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I HISTÓRIA NATURAL DE UMA HISTÓRIA SOBRENATURAL - É assustador esse espetáculo!  exclamou ela, ao sair do circo das feras do Sr. Martin. Acabava de ver aquele ousado especulador trabalhando com a sua hiena, para falar em estilo de cartaz. - Por que meios  continuou  terá conseguido domesticar seus animais para estar tão seguro da afeição deles a ponto de .... ? - Esse fato que lhe parece um problema  respondi, interrompendo-a  é no entanto uma coisa natural. - Oh!  exclamou, deixando errar nos lábios um sorriso de incredulidade. - Julga então que os animais inteiramente desprovidos de paixões?  perguntei-lhe.  Pois fique sabendo que nós lhes podemos dar todos os vícios devidos ao nosso estado de civilização. Ela olhou-me com ar atônito. - Mas ao ver o Sr. Martin pela primeira vez  prossegui  confesso que me escapou, como a você, uma exclamação de surpresa. Encontrava-me então perto de um antigo militar com a perna direita amputada, que entrara junto comigo. Aquele rosto me impressionara. Era uma dessas fisionomias intrépidas, marcadas com o selo da guerra e nas quais estão escritas as batalhas de Napoleão. Aquele velho soldado tinha antes de mais nada um ar de franqueza e bom humor, coisa que sempre me predispõe favoravelmente. Era sem duvida um desses veteranos a quem nada surpreende, que encontram assunto para rir na ultima careta de um camarada, enterram-no ou saqueiam-no alegremente, interpelam as balas com arrogância, enfim, cujas deliberações são rápidas, e que bem seriam capazes de confraternizar com o diabo. Depois de olhar atentamente o proprietário do circo no momento em que saía da barraca, meu companheiro franziu os lábios de modo a expressar um zombeteiro desdém com essa espécie de significativo muxoxo que se permitem os homens superiores, a fim de se distinguirem dos ingênuos. Assim, quando me espantei da coragem de Sr Martim, ele sorriu e disse-me com uma r de suficiência, abanando a cabeça: - Isto não é nada!  Como! Não é nada?  retruquei  Se quisesse explicar-me esse mistério, eu lhe ficaria muito agradecido. Após alguns instantes, durante os quais travamos relações, fomos almoçar no primeiro restaurante que se nos antolhou. À sobremesa, uma garrafa de champanha devolveu toda a nitidez às recordações daquele curioso soldado. Contou-me a sua história, e eu reconheci que ele tivera razão em exclamar: Isto não é nada! II CURIOSIDADE DE MULHER Chegando em casa, tantos afagos e promessas me fez ela que eu consenti em redigir-lhe as confidencias do soldado. No dia seguinte, ela recebeu, pois, este episodio de uma epopéia que se poderia denominar Os franceses no Egito 

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I

HISTÓRIA NATURAL DE UMA HISTÓRIA SOBRENATURAL

- É assustador esse espetáculo! – exclamou ela, ao sair do circo das feras do Sr.

Martin.

Acabava de ver aquele ousado especulador trabalhando com a sua hiena, para falarem estilo de cartaz.

- Por que meios – continuou – terá conseguido domesticar seus animais para estartão seguro da afeição deles a ponto de .... ?

- Esse fato que lhe parece um problema –  respondi, interrompendo-a –  é noentanto uma coisa natural.

- Oh! – exclamou, deixando errar nos lábios um sorriso de incredulidade.

- Julga então que os animais inteiramente desprovidos de paixões? – perguntei-lhe.– Pois fique sabendo que nós lhes podemos dar todos os vícios devidos ao nossoestado de civilização.

Ela olhou-me com ar atônito.

- Mas ao ver o Sr. Martin pela primeira vez – prossegui – confesso que me escapou,como a você, uma exclamação de surpresa. Encontrava-me então perto de umantigo militar com a perna direita amputada, que entrara junto comigo. Aquelerosto me impressionara. Era uma dessas fisionomias intrépidas, marcadas com oselo da guerra e nas quais estão escritas as batalhas de Napoleão. Aquele velho

