218
7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT) http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 1/218 1

Banished - Sophie Littlefield (PT)

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 1/218

1

Page 2: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 2/218

2

 BANIDOS 

Sophie Littlefield 

Page 3: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 3/218

3

Prólogo Junho de 1995 

 Acordar era doloroso. A cabeça latejava e havia alguma coisa em seus olhos, algo pegajoso e mornoque prejudicava a visão.

Ela piscou com firmeza e conseguiu enxergar melhor, o suficiente para perceber que estava em umcarro.

Não um carro qualquer, mas o do namorado. Era um Celica Branco, e ao mover a mão ela tocou as próprias pernas, sentindo o tecido sedoso e macio do vestido. O contato a fez lembrar: era noite de formatura,e eles estavam a caminho do Boone Lake levando a garrafa de champanhe que ele comprara uma garrafa emum balde com gelo. Antes de sair, ela havia passado pelo banheiro feminino para retocar o batom e o perfume, preparando-se para se despedir de todos os amigos reunidos no ginásio da escola. Lá, no espaço decorado com fitas e balões coloridos, os professores sorriam e acenavam para eles, porque eram bons alunos, tinham boasnotas e não criavam problemas. 

 Mas seu namorado havia bebido muito desde que chegaram na festa de formatura, e apesar de não

estar exatamente bêbado, ele dirigia em alta velocidade pela State Road 9, os dois rindo muito enquanto ele fazia as curvas com uma das mãos no volante, a outra deslizando pelas dobras macias do tecido verde de suasaia. 

E ela não o detivera. Porque gostava de sentir a mão dele ali. E mal podia esperar para poder beijá-lo

Page 4: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 4/218

4

de novo. E estava gostando da velocidade e dos perigos das curvas da estrada, porque era como voar para o futuro, para o dia que deixariam Gypsum para nunca mais voltar.

 Mas alguma coisa havia acontecido.

 Agora não havia luzes no carro, nem mesmo o brilho do painel. Mas os faróis continuavam acesos,um deles iluminando o bosque à direita da árvore contra a qual haviam batido. 

O outro farol entortara e projetava sua luz num ângulo maluco. O raio iluminava o corpo dele caídono chão a uns três metros do carro, numa posição que não parecia nada natural.

Ela começou a gritar, arrancando o cinto de segurança e empurrando a porta, mas não conseguiaabri-la, estava emperrada ou presa, e ela rastejou para o banco do motorista, raspando o joelho em algumacoisa afiada, o pára-brisa, o pára-brisa que se quebrara, ou, ela percebeu horrorizada, havia sido estilhaçado pelo corpo de seu namorado. Ele nunca usava o cinto de segurança, por isso voara pelo pára-brisa e passara

 por cima do capô do Celica destruído, indo aterrissar no chão de terra, onde jazia ferido e sangrando. 

 A porta do lado do motorista cedeu um pouco, e ela se espremeu pela fresta e saiu do carro,tropeçando na barra do vestido, o lindo vestido tomara-que-caia que , ninguém sabia, fora comprado na St.Benedicti’s, uma loja barata em Tipton, mas se ajustava em seu corpo como se houvesse sido feito sobre

medida. 

Levantando a saia, ela correu na direção do namorado, tropeçando no salto antes de cair de joelhos aolado dele. A mão, aberta e com a palma voltada para cima como se ele tentasse alcançar alguma coisa, sofreuum espasmo no mesmo instante em que os lábios se moveram. Os olhos dele era vidrados e sem foco, e ela se

inclinou para tentar ouvir o que o namorado tentava dizer. 

- Dói... - ele conseguiu murmurar, passando a língua pelos lábios secos e cortados.

- Não, por favor, não... - ela respondeu, abrindo o paletó do smoking com toda delicadeza de que eracapaz. 

 A imagem provocou um pavor que oprimiu sua garganta. Era demais. O ferimento era muito grave. A ferida aberta e escura brilhava à luz da lua, e o sangue que dela jorrava molhava a terra fria e seca.As mãostocaram a área do ferimento, os dedos tentando determinar seu tamanho exato, as palavras dançando em seuslábios antes mesmo de ela perceber que havia tomado uma decisão.

 Mas o rapaz falou primeiro.

- Eu... Eu amo...

Page 5: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 5/218

5

 A voz era tão fraca que foi quase impossível ouvi-la, mas um brilho de compreensão iluminou seusbelos olhos castanhos, e ele a olhou como fazia quando ia buscá-la na escola, como a olhara na primeira vezque ela passara pela frente do armário dele no ano anterior, como fazia quando procurava seu rosto na

multidão depois de cada partida de futebol.

Era um olhar que a via, que a reconhecia, realmente reconhecia de um jeito que a mãe nunca areconheceu, e o pai, quem quer que fosse sequer havia tentado. Era o olhar no qual ela depositava todos ossonhos, cada esperança, mesmo as mais tolas, e quando ele piscou duas vezes, revirando os olhos que setornavam opacos novamente, ela disse as palavras.Disse as palavras como a avó havia ensinado, as sílabasdeslizando como fita de gaze por entre seus lábios, palavras que ela entoara centenas de vezes no passado, emnoites iluminadas por chamas tremulantes de velas e pelos olhos brilhantes e determinados de sua avó. Cemvezes, cem noites, mas essa noite era a primeira vez que ela rezava com fervor para que as palavras funcionassem.

Um movimento, um suspiro  –  ela parou no meio de uma palavra cujo som estava gravado namemória, mas cujo significado nunca soubera realmente, não como sua avó sabia não como ela temia saber.Seu namorado se moveu novamente, piscou, e ela tocou seu rosto.

- Não me deixe  – a jovem sussurrou  – Por favor, não me deixe...  – O coração batia forte no peito, porque ele não a abandonara. Quase morrera, mas ela o havia trazido de volta, dissera as palavras.

E ele voltara.

Quando se inclinava para beijá-lo e abraçá-lo, ela o viu piscar mais uma vez e abrir os olhos,mantendo-os abertos...... E não havia nada neles...

- Vincent – ela murmurou, sentindo o coração congelar. – Vincent, por favor, Vincent, por favor...

 Mas ele não respondia. Seus olhos estavam vazios e os lábios estavam imóveis. A floresta em tornodeles era escura e silenciosa como uma pedra.

Page 6: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 6/218

6

Capítulo 1Agora 

Quando eu tinha oito anos, assistentes sociais finalmente obrigaram minha avó a me mandarpara a escola. Até então, ela havia dito as autoridades que me alfabetizava em casa, mas após anossem nunca entregar a documentação exigida nem se apresentar para as obrigatórias reuniões comprofessores, os representantes do serviço social finalmente se cansaram e decidiram que eu tinhaque ir para a escola normal. Vovó acatou a determinação; ela sabia quando havia perdido uma briga.

A primeira coisa que notei nas outras crianças foi que todas pareciam prontas para aparecerna tevê. Eu as chamava de “Limpas”. Suas roupas eram novas e passadas a ferro. Os cabelos

 brilhavam e estavam sempre penteados. As unhas eram curtas e não tinham aquela sujeira pretaque eu sempre via sob as minhas, desde que podia me lembrar. Ninguém precisava me dizer que,comparada com aquelas crianças, eu era suja.

Mas isso não detinha as crianças no ônibus. No final da minha primeira humilhante viagemà escola, eu havia sido chamada de vários nomes feios e havia sido acusada de ter piolhos e umaavó bruxa. A viagem de volta para casa não foi diferente, embora o Sr. Francheski tenha parado oônibus, ficado de pé e gritado:

- Vocês todos foram criados em estábulos? Onde está a educação de vocês? Sejam gentis comessa nova menina.

Page 7: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 7/218

7

Naquele primeiro dia eu cheguei em casa chorando. Isso foi antes de Chub ir morar conosco,e embora eu soubesse que não deveria esperar nada da minha avó, deixei minha mochila com oslivros no chão e corri até sua poltrona favorita na frente da televisão, onde ela fumava e assistiaMontel. Contei tudo que havia acontecido, como as crianças me haviam chamado de suja e de lixo.

Vovó deu de ombros, inclinando o pescoço para enxergar a tevê atrás de mim.

- Acho que você sabe onde fica o sabão. – ela disse irritada. – E é capaz de passar uma escovano cabelo, se quiser. Agora saia da minha frente.

Hoje, oito anos mais tarde, meu cabelo está limpo. Foi lavado ontem á noite e secado comum secador que comprei com minhas economias. Eu uso rímel e batom que comprei com meupróprio dinheiro, trocados que ganhei trabalhando para minha avó. Mas o resto, tudo o que eutenho, é de segunda mão, algo que sempre me incomodou quando eu percorro os corredores deGypsum High. Minhas roupas nunca são ideais. Minha mochila nunca é ideal. Meus sapatos,

meus cadernos, meu corte de cabelo, errado, errado, errado – e todo mundo sabe disso.

Gypsum podia ser uma cidade de ruas no meio do nada, no Missouri, mas há ali umaestrutura como em qualquer outro lugar, crianças populares, crianças mais ou menos, crianças quepassam despercebidas, e os fracassados. E pessoas como eu, tão baixo de todo mundo que nemvale a pena o esforço de tentar classificar.

Naquele dia eu tinha aula de educação física no segundo período. Meu armário ficava aolado do de Claire Hewitt. Claire sempre tinha um perfume suave de talco infantil e óleo de motor,e seu cabelo era uma nuvem arrepiada que caía até um pouco abaixo dos ombros, mas, quando

abri meu armário, até ela se encolheu como se quisesse ficar longe de mim.

Quando você está perto do fundo da pirâmide social escolar, como Claire, a única coisa quepode ser realmente prejudicial é se relacionar com alguém que está ainda mais abaixo. E não havianinguém abaixo de mim. Nem Claire. Nem Emily, que era manca e vesga. Nem mesmo osMorries. Ninguém.

Comecei a vestir minhas roupas de ginástica, sem me dar ao trabalho de tentar falar com ela.De que adiantaria?

- Ei, Hailey – chamou Shawna Rosen, aparecendo do meu lado sem aviso prévio. – Você estáusando sapatos de enfermeira?

As meninas que a seguiam se aproximaram de mim e olharam para os meus pés, enquantoClaire fechava a porta de seu armário e se afastava apressada. Eu podia sentir a agitação do grupo.

Page 8: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 8/218

8

Elas nunca ficavam mais felizes do que quando podiam lembrar alguma garota pobre da distânciaque havia entre a sua existência patética e a vida no topo da pirâmide.

Ás vezes, quando Shawna e sua turma iam atrás de mim, eu as enfrentava. Olhava com

firmeza para aqueles olhos maquiados e transmitia desprezo. Mas dessa vez não foi assim queeu agi. Eu recuei me afastando de Shawna e andando de costas pelo corredor largo entre as fileirasde armários, batendo em alguém que estava atrás de mim, tropeçando e quase caindo. Minha mãotateou o ar tentando encontrar algum apoio, talvez um dos armários, mas, desanimada, descobrique havia tropeçado em alguém do grupo dos Morries.

- Desculpe – murmurei, mas elas seguiram em frente, desaparecendo antes que euterminasse de falar, sumindo em outro corredor sem dizer uma única palavra.

Era raro, quase impossível ver um dos Morries sozinho. Eles permaneciam juntos nos

corredores, no fundo da sala e nas mesas da cantina, escolhendo sempre as mais afastadas da filados que se serviam da comida, mantendo-se em grupos silenciosos de três ou quatro. Como eu,eles não participavam de nenhuma atividade esportiva ou dos clubes extracurriculares. Asmeninas tinham cabelo comprido que escondia parcialmente o rosto. Os garotos eram tão magrosque a calça jeans suja e desfiada estava sempre caindo.

Eles nunca se manifestavam na sala de aula. Se eram chamadas, as meninas falavam tão baixo que logo os professores desistiam delas. Os meninos eram mais ousados, azedos, críticos eemburrados. Não sem importavam com notas, nem mesmo quando o assistente de diretoria oschamava para falar sobre seu desempenho acadêmico, o que acontecia freqüentemente.

Eles eram chamados de “Morries” por causa da rua Morrim, pr incipal via que cortava aCidade do Lixo, que era como todo mundo chamava o bairro pobre na periferia de Gypsum,menos de um quilometro além de nossa casa. Não sei quem começou a chamá-los por esseapelido, mas se houve algum tempo em que os garotos da Cidade do Lixo se misturavam com osLimpos na escola, esse tempo pertencia a um passado muito distante.

Shawna e as amigas se cansaram de me atormentar e foram embora, e eu tive de me apressarpara terminar de me arrumar, e já estava atrasada para a aula. A Sra. Turnbull e o Sr. CougWinnem perceberam, porque estavam ocupados retirando os cavalos , a trava e as barras paralelas dolugar onde ficavam guardados, no fundo do ginásio. Respondemos á chamada e formamos umafila atrás do equipamento. Ninguém parecia muito feliz com a situação, mas minhas razões paraestar insatisfeita eram diferentes das de todos os outros, provavelmente. Não que eu fosse ruimnaquela atividade. O problema era que eu era boa – boa demais.

Page 9: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 9/218

9

Eu sempre me perguntara se Deus me compensara por ter me criado tão esquisita, por eunão ter amigos e ter uma terrível vida doméstica, me dando aquela habilidade atlética natural. Seera isso, eu adoraria fazer uma troca. Era rápida e forte, conseguia me equilibrar bem, e lançava epegava bolas com precisão incrível, mas em vez de servir para me aproximar mais dos alunos,

essa habilidade só me trazia – sim, o que mais? – problemas.

No sexto ano, meu professor de educação física percebeu que eu tinha o terceiro melhortempo de corrida da escola. Ele me fez correr tiros rápidos seguidos por mais um quilometro emeio, oito vezes a pista completa, marcando meu tempo com seu cronômetro.

Cada vez que eu passava por ele, eu via sua expressão mais atenta e animada. Quandoterminei o teste, ele correu até onde eu estava me alongando – todos ali estavam sempre falandosobre a importância do alongamento depois da prática de exercícios – e me convidou paracomeçar a treinar com a equipe de corrida do ensino médio.

Fiquei tão surpresa, que não consegui pensar em uma resposta com a rapidez suficiente.Nunca havia imaginado que alguém me convidaria para participar de um time ou uma associaçãoacadêmica. Mas é claro que não pude participar da equipe. Minha avó jamais teria permitido. Elanão queria que eu nem freqüentasse a escola. Se os assistentes sociais não a tivessem obrigado, elanunca teria permitido que eu saísse de casa, exceto para fazer alguma coisa para ela.

Uma vez, ainda nos primeiros anos da escola, recebi um convite para uma festa deaniversário. Corri para casa com o coração disparado de alegria e animação. Sabia que a dona dafesta não queria realmente que eu fosse que a mãe a obrigara a convidar todos os alunos da sala,mas não me importava com isso. Eu nunca havia ido a uma festa de aniversário. Minha avó não

dava muita importância para esse tipo de comemoração, por isso o meu aniversário passava todoano sem bolo, sem presentes, sem música – e eu queria ir desesperadamente à festa.Minha avó leu o convite, seus lábios se movendo sem realmente pronunciar as palavras, e

depois ela franziu a testa e o rasgou em pedaços.

-Você não precisa se misturar com as outras crianças – disse.

Quando meu professor de educação física insistiu em mandar o formulário de autorizaçãopara eu participar da equipe de corrida, minha avó escreveu com grandes letras de forma na parteem que deveria fornecer informações sobre meu histórico médico:

"HAILEY NÃO TEM MINHA AUTORIZAÇÃO PARA PRATICAR NENHUM TIPO DEESPORTE".

Desde então, tenho tomado cuidado para não deixar ninguém perceber que sou boa nas

Page 10: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 10/218

10

atividades esportivas.Mas hoje seria difícil. Eu estava na fila do cavalo para salto. Olhei para o velho objeto

coberto de couro e tentei pensar em um jeito de me fingir desajeitada. Seria complicado; se eu me jogasse por cima do cavalo, acabaria me machucando muito. E eu não sabia se havia outra

maneira de não saltar por cima dele com perfeição.

Como eu poderia passar por uma pessoa desajeitada enquanto voava graciosamente porcima do aparelho, deixando o instinto me dominar? Consegui, mas tive de recorrer a toda minhaconcentração. Fiz um esforço para me desequilibrar e cair da trava de equilíbrio; fingi não ter forçapara me sustentar nas barras paralelas. Quando o senhor C olhou para mim com ar dedesaprovação e balançou a cabeça, senti uma onda de orgulho.

Se ele soubesse...

Eu estava no fim da fila, feliz por ter conseguido escapar mais uma vez, quando MillaSwanson se preparou para cumprir a rotina de exercícios. Milla era uma Morrie, uma garotamagra com cabelo cor de mostarda grudada na tampa do pote. Ela se aproximou do cavalo compassos curtos, inseguros, mantendo a cabeça baixa como se esperasse que o chão se abrisse num buraco e a tragasse antes do salto. Eu a observava sem muito interesse quando ela pisou no velhotrampolim de madeira, mas percebi que ela hesitava. Em vez de saltar uma única vez e comfirmeza, como nos ensinaram desde a primeira aula, ela balançou sobre o trampolim e quasetropeçou quando saltou para o cavalo. As mãos escorregaram sobre o couro do revestimento. Àsvezes isso acontecia; um aluno saltava errado para o cavalo, e escorregava ou caía do outro lado,normalmente se levantando em seguida com grande vergonha, mas não mais do que um arranhão

e um hematoma. Eu mesma havia passado por isso uma ou duas vezes no meu esforço de parecerdesajeitada.

