alguns amigos, se os exemplos ou se certas aventuras da

    alta sociedade no lhe tivessem mostrado que o amor pode

    causar imensa felicidade, seus desgostos ter-lhe-iam feito

    adivinhar as alegrias ntimas e puras que devem unir almas

    fraternais. No quadro que a memria lhe traava do

    passado, desenhava-se o rosto cndido de Artur cada diamais puro e mais belo, mas rapidamente, pois no ousava

    demorar-se nessa lembrana. O amor silencioso e tmido do

    jovem ingls era o nico acontecimento que, depois do

    casamento, lhe havia deixado alguns vestgios suaves no

    corao sombrio e solitrio. Talvez todos os desenganos,

    todos os desejos frustrados que, gradualmente,entristeciam o esprito de Jlia remontassem, por um

    capricho natural da imaginao, a esse homem, cujos

    modos, sentimentos e carter pareciam oferecer tanta

    semelhana com os seus. Todavia, esse pensamento tinha

    sempre a aparncia de um capricho, de um sonho. Aps

    esse sonho impossvel, que morria sempre num suspiro,Jlia despertava mais infeliz e sentia mais suas dores

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    56/253

    latentes quando as ha via adormecido sob as asas de uma

    felicidade imaginria. s vezes seus queixumes assumiam

    um carter de loucura e de audcia, queria obter prazeres

    a todo custo; porm, mais freqentemente ainda, era presa

    de um terror estpido, escutava sem compreender, ou

    concebia pensamentos to vagos, to indecisos, que no

    encontraria palavras para os traduzir. Magoada nos seus

    mais ntimos desejos, nos costumes que em jovem sonhara,

    via-se obrigada a reter suas lgrimas. A quem havia de

    queixar-se? Quem a escutaria? Alm disso, ela possua essa

    extrema delicadeza de mulher, esse delicioso pudor de

    sentimento que consiste em calar uma queixa intil, em

    no desejar um triunfo que deve humilhar o vencedor e o

    vencido. Jlia tentava incutir sua capacidade, suas prprias

    virtudes ao senhor dAiglemont, e lisonjeava-se de gozar a

    felicidade que lhe faltava.Toda sua sabedoria de mulher era inutilmente

    empregada em atenes ignoradas por aquele cujo

    despotismo perpetuavam. Havia momentos em que o

    desgosto deixava-a como que embriagada, sem idias,

    meio louca; mas felizmente um sentimento de verdadeira

    piedade logo a reconciliava com uma suprema esperana;refugiava-se na vida futura, crena admirvel que a fazia

    aceitar de novo a sua dolorosa tarefa. Esses combates to

    terrveis, essas angstias ntimas eram obscuras, essas

    longas melancolias eram desconhecidas; criatura alguma

    recolhia seus gemidos, seus olhares ternos, suas lgrimas

    amargas derramadas na solido.

  • 7/27/2019 [Balzac] a Mulher de Trinta Anos

    57/253

    Os perigos da crtica situao a que insensivelmente

    chegara por fora das circunstncias revelaram-se em toda

    sua gravidade numa noite do ms de janeiro de 1820.

    Quando dois esposos se conhecem perfeitamente e

    esto muito habituados um ao outro, quando uma mulher

    sabe interpretar os gestos mais insignificantes de um

    homem e pode penetrar seus sentimentos ou as coisas que

    ele lhe oculta, sucede que brilha uma repentina claridade,

    devido s reflexes e reparos dados pelo acaso, ou tecidos

    a princpio descuidadamente. Amide, uma mulher

    desperta, de repente, beira ou no fundo de um abismo.

    Assim a marquesa, feliz por se achar s havia alguns dias,

    adivinhou o segredo da sua solido. Inconstante ou

    enfastiado, generoso ou cheio de compaixo por ela, seu

    marido no lhe pertencia mais. Nesse momento, Jlia no

    pensou em si nem nos seus sofrimentos, nem nos seussacrifcios