soldado tinha antes de mais nada um ar de franqueza e bom humor, coisa quesempre me predispõe favoravelmente. Era sem duvida um desses veteranos aquem nada surpreende, que encontram assunto para rir na ultima careta de umcamarada, enterram-no ou saqueiam-no alegremente, interpelam as balas comarrogância, enfim, cujas deliberações são rápidas, e que bem seriam capazes deconfraternizar com o diabo. Depois de olhar atentamente o proprietário do circo nomomento em que saía da barraca, meu companheiro franziu os lábios de modo aexpressar um zombeteiro desdém com essa espécie de significativo muxoxo que sepermitem os homens superiores, a fim de se distinguirem dos ingênuos. Assim,quando me espantei da coragem de Sr Martim, ele sorriu e disse-me com uma r desuficiência, abanando a cabeça: - Isto não é nada! –  Como! Não é nada? – retruquei – Se quisesse explicar-me esse mistério, eu lhe ficaria muito agradecido.Após alguns instantes, durante os quais travamos relações, fomos almoçar noprimeiro restaurante que se nos antolhou. À sobremesa, uma garrafa dechampanha devolveu toda a nitidez às recordações daquele curioso soldado.Contou-me a sua história, e eu reconheci que ele tivera razão em exclamar: Istonão é nada!

II

CURIOSIDADE DE MULHER

Chegando em casa, tantos afagos e promessas me fez ela que eu consenti emredigir-lhe as confidencias do soldado. No dia seguinte, ela recebeu, pois, este

episodio de uma epopéia que se poderia denominar Os franceses no Egito 

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 III

O DESERTO

Quando da expedição efetuada no Alto Egito pelo General Desaix, tendo um soldado

provençal em poder dos berberes, foi conduzido por esses árabes aos desertossituados alem das cataratas do Nilo.

A fim de colocar um espaço suficiente para a sua tranqüilidade entre eles e oexercito Frances, os berberes empreenderam uma marcha forçada, só fazendo altoà noite. Acamparam em redor de um poço oculto por palmeiras, junto às quaishaviam precedentemente enterrado algumas provisões. Não imaginando que sepudesse ocorrer ao prisioneiro a ideia de fugir, contentaram-se em amarrar-lhe asmãos e adormeceram todos, depois de ter comido algumas tâmaras e dado cevadaaos cavalos.

Quando viu que os inimigos não se achavam em estado de vigiá-lo, o ousado

provençal serviu-se dos dentes para apoderar-se de uma cimitarra; depois valendo-se dos joelhos para segurar a lamina, cortou as cordas que lhe impediam o uso dasmãos e viu-se livre. Apoderou-se em seguida de uma carabina e de um punhal, fezuma provisão de tâmaras secas, um saquinho de cevada, pólvora e balas, cingiuuma cimitarra, montou num cavalo e abalou em disparada na direção em quesupunha achar-se o exercito Frances.

Impaciente por avistar um bivaque, apressou de tal modo o corcel, já fatigado, queo pobre animal expirou, rendido dos flancos, deixando o francês a pé no meio dodeserto.

Depois de marchar algum tempo pelas areias com toda a coragem de um forçado

que se evade, o soldado viu-se obrigado a parar; o dia já findava. Apesar da belezado céu pelas noites do Oriente, não se sentiu com forças para continuar o caminho.Felizmente pudera alcançar uma eminência de onde se elevavam algumaspalmeiras, cuja folhagem, avistada de há muito, lhe despertara no coração as maisdoces esperanças. Tão grande era o seu cansaço que se deitou sobre uma pedra degranito caprichosamente talhada em forma de catre, e ali adormeceu, sem tomarnenhuma precaução para a própria defesa durante o sono. Sacrificara a sua vida. Oultimo pensamento que teve ao adormecer foi de pesar, pois já se arrependia dehaver abandonado os berberes, cuja vida errante começava a sorrir-lhe depois quese via longe deles e sem recursos.

Foi despertado pelo sol, cujos implacáveis raios, tombando a prumo sobre ogranito, produziam um calor intolerável. Ora, o provençal tivera a inabilidade decolocar-se em sentido inverso ao da sombra projetada pelas verdejantes emajestosas frondes das palmeiras... Contemplou aquelas arvores solitárias, eestremeceu: recordaram-lhe os fustes elegantes e coroados de longas folhas quedistinguem as colunas sarracenas da catedral de Arles. Mas quando, depois decontemplar as palmeiras, lançou os olhos em redor de si, abateu-se-lhe sobre aalma o mais terrível desespero. Via um oceano sem limites. As areias escuras dodeserto estendiam-se a perder de vista em todas as direções, e fulguravam comouma lamina de aço batida por luz fortíssima. Não sabia se era um mar de gelo oulagos unidos como um espelho. Transportado em vagas, turbilhonavam acimadaquela terra movediça um vapor de fogo. O céu tinha um brilho oriental de umapureza desesperadora, pois que nada deixa desejar à imaginação. O céu e a terraestavam em fogo. O silencio amedrontava com sua selvagem e terrível majestade.