Mas quando Milla bateu com as mãos sobre o cavalo, o impulso a jogou para cima com maisforça do que o esperado, e ela caiu para trás, em vez de passar por cima do cavalo, e de costas. Eume encolhi quando ouvi o barulho dos ombros se chocando contra a madeira do piso. Aquilodevia doer muito. Mas, em seguida, escutei outro barulho e uma reverberação que pude sentir sobmeus pés no chão duro do ginásio. Milla havia batido com a cabeça no trampolim.

As duas meninas na ponta da fila saltaram para trás e gritaram e durante um segundoninguém se moveu. Milla rolou lentamente para o lado, a cabeça caindo do trampolim para ochão, os braços inertes ao lado do corpo.

Alguém gritou.

Page 11: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 11/218

11

A senhora Turnbull e o senhor C correram, mas eu fui a primeira a chegar perto de Milla.Nem percebi que estava me movendo até me abaixar ao lado dela, tentar segurar sua mão, e sentira senhora Turnbull me tirando da frente.

- Não toque nela! - ela gritou, apesar de o senhor C também ter se abaixado e estarsegurando a mesma mão que eu pretendia pegar.

Eu me afastei, mesmo sem querer. Havia alguma coisa dentro de mim, uma força emmovimento, um impulso que fazia meus dedos vibrarem com a necessidade de tocar Milla, umaurgência que fazia o sangue correr em minhas veias com uma persistência quente, quase comofogo. Eu queria - não, eu precisava ajudar pôr minhas mãos sobre Milla, e mesmo percebendoquanto meu impulso era bizarro, tive de fazer um grande esforço para contê-lo.

Voltei para o círculo formado pelos alunos. A senhora Turnbull e o senhor C falavam em

voz baixa, tomando a pulsação de Milla e balançando a mão diante dos olhos dela, que estavamabertos e imóveis. A senhora Turnbull aproximou o rosto do da menina, como se fosse beijá-la noslábios, mas virou a face.

- Ela está respirando - todos nós a ouvimos dizer.

- Está inconsciente - o senhor C acrescentou com um tom que atraía pânico.

Vi as pontas finas do cabelo que ele penteava sobre a cabeça meio calva e sardentatremerem, resultado do esforço que ele fazia para se afastar rastejando do corpo inerte da aluna,

como se ela estivesse em chamas. Compreendi que ele não sabia o que fazer, apesar de todos osanos que passara lecionando técnicas de primeiros socorros.

- Vou pedir ajuda - a senhora Turnbull avisou, levantando-se e correndo para a sala dosprofessores no fundo do ginásio.

Nos segundos que levei para deixar o círculo de alunos e correr novamente para perto deMilla, não houve um único som no ginásio. Ninguém falou, tossiu, nem disse meu nome.Ninguém tentou me deter. Mas quando segurei a mão fria e inerte de Milla, a mão de unhaslascadas e palmas calejadas, deixei de ouvir o ambiente a minha volta.

Quero dizer, não ouvia nada no ginásio. Dentro da minha cabeça começava a soar umestranho coro, um cântico sussurrado que não fazia sentido. Um segundo depois minha visão seapagou. Não creio que tenha fechado os olhos, mas tudo desapareceu e foi como se eu estivesseolhando para o tempo, vendo-o se mover para frente e para trás ao mesmo tempo, como se eu

Page 12: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 12/218

12

houvesse saltado de um penhasco e pairasse no ar em algum lugar do espaço vazio e negro.

- Milla - sussurrei, e senti meus lábios se moverem, o que me deu certeza absoluta de quehavia falado, e depois tive aquela mesma sensação de sangue correndo mais quente, como se toda

a energia em meu corpo fosse direcionada para a ponta dos meus dedos, de onde se dissipavapara o corpo de Milla. Soltei uma das mãos dela e meus dedos se moveram por sua nuca e pelorosto, até encontrarem a parte de trás de cabeça, que estava quente e úmida. O cabelo estavacolado sobre um grande edema que crescia ainda mais sob meu toque. A sensação se tornou maisintensa em minhas veias, e foi como se meu coração batesse mais devagar e falhasse. Comecei acair, mas não conseguia soltá-Ia, não conseguia parar de tocar o corpo ferido de Milla. Quandosenti que tinha esgotado toda minha energia, alguma coisa me empurrou com força e eu caí delado no chão. Visão e audição retornaram imediatamente.

- Que diabo acha que está fazendo? - gritou a senhora Turnbull, seu rosto vermelho e a mão

erguida como se ela pretendesse me agredir, e talvez ela tivesse mesmo me batido, se nessemomento Milla, deitada no chão aos pés dela, não houvesse se virado para vomitar.

E foi bom ela ter vomitado, porque a sra. Turnbuli se esqueceu completamente de mim.Milla se sentou, limpando a boca na manga da blusa, soluçou duas vezes e olhou em volta comose fosse chorar, mas a senhora Turnball começou a gritar uma série de perguntas, e ela asrespondeu, falando tão baixo que nenhum de nós conseguia ouvi-la.

Voltei para o círculo de alunos, e dois deles vieram me perguntar o que havia acontecido,mas a porta do ginásio se abriu com um estrondo antes que eu pudesse responder. O senhor

Macklin, vice-diretor, entrou e começou a berrar para todos irem trocar de roupa para a próximaaula, porque tudo estava sob controle e ninguém precisava se preocupar.

Eu acompanhei o grupo, mas não consegui deixar de olhar para trás, para Milla, que tentavase levantar enquanto a senhora Turnbull a segurava mantendo-a no chão. Milla me observava. Oolhar que ela lançava na minha direção era difícil de entender: medo e desprezo na mesmamedida, com um pequeno traço de gratidão.

A única emoção completamente ausente de seu rosto era surpresa.

Page 13: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 13/218

13

Capítulo 2Naquela tarde fui a pé ao mercado em vez de pegar o ônibus. Precisava caminhar,

pensar no que havia acontecido no ginásio. Estava confusa. Não conseguia parar de reprisarmentalmente tudo que acontecera, o som da cabeça de Milla batendo no chão, a sensação dapele sob meus dedos, a vertigem que senti quando a toquei.

Quando cheguei em casa carregando as sacolas com as compras, Rascal atravessou oquintal correndo para me encontrar. Ele era mestiço de bluetick, beagle, e mais alguma coisa.Vovó ganhou o cachorro de presente de uma cliente depois de um vira-lata ter pulado o murode sua casa e cruzado com sua cadela, uma basset round premiada. A cliente ia se desfazer daninhada inteira, mas vovó se encantou com Rascal. Por algum tempo, pelo menos - ela secansou quando ele deixou de ser filhote.

Rascal farejou minha mão, depois correu para dentro de casa e para Chub, que estavasentado na frente da porta aberta de um armário da cozinha, brincando com as panelas cujastampas rolavam pelo chão.

- Rastal! - Chub exclamou, batendo palmas antes de abraçar o cachorro.

"Rastal" era um das melhores palavras de Chub. Ele me chamava de "Hayee", econseguia dizer "aua" para pedir água e "deia" para se referir a cadeira. Para outras coisas eletinha nomes especiais, sons que não tinham nenhuma relação com a palavra realmente

utilizada, como "fufa" para flor e "bubu" para caminhão. Na maior parte das vezes ele nemformava palavras, apenas balbuciava ruídos mais ou menos altos que só ele conseguia ouvir.Eu sabia que havia algo errado com Chub. Tentei descobrir o que era persquisando na

internet, mas encontrei tantas causas para atraso no desenvolvimento que nem sabia por ondecomeçar. Sabia que no final, os assistentes sociais exigiriam que ele fosse submetido a exames,

Page 14: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 14/218

14

mas não estava ansiosa por esse dia, porque temia que o pusessem em um abrigo para criançascomo ele. E eu não queria que Chub fosse embora. Nunca. Além de Rascal, ele era tudo que eutinha para amar.

Quando Chub chegou para morar conosco, vovó mudou. Ela passava algum tempocom ele todos os dias, murmurando palavras suaves enquanto eu fazia as tarefas domésticas,mostrando brinquedos e cartas de baralho e tentando faze-lo falar. Eram bons tempos. Se Chubfazia algo novo, se engatinhava até minha avó ou tentava pegar os blocos brilhantes que elamostrava, vovó comemorava; desligava a televisão e não bebia tanto, e até elogiava o jantar queeu havia preparado. Mas quando Chub tinha um dia ruim, quando ele não repetia os sons queela fazia, ou se comia terra do quintal, vovó parecia afundar um pouco mais em sua poltrona.Fui me apegando cada vez mais a Chub, e enquanto me aproximava fui percebendo que ela ovia como um projeto, uma experiência. E quando ela não conseguiu concertar o que estavaerrado com Chub, minha avó desistiu.

Dois meses depois ela estava novamente passando os dias na poltrona diante da tevê,fumando. Passou a beber muito durante o dia e quase nem prestava atenção a Chub, mascontinuava recebendo os cheques que o estado mandava por ela cuidar da criança, que setornou minha responsabilidade, como havia acontecia com Rascal.

-Trouxe meus cigarros? - Vovó perguntou de sua cadeira, chiando ao falar.

Ela fazia a mesma pergunta toda vez que eu voltava do mercado, como se euesquecesse. Minha avó fumava um maço e meio por dia, e eu dei a ela os quatro maços de

Marlboro com o recibo e algumas moedas de troco. Os cigarros custavam quase metade do queeu havia gastado comprando comida, mas eu nem me atrevia a sugerir que ela parasse. A únicavez que tentei, ela me deu uma bofetada no rosto, e foi tão rápida e tão violenta que fiquei semar.

Minha avó era cruel, mas também era fraca e doente na maior parte do tempo, por issoeu podia ficar fora do seu caminho, se tentasse. De manhã ela acordava tossindo e cuspindocoisas nojentas na pia, e muitas noites ela adormecia bêbada na poltrona. E ela me dava ordenso tempo todo como se eu fosse uma empregada. Eu não me incomodava muito com o serviçodoméstico - tinha um gosto especial por manter a casa limpa, e teria cuidado de tudo mesmoque ela não mandasse. E ela me pagava pelo serviço, mesmo que fosse só uma fração do saláriomínimo.

Guardei as compras e comecei a preparar sloppy joes. Refoguei as cebolas e ospimentões congelados, a carne moída, e fui acrescentando molho de tomate aos poucos - como

Page 15: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 15/218

15

fizera milhares de vezes antes. Cozinhar era uma coisa que sempre me acalmava, especialmentecom Chub brincando perto dos meus pés e Rascal cochilando no canto da cozinha, onde eusempre mantinha uma pilha de cobertores velhos para ele.

Minha avó riu de alguma coisa que Tyra Banks havia dito em seu programa, soltoucom grande estrondo os gases que sempre a incomodavam, e eu pensei pela milésima vez comoseria feliz quando Chub e eu saíssemos daquela casa definitivamente. Eu sei que não se deve teresse tipo de sentimento pela própria avó. Todos os avós são superprotetores e intocáveis, emesmo assim espera-se que os netos os amem. Eles devem ouvir seus problemas e oferecerconselhos baseados em toda sua experiência de vida.

- Hoje aconteceu algo estranho na escola - eu disse, acrescentando o ketchup e amistura para sopa de cebola ao refogado na frigideira.. Minha avó nunca me dera um únicoconselho digno de ser lembrado, e assim que comecei a falar eu soube que estava cometendo

um engano. Mas precisava contar sobre Milla. - Milla Swanson se machucou na aula deeducação física .

- Aham - vovó respondeu, sem desviar os olhos da televisão.

- Quero dizer, foi muito grave. Acho que ela ficou inconsciente por alguns minutos.Bateu a cabeça.

-Mmmm.

- Mas eu... bem, acho que talvez eu tenha ... Hmm ... A verdade é que eu só queriaajudar, sabe? Porque a senhora Turnbull queria chamar...

- O que foi que disse?

A voz aguda e cortante de minha avó me assustou, e eu deixei a espátula na frigideira eolhei para ela. Para minha surpresa, vovó fazia um grande esforço para sair da poltrona,gemendo como se o empenho fosse doloroso.

- Eu estava dizendo que Milla caiu e bateu a cabeça. - Fui ajudar minha avó, e elasegurou minhas mãos e se levantou as costas estalando alto.

- Ela perdeu sangue? Abriu a cabeça? Havia osso exposto? O que você fez?

As perguntas tinham um tom aflito, uma urgência que eu nunca ouvira na voz dela, e

Page 16: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 16/218

16

imaginei se ela sabia alguma coisa que eu Ignorava.

- Não foi nada realmente grave. Só um tombo.

- Você disse que ela ficou inconsciente. - Havia agitação e acusação em sua atitude, e osolhos brilhavam e adquiriam uma intensidade que eu nunca vira antes.

- Bem, talvez por um minuto.

- E você a tocou?

- Eu... sim.

- Na cabeça?

- Bem, sim, quero dizer, primeiro nas mãos, e depois nocabelo, basicamente.

- O que você falou?

- O que eu falei?

- Não é uma pergunta difícil, Hailey. O que você disse enquanto a tocava?

- Eu não... não sei. Talvez tenha dito o nome dela, e alguma coisa como "não sepreocupe", ou "vai ficar tudo bem". Não sei mesmo.

Mas enquanto respondia a pergunta de minha avó, alguma coisa surgiu no fundo daminha mente. Eu escutara alguma coisa. Uma trilha sonora esquisita, sílabas sussurradas,ruídos que eu quase não ouvia, porque o sangue correndo em minhas veias parecia soar maisalto que tudo.

- Foi só isso? Você não disse mais nada?

- Não. Mais nada. - Estava um pouco assustada com a intensidade da reação de vovó, esenti ainda mais medo quando ela cerrou as mãos magras como garras em torno dos meus braços, e uma unha comprida quase perfurou minha pele.

-Você já fez isso antes, Hailey? - ela perguntou, aproximando-se o suficiente para eu

Page 17: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 17/218

17

poder sentir seu hálito, uma combinação repugnante de cigarro e podridão. Tive de me esforçarpara resistir ao impulso de me libertar puxando o braço.

- Fiz o quê?

Seus olhos intensos buscavam os meus, e eu tinha a sensação de que ela procuravaalgum sinal, alguma coisa que provasse que eu estava dizendo a verdade - e algo mais, algumacoisa que eu não conseguia entender. Ficamos ali paradas por um momento que pareceu bemlongo, e eu senti o medo crescendo dentro de mim, um medo que alimentava minha confusão eintensificava ainda mais as fortes emoções do dia.

- Acho que você sabe - minha avó finalmente sibilou, apertando meu braço com umaforça que me surpreendeu. - Você sabe o que fez. Durante todo esse tempo estive esperando poralgo que não acontecia, e quando finalmente desisto você vai e faz o que era esperado.

Eu me soltei com um movimento brusco, com o coração aos saltos dentro do peito.

- O jantar vai queimar - resmunguei, e peguei a espátula para mexer a mistura nafrigideira, meu rosto quente com o vapor que se desprendia da comida.

Sentia minha avó parada atrás de mim, me observando. Ela era muito assustadoraquando pensava. Mais do que em qualquer outro momento. Eu preferia que ela me batesse ouque gritasse comigo, mas não queria que me olhasse daquele jeito, porque eu não tinha comosaber em que ela estava pensando.

- Isso não muda nada - vovó resmungou, falando tão baixo que eu quase não ouvi.

Quando me atrevi a virar e olhar, ela havia voltado para a poltrona, e assistia sonolentaa uma propaganda sobre cuidados com o gramado. Servi a comida em três pratos e acomodeiChub sentado à mesa com um guardanapo de papel e um copo de leite com achocolatado.Arranjei um dos pratos e uma cerveja sobre a bandeja da vovó e a servi na frente da televisão.Ela mal se deu ao trabalho de grunhir uma resposta, mas eu a observei enquanto jantava comChub. Ela comia sem nenhum cuidado, derrubando carne na bandeja e no chão, onde Rascal aencontraria mais tarde. Depois de um tempo vovó esfregou o guardanapo na boca e o jogousobre o prato onde ainda havia comida, e eu respirei aliviada, esperando que ela houvesseesquecido a conversa confusa.

Vovó esperava clientes naquela noite. Enquanto eu lavava os pratos ela falava sozinha,erguendo a voz de vez em quando como se conversasse com alguém. Eu passava pela poltrona

Page 18: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 18/218

18

para ir pôr Chub na cama, quando ela estendeu a mão crispada e de unhas amarelas paraagarrar meu pulso.

- Você sabe que é o futuro, Hailey - disse, os lábios retorcidos num arremedo de sorriso

que exibia os espaços vazios onde ela perdera dentes. Minha avó não teria ido a um dentistanem se pudesse pagar, por isso os dentes que restavam em sua boca tinham uma tonalidadeacinzentada. - É você quem vai ficar com o legado.

Puxei o braço para me soltar, mas vovó o segurava com força.