O infinito, a imensidade, oprimiam a alma por toda a parte: nem uma nuvem nocéu, nem um sopro no ar, nem um acidente no seio da areia agitada por miúdas

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vagas; enfim, o horizonte terminava, como no mar quando faz bom tempo, poruma linha de luz tão delgada quanto o fim de um sabre.

O provençal abraçou o tronco de uma das palmeiras, como se fosse o corpo de umamigo; depois, abrigado à sombra estreita e reta que a arvore desenhava sobre ogranito, chorou, sentou-se e ali ficou, a contemplar com profunda tristeza o cenário

implacável que se oferecia a seus olhos. Gritou como para tentar a solidão. Suavoz, perdida nas cavidades da colina, deu ao longe um triste som que nãodespertou eco; o eco estava em seu coração. O provençal tinha vinte e dois anos,armou a carabina.

- Nunca será tarde! – pensou, pousando em terra a arma libertadora.

IV

O NOVO ROBINSON ENCONTRA UM SINGULAR SEXTA-FEIRA

Olhando alternadamente o espaço escuro e o espaço azul, o soldado sonhava com a

França. Sentia com delicia as águas de Paris, recordava as cidades por onde haviapassado, a fisionomia dos camaradas, as menores circunstâncias da sua vida.Enfim, sua imaginação meridional logo lhe fez entrever as pedras da sua queridaProvença nos jogos do calor que ondulava acima da toalha estendida no deserto.Temendo os perigos dessa cruel miragem, desceu a vertente oposta àquela poronde subira na véspera. Grande foi a sua alegria ao descobrir uma espécie de grutanaturalmente cavada nos imensos fragmentos de granito que formavam a basedaquele montículo, os farrapos de uma esteira denunciavam que aquele asilo fôraantigamente habitado. Depois, a alguns passos dali, avistou tamareiras carregadasde frutos. Despertou-lhe então na alma o instinto que nos prende à vida. Teveesperanças de viver o suficiente para aguardar a passagem de alguns berberes, outalvez ouvisse em breve ruído dos canhões, pois naquele momento Bonaparte

percorria o Egito.Reanimado por esse pensamento, abateu algumas pencas de frutos maduros a cujopeso as tamareiras pareciam vergar, e certificou-se, ao saborear aquele inesperadomaná, que o habitante da gruta havia cultivado as arvores: a polpa saborosa dastâmaras acusava com efeito os cuidados de um predecessor. O provençal passousubitamente de um sombrio desespero a uma alegria quase louca. Tornou a subirao alto da colina e ocupou-se durante o resto do dia a cortar uma das palmeirasestéreis que na véspera lhe haviam servido de teto. Uma vaga lembrança o fezpensar nos animais do deserto e, prevendo que poderiam vir beber na fonteperdida nas areias que aparecia ao pé das rochas, resolveu proteger-se contras assuas visitas, erguendo uma barreira à porta da sua ermida. Apesar do seuempenho, apesar das suas forças que lhe deu o medo de ser devorado durante osono, foi-lhe impossível cortar a palmeira em vários pedaços naquele dia. Quando,pela tardinha, tombou aquela rainha do deserto, o ruído de sua queda reboou aolonge, e houve uma espécie de gemido, lançado pela solidão; o soldado estremeceucomo se estivesse ouvindo alguma voz predizer-lhe uma desgraça.

Mas, assim como um herdeiro que não lamenta por muito tempo a morte de umparente, ele despojou a bela arvore das suas largas e longas folhas verdes, que sãoo seu poético ornamento, utilizando-as para reparar a esteira onde ia deitar-se.

Exausto de calor e de trabalho, adormeceu sob o forro vermelho da sua grutaúmida. Em meio à noite, foi o seu sono perturbado por um ruído extraordinário.Sentou-se, e o silencio profundo que reinava permitiu-lhe reconhecer o ritmo

alternado de uma respiração cuja selvagem energia não podia pertencer a umacriatura humana. Um profundo medo, ainda aumentado pelas trevas, o silêncio e as

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fantasias do despertar, gelou-lhe o coração. Quase nem chegou a sentir a dolorosacontração de seu couro cabeludo quando, à força de dilatar as pupilas, avistou nasombra dois clarões fracos e amarelos. A principio atribuiu aquelas luzes a algumreflexo de seus olhos; mas em breve, como a claridade da noite o ajudasse adistinguir gradativamente os objetos que se encontravam na gruta, percebeu umenorme animal deitado a dois passos de distancia. Era um leão, um tigre, um

crocodilo? O provençal não tinha instrução suficiente para saber em que subgêneroestava classificado o seu inimigo; mas tanto maior foi o seu terror quanto aignorância que lhe fazia imaginar todos os males ao mesmo tempo. Suportou ocruel suplicio de escutar, de aprender os caprichos daquela respiração, sem recebê-la e sem ousar permitir-se ao mínimo movimento. Um cheiro tão forte como ocheiro exalado pelas raposas, todavia mais penetrantes, mais graves, por assimdizer, enchia a gruta; e quando degustou com as narinas, o terror do provençalchegou ao cumulo, pois não mais podia por em duvida da existência do terrívelcompanheiro cujo antro real lhe servia de acampamento. Em breve os reflexos dalua, que se precipitava para o horizonte, alumiando a gruta, fizeraminsensivelmente resplandecer a pele mosqueada de uma pantera.

Esse leão do Egito dormia, enrodilhado como um grande cão, calmo possuidor deum nicho suntuoso à porta de um palácio; seus olhos, abertos por um momento, sehaviam fechado de novo. Tinha a face voltada para o francês.

Mil confusos pensamentos atravessaram a alma do prisioneiro da pantera; primeiropretendeu matá-la com um tiro de carabina, mas viu que não havia espaçosuficiente entre ambos para visá-la, pois o cano teria ultrapassado o corpo doanimal. E se ele despertasse?... Essa hipótese imobilizou-o. Ouvindo bater o própriocoração no meio do silencio, amaldiçoava as pulsações demasiado fortes que aafluência do sangue produzia, temendo perturbar aquele sono que lhe permitiaprocurar um expediente salvador. Levou por duas vezes a mão à cintura, no intentode cortar a cabeça da inimiga; mas a dificuldade de cortar o pelo raso e duro

obrigou-o a renunciar a esse ousado projeto.- E se falhasse? Seria morrer na certa – pensou ele.

Preferiu os azares daquele combate, e resolveu esperar o dia. E o dia não se fezdesejar por muito tempo. O francês pôde então examinar a pantera; tinha o focinhotinto de sangue.

- Ela comeu bem! ... – pensou, sem indagar se o festim constara de carne humana.– Não vai ter fome quando despertar.

V

TERÃO ALMA OS ANIMAIS?

Era uma fêmea. O pelo do ventre e das coxas fulgurava de brancura. Variaspequenas manchas, semelhantes a veludo, formavam lindo braceletes em torno daspatas. A cauda musculosa era igualmente branca, mas terminada por anéis negros.A parte da cima da pele, amarela como outro fosco, mas bem lisa e suave, tinhaessas mosqueaduras características, nuançadas em forma de rosas, que servempara distinguir as panteras das outras espécies de felinos.

Aquela tranqüila e temível hospede roncava numa atitude tão graciosa como a deuma ata deitada na almofada de uma otomana. suas patas sangrentas, nervosas e

bem armadas, estavam á frente da sua cabeça, que repousava em cima e da qualpartiam essas barbas raras e retas, semelhantes a fios de prata. Se ela estivesse

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assim em uma jaula, o provençal teria por certo admirado a graça daquele animal eos vigorosos contrastes das cores vivas que davam à sua samarra de fulgorimperial; mas, em tal momento, sentia a vista turbada ante aquele sinistro aspecto.A presença da pantera, embora adormecida, fazia-lhe experimentar o efeito queprovocam o rouxinol, ao que dizem, os olhos magnéticos das serpentes. A coragemdo soldado acabou por desaparecer um instante á vista daquele perigo, ao passo

que sem duvida se teria exalçado ante a boca dos canhões a vomitar metralha. Noentanto, surgiu-lhe na alma um sentimento intrépido, que secou em sua fonte osuor frio que lhe rorejava a testa. Agindo como os homens que, levados ao extremopela desgraça, chegam a desafiar a morte e se oferecem a seus golpes, ele, sem onotar, encarou aquela aventura como uma tragédia, na qual resolveu desempenharcom honra o seu papel até a última cena.