Ela já havia dito coisas parecidas antes; não era nenhuma novidade. Anos atrás euhavia perguntado o que ela queria dizer, e minha avó piscara, fingindo acanhamento, erespondera que eu saberia em breve. Aquela reação me causara um arrepio, o jeito como ela meencarara com seus olhos brilhantes e leitosos, um olhar quase faminto.

- Você agora tem seios, não tem menina? - minha avó perguntou.

Numa reação instintiva, cobri o peito com a mão. O que ela dizia era quase mentira. Euainda era magra demais na região do quadril, e era evidente que nunca teria curvas como as de Jill Kirsch e Stephanie Lee, curvas que eram como Ímãs para os olhos dos meninos quando elaspassavam pelo corredor.

Mas era horrível pensar que vovó havia percebido, que ela estivera olhando para osmeus... para mim.

- E suas regras - ela continuou, chiando e tossindo na manga da blusa.

Eu não havia feito nenhum esforço para guardar segredo. Quando menstruara pelaprimeira vez alguns anos antes, eu soubera o que fazer por ter ouvido conversas entre asgarotas na escola, e guardava meus pacotes de absorventes no armário do banheiro. Mas ouvi-Ia dizer as palavras fez meu estômago revirar, e puxei meu braço com tanta força que a mãodela se chocou contra o braço da cadeira enquanto eu me afastava.

Ela riu, um som carregado que era sempre acompanhado por projéteis de saliva,alguns deles aterrissando em mim. Não consegui me afastar com rapidez suficiente.

- Do que tem tanta vergonha, Hailey? - vovó chiou. - Sua mãe adorava tudo isso. Nãoera muito certa da cabeça e não conseguia falar coisa com coisa, mas isso não a impedia derebolar por aí como uma gata no cio quando cresceu.

Page 19: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 19/218

19

O comentário me fez parar. Vovó nunca falava sobre minha mãe. Tudo que eu sabiasobre ela era que morrera no parto e "não era certa da cabeça". Eu pensava que essa última partepodia ser o motivo pelo qual vovó nunca falava sobre ela, por algum tipo estranho de luto que atornara uma pessoa feia, estranha, e recolhida num silêncio obstinado. Minha avó não me dizia

nem como era o nome dela, e não havia fotos de minha mãe em nossa casa.

- O que... O que... - Gaguejei, e notei que seus lábios se distendiam num sorriso desatisfação presunçosa. Ela conseguira me atingir. Eu a odiava por isso, mas ela me atingira.

- Ah, então agora você tem tempo para falar comigo - vovó comentou. - Sim, sim. Vocênão precisa saber nada sobre sua mãe, exceto que ela estava madura como um pêssego e prontapara ser colhida. Mal os rapazes começaram a se aproximar, e ela ficou grávida.

- Quem... - comecei, mas tive de parar para umedecer meus lábios secos, odiando-me

pela pergunta que estava por fazer. Eu a repetira muitas vezes antes, o suficiente para saber queminha avó nunca a responderia. - Quem é meu pai?

A risada de minha avó se transformou em um ataque de tosse, mas as lágrimas que elasecou de seus olhos úmidos revelavam um humor cruel. -Essa - ela começou, mas teve de pararpor causa de outro ataque de tosse. -Essa é a verdadeira questão, não é? - disse, respirando comdificuldade. - Pode ser qualquer um.

Eu havia aprendido algumas coisas sobre minha avó depois de ter vivido com ela pordezesseis anos. Percebi como ela estreitou os olhos, como comprimiu os lábios. Minha avó

estava mentindo para mim. Eu só não sabia por quê. O que estava escondendo? Às vezes eracomo se nós não tivéssemos nenhum parentesco. Seu corpo era muito frágil, como se estivesseapenas esperando pela hora de morrer, e eu nunca adoecera, nenhuma vez em toda minha vida.Mas ela também me conhecia, em alguns aspectos, até melhor do que eu mesma. E isso era algoque eu odiava. Não conseguia deixar de pensar na conversa que tivemos pouco antes, em todasas perguntas que ela fizera sobre Milla, como se tivesse alguma informação secreta, algumconhecimento misterioso sobre o que havia acontecido. Porém, uma coisa era certa: nadaconvenceria minha avó a me contar alguma coisa que ela quisesse manter em segredo.

Era inútil continuar conversando com ela. Tentei me afastar, mas vovó me deteve.

- Por que a pressa, Hailey? - perguntou, apagando o cigarro no cinzeiro que eu já haviaesvaziado duas vezes naquele dia. Depois estendeu os braços. - Temos visitantes. Venha meajudar a levantar.

Page 20: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 20/218

20

Só então ouvi o som de um carro do lado de fora. Fiz como ela pedia, segurando suasmãos e puxando com mais força do que era necessário, o que a fez cambalear ao ficar em pé.Deixei que ela se apoiasse em mim enquanto estalava os dedos das mãos e o pescoço, movendoa cabeça para um lado e para o outro.

Quando tive certeza de que ela não ia cair, fui preparar Chub para colocá-lo na cama.Normalmente eu o teria levado para o banho, mas as visitas de minha avó logo começariam a beber cerveja, e em breve teriam de usar o reservado.

Escovei os dentes de Chub com uma escova de cerdas macias e o creme dental infantilsabor morango. Depois o limpei com um pano e troquei sua fralda. Ele tinha quatro anos, eravelho demais para ainda usar fraldas, e eu havia tentado tudo em que conseguira pensar paraconvencê-lo a usar o vaso sanitário, mas nada havia funcionado.

Quando eu estava limpando a pia, ele abraçou minhas pernas e disse:- Xie, Hayee.

Ele já havia dito isso antes, dizia de vez em quando, e eu tinha certeza de que queriadizer "amo você, Hailey", embora não tivesse nenhum jeito de provar. Ajoelhei-me no chão e oabracei, sentindo seu doce cheirinho de bebê.

- Eu e você - sussurrei. - Sempre.

Em dois anos eu teria dezoito. Teria me formado no ensino médio e as pessoas do

serviço social não voltariam mais para saber de mim. E se tivéssemos sorte, iríamos para tãolonge dali que eles nunca mais conseguiriam encontrar Chub.

Ouvi vozes do outro lado da porta, e reconheci a mais alta: Dunston Acey. Isso não era bom... Tentei ir para o meu quarto sem ser vista, mas antes de alcançar a porta eu ouvi a vozrouca de uísque me chamar.

- Hailey, venha até aqui para que eu possa vê-Ia!

Parei, tentando decidir se poderia fingir que não o ouvira falar comigo, mas a voz devovó soou em seguida:

- Ponha logo esse menino na cama garota, depressa, temos companhia!

Fiz como eles diziam. Acomodei Chub na cama, cantei para ele, massageei suas costas,e assim que sua respiração se tornou mais profunda e lenta, sinal de que adormecera, eu não

Page 21: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 21/218

21

pude mais adiar. Eles acabariam indo ao quarto, acendendo a luz, e acordariam Chub. Quandovovó e seus clientes decidiam festejar, nada os detinha.

Fui até a cozinha e disse um olá seco, sem nenhum entusiasmo. Três pares de olhos me

observavam. Ali estavam minha avó, Dun, e um homem que permanecia em pé no canto maisafastado, envolvido pelas sombras. Quando ele caminhou para a área iluminada, constatei comdesânimo que o terceiro visitante era Rattler Sikes.

De todos os homens cruéis, detestáveis e imprestáveis que haviam estado em nossacasa, Rattler era o pior. Era um dos únicos que não usavam drogas e, até onde eu sabia, não bebia, mas de vez em quando ele aparecia na companhia dos outros, e ficava em um canto dasala observando tudo e falando pouco.

Todos conheciam as histórias sobre ele. Rattler era uma das poucas pessoas na Cidade

do Lixo sobre quem as outras pessoas de Gypsum falavam, provavelmente porque o xerifetentava pegá-lo há anos. Mas ele nunca conseguia fazer suas acusações irem adiante.

Comentava-se que Rattler fazia coisas com as mulheres. Coisas terríveis, coisas que asdeixavam abaladas internamente e machucadas no exterior. Ele só ia atrás das mulheres daCidade do Lixo, e talvez esse fosse um dos motivos pelos quais o xerife não conseguia pegá-lo.Desde que os problemas ficassem dentro das fronteiras da Cidade do Lixo, o povo de Gypsumnão se importava muito com o que acontecia por lá.

Diziam que as mulheres saíam com Rattler - era difícil imaginar que iam

espontaneamente - e depois eram encontradas vagando pela cidade de madrugada, às vezesdescalças, às vezes seminuas, e sempre sem conseguir ou sem querer falar sobre o que haviaacontecido. Nenhuma delas jamais quis registrar uma ocorrência ou processá-lo, mas essasmulheres nunca mais voltavam a ser as mesmas.

Consegui dizer um olá sufocado. Era mais fácil do que deixar minha avó zangada,porque era impossível prever o que ela diria nesse caso.

- Você está linda hoje - disse Dun, erguendo uma garrafa na minha direção antes desorver um grande gole da bebida. Vovó tinha uma política: tudo que um consumidor bebia oufumava em sua casa era grátis - pelo preço de algumas cervejas e um pouco de erva ela osmantinha entretidos e felizes, e se ela cobrava caro pelas coisas mais pesadas, ninguém nuncareclamava.

- Preciso ir ao porão - minha avó anunciou cravando os olhos em mim. Eu sabia o que

Page 22: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 22/218

22

ela queria - que eu descesse para ir buscar o que Dun queria comprar dessa vez, o que quer quefosse. Mas essa era uma coisa que ela não podia me obrigar a fazer: eu me recusava a participardo que ela chamava de negócios. Não tocava nos frascos com comprimidos, não lia os rótulos,não ajudava a separar e embalar a erva que ela comprava de um sujeito que vinha de Ozarks

em seu carro uma vez por mês para fazer a entrega. Eu não fazia nada disso, e quando elapedia, eu simplesmente repetia o aviso de sempre: um telefonema meu, e ela estaria acabada.

É claro que tudo era só um blefe. Eu jamais faria nada para envolver as autoridadesnessa história, porque isso me separaria de Chub. Vovó era estúpida com relação a algumascoisas, com essa acima de todas: ela devia saber quanto Chub era importante para mim.

Ela se levantou, suspirando e bufando, e caminhou arrastando os pés até a escada quedescia para o porão. Vovó levaria algum tempo para descer agarrada ao corrimão, um degraude cada vez, e voltar com o produto. Vi a pilha de dinheiro sobre a mesa. As notas ficariam ali

até Dun examinar a mercadoria e guardá-Ia nos bolsos, e só então minha avó poria o dinheirodentro da bolsa que deixava sobre a bancada. Era sempre assim.

Eu me sentei na única cadeira vazia para esperar. Vovó queria que eu conversasse comos clientes, mas isso não me obrigava a promover uma conversa vibrante.

- Bela camisa - disse Dun. - Não é uma linda camisa, Rattler?

Eu me senti corar; não havia nada de especial na minha camisa, uma peça simples deum tom comum de verde e gola alta que eu comprara de segunda mão por cinquenta centavos.

Mas ela estava ficando velha e um pouco apertada no peito.

Dun me perguntou sobre a escola, sobre minhas notas, e quis saber que programas detelevisão eu costumava ver. Ele não parecia se importar com minhas respostas curtas e secas. Devez em quando pedia a opinião de Rattler, mas na maior parte do tempo parecia satisfeito porconduzir sozinho toda a conversa e beber sua cerveja, abrindo mais uma sempre que a garrafaem sua mão ficava vazia.

Depois de um tempo que parecia infinito, minha avó voltou caminhando comdificuldade. Ela segurava dois sacos de papel pardo fechados, e os deixou sobre a mesa nafrente de Dun. A atmosfera na cozinha mudou.

Ninguém mais olhava para mim. Todos os olhos estavam fixos nos sacos de papel, eDun abriu um deles para espiar seu conteúdo. Depois de um segundo ele introduziu a mão naembalagem e retirou dela os frascos plásticos. Sério, examinou os rótulos. Parecia querer comê-

Page 23: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 23/218

23

los sem remover a tampa. Quando terminou de examinar os frascos, ele os enfiou em um bolsoenorme de sua camisa xadrez. Em seguida amassou os sacos de papel dados por minha avó e osarremessou na lata de lixo no canto. Eles bateram na borda da lata e caíram no chão.

Eu esperei mais alguns minutos, até ter certeza de que era seguro me despedir, e entãome levantei e empurrei a cadeira para perto da mesa.

- Bem, boa noite - disse, tentando soar animada.

Quando passei perto da cadeira de Dun, ele estendeu a mão e agarrou a cintura daminha calça jeans.

-Já vai pra cama, benzinho? - perguntou com voz pastosa, espalhando no ar o cheirorepugnante de seu hálito de tabaco. - Precisa de companhia?

- Ah, Dun - minha avó interferiu, batendo em seu ombro de um jeito brincalhão. - Nãoincomode a menina.

- Ela não é mais uma menina - Dun protestou, piscando para Rattler. -Não é verdade?

- Sabe, ela precisa ser ensinada - minha avó falou com tom sério, a voz expressandocensura.

- Pois eu acho que ela não precisa aprender mais nada. Sobre, ah, como ser muito

quente. - Dun riu da própria piada e nem tentou disfarçar o fato de estar olhando diretamentepara o meu peito.

Eu me soltei com um movimento brusco. Violento. Minha avó ria alto com ele quandocorri para o meu quarto e bati a porta.

Page 24: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 24/218

24

Capítulo 3Era aniversário deles. Um ano desde o primeiro encontro. Por isso ela examinava as coisas dele.

Outras mulheres faziam a mesma coisa, não faziam? Vasculhavam o apartamento do amante para procurar caixas forradas de veludo contendo braceletes e brincos, cintilantes presentes de amor.

Era difícil saber o que era considerado normal, embora pensasse nisso o tempo todo. Faziacompras onde outras mulheres compravam, e se vestia tão bem quanto qualquer uma delas. Cortava ocabelo em um salão onde serviam champanhe para as clientes que esperavam sua vez. Por que não? Agoratinha muito dinheiro.

Nem sempre havia sido assim. Foram necessários seis anos para concluir a faculdadetrabalhando em período integral e nos finais de semana também, seis anos de um torpor resultante de

muita cafeína e poucas horas de sono, até finalmente se formar. Depois disso, haviam sido mais seis anosde empregos em laboratórios na cidade fazendo mais cursos sempre que podia para complementar o queaprendia trabalhando. Outra faculdade estava fora de questão enquanto ainda estivesse saldando suasdívidas - os empregos em laboratórios não pagavam o suficiente para poder economizar, emboramantivesse um orçamento enxuto morando em um apartamento pequeno em uma área ruim da idade.

Haviam sido anos de solidão. Mesmo que tivesse tempo para namorar, a lembrança do primeiroamor ainda ocupava sua memória o tempo todo. O coração não cicatrizara. Sim, tinha cicatrizes; a agoniaarrefecera para uma dor contida que agora fazia parte dela, tanto quanto respirar. Mas nunca esquecera.

Queria superar. Sua vida se tornara um esforço constante para reparar o engano do passado. Seao menos pudesse encontrar um jeito de usar seu dom para ajudar as pessoas... Mas a comunidadecientifica não se interessara pelo trabalho que ela queria fazer. Até o dia em que conhecera o amante. Éclaro, nos primeiros dois anos ele havia sido apenas seu chefe. Ouvira falar nela - comentários sobre comoela trabalhava duro e obtinha resultados confiáveis, mas, mais importante, ele ouvira falar sobre a

Page 25: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 25/218

25

 pesquisa que ela conduzia sozinha depois do expediente... e o que podia fazer, coisas que a ciência nãoconseguia explicar. Ela não contara a quase ninguém sobre essa parte, e ainda assim - de algum jeito - eledescobrira. E oferecera um salário três vezes maior do que ela recebia em outro laboratório, tudo paraconvencê-la a aceitar seu convite.

E agora ela trabalhava no laboratório do amante e tinha expedientes mais longos do que em todosos outros empregos anteriores, mas isso não importava certo? Porque estavam juntos, e tinham uma idéiaem comum, um sonho. Iam mudar o mundo.

Era o que dizia a si mesma todas as manhãs, quando se preparava para passar pelas portas doedifício onde ficava o laboratório. Não havia identificação, nenhuma placa do lado de fora para anunciar oequipamento caríssimo no interior, os profissionais que o amante contratara no mundo todo. Mas ele eraassim, disciplinado - não se gabava do que tinha e fazia, mas insistia sempre no melhor.

E havia dito que ela era a melhor. Sem ela, o amante estava sempre lembrando, o trabalho nolaboratório seria em vão. E ele dizia que estudá-la era um privilégio. Então, por que retribuir seu afeto e ocontato físico se tornara tão difícil ultimamente?

 A culpa era dela, porque tinha muito mais dificuldades com relacionamentos do que as outrasmulheres. Ela tentou banir da cabeça esse pensamento enquanto terminava de olhar o que havia nas gavetas da cômoda e considerava a escrivaninha de ébano, uma peça elegante no estúdio do lindoapartamento de cobertura com vista para o Lago Michigan. Em razão do que havia acontecido com ela no passado... talvez fosse inevitável demorar tanto para voltar a amar.