- “Anteontem, talvez os árabes me tivessem matado!... – pensou.

Considerando-se como morto, esperou bravamente e com inquieta curiosidade odespertar da inimiga. Quando o sol apareceu, a pantera abriu subitamente osolhos; depois estendeu violentamente as patas, como para desentorpecê-las e

dissipar câimbras. Afinal bocejou, mostrando assim a temerosa aparelhagem deseus dentes e sua língua fendida, dura como lima.

-  “ É como uma mulherzinha”...” – pensou o francês, ao vê-la rolar-se e fazer osmovimentos mais suaves e graciosos.

Ela lambeu o sangue que lhe tingia as patas e o focinho, e coçou a cabeça comgestos repetidos, cheios de gentileza.

-  “Bem!... faze um pouquinho de toilette...” –  disse consigo o francês, que, aorecobrar coragem, recuperara também o seu bom - humor. –  “Vamos agora dar-nos bom dia”. 

E segurou o punhal curto de que desembaraçara os berberes.

No mesmo instante, a pantera voltou a cabeça para o soldado e olhou-o fixamente,sem avançar. A fixidez de seus olhos metálicos e sua insuportável claridade fizeramestremece o francês, sobretudo quando o animal encaminhou para ele; mas osoldado contemplou-a com ar caricioso e, olhando-a como para magnetizá-la,deixou-a aproximar-se; em seguida, após um movimento tão suave, tão amorosocomo se quisesse acariciar a mais linda mulher, passou-lhe a mão sobre todo ocorpo, da cabeça à cauda, irritando com as unhas as flexíveis vértebras quedividiam o dorso amarelo da pantera.

O animal ergueu voluptuosamente a cauda, seus olhos abrandaram; e quando, pelaterceira vez, o francês executou aquele interesseiro gesto de afago, ela fez ouvirum desses ronrons com que os nossos gatos exprimem o seu prazer; mas aquelemurmúrio partia de uma garganta tão possante e profunda que reboou na grutacomo os últimos acordes de um órgão numa igreja. O provençal compreendendo aimportância de seus carinhos, redobrou-os de modo a atordoar, a estupidificaraquela imperiosa cortesã. Quando se julgou seguro de haver extinguido aferocidade da caprichosa companheira, cuja fome fora tão felizmente aplacada navéspera, ele se ergueu e quis sair da gruta; a pantera deixou-o partir, mas, depoisque ele galgou a colina, saltou com a rapidez dos pardais pulando de um ramo aoutro, e veio esfregar-se de encontro às pernas do soldado, arqueando o dorso àmaneira das gatas; depois contemplando o seu hospede com um olhar cujo brilhose tornara menos inflexível, lançou esse grito selvagem que os naturalistas

comparam ao ruído de uma serra.

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- Ela é exigente! –exclamou o Frances, sorrindo.

Tentou brincar com as suas orelhas, acariciar-lhe o ventre e coçar-lhe fortemente acabeça com as unhas; e, percebendo o seu êxito, fez-lhe cócegas no crânio com aponta de um punhal, espiando o momento de matá-la; mas a dureza dos ossos fez-lhe temer um insucesso.

A sultana do deserto aprovou as habilidades de seu escravo, erguendo a cabeça,alongando o pescoço, acusando a sua embriaguez pela tranqüilidade de sua atitude.O francês pensou de súbito que, para assassinar aquela bravia princesa, era precisoapunhalá-la na garganta, e ia erguendo a lamina, quando a pantera, já satisfeitapor certo, se deitou graciosamente a seus pés, lançando-lhe de tempos em temposuns olhares em que, apesar do rigor nativo, se esboçava confusamente abenevolência. O pobre provençal comeu as suas tâmaras, apoiado a uma daspalmeiras; mas lançava alternadamente um olhar investigador para o deserto, embusca de libertadores, e para a sua companheira, a fim de lhe espiar a incertaclemência. A pantera olhava para o lugar aonde caíam os caroços da tâmara, decada vez que ele jogava um, e seus olhos exprimiam então uma incrível

desconfiança. Examinava o francês com uma prudência comercial; mas esse examelhe foi favorável, porque, quando ele findou o seu magro repasto, ela começou alamber-lhe os sapatos, e, com uma língua rude e forte, retirou miraculosamente apoeira ali incrustada.