E o amava, ela repetiu para si mesma enquanto mexia nos objetos sobre a escrivaninha, tomandocuidado para não mudar a ordem de papéis, canetas, lembretes adesivos e clipes. A escrivaninha era aúnica área desarrumada na vida de seu amante, esse espaço privado na casa dele. O restante - olaboratório estéril, a cozinha brilhante com os equipamentos de aço inoxidável, as camisas bem passadas eos ternos pendurados no closet - tudo era tão limpo e organizado que era como se não houvesse vidahumana naquele lugar.

Ela conteve um arrepio. Esse não era um pensamento que devia associar ao amante.Especialmente agora, quando havia uma chance - ele havia insinuado muitas vezes, não? - mais que umachance, uma probabilidade de ele a pedir em casamento essa noite. Em algum lugar nesse apartamento podia estar o anel que ele poria em seu dedo, um lindo anel, porque ele insistia em ter sempre o melhor detudo. E depois estariam unidos pelo casamento, além de serem unidos na paixão pelo trabalho, e ela seria amulher mais feliz do mundo.

Então, por que se sentia tão mal?

Page 26: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 26/218

26

Nervoso. Sim, era isso, ela disse a si mesma, calando a voz persistente em seu interior. Só precisava ver o anel. Porque vê-lo serviria para confirmar o que ela já imaginava e, se confirmasse asuspeita, poderia se preparar para ela. Quando ele se ajoelhasse diante dela mais tarde, estaria preparada

 para reagir com a devida alegria e surpresa, e ele jamais saberia que dentro dela crescia um medoincontrolável, uma certeza de que algo estava errado, errado, errado.

Tinha de dominar esse medo, escondê-lo onde ninguém jamais poderia vê-lo, se queria ter umavida normal. Casar-se, ter filhos, talvez. Nunca encontraria ninguém mais apropriado do que o amante.Ele era rico, inteligente, poderoso, e a escolhera. Isso era amor de verdade, amor maduro, e se ainda se pegava pensando naquele outro amor era só porque tudo acabara de maneira terrível. Apaixonara-se perdidamente pela primeira vez, mas o que chamava de amor devia ter sido apenas uma forte atração, umaintensa paixão. Amor de verdade era o que tinha agora, produto de interesses em comum e de umcuidadoso crescimento da intimidade ao longo do tempo. Seu amante havia sido paciente, soubera esperar

o relacionamento crescer e se transformar em algo mais sério e sólido.

Portanto, não se deixaria dominar por dúvidas. Hoje não. Esse era um dia especial. Um dia comque toda mulher sonhava, certo? Enquanto ia abrindo as gavetas da escrivaninha, ela tentava sufocar omedo persistente. Sim, recentemente o amante cometera alguns erros que não eram característicos de suamaneira de agir. Todo mundo podia se distrair - até as pessoas mais brilhantes. As incoerências nosrelatórios de pesquisa que lera por engano no laboratório, os testes modelo e o controle de população quenão pareciam em nada com o que haviam discutido até os arquivos que continham referências à patrocina-dores sobre os quais ela nunca ouvira falar - tudo isso podia ser explicado com facilidade. Afinal, tinhaapenas um diploma de bacharelado; todos os outros profissionais no laboratório, toda a equipe antipática e

hostil que aparecia sem se apresentar e mergulhava no trabalho sem divulgar nenhuma informação pessoalsobre quem eram e o que faziam - todos eram tão mais preparados academicamente que ela mal conseguiaentender o que faziam aquelas pessoas.

Seus dedos tocaram as pastas guardadas na última gaveta. De repente ela parou, sentindo ocoração bater mais depressa enquanto os olhos iam percorrendo as palavras na etiqueta de identificação.Era a caligrafia perfeita de seu amante.

Seu nome. Seu verdadeiro nome.

O nome que ninguém usava há anos.

Uma porta se abriu atrás dela. Em seguida soou no apartamento o som característico do sapatoitaliano de seu amante no piso de madeira polida. Ela não se moveu. Não podia se mover. Estavasegurando a pasta entre as mãos, uma pasta cheia de papéis, e olhando para o nome que pensava ter

Page 27: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 27/218

27

enterrado para sempre.

- Ah - a voz profunda e controlada soou atrás dela. Ele parecia se divertir com o que via. - Estávasculhando meus arquivos particulares, meu bem?

O germe da dúvida que já existia dentro dela despertou, e ela começou a tremer. Sem soltar a pasta, virou-se lentamente para encarar o amante. Ele estendeu a mão e, sem pensar, ela a aceitou,deixando-se guiar até o sofá de couro, onde os dois se sentaram juntos, os joelhos se tocando. As mãos deleeram quentes, e embora aquela voz interior gritasse de horror e medo, aquela parte de sua personalidadeque treinara tão bem para ser outra pessoa, alguém como qualquer mulher normal, não recuava.

- Temos muito sobre o que conversar - disse seu amante. - De certa forma, o momento é excelente. O fato é que fiz algumas descobertas sobre você recentemente. Sim, sobre você. Não fique tãosurpresa, querida! Sabe que sempre a achei fascinante. Quem pode me culpar por ter desejado descobrir

tudo sobre a mulher que amo? E agora posso dividir todas essas descobertas com você, sim, porquedescobri algo que nem você mesma sabe a seu respeito, algo maravilhoso, eu acho. Algo excitante, umnovo dado que trará coisas muito valiosas para nós e nosso trabalho.

E então ele a chamou pelo nome verdadeiro, e a concha que ela havia construído cuidadosamenteao longo dos anos se desfez, estilhaçada em milhões de cacos. De repente percebia que não conheciarealmente esse homem.

Page 28: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 28/218

28

Capítulo 4Não dormi bem ontem à noite, e levei mais tempo que de costume para me arrumar de

manhã, porque alguém havia derrubado cerveja no chão da cozinha. Não queria Chub sentadona sujeira, por isso limpei o chão. Antes de sair, preparei para ele uma torrada e o vesti com ummacacão bonitinho, depois o deixei brincando com os blocos de montar. Alimentei Rascal e opus para fora para passar o dia no quintal.

Talvez tenha sido por causa do cansaço, mas o fato é que não vi o carro do outro ladoda rua até o ônibus parar. Fazia frio para abril, e eu apertava os olhos contra a luz do sol esoprava nuvens brancas no ar gelado quando ouvi o ônibus se aproximando. Uns dez metrosabaixo, do outro lado da rua, havia um sedan cinza com janelas escuras. Nossa casa era a única

naquele trecho da estrada entre Gypsum e Trashtown, e qualquer pessoa que ia nos visitarsimplesmente entrava no quintal. Ninguém nunca estacionava na rua daquele jeito.

Entrei no ônibus e me sentei ao lado de Coby Poindexter, me debruçando sobre elepara poder ver o sedan. A janela do motorista estava aberta, apenas uma pequena brecha, masnão consegui enxergar o interior do automóvel. O ônibus partiu, e eu me virei para trástentando ver a parte traseira do carro, mas só consegui enxergar um emblema da Lexus.

Seriam os tiras? Policiais disfarçados vigiando nossa casa por causa dos negócios deminha avó? Mas policiais não dirigiam um Lexus, certo?

- Ei - Coby me chamou. - Como vão as coisas na terra do lixo branco?

Eu o ignorei e me virei. Hoje, por alguma razão, senti algo se rompendo dentro demim. Não que eu me sentisse mais corajosa. Era quase o contrário - como se eu desmoronasse.

Page 29: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 29/218

29

O jeito como Dun me tratara na noite anterior, a sujeira na cozinha essa manhã, o carro estranhoperto da nossa casa; era demais, e todas essas coisas não me deixavam energia suficiente paramanter a máscara de indiferença que eu havia construído com tanto esforço.

- Cale a boca, Coby - resmunguei.

Não era uma reação fabulosa, mas ele parecia surpreso. Senti os olhos dele em mimdurante o restante do trajeto até a escola, mas não prestei atenção, e quando paramos na entradado colégio, eu desci antes que mais alguém pudesse falar comigo e fui procurar por Milla.

Não foi difícil encontrá-Ia. Ela estava perto do bebedouro do segundo andar com duasoutras garotas Morries que poderiam ser irmãs, com os mesmos cabelos loiros e engorduradosemoldurando desgrenhados o rosto de faces encovadas e queixo saliente. Acho que o nome deuma delas era Jean - estivemos na mesma sala algumas vezes ao longo dos anos.

- Com licença - eu disse, mais alto do que pretendia. Estava nervosa. Queria conversarcom Milla sobre o que acontecera, mas as outras garotas se aproximaram formando uma barreira diante dela, como se houvessem ensaiado o movimento, e ela teria escapado pelo outrolado do corredor, se não tropeçasse na própria mochila e derrubasse o livro que estavacarregando. Com a queda, as páginas do livro se abriram.

Estendi a mão para pegar o livro no mesmo instante em que ela se abaixou, bati acabeça em seu ombro, e ela se afastou de mim com tanta violência que deixei o livro no chão.

Desde a minha primeira semana na escola, quando tentava me aproximar deles nosintervalos e na hora do almoço, sempre me senti atraída pelos Morries. Talvez por sermosigualmente patéticos, todos mal vestidos e maltrapilhos, rústicos e hostis, mas eu sentia quehavia algo mais. Eu sentia - e, sim, isso podia ser apenas uma criança órfã sonhando com umafamília - mas eu sentia que havia entre nós algum tipo de relação. Sentia que era uma deles.

Tentei conversar com minha avó sobre essa sensação há muito tempo, e ela explodiunuma daquelas gargalhadas fétidas, a saliva formando uma espuma nos cantos de sua boca.

- Você não é uma Morrie - ela dissera. - É muito melhor do que qualquer garota Morrie.Não se esqueça disso.

Acho que não parecia muito convicta, porque ela estendeu a mão e, com os dedosmanchados de nicotina, beliscou a parte interna do meu braço. Ela era capaz de beliscar comuma força surpreendente, provocando lágrimas quentes que inundaram meus olhos, mas eu

Page 30: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 30/218

30

não emiti nenhum som.

- Já esses garotos Morrie, bem eles são uma história completamente diferente - minhaavó acrescentara - mas isso é para mais tarde, e não preste muita atenção neles. Eu aviso quando

chegar a hora, é isso.

Agora não havia garotos por perto. Olhei nos olhos de Milla e algo aconteceu no meuinterior. Eu não me afastei. Pelo contrário, me aproximei ainda mais, quase me divertindo como jeito como ela se encolhia tentando fugir de mim.

- O que aconteceu ontem? - perguntei.

- Não sei do que está falando!

- Você perdeu a consciência. Eu vi... Eu senti. - Não disse que ao tocar suas mãos e testaeu tivera a impressão de que ela estava mais do que inconsciente. Era como se ela estivesse...vazia.

Perigo, destruição, dor.

- Você não foi à minha casa uma vez? - perguntei com uma voz que era pouco mais queum sussurro. - Ano passado... com aquele cara. Você sabe. Aquele cheio de tatuagens.

Não era uma grande dica, já que muitos clientes da minha avó eram tatuados, mas o

homem em que eu estava pensando tinha cruzes azuis em torno do pescoço, desaparecendo naraiz do rabo de cavalo acima da nuca.

Percebi pelo olhar de Milla que eu havia tocado em um ponto sensível.

- Não fui eu - ela resmungou, pronunciando as palavras quase sem mover os lábios.

- Sim, era você.

- Não. Eu sou, estava...

- Por que tem tanto medo de mim? - perguntei, me aproximando ainda mais.

O sinal soou alto no corredor, e eu vi todo mundo, Limpos e Morries sem distinção, sedirigindo às salas de aula, mas não me movi. Milla balançou a cabeça, os olhos tão arregalados

Page 31: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 31/218

31

que eu podia ver as veias rosadas na parte branca.

- Não tenho medo de você.

Ela tentou se desviar, passar por mim, mas estendi o braço e bloqueei o caminho,apoiando a mão aberta na parede. A raiva era como um feixe de raios percorrendo meus nervos.Eu mal podia conter o impulso de bater nela. Sentia minha pele formigar onde eu imaginava ocontato da minha mão contra aquela face pálida.

Mas quando ela tentou escapar pelo outro lado, eu a deixei ir. Ela se afastou compassos curtos e rápidos, o livro esquecido no chão.

- Não tenho medo - repetiu, e eu soube que ela estava prestes a se virar e correr,desaparecer dentro de alguma sala onde se sentaria no fundo com outros Morrie. - Não tenho

medo - Milla repetiu mais uma vez, olhando pra mim com uma mistura de triunfo e tristeza.

- Mas talvez devesse ter.

Não consegui me concentrar em nada durante o resto do dia. Eu havia feito algumacoisa com Milla, algo que a trouxera de volta bem e inteira. Não sabia o que ou como, e minhamente dançava em torno das lembranças do dia anterior, tentando tirar algum sentido dasimagens.

Houve um segundo, quando meus dedos pressionaram seus cabelos úmidos e

pegajosos, em que eu tivera a sensação de que alguma coisa mudava dentro de mim. Como seuma parte secreta do meu ser se houvesse libertado e agora viajasse pela minha correntesanguínea, eletrizada pelas batidas do meu coração e me transformando de dentro para fora. Eunão sabia muito bem se gostava dessa sensação. Ser eu não era exatamente o paraíso, mas eutambém não tinha certeza de que estava pronta para mudar.

Pensei em minha avó e naquele breve momento em que ela se tornara quase humana,quando Chub chegou para morar conosco. Ela havia mudado - ou, pelo menos, eu pensava quesim. Por um tempo ela fora quase como uma mãe de verdade, me perguntando como havia sidoo dia, querendo saber o que eu aprendera na escola. Ela não era muito boa nisso - não ouviaminhas respostas, e eu ainda tinha de fazer a maior parte do trabalho doméstico, mas quandoeu a via lidar com Chub havia nos olhos dela um brilho luminoso, e isso era mais do que eu jamais havia visto antes ou do que vi depois.

E agora ela estava pior que nunca. Era isso que o futuro me reservava? Eu acabaria

Page 32: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 32/218

32

como ela, amarga e cruel? Eu tentara ajudar Milla - não havia planejado aquilo, não entendia,mas havia tentado - e agora eu queria mais que nunca estabelecer com ela uma ligação. Não: aconexão já existia - eu só queria que ela a reconhecesse.

E em vez disso, ela deixara mais claro que nunca que não queria ter nada a ver comigo.

Eu ainda estava distraída com meus pensamentos quando entrei na farmácia depois daaula e saí de lá sem a única coisa de que realmente precisava: o xampu infantil de Chub. Depoisde percorrer alguns quarteirões, eu me virei e voltei. Quando estava quase chegando nafarmácia, vi algo que fez meu coração pular dentro do peito: o carro que estivera estacionadodiante da nossa casa na manhã anterior agora estava em uma vaga no estacionamento bem nafrente da loja. Dois homens desceram do automóvel. Eram de estatura mediana, tinham cabelocurto, e usavam óculos de sol e jaquetas de couro. Eles se moviam depressa e pareciam fortes e

musculosos sob as roupas, e não sorriam nem falavam.

Poderiam ser qualquer pessoa, eu disse a mim mesma - devia ser coincidência o fato deeu tê-los visto duas vezes. Eles podiam ter parado na frente da nossa casa para examinar ummapa ou fazer xixi atrás de uma árvore, ou qualquer outra coisa, e quanto a estarem nafarmácia, todo mundo na cidade ia lá.

Por outro lado, eu jamais os vira antes. Em Gypsum, eu conhecia praticamente todomundo, pelo menos de vista, e aqueles sujeitos não pareciam ser da cidade.

Se eram policiais, não eram da polícia de Gypsum.

Mas se alguém descobrira que minha avó está traficando drogas, era possível que ostiras locais houvessem acionado alguma outra agência. Como... Tentei lembrar o que havíamosaprendido na escola. Havia o Departamento do Álcool, do Tabaco, e os Bombeiros... mas drogasse enquadravam em algum crime federal? E quem teria delatado minha avó? Um de seusclientes? Talvez houvessem fornecido a informação em troca de algum acordo conveniente, sehaviam sido presos por posse de alguma substância. Eu sabia que as penas por tráfico eramduras, muito mais sérias do que para quem apenas usava drogas.

Mas se eles já suspeitavam da vovó, por que não providenciavam um mandado esimplesmente revistavam a casa? Talvez seja essa a intenção deles agora - tentar reunirevidências suficientes para justificar um mandado. Bem, não conseguiriam nada conversandocom o sr. Hsiao - tudo que eu havia comprado hoje era uma embalagem de sacos de lixo, colíriopra minha avó, e sabonetes.

Page 33: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 33/218

33

Precisava saber mais. Esperei até eles entrarem na loja, depois caminhei rapidamentepara o carro. Tentando parecer casual, espiei pelo pára-brisa: não havia nada lá dentro, só umaxícara térmica de café no porta copo.

Voltei à farmácia, escolhendo o corredor mais afastado da caixa registradora. Estudeios aparelhos e cremes de barba e me esforcei para ouvir o que os dois homens estavam dizendoao Sr. Hsiao.

-Vem regularmente? - Era uma voz profunda com um tom levemente aborrecido.

- Não, como eu disse, ela tanto pode aparecer, como pode não vir. Esses garotos nãoseguem uma rotina, sabe? Pode me dizer o que significa tudo isso?

- Houve um incidente na escola - respondeu o outro, um homem de voz mais suave. -Não podemos dar detalhes nesse momento. Apreciamos sua cooperação. E gostaríamos depedir para não... comentar essa nossa conversa.

- E vocês são de onde, mesmo? - Isso mesmo, Sr. Hsiao, descubra quem são eles,telegrafei silenciosa.

- Departamento de estado - disse a primeira voz. - Aqui está minha identificação.

Houve um momento de silêncio, depois o Sr. Hsiao disse com uma nota de

desconfiança:- Bem, já contei tudo que sei. Pode ir atrás da garota, falar com ela você mesmo.

Um momento depois eles saíram da loja. Vi o topo da cabeça deles no corredor vizinhoe me abaixei. Contei até duzentos antes de sair da farmácia, tomando cuidado para não deixar oSr. Hsiao me ver.

Não estava convencida de que os homens eram mesmo de algum departamento deestado. Eles eram muito... anônimos, entre outras coisas. Além do mais, o Sr. Hsiao não soaramuito impressionado com as credenciais que eles apresentaram.

Seria algum tipo de concorrência? Traficantes da cidade vizinha, talvez, ou de KansasCity? Ou vovó se metera em coisa pior? Ela devia dinheiro, roubara alguma coisa de valor,enganara alguém importante?

Page 34: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 34/218

34

O carro não estava mais no estacionamento da farmácia, mas bem podia estar acaminho de nossa casa. Eu precisava ir para lá, mas havia trechos da estrada onde não existianenhuma casa ou estabelecimento comercial, ninguém para me ajudar ou notar, casoacontecesse alguma coisa comigo. Mas eu nem imaginava o que esses homens podiam querer

comigo.

Não estava muito preocupada com o que poderia ocorrer com minha avó, mas nãopodia permitir que nada acontecesse a Chub. Eu ainda hesitava sem saber se devia ir correndopara casa ou continuar escondida para evitar ser vista pelos desconhecidos, quando SawyerWesson apareceu na esquina caminhando com Milla. Sawyer era um Morrie, mas não era comoos outros. Ele era quieto, cauteloso, e se mantinha limpo. Eu nunca falara com ele, mas já ohavia notado me observando algumas vezes na hora do almoço ou durante reuniões escolares.

Milla me viu primeiro, e ela comprimiu os lábios compondo uma expressão dura

enquanto tocava o braço de Sawyer. Ele dizia alguma coisa enquanto jogava o cigarro nacalçada e pisava sobre a ponta para apagá-la.

- Sawyer - chamei. O pânico me fazia mais ousada. - Sawyer, será que você pode meacompanhar até em casa?

Só depois de falar eu percebi como as palavras soavam. Estava amedrontada, só isso, equeria companhia, caso alguma coisa ruim acontecesse. Sawyer era alto, tinha ombros largos,olhos estreitos e cabelos pretos e longos, quase na altura dos ombros, e quem não o conhecia sesentia facilmente intimidado por ele.

Ele parou e olhou para mim. Parecia surpreso, depois atento, os olhos tomados peladúvida.

- Quero dizer... eu não ... - comecei a explicar, mas o que poderia dizer? Que pensavaestar sendo seguida por agentes secretos do governo ou membros da máfia ou... eu nemimaginava quem?

- Tudo bem - Sawyer respondeu, e então eu vi algo que nunca vira antes: seu sorriso.Era surpreendente como o rosto dele mudava como o sorriso o fazia parecer mais doce.

- Você ia comigo ao Burger King. Esqueceu? - Milla disparou. Ela se recusava a meencarar.

- Eu não disse...

Page 35: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 35/218

35

- Por que não vai com ela, então, já que é tão esquecido e provavelmente esqueceuquem ela é?

Era um blefe, e nem era dos melhores, considerando que Sawyer se aproximou de mimsem sequer olhar para trás. Eu não sabia o que Milla queria dizer com "quem ela é". Estaria sereferindo ao que havia acontecido no ginásio? Ao fato de eu ser uma excluída? O que quer quefosse Sawyer não sabia ou não se importava, e experimentei uma presunçosa satisfação quandovi Milla voltar de onde viera evidentemente derrotada.

Percorremos meio quarteirão antes de eu conseguir pensar em alguma coisa para dizer,e então, no mesmo momento Sawyer também começou a falar.

- Então como...

- O que você...

E nós dois rimos e dissemos você primeiro, não você. Sawyer chutou uma pedra e elavoou para o outro lado da estrada, acertando um tronco de árvore, e eu pensei em mim mesmanas aulas de educação física.

- Você já quis praticar algum esporte? - perguntei. Por um momento Sawyer nãorespondeu.

- Alguns. Acho que... sou muito bom arremessando. Pensei em beisebol, talvez. Mas...

Ele não precisava terminar. Eu não sabia como era a vida dele em casa, mas podiapresumir que tínhamos algumas coisas em comum nesse campo. Mudei de assunto, falamossobre aulas e professores, e me surpreendi por saber que ele estava pensando em tentar cursarHistória na AP, uma faculdade americana. Ele seria o primeiro Morrie de quem eu jamaisouvira falar a entrar em uma turma de Colocação Avançada.

Ele me perguntou o que eu gostava de fazer depois da escola e eu falei sobre Chub,sobre como ele era um irmão mais novo para mim, e Sawyer ouvia, assentia, e até riu quandoeu contei como Chub gostava de seguir Rascal pelo quintal, como se acreditasse serparcialmente cachorro.

- Ei - ele disse quando vimos minha casa. - Só queria dizer que realmente sinto muitosobre Milla e, você sabe aquilo que ela disse. Ela não falou sério.

Page 36: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 36/218

36

Eu duvidava disso. Quaisquer que fossem os sentimentos de Milla por mim, pareciamser bem intensos. Tentei pensar em um jeito de perguntar sobre ela e os Morries de maneirageral sem ofendê-lo. A julgar por como ele aceitara prontamente me acompanhar, como olhava

para mim na escola quando achava que eu não estava prestando atenção - eu tinha certeza deque estava apaixonado por mim, e isso me fazia bem. Nunca antes um menino se interessarapor mim, e eu não queria estragar tudo causando desconforto e constrangimento.

- Eu... sempre me perguntei por que Milla e eu nunca fomos amigas - comecei comcuidado. Estava tentando decidir como continuar quando um carro parou atrás de nós eacelerou, obrigando-nos a correr para o acostamento e buscar o abrigo das árvores.

Quando me virei para olhar, vi que não era um carro qualquer, mas uma velha picapeFord verde. O motorista abriu a janela e pôs um braço para fora.

Era Rattler Sikes.

O medo me invadiu quando Rattler se debruçou na janela e me encarou, mas, quandofalou, ele se dirigiu a Sawyer.

- Entre no carro, garoto - ele disse, e eu notei que seus dentes eramsurpreendentemente brancos e alinhados. Seus olhos eram castanhos escuros, quase negros,mas duros e cintilantes com uma intensa emoção. Talvez curiosidade. Talvez raiva.

- Eu não... Ela me pediu para... - Sawyer começou. Seus olhos indo e voltando entremim e Rattler.

- Eu não fiz uma pergunta, menino - disse Rattler. Seu tom permanecia neutro, mashavia nele uma ameaça, uma sombra de violência que me tocava e envolvia meu coração.

- Não - Sawyer resmungou de cabeça baixa.

- Não vou falar outra vez.

Sawyer olhou para mim sem realmente me encarar, apenas voltando o rosto em minhadireção, expressando sua infelicidade e, talvez, um pedido silencioso de desculpas. Elecaminhou até a porta do passageiro e entrou na picape. Depois de fechar a porta, ficou olhandopara frente sem se mover.

Page 37: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 37/218

37

Rattler continuava me observando. Por mais desconfortável que fosse ser o centro desua atenção, eu não desviei o olhar. Havia alguma coisa em como ele olhava para mim, algo queme impedia de fugir.

A voz de Rattler soou ainda mais baixa, praticamente um sussurro.

- Tome cuidado, ouviu menina Hailey?

A caminhonete se afastou devagar, os pneus rangendo no cascalho e espalhandopedras soltas e folhas mortas. Os olhos de Rattler permaneciam fixos em mim, e quando eu jápensava que a picape ia sair da estrada, ele bateu na lateral do automóvel e girou o volante,voltando para o meio da pista. Rattler pisou no acelerador e eu inspirei a fumaça cuspida peloescapamento corroído, solto.

Percorri sozinha os últimos metros até nossa casa, e Rascal veio correndo pelo quintalpara me receber, as orelhas tremulando ao vento, feliz com minha chegada ... mas a voz deRattler persistia na minha cabeça. Tão baixa, pensei novamente, que muitas pessoas nemconseguiriam ouvi-la.

Mas eu podia. Podia ouvi-lo perfeitamente.

Page 38: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 38/218

38

Capítulo 5Ela quase não parou na periferia da cidade, mas no último segundo mudou de idéia e seguiu pela

rampa que desviava o tráfego pelo Show-Me Trading Post antes de desembocar na Rodovia EstadualNove. Partira para o sul logo cedo depois da noite mais longa de sua vida, horas passadas deitada noescuro revendo muitas vezes aquela cena horrível, as coisas que descobrira sobre o amante - e a surpresaque ele deixara para o final. A garota cuja existência ela desconhecia.

 Muita coisa teria sido diferente, se soubesse. Era inútil pensar no que poderia ter sido, mas nomeio da noite, quando o silêncio era mais profundo e a escuridão penetrava em sua alma, era mais difícilresistir.

Hoje começaria a consertar todas as coisas.

O Snow-Me Trading Post era ainda mais dilapidado do que ela lembrava, um galpão de concretocaindo aos pedaços com cartazes de mau gosto nas janelas sujas, um lugar totalmente impróprio para secomprar um presente. Mas temia que a garota, que também nunca ouvira falar nela, fosse arredia. Talvezuma lembrancinha, apenas um gesto para mostrar sua intenção de ajudar, pudesse facilitar as coisas paraum primeiro encontro.

Porém, havia poucos objetos nas prateleiras que poderiam interessar a uma menina de dezesseisanos. Ela estudou um display de papelão onde havia uma linha completa de brilho labial com sabor de frutas, uma coleção de pulseiras baratas feitas com contas, revistas de moda, e finalmente escolheu um

 MP3 genérico com fones de ouvido. Poderia comprar algo melhor para a menina mais tarde - quandoestivessem juntas, quando tivesse provado que suas intenções eram boas.

Quando ela pegava o aparelho do suporte em uma prateleira na parede dos fundos, a porta seabriu e dois homens entraram, seguindo diretamente para o caixa em seus trajes sombrios.

Page 39: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 39/218

39

Ela ficou onde estava, tomada por um medo repentino, encolhida à sombra de uma geladeira quecontinha refrigerante e cerveja. Havia visto aqueles homens antes, no laboratório. Às vezes iam encontrarseu amante para conversas privadas. Não pareciam cientistas - não com aquelas jaquetas escuras que não

escondiam completamente o coldre que eles levavam preso ao corpo. As visitas eram breves, e depois delasseu amante normalmente ficava distante por um ou dois dias, falando pouco, permanecendo em seuescritório até tarde da noite e observando os monitores mais altos que eram posicionados no escritório de forma que só ele pudesse vê-los.

Um dos homens falou em voz baixa com a funcionária no caixa, mostrando a ela algum objeto pequeno e plano. A funcionária, uma mulher de cabelos cor de cobre e óculos que ela mantinha pendurados em uma corrente presa ao pescoço, respondeu em voz suficientemente alta para ser ouvida no fundo da loja.

- Não, acho que não - ela disse com indiferença.

 Mais sussurros, e enquanto o homem que falava gesticulava insistente, o outro olhava em volta.Ela se encolheu ainda mais no canto entre a geladeira e a parede, permanecendo imóvel para não ser vista pelas pessoas na frente da loja.

- Não, nunca - repetiu a funcionária no caixa -, mas eu não sou da cidade. Moro a trintaquilômetros de Casey, por isso é provável que não a conheça.

O homem guardou a fotografia - porque só podia ser isso que ele mostrava uma foto da garota - e

deixou uma nota sobre o balcão de vidro, colocando um cartão sobre o dinheiro.

- Telefone para mim, caso consiga lembrar mais alguma coisa - ele disse em voz alta, e seucoração disparou quando ela viu os dois homens se dirigindo à saída.

Então, seu amante não havia esperado. Podia ter acreditado na história que ela contara na noiteanterior, em sua tentativa apavorada de convencê-lo de que encontrar a garota não tinha nenhumaimportância para ela, exceto por ser uma descoberta favorável à pesquisa. Podia ter acreditado em suasmentiras, mas isso não o impedira de mandar seus homens a Gypsum. Era evidente que estava disposto aseguir em frente imediatamente.

Precisava detê-lo. Mas não podia simplesmente invadir a casa e exigir que a garota aacompanhasse - não quando não havia como prever o que a velha havia dito a ela.

Não - primeiro tinha de conquistar confiança.

Page 40: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 40/218

40

Ela olhou para o presente barato em sua mão e o devolveu à prateleira. Isso não ia ajudar emnada. Suborno não teria nenhuma utilidade. E também seria inútil exigir, ameaçar, pedir e suplicar.

Ela se serviu de uma xícara de café frio e notou que as mãos tremiam.

Depois pagou no caixa pela bebida, notando que a mulher mal olhava em sua direção enquantocontava as moedas, e saiu da loja. Parada no estacionamento, ela terminou de beber o café amargo antes deentrar no carro e dirigir pelas ruas antes familiares que conduziam a casa onde ela crescera; um lugar quehavia esperado nunca mais voltar a ver.

Tinha pela frente uma tarefa quase impossível. E a única arma de que dispunha era a verdade.

Page 41: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 41/218

41

Capítulo 6Quando Rattler foi embora, fiquei parada do lado de fora por mais um minuto,

esperando meu coração voltar a bater no ritmo normal, e só então entrei em casa. Disse oi paraminha avó, e ela grunhiu uma resposta na minha direção. A Juíza Judy berrava na televisão.Chub estava deitado de bruços com um livro de colorir, rabiscando com um giz de cera grosso.Quando me viu, ele se levantou de um salto e correu na minha direção, abraçando minhaspernas como fazia todos os dias, gritando "Hayee!"

Normalmente, eu adorava esse momento. Era a melhor coisa do meu dia, voltar paracasa e me certificar de que Chub estava seguro, e saber que havia uma pessoa na minha vidaque sempre ficava feliz por me ver.

Hoje, porém, não conseguia retribuir aquele abraço sem demonstrar quanto estavaabalada pelo encontro com Rattler. Dei um lanche para Chub e bebi um copo de leite, depois mesentei para fazer a lição de casa, embora fosse quase impossível me concentrar. Continuavapensando nos homens no carro, em Milla e Sawyer, e em Rattler. A tarde progrediu para a noite,e eu preparei o jantar e dei banho em Chub. Enxuguei e vesti o menino com seu pijama, masainda era muito cedo para colocá-lo na cama. Eu sabia que devia ler uma história para ele, masainda me sentia perturbada e distraída, e por isso fiz algo que me acalmaria: visitei as palavras.

Eu as encontrara alguns anos atrás, esculpidas com cuidado na parede do closet do

quarto que eu dividia com Chub. Não era possível vê-las sem realmente entrar no closet, e comovovó costumava mantê-lo sempre abarrotado de tralha, eu só as encontrei quando cresci osuficiente para arrumar o closet sozinha. Eu havia tirado tudo de lá e estava lavando as paredesem uma manhã de sábado, quando encontrei as palavras perto do chão, entalhadas no velhorevestimento de madeira.

Page 42: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 42/218

42

Campo de Trevos

Aquelas palavras acenderam alguma coisa dentro de mim, quase como um

reconhecimento. Fiquei tentando entender o que elas significavam - imaginei um campo cobertode trevos balançando delicadamente ao vento, sob um sol brilhante. Mas, no mesmo instanteem que imaginei a cena, eu soube que ela não era a ideal. Tracei as palavras com um dedo;alguém as desenhara com capricho, talvez usando um canivete ou uma chave de fenda afiada,cavando o contorno de cada letra até todas estarem gravadas profundamente na madeira. Sentique eu não era a primeira pessoa a acompanhar aquele contorno com o dedo. As extremidadeseram bem lisas, sem farpas ou irregularidades.

Eu voltava para visitar aquelas palavras quase que semanalmente.

Alguma coisa acontecia quando eu as tocava, como se uma pequena medida de paz meinvadisse, acalmando minha ansiedade e meus medos.

Deixei meus dedos descerem escorregando pela parede, até descansarem no rodapé.Mas alguma coisa não estava certa ali. O rodapé, que se estendia por apenas meio metro aolongo da parede do lado esquerdo do closet, estava solto. Eu o separei ligeiramente da parede,sentindo que cedia sob meus dedos.

Tentei empurrá-lo de volta ao lugar, tateando em busca do prego que se soltara,pensando em ir buscar um martelo para prendê-lo.

Mas não havia pregos soltos. Em vez disso, quando puxei a parte mais alta do rodapé,a parte mais baixa se soltou da parede, e percebi que ele não era pregado, apenas mantido nolugar pela tensão entre as outras paredes.

Na verdade eu compreendi; aquela tábua não era rejuntada como as outras. Quando apuxei, ela se soltou na minha mão. E quando tateei a área que ela recobria, descobri que haviaencontrado um esconderijo: o revestimento fora recortado na parte central, criando um pequeno buraco de mais ou menos trinta centímetros de área e alguns centímetros de profundidade.