- “ Mas, e quando ele estiver fome?... “ – pensou o provençal.

VI

A IDÉIA DO PROVENÇAL

Apesar do arrepio que lhe causou tal ideia, o soldado pôs-se a medir seriamente asproporções da pantera, por certo um dos mais belos indivíduos da espécie, poistinha três pés de altura e quatro de comprimento, sem contar a cauda. Estapoderosa arma, redonda como um cacete, media cerca de três pés. A cabeça, tãogrande como a de uma leoa, distinguia-se por uma rara expressão de finura; semduvida predominava nela a fria crueldade dos tigres, mas havia também uma vagasemelhança com a fisionomia de uma mulher artificiosa. Enfim, a face daquelarainha solitária revelava então uma espécie de alegria semelhante à de Neroembriagado: desalterara-se no sangue e queria brincar.

O soldado tentou andar de um lado para outro; a pantera deixou-o livre,contentando-se em segui-lo com os olhos, parecendo-se assim menos a um cão fieldo que a um grande angorá inquieto com tudo, até com os movimentos de umdono. Quando ele se voltou, avistou para as bandas da fonte os restos de seucavalo; a pantera tinha arrastado o cadáver até ali. Cerca de dois terços tinhamsidos devorados. O espetáculo tranqüilizou o francês. Era fácil então explicar aausência da pantera e o respeito que tivera para com ele, enquanto dormia.

Como aquela primeira felicidade o animasse a desafiar o futuro, ele concebeu alouca esperança de viver às boas com a pantera durante todo o dia, semnegligenciar nenhum meio de domesticá-la e conciliar suas graças. Voltou para

 junto dela e teve a inefável ventura de vê-la agitar a cauda num movimento quaseimperceptível. Sentou-se então sem temor a seu lado e puseram-se ambos abrincar: pegou-lhe das patas, do focinho, revirou-lhe as orelhas, deitou-a de costase arranhou fortemente seus flancos mornos e sedosos. Ela prestou-se a tudo, e,

quando o soldado tentou alisar-lhe o pêlo das patas, recolheu cuidadosamente asunhas recurvas como alfanjes.

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O francês, que conservava uma das mãos ao cabo do punhal, pensava ainda emmergulhá-la no ventre da confiante pantera; mas receou ser imediatamenteestrangulado na ultima convulsão que a agitasse. E, de resto, sentiu no coraçãouma espécie de remorso a bradar-lhe que respeitasse uma criatura inofensiva.Parecia-lhe ter encontrado uma amiga naquele deserto sem limites. Pensouinvoluntariamente em sua primeira amante, a quem apelidara de Mimosa,  por

antífrase, pois era de um ciúme atroz que, durante todo o tempo que durou suapaixão, viveu sempre no temor do punhal com que ela costumava ameaçá-lo. Essalembrança da sua juventude sugeriu-lhe fazer com que atendesse por esse nome a

 jovem pantera, cuja graça, agilidade e languidez admirava agora com menosreceio.

Pelo fim do dia, já se familiarizara com a sua perigosa situação, e quase que lheamava as angustias. Enfim, a companheira acabara por tomar o habito de olhá-loquando ele gritava em voz de falsete: Mimosa! Ao pôr do sol, Mimosa fez ouvir porvários vezes um grito profundo e melancólico.

- “ Ela é bem educada!... – pensou o alegre soldado. – Faz as suas orações.

Mas esse gracejo mental só lhe ocorreu depois que notou a atitude pacifica em quepermanecia a sua camarada.

-  “Anda, minha loirinha, eu deixarei que te deites em primeiro lugar”. – disse-lheentão, contando com a agilidade de suas pernas para fugir o mais depressa possívelquando ela estivesse dormindo, a fim de ir procurar outro abrigo durante a noite.

VII

UM SERVIÇO COMO OS PRESTAM AS RAPARIGAS

O soldado esperou com impaciência a hora da fuga e, no momento azado, marchourapidamente na direção do Nilo; mas não havia andado um quarto de légua pelasareias, quando viu a pantera vir saltando em seu encalço e soltando a espaçosaquele som de serra, mais assustador ainda que o surdo rumor de seus pulos.