Introduzi a mão nesse buraco cautelosamente, e lá encontrei alguma coisa. A estranhasensação de familiaridade tornou-se mais forte. Eu me ajoelhei e direcionei o raio de luz para opequeno espaço. Com o rosto colado ao chão, pude ver que havia ali um pacote envolto emtecido e papéis enrolados e amarrados com uma fita. Tirei tudo de lá com grande cuidado ecoloquei no chão do quarto, onde a luminosidade era melhor. Chub havia subido na minha

Page 43: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 43/218

43

cama e virava as páginas de seu livro favorito, cantarolando e tocando os desenhos com osdedos; ele era capaz de se entreter dessa maneira por muitas horas.

Peguei uma moldura de metal escurecido contendo a foto de uma mulher jovem,

sorridente e de cabelos negros. Era uma dessas fotos antigas da época em que haviam sido feitasas primeiras fotos coloridas, e as cores eram intensas demais: o amarelo da saia, o vermelho doslábios. O penteado era antiquado, encaracolado em torno do rosto, mas a pele era macia e livrede rugas, e os olhos brilhavam como se ela houvesse acabado de ouvir algo engraçado.

Virei a moldura e encontrei uma inscrição atrás da fotografia: Mary 1968. Ela nãoparecia com ninguém que eu houvesse conhecido, mas, ao mesmo tempo, era de algumaforma... familiar. Deixei a moldura de lado, colocando-a no chão com cuidado, e desdobrei umpedaço de tecido amarelado pelo tempo.

Dentro dele, um retângulo de renda branca havia sido caprichosamente enrolado emtorno de um colar. Uma corrente prateada sustentava uma pedra vermelha lapidada em dúziasde facetas e cercada por um delicado arabesco de renda. Era uma peça linda e parecia ser muitoantiga.

As páginas enroladas eram frágeis, folhas de papel amarelado e áspero ao toque,cobertas por uma caligrafia floreada. As letras desbotadas pareciam ter sido escritas com canetatinteiro. Não consegui ler todas as palavras - havia nomes de mulher e datas de um lado, e dooutro algumas linhas escritas em um idioma desconhecido.

Estudei os nomes. A lista começava com Lucy Hester Tarbell e o ano de 1968.Continuei lendo os nomes: Sarah Beatrice Tarbell, Rita Joan Tarbell, Helen Davis Tarbell...Quando cheguei ao final da lista, o último nome me fez perder o fôlego: Alice Eugenie Tarbell,1961.

Olhei para o nome de minha avó até perceber o que estava errado: se aquelas eram asdatas de nascimento, isso significava que ela tinha... quarenta e nove anos. Mas isso eraimpossível. Vovó era arqueada, sofria de artrite, e tinha dificuldades para respirar e se levantarde uma cadeira. Era verdade que ela nunca me dissera sua idade, mas eu sempre presumira queela tinha pelo menos oitenta anos, talvez mais, que fosse tão velha quanto eu podia imaginar.

A data podia ter outro significado? Uma data de casamento, talvez, ou... Tentei pensarem possibilidades. Talvez alguma coisa ligada a religião? Minha avó nunca ia à igreja, nuncamencionava Deus. Mas eu havia aprendido na escola que as famílias de imigrantes costumavamregistrar nomes, datas de nascimento, morte e casamento, coisas desse tipo, em uma Bíblia da

Page 44: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 44/218

44

família. Eu havia encontrado páginas arrancadas da Bíblia da minha família?

Voltei a elas e tentei ler o texto manuscrito, as linhas incompreensíveis.

Tá mé mol seo draíochtNa anam an corp cara ár comhoibrí 

Mal havia terminado de ler as duas primeiras linhas, e descobri que meus lábios semoviam com facilidade, que eu pronunciava as palavras desconhecidas como se as houvesserecitado durante toda minha vida, linha após linha. Aquilo me deu uma sensação extremamente boa e parecia ser... certo, e eu continuei. Meus olhos perderam o foco, mas continuei recitando,minha voz baixando para um sussurro, e quando as palavras chegaram ao fim eu pisquei uma,duas vezes, e percebi que havia recitado o parágrafo inteiro ou poema, ou o que quer que fosseaquele texto escrito com tanto cuidado sobre as velhas páginas.

Eu podia ter parado - não era como se estivesse possuída ou coisa parecida - mas aspalavras estavam ali dentro de mim, e ler as primeiras linhas foi o suficiente para trazer orestante delas à minha mente consciente. Descobri que queria - precisava - recitá-las em vozalta. Examinei a página pela segunda vez, e me encantei com a beleza das palavras, em como euconseguia produzir os sons estranhos, a entonação que os acompanhava.

Então percebi que já havia escutado aquelas palavras uma vez antes.

Quando eu tocara Milla no ginásio.

Como eu podia ter esquecido? No momento em que minha visão escurecera, quandoos sons do ginásio haviam desaparecido e eu me vira completamente focada na sensação dosangue correndo em minhas veias e no corpo inerte de Milla sob meus dedos, minha mente nãohavia estado completamente silenciosa. Havia um sussurro, uma voz dizendo aquelas mesmaspalavras, ou talvez fosse minha própria voz, eu não podia ter certeza, só sabia que elas sedesenrolavam como uma fita flutuando ao vento, permanecendo por um momento antes dedesaparecer.

Deslizei a ponta dos dedos pelas palavras, como se tocá-las pudesse trazer a respostapara minhas perguntas, como se, de alguma forma, o gesto pudesse revelar o que eu deviafazer. Porque eu tinha certeza de que havia sido escolhida para alguma coisa, e que Milla faziaparte disso, e todos os Morries, e vovó de alguma maneira... e Rattler Sikes, Dun, e até Chub.Tudo isso se encaixava de algum jeito que eu ainda não entendia, e a idéia era assustadora, masenvolvente.

Page 45: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 45/218

45

Peguei o colar e o aproximei da luz. Lampejos intensos de vermelho se projetaram noscantos do quarto, como se a pedra tivesse alguma energia que se fragmentava ao ser tocada pelaluz.

Chub notou a pedra brilhante e abandonou o livro sobre a cama, batendo palmas.

- Biiito! - ele disse rindo, e era quase como se dissesse "bonito".

Pus o colar no meu pescoço, manuseando com cuidado o velho fecho de prata, e depoisme sentei ao lado de Chub na cama e o deixei olhar para a pedra. Ele a tocou com delicadeza emurmurou alguma coisa, subindo no meu colo. Eu o segurei com força e embalei.

Adorava cantar para Chub, e cantava de tudo, desde suas canções preferidas dos

desenhos animados até as músicas que eu ouvia no rádio. Hoje eu cantarolava uma melodiatriste que surgiu na minha cabeça. Chub suspirou e se apoiou em mim, e a melodia ganhoupalavras, as palavras do verso. Se Chub as achava estranhas, não demonstrou nada. Eu cantava,e nós balançávamos, e quando a necessidade de repetir os versos muitas e muitas vezesfinalmente desapareceu, ele havia adormecido em meus braços.

Eu o levei para o berço e o acomodei sob seu velho cobertor favorito. Escondi opingente sob a roupa para que vovó não o visse, e enrolei o pedaço de renda cuidadosamente eguardei no fundo da minha gaveta de camisetas, junto com a moldura e as folhas de papel.Quando saí do quarto, Chub segurava a ponta do cobertor junto do queixo, e sorria sonhando.

Page 46: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 46/218

46

Capítulo 7No dia seguinte, eu me sentava no lugar de sempre para almoçar em uma mesa vazia,

quando o vi. Sawyer estava sentado com Milla e alguns outros Morries, cutucando com umgarfo de plástico a comida que levara dentro de um recipiente Tupperware.

Mas havia algo errado, eu podia perceber de onde estava, cinco metros distante. O olhodele estava inchado e uma horrível mancha roxa cobria um lado de seu rosto.

De repente perdi o apetite. Joguei fora meu almoço - um sanduíche e uma maçã quehavia levado de casa - e passei pela mesa dele andando com toda casualidade de que era capaz.

De perto a situação era pior. Ele tinha um olho preto, e sobre o outro, na sobrancelha,havia um corte bem feio, ainda vermelho. Além do hematoma no rosto, havia algo de errado

com o nariz dele; estava inchado e torto para o lado direito. Ao passar, não consegui escondermeu espanto, e todos olharam para mim, exceto Sawyer, que baixou o queixo ainda maismantendo os olhos fixos na mesa.

- Por que está olhando para ele desse jeito, Hailey? - perguntou Gomez Jones. - A culpadisso é sua. Você fez isso com ele.

Eu não podia deixá-lo falar essas coisas, não na frente de Sawyer. -Eu... eu ...

Milla bateu com a mão na mesa, e a força do gesto furioso fez pular bandejas e talheres.

- Por que não pode simplesmente nos deixar em paz?- Vadia... fique longe de nós - disse outra menina.

Eu estava ficando cansada de como eles me tratavam especialmente depois do que

Page 47: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 47/218

47

havia feito por Milla. - Não fosse por mim, você estaria morta. Talvez devesse mostrar umpouco mais de gratidão.

- Ah, é claro. Porque você me salvou, não é? - O rosto de Milla estava distorcido pela

raiva. - Por isso devo lamber seu traseiro?

- Eu não... nunca disse ...

- Não preciso de você, nenhum de nós precisa. Acha que está acima de todos nós, masnão está. Não está. Você e sua avó, vocês estão loucas. São aberrações. - Para meu horror, Millase levantou com os olhos cheios de lágrimas furiosas. Depois de um segundo de silêncio,Sawyer empurrou a cadeira para trás e foi atrás dela, sem sequer olhar para mim.

- Feliz agora? - a menina perguntou, enquanto Gomez e os outros começavam a

recolher suas coisas. - Quantos de nós ainda quer prejudicar? Nada disso estaria acontecendo sevocê simplesmente ficasse longe.

Continuei parada no mesmo lugar depois que todos eles foram embora. Eu nãoentendia. Nunca - nunca - antes vira uma menina Morrie enfrentar alguém fora de seu grupo,nem uma vez em toda minha vida. Eu me afastei da mesa lentamente, ouvindo as palavras delaecoarem em meus ouvidos. Quando tropecei em uma cadeira, eu me virei e saí da cantina tãodepressa quanto pude.

Fique longe. Havia infringido alguma regra ao conversar com Sawyer no dia anterior, e

ele pagara caro por isso. Não me incomodei em perguntar a mim quem podia ter feito aquilocom ele - só podia ter sido Rattler, embora eu nem imaginasse por quê. Não culpava os Morriespor terem medo de mim - eu mesma tinha medo de mim. Muito medo.

Quando cheguei em casa, Chub estava dormindo no sofá.

- Há quanto tempo ele dormiu? - perguntei a minha avó.

- Não muito - ela respondeu, apagando um resto de cigarro no cinzeiro e estendendo aoutra mão para o maço, amassando-o ao constatar que estava vazio. - Eu acho. Ou talvez tenhadormido há algum tempo. Não sei.

Ela não fazia idéia, era evidente. Tudo com que se importava era a televisão, a menosque recebesse visitantes. Automaticamente, estendi a mão para o cinzeiro cheio, joguei oconteúdo na lata de lixo, e limpei o cinzeiro com um pano antes de colocá-lo de volta no braço

Page 48: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 48/218

48

da cadeira. Fui ao quarto dela buscar um maço de cigarros ainda fechado, e o encontrei no lugarde sempre, em cima da cômoda. Porém, quando tirei o maço do lugar, percebi que ele estiveraaté então sobre um envelope pardo simples.

Curiosa, eu o peguei. Alguma coisa caiu dele - um envelope branco comercial e, paraminha surpresa, um maço de dinheiro, notas presas por um elástico. Sacudi rapidamente asnotas. Meu coração disparou quando percebi que eram todas de cem - devia haver milhares dedólares na minha mão. Larguei o dinheiro sobre a cômoda como se estivesse em chamas, epeguei o envelope branco. Retirei dele um pedaço de papel e depois de estudá-lo por algunsminutos compreendi que era uma passagem de avião. O embarque estava marcado para duassemanas a partir desse dia, e o vôo era de STL para DUB. Saint Louis para... onde?

Antes que pudesse examinar a passagem com mais atenção, ouvi vovó tossir meunome na sala, e enfiei o bilhete de volta no envelope e o guardei no outro, pardo e maior, com o

maço de dinheiro.

De volta à sala, entreguei o maço de cigarros para minha avó e tentei dar a impressãode que nada de extraordinário havia acontecido. Ajeitei um cobertor sobre Chub e beijei seurosto. - Vou sair para caminhar. Volto logo.

Minha avó não respondeu. Eu não esperava que ela respondesse. Não me importeicom uma coleira. Rascal não precisava de uma - ele parava e se sentava sempre que eu parava.Fomos andando pela estrada, e eu tentava entender o sentido das coisas que encontrara noquarto da vovó. Nenhuma de nós jamais viajara de avião, e eu nunca havia visto tanto dinheiro

em toda minha vida. Devia ter alguma relação com os homens no carro, mas o que poderia ser?Ela estava planejando fugir, escapar das garras da lei? O que havia feito?

Estava tão compenetrada, tão distraída com meus pensamentos, que quando fizemosuma curva a uns quatrocentos metros da nossa casa, quase não registrei o ruído do caminhão.Barulhento, com um eterno problema de escapamento, aquele veículo passava pela estrada todaterça e sexta-feira a caminho do Wal-Mart em Casey. Rascal adorava correr atrás dele.Normalmente ele não saía de perto de mim quando estávamos fora de casa, mas havia algumacoisa no brilhante caminhão amarelo que o fazia sair correndo, as orelhas tremulando, a línguapara fora, tudo nele revelando uma intensa alegria com a perseguição.

Eu não me preocupei - Rascal era um cachorro esperto, rápido e ele adorava correratrás de caminhões. Mas eu não contara com a curva. O motorista não podia ter visto ocachorro, que ouvira o caminhão se aproximando antes de eu mesma registrar o som, e saiucorrendo pelo cascalho do acostamento no mesmo instante em que o veículo surgiu do trecho

Page 49: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 49/218

49

anterior à curva.

Tenho visto aquele momento mil vezes nos meus pensamentos.

Não quero lembrar. Quero esquecer o som que o corpo de Rascal produziu ao seratingido pelo pára-choque dianteiro do caminhão, quando ele conseguiu escapar por pouco deser esmagado pelas rodas, quando ele foi jogado longe e caiu sobre a terra batida além doacostamento.

Eu corri, mas tinha a sensação de que meus braços e pernas se moviam com apenasmetade da velocidade habitual, e o grito ficou preso na minha garganta. Sei que o motoristaparou, e ainda lembro que ele desceu da cabine e falou comigo, mas não recordo o que ele disse.

Eu me aproximei de Rascal e vi que a situação era grave. Muito grave. Não vou contar

o que vi, não vou descrever o estrago que pode ser feito em um único instante de inocentealegria. Naquele segundo que levei para me ajoelhar ao lado de Rascal e aproximar meu rostoda cabeça dele, fiquei coberta de sangue, e atrás de mim, o motorista gritava para eu levar ocachorro para o caminhão, para procurarmos um veterinário, porque se corrêssemos talvezainda houvesse uma chance...

Mas eu sabia que essa chance não existia. Não se entrássemos no caminhão. Não se eunão fizesse o que tinha de ser feito por mim.

O formigamento já começava a dominar meu corpo, o sangue corria mais depressa nas

veias, tudo como havia sido no ginásio. Mas eu não podia fazer o que tinha de ser feito ali, nãona frente do motorista do caminhão. Tirei minha jaqueta e a estendi no chão, e com todagentileza de que era capaz eu coloquei o corpo de Rascal sobre a jaqueta. Com lágrimasinundando meus olhos e dificultando minha visão, dobrei o tecido sobre o corpo ferido deRascal e o peguei nos braços. Ele não protestou. Já estava partindo.

Não me lembro do que eu disse ao motorista. Nem sei se disse alguma coisa. Omotorista do caminhão era um bom homem, e acho que ele sabia que Rascal estava quasemorto, e creio que não quis interferir nos meus últimos momentos com o cachorro. Sei que elepartiu depois de tocar meu ombro com aquela mão pesada e me dizer que sentia muito, mas eu já havia me virado para voltar para casa.

Deixei Rascal na varanda, no chão, ainda embrulhado na minha jaqueta. Aproximei orosto do focinho do cachorro para sentir sua respiração, mas não havia nada. Apoiei as mãos nacarne dilacerada de Rascal, senti o sangue frio já coagulando sob meus dedos, e fechei os olhos

Page 50: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 50/218

50

para me deixar invadir por aquela onda que ganhava força rapidamente, implacável, e os sonsda tarde desapareceram, deixando sem eu lugar escuridão e cegueira. Meus dedos tornaram-seelétricos com aquela coisa que se movia dentro de mim, e a onda quebrou e fluiu de mim paraRascal.

Tá mé mol seo draíochtNa anam an corp cara ár comhoibrí 

Eu havia falado alto? Meus lábios se moveram, as palavras haviam ecoado na brisa friade primavera, haviam sido levadas para além do nosso quintal mal-cuidado, para a rua, para aCidade do Lixo, onde meninas assustadas se escondiam atrás de janelas sujas, meninas quesabiam mais sobre mim do que eu mesma, meninas que me xingavam? Não sei, mas quando aspalavras se juntaram àquela necessidade urgente e implacável, senti que tudo estava conectado,que o que eu fazia não era uma ação realmente minha, mas um ato resultante da interferência

de alguma fonte que ligava todos nós de alguma maneira. Quando a onda arrefeceu e meussentidos voltaram com uma intensidade repentina, tentei ignorar a incômoda sensação de quenão tinha controle sobre aquilo, que invocava poderes que não podia dominar.

Mas nada disso importava, porque o corpo de Rascal se moveu.

Um espasmo pequeno, só um movimento quase imperceptível das patas. Pisquei pararecuperar a nitidez da visão e notei que os lábios ainda estavam retraídos exibindo os dentes,mas sentia seu coração bater fraco sob meus dedos - uma pulsação irregular e lenta - ecompreendi que ele não estava morto.

Eu o abracei, tentando ser tão delicada quanto era capaz, e depois o peguei do chão.Pensando em tudo isso agora, não sei como tive coragem, mas fui buscar a cesta de costura noarmário dos fundos da casa, passando por minha avó com passos leves para não despertá-la docochilo da tarde. Lavei as mãos e esguichei nelas um bactericida que ficava no banheiro, epeguei uma agulha de tapete e um fio forte e encerado, usando o material para costurar asferidas abertas no corpo de Rascal, caprichando para fazer o melhor possível naquelascircunstâncias.

Pedi desculpas antes de dar o primeiro ponto. Sinto muito, sussurrei, sei que isso vaidoer, mas Rascal não se moveu nem demonstrou nenhum sinal de dor. Ele não olhava paramim, seus olhos permaneciam abertos, mas sem foco, e eu fui formando a fileira de pontosfirmes, começando pelo local abaixo do peito onde começava o corte. Esguichei o bactericidasobre os pontos, e quando terminei a sutura, levei Rascal para dentro e o deixei sobre oscobertores no chão da cozinha, onde era sempre mais quente.

Page 51: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 51/218

51

Falei com ele por mais algum tempo, e acho que nesse momento eu já sabia que haviaalgo de errado. Ele não olhava para mim, apenas ficava ali deitado, apesar de sua respiração serregular e forte. Limpei o sangue da varanda com panos de chão velhos e um produto de

limpeza, e depois levei os panos e minha jaqueta para o barril que mantínhamos no fundo doquintal, onde queimávamos o lixo. Empurrei tudo para o fundo do barril, para as cinzas querestavam da última incineração.

Lá dentro, Chub começava a despertar do cochilo. Ele devia ter tido um pesadelo,porque piscou uma vez e começou a chorar, agarrando o cobertor que eu usara para cobri-lo.Ele estava crescendo, ficando grande demais para esse tipo de coisa, mas me aproximei dele eme deixei envolver no abraço apertado. Lentamente, os soluços foram perdendo força,transformando-se em gemidos, e ele escondeu o rosto no meu pescoço onde suas lágrimas semisturaram ao sangue de Rascal.

Page 52: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 52/218

52

Capítulo 8Rascal passou aquela noite deitado no piso de linóleo, perto da porta da frente. Na

manhã seguinte eu examinei os pontos. A linha rosada da cicatriz era tão clara que quase não sepodia vê-Ia, mas havia os pedaços de linha que eu usara para suturá-lo. Mais espantoso ainda, opêlo já começava a crescer sobre o ferimento. Como era possível uma cicatrização tão rápida,como o pêlo podia crescer tão depressa?

Mais cedo, nos momentos que antecederam o toque do meu relógio despertador, euhavia chegado a pensar que sonhara com o acidente. Agora começava a imaginar se não teriasido isso mesmo. Mas os fios de linha preta eram a prova de que tudo havia realmenteacontecido.

Fui até a porta da frente e chamei o cachorro pelo nome. Ele se levantou obediente, semnenhuma dificuldade ou demonstração de dor, e saiu para ir fazer suas necessidades, depoisvoltou e se deitou outra vez sobre os cobertores. Peguei a tesoura de bordado de minha avó,porque as pontas eram bem finas, e uma pinça. Chamei Rascal novamente e ele me seguiu até oquarto, onde Chub começava a se mexer sob os cobertores, bocejando e murmurando palavrasincompreensíveis.

Rascal se sentou onde eu mandei, mantendo aquela pose perfeita de cachorro deexposição, muito ereto e imóvel. Quando pressionei delicadamente seus ombros ele se deitou,expondo a cicatriz. Ele não reclamou quando cortei os fios e os removi com a pinça. Era quase

como se não sentisse nada. Eu me perguntava se o acidente havia danificado o sistema nervoso,se o deixara sem sensibilidade, embora não houvesse mais nenhum sinal externo de dano físico,e torcia para que ele estivesse se curando por dentro como cicatrizava por fora. Concluída atarefa, peguei as ferramentas de minha avó e os restos de linha, que joguei no lixo, e mandeiRascal sair do quarto.

Page 53: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 53/218

53

Atrás de mim, Chub tossiu e resmungou sonolento. - Hayee... Passarinho.

Eu me virei, esquecendo Rascal completamente naquele momento de espanto. Chub

havia dito uma palavra - uma que ele nunca dissera antes, sílabas inteiras e claras como orepicar de um sino.

- O que você disse Chub? - perguntei devagar, sentindo a boca seca.

- Passarinho - ele repetiu.

- Quer... que eu cante? Quer que eu cante para você a música do passarinho?

Ele esfregou os olhos e assentiu. Talvez fosse uma casualidade.

Talvez ele nem houvesse falado "passarinho", mas alguma outra palavra.

Mas coisas estranhas estavam acontecendo. Milla, Sawyer, Rattler... quase perderRascal... o dinheiro e a passagem aérea no quarto da vovó ... as coisas que eu havia feito semsequer entender o que estava fazendo. Quando tirei Chub do berço e o abracei bem forte, aspalavras das páginas dançaram na minha cabeça, uma trilha sonora sussurrada que pareciaestar tocando desde sempre, durante toda minha vida, num volume baixo.

Mas Chub queria que eu cantasse. Então, eu me recostei na minha cama, mantendo-o

em meus braços e apoiando o queixo sobre sua cabeça de cabelos macios, e cantei sua canção deninar favorita até ele se fartar, até se soltar do meu abraço e sair correndo do quarto para ir atrásde Rascal. Fiquei ali reclinada por mais alguns momentos, tentando entender o que estavaacontecendo comigo, conosco.

Na escola, desisti de almoçar para ir à biblioteca usar a Internet. Eu havia aprendido afazer pesquisa on-line e me aperfeiçoava sempre, graças ao esforço para descobrir o que estavaerrado com Chub. Não que houvesse ajudado muito; havia muitas coisas que podiam estarerradas com ele, e eu sentia que, quanto mais lia, menos sabia.

Não tive muita sorte quanto tentei pesquisar o que estava errado com Rascal. Nãosabia exatamente o que procurar: "cicatrização rápida" me levava a sites de remédios naturais ealimentação saudável. Pesquisar os sintomas de Rascal resultou em "catatonia", que se resumiaem movimentos repetitivos e ignorar estímulos externos, mas não me parecia que fosse esse oproblema.

Page 54: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 54/218

54

Desisti da pesquisa e peguei o pedaço de papel onde havia anotado algumas linhas daspáginas que encontrara no closet. Desdobrei a página e digitei as palavras no mecanismo de busca. Logo ficou evidente que aquelas eram palavras do idioma irlandês, e depois de estudá-

las em um dicionário bilíngüe e em um site de tradução automática, consegui ter uma boa idéiado significado das frases:

Eu recomendo a essa magia As almas e os corpos de nossos pobres compatriotasCure essa carne murchaEsses membros quebrados e amaldiçoadosEsse sangue infectado 

Lamentei não ter copiado a página inteira. Não sabia a que tipo de "magia" o autor sereferia, mas sentia uma estranha agitação crescendo dentro de mim. Cura: podia ser realmenteuma coincidência eu ter encontrado as palavras depois de tudo que havia acontecido com Millano ginásio... e antes de Rascal ter sido atropelado pelo caminhão?

Antes de sair do laboratório, pesquisei o código aeroportuário que havia encontrado napassagem aérea do quarto de minha avó.

DUB era a sigla para Dublin... Irlanda. Não podia ser uma coincidência, podia? Mas

como as palavras que encontrei escritas naquelas páginas no closet podiam estar relacionadascom o que acontecia agora, com os planos que minha avó mantinha em sigilo?

Eu não sabia quem escrevera aquelas palavras, quem escondera as páginas no armário.Não sabia o que significava CAMPO DE TREVOS, mas tinha a sensação de que nessas palavrasestava a chave. Precisava descobrir mais, mesmo que a única pessoa capaz de me ajudar meodiasse por razões que eu nem conhecia. Tinha de haver uma maneira de fazê-la falar comigo.

Esperei até que o dia na escola estivesse quase terminando.

Quando o último sinal soou, saí apressada da sala e corri para o laboratório, porquesabia que a última aula de Milla havia sido Ciências. Quando ela saiu da sala de cabeça baixa,no final de uma fila de alunos, parei diante dela impedindo a passagem.

Abri a boca para perguntar se poderíamos ir a algum lugar e conversar, mas a

Page 55: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 55/218

55

expressão dela passou do cansaço ao reconhecimento, seus olhos se estreitaram, e seus lábios seentreabriram numa reação surpresa.

- Onde achou isso? - ela sussurrou.

- O quê?

- O colar.

Meus dedos tocaram a pedra vermelha do pingente. Eu não havia tirado o colar dopescoço desde que o encontrara no closet. Mantinha a pedra sob a camiseta no tempo quepassava em casa, porque não queria que minha avó a visse, mas, na escola, eu a deixava do ladode fora e visível.

- Eu... achei.

- Sua avó lhe deu?

Eu não sabia o que dizer. Se conseguisse pensar em uma mentira que a mantivessefalando comigo, não hesitaria em usá-la. Mas eu não tinha idéia do que ela queria, do queprenderia sua atenção. Só conseguia pensar em perguntar se ela iria comigo a algum lugar ondepudéssemos conversar; algum lugar privado. - Escute, você poderia, nós poderíamos...

Ela balançou a cabeça, já recuando. - Não tenho nada para falar com você.

- Mas eu preciso falar com você. Com alguém... Eu... Eu não... Eu lhe dou dinheiro, se éisso que quer, não tenho muito, mas posso conseguir mais ... - Sentia que a qualquer momentoela ia se virar e fugir de mim, correr para longe dali. - O colar! Eu lhe dou o colar.

- Não tire isso do pescoço - ela disparou. - Não quero essa coisa perto de mim.

Eu não sabia o que era, o que podia ser, mas era evidente que Milla estava perturbada,que aquilo exercia um efeito sobre ela. Segurei a pedra entre o polegar e o indicador e a girei àluz do corredor, diante das janelas amplas e altas e o sol a atingiu e dançou no rosto de Milla emreflexos intensos de um vermelho sangue. A expressão dela passou do medo à resignação.

- Não vai desistir, não é? - ela suspirou. - Tudo bem, vamos acabar com isso de umavez.

Page 56: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 56/218

56

Fomos juntas a uma das antigas salas de ensaio da banda do colégio, um lugar úmidocom paredes de material acústico, apoios para partituras, e um piano velho e arranhado. Sóhavia uma cadeira, por isso nos sentamos no chão, ouvindo o som distante de alguém queensaiava alguns acordes em um violoncelo distante.

Eu não revelei tudo. Contei a ela sobre os homens no carro, sobre o receio de asautoridades me separarem de Chub. Não falei sobre Rascal- não queria que ela pensasse que euera maluca. Disse a ela sobre os homens que haviam estado em casa, sobre os negócios queminha avó fazia e as coisas que ela guardava no porão.

Quando falamos sobre Rattler, Milla baixou os olhos e ficou quieta.

- O que é?- perguntei frustrada. - Qual é o problema com ele?

Milla não respondeu de imediato, mas, quando falou, sua voz era tão baixa e fraca,que quase não consegui ouvi-Ia. - Acho que você devia saber.

- Eu? Por quê? Nunca tive nada a ver com ele...

Ela levantou a cabeça e me encarou furiosa. - Não se trata do que você fez. Será quenão entende? Nenhum de nós, Banidos, pode opinar ou interferir nisso tudo. Está tudodecidido.

- Banidos? Eu não...

- O colar que exibe com tanto orgulho - Milla me interrompeu, apontando um dedopara mim. - Talvez goste de saber que ele não é o único. São três colares, e todos sãoamaldiçoados. Como acha que sua avó ficou daquele jeito? Qualquer pessoa que use o colartambém é amaldiçoada.

Toquei a pedra de maneira protetora. Não sabia dizer por que, mas tinha a impressãode que a verdade era exatamente o oposto do que ela dizia, a pedra era um talismã que impediacoisas ainda piores de acontecerem comigo. - Não acredito em você - sussurrei.

- Realmente? Bem, sua mãe tinha um desses colares, e você sabe o que aconteceu comela. O colar que está no seu pescoço deve ter sido dela. Sua avó negociou o dela, e talvez porisso ainda esteja viva. Apenas um colar está desaparecido, o da sua tia e ninguém sabe o queaconteceu com ela.

Page 57: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 57/218

57

- Minha... o quê?

- Sua tia, Hayley. Ah, não se faça de tonta.

- Eu não tenho uma tia...

- Você sabe que tem. E eu não tenho que ficar aqui sentada ouvindo você falar tudo quepensa, como se me considerasse uma idiota, como se pensasse que vou acreditar em tudo quediz...

- Eu... eu sei que não é idiota - disse apressada, tocando o braço dela e tentandoacalmá-la, mas ela se esquivou do contato. - Não quero fazer você se sentir pior, nem nadadesse tipo, mas eu realmente não tenho uma tia. Minha mãe morreu no parto e eu...

- Pare! - Ela se envolveu com os braços como se sentisse frio.- Pare, por favor. Sua mãeenlouqueceu e se matou, e você sabe disso. Foi tão grave que sua avó acabou contaminada pelasituação, e agora ninguém pode sequer pronunciar seu nome. Não entende? Teria sido melhorpara todos se você nunca tivesse nascido, Hailey. - A voz dela ganhara um tom frio e cruel. -Você acha que pode curar, mas quem sabe o que fez comigo? Deve ter me amaldiçoado...

- Minha mãe não se matou - murmurei. Eu podia ter dito uma dúzia de coisasdiferentes, mas foi essa a resposta que saiu de minha boca. - Ela... morreu. Quando me teve.

Milla se levantou tão depressa, que a cadeira vazia atrás dela balançou e quase caiu.

Ela apontou para mim um dedo trêmulo, os lábios comprimidos pela fúria.

- Não posso... - começou, e depois recuou se afastando de mim. - Se realmente nãosabe, pergunte a sua avó, ela vai fazer você acreditar nisso.

- Espere, espere! Perguntar o quê?

- Pergunte a sua avó - Milla repetiu antes de abrir a porta e sair correndo, me deixandoali sozinha com os sons tristes do violoncelo como única companhia.

Page 58: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 58/218

58

Capítulo 9Quando cheguei em casa, havia um carro estacionado na entrada. Não era o Lexus de

 janelas escuras nem o caminhão de Rattler Sikes. Era um velho Volvo marrom, e eu deduzi porexperiências anteriores que teria de enfrentar mais uma série de más notícias. Um carro comoaquele - impecável, embora antigo, sem graça, mas apresentável... Só podia ser uma assistentesocial.

O Departamento de Serviços Sociais, Divisão de Apoio à Família, mandava seusagentes para nos visitarem de tempos em tempos. Teoricamente, eles deveriam nos visitarmensalmente. Na verdade, eu nunca sabia quando devia esperá-los - por isso nunca conseguiame preparar para essas visitas.

Atravessei o jardim correndo, ignorando Rascal, que estava deitado na varanda. Entreipela porta da frente e fui para a cozinha com passos apressados. Era pior do que eu temia:Minha avó não se incomodara em fazer nada com Chub, e ele estava sentado no chão com umafralda que parecia prestes a explodir de tão cheia, sem camisa, com o rosto sujo dos restos deseu almoço. Quando me viu, ele se levantou de um salto e correu na minha direção, abraçandominhas pernas com força e apertando o rosto contra minha coxa, dizendo "Hayee, Hayee" comaquele tom feliz.

Minha avó nem se dera ao trabalho de oferecer chá ou café à assistente social. Ela

mantinha os cigarros na sua frente e, considerando as bitucas no cinzeiro, não havia parado defumar desde a chegada de nossa visitante.

Na última vez em que alguém do serviço social estivera em nossa casa, o tabagismo deminha avó havia sido um dos assuntos principais. Eu esperava enfrentar dificuldades por ainda

Page 59: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 59/218

59

não termos detectores de fumaça, e por ainda haver pregos soltos na escada da casa, o quepoderia causar um desabamento; esperava que nos questionassem por Chubby ainda não falar enão usar o banheiro, e por minha avó se recusar a deixá-lo freqüentar a pré-escola.

Era hora de pôr em prática um plano de controle de danos.

- Olá - eu disse em voz alta, removendo os braços de Chub das minhas pernas. - SouHailey Tarbell.