- “Bem, ela simpatizou comigo”... – pensou ele. – Essa jovem pantera talvez aindanão tenha encontrado ninguém, e é lisonjeiro ser o seu primeiro amor!”  

No mesmo instante, o francês tombou num desses areais movediços tão temíveispara os viajantes e de onde é impossível escapar. Sentindo-se apanhado, soltou umgrito de alarma; a pantera agarrou-o com os dentes pela goela, e, saltandovigorosamente para trás, tirou-o do abismo como por magia.

- Ah! Mimosa – exclamou o soldado, acariciando-a com entusiasmo – agora entrenós é para a vida e para a morte!... Mas nada de brincadeiras!

E voltou para trás.

O deserto ficou desde então como que povoado. Encerrava uma criatura a quem ofrancês podia falar e cuja ferocidade se abrandara para ele, embora não atinassecom as razoes daquela incrível amizade. Por mais forte que fosse o seu desejo depermanecer de pé e em guarda, o soldado acabou adormecendo. Ao despertar, nãoviu mais Mimosa; subiu a colina e, ao longe, viu que ela vinha aos saltos, segundoo habito desses animais, a quem é impossível a marcha, devido à extrema

flexibilidade de sua coluna vertebral. Mimosa chegou com o focinhoensangüentado; recebeu as caricias necessárias que lhe fez o companheiro,

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testemunhando até, com vários ron-rons, graves, o quanto sentia feliz com elas.Seus olhos, cheios de languidez, voltaram-se com mais doçura ainda do que navéspera para o provençal, que lhe falava como a um animal domestico:

- Ah! Ah! Senhorita, pois você é uma boa rapariguinha, não? Com que então gostade uns carinhos! Não tem vergonha? Andou comendo algum berbere?... Vá lá! São

uns animais como você... Mas ao menos não me vá papar com os franceses... Aí eunão gostaria mais de você!

Ela brincou como brinca um cachorrinho com o dono, deixando-se rolar, bater eacariciar alternadamente; e ás vezes provocava o soldado, avançando a para paraele, num gesto de solicitação.

Vários dias assim se passaram.

VIII

MIMOSA, DISCRETA E FIEL

Tal companhia permitiu ao provençal admirar as sublimes belezas do deserto. Umavez que ali encontrava horas de temor e de tranqüilidade, alimento e uma criaturaem que pensava, teve a alma agitada pelos mais variados sentimento... Era umavida cheia de contrastes. A solidão revelou-lhe todos os seus segredos, envolveu-ocom seus encantamentos. Descobriu no erguer e no deitar do sol espetáculosdesconhecidos aos demais. Soube estremecer ao ouvir acima da cabeça o suaveaflar das asas de um pássaro, - raro passageiro! – ao ver as nuvens confundirem-se, - viajantes mutáveis e coloridas! Viveu com a luz do oriente, admirou-lhe aspompas maravilhosas; e muitas vezes, depois de ter gozado do terrível espetáculode um furacão naquela planície onde as areias soerguidas produziam nevoeirosrubros e secos, nuvens mortais, via chegar a noite com delicia, pois tombava então

o benfazejo frescor das estrelas. Ouviu a musica imaginaria das alturas. Depois, asolidão lhe ensinou a explorar os tesouros das longas crinas. Passava horas inteirasa recordar pequeninos nadas, a comparar sua passada vida com a vida presente.

Enfim, apaixonou-se pela pantera, pois bem que precisava de uma afeição. Ouporque a sua vontade, poderosamente projetada, houvesse modificado o caráter desua companheira, ou porque ela encontrasse abundante alimento, graças àsbatalhas que então se travavam naqueles desertos, o fato é que ela respeitou avida do francês, que não mais se arreceou, ao vê-la tão bem domesticada.

Empregava a maior parte do tempo a dormir; mas era obrigado a vigiar, como umaaranha no centro de sua teia, para não deixar escapar o momento de sualibertação, se alguém passasse na esfera descrita pelo horizonte. Sacrificara acamisa para fazer uma bandeira, erguida no alto de uma palmeira sem folhas.Aconselhado pela necessidade, soube encontrar o meio de conservá-la desfraldada,distendendo-a com varinhas, pois o vento poderia não agitá-la no momento em queo esperado viajante sondasse o deserto...

Era durante as longas horas em que a esperança o abandonava que ele se divertiacom a pantera. Acabara por conhecer as diferentes inflexões de sua voz, aexpressão de seus olhares, estudara os caprichos de todas as manchas quematizavam o ouro do seu pêlo. Mimosa já nem sequer rugia quando ele pegava otufo em que terminava a sua temível cauda, para contar-lhe os anéis negros ebrancos, gracioso ornamento que brilhava longe ao sol como pedras preciosas.Sentia prazer em contemplar as linhas suaves e finas de seus contornos, a

brancura do ventre, a graça da cabeça. Mas era sobretudo quando ela brincava queele a fitava com mais complacência, e sempre o surpreendia a agilidade, a

7/16/2019 Balzac, Honoré de - Uma Paixão No Deserto

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 juventude de seus movimentos; admirava-lhe a flexibilidade quando ela se punha asaltar, a rastejar, a deslizar, a ocultar-se, a agarrar-se, a rolar, a encolher-se, alançar-se por toda parte. Por mais rápido que fosse o seu impulso, por maisescorregadio que fosse um bloco de granito, ela parava de súbito ao chamado de

 “Mimosa!”  

Um dia, por um sol fulgurante, um imenso pássaro pairou nos ares. O provençaldeixou a sua pantera admirar o novo hospede, mas, após um momento de espera,a sultana abandonada rugiu surdamente.

-  “Creio que ela é ciumenta, Deus me perdoe! – exclamou ele, ai ver seus olhosvoltarem à antiga dureza. – Decerto a alma de Virgínia passou para esse corpo”...”  

A águia desapareceu nos ares enquanto o soldado admirava o talhe roliço dapantera. Mas havia tanta graça e juventude nos seus contornos! Era lindo comouma mulher. O loiro pêlo das costas se casava por finas tonalidades ao brancofosco que distinguia as coxas. A luz profusamente lançada pelo sol fazia brilhasaquele ouro vivo, aquelas manchas pardas, de maneira a lhe dar indefiníveis

encantos. O provençal e a pantera olharam-se um e outro com o ar de inteligência;a faceira estremeceu quando sentiu as unhas do amigo arranhar-lhe o crânio, seusolhos brilharam como dois relâmpagos, depois fechou-os fortemente.

-  “Ela tem uma alma!” – disse ele, estudando a tranqüilidade daquela rainha dasareias, dourada como elas, branca como elas, solitárias e ardente como elas...

IX

UM MAL-ENTEDIDO

- E então –  disse-me ela –  li a sua defesa em favor dos animais; mas como

acabaram duas pessoas tão bem feitas para se compreenderem?- Aí está!... Acabaram como acabam todas as grandes paixões, por um mal-entendido. Acredita-se, de um lado e de outro, numa traição, ninguém se explicapor orgulho, e ambos rompem por teimosa.

- E às vezes nos mais belos momentos –  disse ela. –  Basta um olhar, umaexclamação... Pois bem, termine a historia.

- É horrivelmente difícil, mas você me compreenderá o que já me confiara oveterano quando, ao findar sua garrafa de champanha, exclamou: - Não sei quemal lhe fiz eu, mas ela voltou-se como se estivesse raivosa e, com os seus dentesagudos, me mordeu a coxa, levemente sem duvida. Eu, julgando que ela quisessedevorar-me, mergulhei-lhe o punhal no pescoço. Ela caiu, soltando um grito queme gelou o coração, eu a vi debater-se a olhar-me com cólera. Eu desejaria portudo no mundo, pela minha cruz que eu ainda não tinha, devolver-lhe a vida. Eracomo se tivesse assassinado uma pessoa de verdade. E os soldados que tinhamvisto a minha bandeira e que acorreram em meu socorro, vieram encontrar-me empranto... – Pois bem, meu senhor – tornou ele, após um momento de silencio – eucontinuei depois a guerra na Alemanha, na Espanha, na Rússia, na França; passeeium bocado o meu cadáver, e nada vi de semelhante ao deserto... Ah! Como eralindo aquilo! – Que sentia o senhor? – perguntei-lhe. – oh! Isso não se explica, meurapaz. Alias, não lamento sempre o meu grupo de palmeiras e a minha pantera...só quando estou triste. No deserto, compreende o senhor, há tudo, e nada hánada... – Mas ainda assim explique-me... – Pois bem – disse ele, deixando escapar

um gesto de impaciência – é Deus sem os homens...

7/16/2019 Balzac, Honoré de - Uma Paixão No Deserto

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Paris, 1832.