A mulher reagiu com aparente tensão ao ouvir minha voz. Ela tinha cabelos castanhose brilhantes num comprimento médio, um pouco abaixo dos ombros. Não era uma das que euvira antes, mas isso não era incomum. Elas nunca ficavam muito tempo no mesmo emprego.

A visitante se levantou, olhou para mim e começou a falar. Mas parou em seguida, e

nós apenas nos entreolhamos.

O rosto que olhava para mim... era o meu.

Não que o rosto da desconhecida fosse idêntico ao meu, como o reflexo de um espelho.Mas ela era parecida comigo, como eu seria se fosse mais velha e tivesse dinheiro para roupas bonitas, maquiagem, e um bom corte de cabelo.

E os olhos eram como os meus - mais dourados que marrons, amendoados. Assobrancelhas eram altas e arqueadas, como as minhas, embora fosse evidente que ela pagava

caro para fazê-las em um bom salão de beleza. A boca era como a minha, com o lábio superiorfino e o inferior mais cheio. As faces altas e a testa larga também eram como as minhas.

Minha tia. Essa mulher devia ser a tia que eu nunca soube que tinha!

Depois de me encarar por alguns segundos, ela fez algo que me surpreendeu aindamais - virou-se de costas para mim e bateu com a mão sobre a mesa, uma batida tão forte que ocinzeiro pulou, espalhando cinza e bitucas de cigarro. Uma pancada tão forte devia ter sidodolorosa, mas ela cerrou o punho e, por um momento, tive a impressão de que ela ia agredirminha avó, mas ela apenas continuou com a mão fechada, apertando os dedos com tanta forçaque a pele ficou branca. Percebi que eu havia parado de respirar no mesmo instante em que elaapoiou as duas mãos sobre a mesa, inclinando-se até o rosto estar a poucos centímetros do deminha avó. Sua voz soou baixa, ameaçadora?

- Se voltar a mentir para mim, Alice, eu mato você com minhas próprias mãos.

Page 60: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 60/218

60

Depois ela se virou para mim novamente, e toda raiva desapareceu de seu rosto,deixando apenas uma mistura de tristeza e cansaço.

- Meu nome é Elizabeth Blackwel1.

Vovó jogou a cabeça para trás e riu uma gargalhada horrível e rouca que mostrava seusdentes amarelos. Nós duas olhamos para ela. Finalmente, ela concluiu as gargalhadas com umprolongado ataque de tosse, limpando as lágrimas dos olhos com o dorso das mãos.

- Quem está mentindo agora? - minha avó perguntou.

A visitante me olhou e piscou uma vez. Depois respirou fundo, como se estivessetentando reunir coragem para saltar dos rochedos sobre o Lago Bobine.

- Tudo bem - ela disse; a voz tão suave que eu soube que falava comigo. - Não sou...quem eu disse. Meu nome é Prairie, e eu sou sua tia.

Minha boca ficou seca. Prairie. Campo.

Cravos.

- Qual era o nome de minha mãe? - perguntei num sussurro.

- O quê?

- Minha mãe. Sua irmã. Qual era o nome dela?

- Clover - minha tia respondeu. Cravo. - Alice nunca disse qual era o nome de sua mãe?

De repente eu senti uma forte pressão na cabeça e uma intensa tontura. As palavras naparede, o jeito como as sentia sobre os dedos, a atração invisível que exerciam sobre mim... era onome da minha mãe. Eu me perguntava se ela mesma havia entalhado as letras A tonturaprogrediu para algo mais, como se todo meu ser houvesse perdido a âncora e vagasse à deriva.- Preciso de ar.

Saí pela porta de tela dos fundos. Por alguma razão, quando a ouvi me seguindo, nãome surpreendi.

Page 61: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 61/218

61

Ela se mantinha alguns passos atrás de mim enquanto eu caminhava para o bosque, meafastando da estrada que Rascal e eu havíamos percorrido juntos no dia anterior. Havia um breve caminho de ligação que levava ao emaranhado de trilhas por entre as árvores, vias queconectavam as fazendas com a Cidade do Lixo de um lado, e Gypsum do outro. Segui em linha

reta, e em poucos minutos cheguei no riacho. Estava quase seco - era meio de abril e tivemospouca chuva ou neve ao longo do inverno - e havia uma rocha plana meio submersa na águarasa e lenta. Eu havia ido me sentar naquela pedra centenas de vezes, onde ficava pensando e jogando pedrinhas no rio. E foi lá que me sentei, meus pés balançando sobre a água.

- Você se incomoda se eu também me sentar? - Prairie perguntou.

Eu dei de ombros - Esse é um país livre.

Ela se sentou do meu lado e pegou um graveto longo e fino que havia sido levado pelo

vento e ficado preso em uma fresta da rocha, usando-o para traçar desenhos no ar. Por algumtempo nenhuma de nós disse nada. Dúzias de perguntas passavam por minha cabeça. Eucontinuava pensando nos nomes entalhados juntos na parede.

- Se você é minha tia, onde esteve durante todo esse tempo? - disparei. Não era isso queeu queria dizer, e de repente lágrimas inundaram meus olhos e ameaçaram correr por meurosto, e eu o limpei com a manga da blusa.

- Oh, Hailey - Prairie respondeu com voz trêmula. - Eu... tive razões para partirnaquele momento. Eu não sabia sobre você. Pretendia voltar para buscar sua mãe, mas quando

pude, ela... bem, ela havia morrido. Eu nem sabia que ela estava grávida.

- Mas você... deixou minha mãe aqui sozinha com a vovó.

E ela se matou. Não me dei ao trabalho de banir da voz a nota de acusação, embora nãosoubesse ao certo se acreditava no que Milla dissera.

- Eu sei. - A voz de Prairie era ainda mais suave. - Isso é algo com que tenho queconviver todos os dias da minha vida.

Pensei em dizer a ela que eu nunca deixaria Chub com minha avó. Nunca.

- Ninguém veio procurar por você? - perguntei em vez disso.

- Sua avó não registrou o desaparecimento - respondeu Prairie. Se sentia alguma

Page 62: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 62/218

62

amargura, ela não demonstrava. - Nunca fui considerada oficialmente uma fugitiva. E a políciatinha coisas mais importantes para fazer do que procurar por mim.

- Mas... por que você não voltou mais tarde? Depois que eu nasci?Ouvi o tremor na

minha voz e o odiei, odiei que Prairie também o tivesse escutado.

- Eu não sabia, Hailey. Alice disse que sua mãe... - Ela hesitou, e notei que mordia olábio como eu fazia, pegando o lado direito do lábio inferior entre os dentes. - Ela nunca mefalou sobre você.

Por que eu devia me importar? Minha mãe não era nada para mim. Eu não tinhalembranças dela. Do meu ponto de vista, jamais tivera mãe.

- Não importa - resmunguei. - Agora chub é minha família. Estamos bem, não

precisamos de mais ninguém.

Prairie assentiu mais para si mesma do que para mim, pensei.

- Vejo que encontrou o esconderijo de sua mãe - Prairie disse com tom gentil.

- O... o quê?

Prairie levou as mãos à nuca e abriu o fecho de uma fina corrente de prata. Quando elafechou os dedos em torno do pingente eu soube o que ia ver.

- É igual ao seu - ela disse. - Quando o vi em você... bem, sua mãe nunca o tirou.Nenhuma de nós tirou. Mary - nossa avó - nos deu os colares. São muito antigos. Ela disse quenos protegeriam.

Ela me entregou o pingente ainda quente de sua pele. Eu havia notado que a pedra nocolar que eu usava absorvia meu calor e o retinha, quase como se armazenasse energia. O colarna minha mão era idêntico ao meu, até onde eu podia determinar, desde o trabalho delicadoque mantinha a pedra no lugar, até a argola pela qual passava a corrente.

Eu devolvi o colar. Teria sido ótimo acreditar que havia magia nos colares, mas eu nãocontava com isso. - Acho que devemos voltar - disse.

Não conversamos, mas o silêncio era confortável. Quando voltamos para casa, vovó

Page 63: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 63/218

63

ainda estava sentada na cadeira da cozinha, e ela nos recebeu com um sorriso frio, soprandofumaça na nossa direção. - Vejam só o que o gato trouxe para casa.

- Vou levar Hailey para jantar fora - Prairie avisou. - Vamos demorar um pouco.

O que ela me dizia era novidade. Chub, que estivera brincando com suas letrasplásticas magnéticas na porta do refrigerador, aproximou-se de mim e pressionou o rosto contraas minhas pernas. Por um segundo fiquei embaraçada por Prairie poder ver que Chub não eracomo as outras crianças.

Vovó olhou para ela com os olhos apertados, cheios de desconfiança, e Prairiesustentou seu olhar. Eu me descobri torcendo por minha avó piscar primeiro.

- Tudo bem - ela disse finalmente. Percebi que ela pensava.

Aquela expressão era comum em seu rosto. Minha avó podia ter muitos defeitos, masestupidez não estava entre eles. Eu não podia dizer quantos de seus clientes chegavam emnossa casa pensando poder enganá-la, e ela os encarava com aquela mesma expressão e, comcerteza, eles acabavam deixando mais dinheiro sobre a mesa do que haviam planejado, e se elesnão gostavam disso, vovó simplesmente sugeria que fossem fazer negócios em outro lugar, oque raramente acontecia. Pensei novamente no dinheiro e na passagem, e tentei deduzir o queela estava tramando.

- Não espere acordada - foi tudo que Prairie disse enquanto pegava as chaves na bolsa.

- Temos de levar Chub - eu disse. Eu queria descobrir o que Prairie fazia ali, mas mesentia mal por deixar Chub sozinho esta noite. Podia perceber que ele estava perturbado,porque me abraçava com força.

- Chub não vai a lugar nenhum - minha avó se manifestou. - Acho que ele não estámuito bem. Não quero que saia e pegue um resfriado.

Eu sabia que ela estava mentindo, mas também sabia que Chub ficaria bem por uma ouduas horas.

Segui Prairie até o carro dela. Nós não conversávamos. Ela seguiu para o Nolan,pegando o atalho que passava por trás do Napa Auto Parts, e eu me surpreendi por ela terescolhido o único restaurante elegante da cidade.

Page 64: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 64/218

64

Cheguei a temer que não nos deixassem entrar, porque eu vestia jeans. Mas Prairie deuaquele sorriso agradável e disse: - Precisamos de um pouco de privacidade, por favor, se pudernos acomodar em uma mesa que não fique no caminho.

A hostess nos levou a uma mesa perto de uma parede, fora do caminho dos garçons elonge da porta da cozinha. Ela olhava intrigada para Prairie, e agora que eu havia superado asurpresa provocada pela semelhança entre nós, podia perceber que Prairie chamava atenção.

Eu era alta e magra, mas Prairie era alta e elegante. Magra, mas com quadris sinuosos eseios de verdade, e os cabelos castanhos eram brilhantes e lisos, com pontas ligeiramenteencurvadas logo abaixo dos ombros. Sua jaqueta, reta e de gola baixa na frente para mostrar umpouco da camisa de seda que ela usava por baixo, tinha um caimento perfeito que gritavadinheiro com D maiúsculo. Acho que a hostess pensava a mesma coisa. Havia bem poucasfamílias ricas em Gypsum; a maioria da população apenas lutava para sobreviver.

Eu ia pedir o sanduíche de galinha. Li todos os preços e fiz uma conta rápida paracalcular quanto custaria o jantar. Uma parte minha queria pedir o prato mais caro só para ver oque Prairie faria, para descobrir se havia um limite na preocupação dela comigo, talvez, ver seeu conseguia atingi-la a ponto de ela perder o controle e me mostrar quem realmente era. Comose sob aquela aparência elegante e agradável ela estivesse apenas esperando para me dizer oque queria de verdade, e seria algo ruim.

Mas quando a garçonete se aproximou para anotar o pedido, Prairie disse: "O filémignon parece realmente bom, não é, Hailey?" e eu olhei para o cardápio e vi que o prato

custava vinte e três dólares, mas não comia um filé há mais tempo do que podia lembrar, esimplesmente disse que sim, parecia ótimo.

Quando a garçonete se afastou, nenhuma de nós disse nada por um instante. Prairie brincava com a faca, balançando-a para frente e para trás.

- Fale-me sobre seu cachorro - ela pediu finalmente. - Se não se importa.

O pedido me pegou de surpresa. Rascal não era algo que eu queria discutir. - Não hánada para dizer.

- Mas é que eu posso dizer que... que alguma coisa aconteceu com ele. Seu rostoganhou uma repentina suavidade, e os olhos ficaram tristes. - Onde o encontrou?

- Ah... vovó ganhou o filhote de um conhecido.

Page 65: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 65/218

65

- Alice o aceitou como pagamento por drogas. - A expressão de Prairie não mudou.Então, ela sabia sobre as drogas.

- Sim. - Eu dei de ombros como se não fosse importante. Provavelmente.

- Hailey... eu vi a cicatriz. O que restou dela, pelo menos. No estômago do animal.

Eu pisquei. Naquela manhã a cicatriz havia quase desaparecido. Era preciso afastar ospêlos para ver a linha fina e rosada. Eu queria perguntar a Prairie como ela sabia, mas nãoqueria dar a impressão de que me importava tanto. Dar importância às coisas faz você ficarvulnerável.

- Ele foi atropelado por um caminhão há alguns dias.

- Foi muito grave?

- Ele... - Engoli sem eco, lembrando como Rascal havia ficado. Mas não queria contar aela o que havia feito, não queria ter de tentar explicar como ele se recuperara quasecompletamente em uma única noite. - Não, foi só um corte. Pequeno.

Prairie me observou com atenção. - Aposto que deve ter cuidado muito bem dele,Hailey... O que fez?

A voz dela era tão bondosa que tive de desviar o olhar. Engoli em seco e bebi um golede água gelada. - Eu, ha, só limpei o corte com anti-séptico e, você sabe, o mantive dentro decasa.

- Falou com ele?

- Se eu... fiz o quê?

- Enquanto estava limpando os ferimentos? Quero dizer, talvez ele estivesse assustado.Sei como são essas coisas... você deve ter tentado acalmá-lo, deixá-lo confortável.

Ela sabia.

De alguma maneira, sabia que eu havia curado Rascal, que alguma coisa que eu fizeracom ele depois do acidente o recuperara, exatamente como eu havia reanimado Milla no

Page 66: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 66/218

66

ginásio. Senti meu rosto quente. Ela podia ler minha mente?

- Não creio que tenha dito alguma coisa especial - respondi cautelosa - enquanto estavacuidando dele.

Prairie assentiu. - Certo. Bem, fico feliz por ele estar... melhor.

- Sim, é eu... Quero dizer, ele manca um pouco, como deve ter notado. Mas é só isso.

A garçonete chegou com a nossa salada. Nós agradecemos, e quando eu estavapegando o garfo, Prairie respirou fundo. - Tenho algumas coisas para lhe dizer, Hailey- elaanunciou.- Lamento ter de falar agora, quando acabamos de nos conhecer, mas acho que énecessário.

Más notícias, então; ela agora ia revelar o que realmente queria de mim. Mas, com todafranqueza, quanto minha vida podia piorar?

- Vá em frente - eu disse.

- Estou me arrependendo por não ter pedido uma bebida - Prairie comentou sorrindo. -Uma bebida bem forte. Muito bem, por onde começar? Vejamos... bem, Alice não é tão velhaquanto você pensa.

- O que você quer dizer? - perguntei.

- Acho que ela está completando cinqüenta esse ano - respondeu Prairie. - Vejamos, euvou fazer trinta e um, e ela tinha dezenove quando eu nasci, então, sim, ela ainda tem quarentae nove.

Pensei nas páginas antigas, nos nomes e datas escritos ali. Alice Eugenie Tarbell, 1961.Mas vovó era velha - tinha o rosto enrugado, o cabelo fino e grisalho, os dedos retorcidos comoas pessoas velhas têm. E era fraca. Mal conseguia se levantar da cadeira e descer a escada para oporão. Não conseguia fazer as tarefas domésticas, e era por isso que eu sempre varria, passavapano no chão, lavava as janelas e tirava a neve do portão, lavava a roupa e fazia as compras.

E ela era doente. Pegava todas as gripes que apareciam, ficava deitada por diasseguidos, e só se levantava quando algum cliente ia visitá-la. Eu achava tufos do cabelo dela nochão do banheiro, e suas unhas eram amareladas e quebradiças. Se batia nos móveis, surgia emsua pele imediatamente uma mancha roxa e amarela. Cada vez que ela acendia um cigarro,

Page 67: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 67/218

67

minha avó tossia como se os pulmões fossem sair pela boca.

- Isso é impossível- eu disse finalmente.

Prairie bebeu sua água - Teria sido bom se você pudesse ter conhecido sua bisavó.Minha avó Mary, mãe de Alice.

Pensei na foto na moldura barata, na mulher de lábios vermelhos e olhos brilhantes.Minha bisavó - eu nem podia imaginar.

- Ela morreu quando eu tinha dez anos - Prairie continuou-, mas ela era linda, forte,divertida e inteligente... muito inteligente. Como a maioria das mulheres da nossa família.

- O que aconteceu com minha avó, então?

- Bem, isso é parte do que preciso lhe contar, Hailey. As mulheres Tarbell... todas assuas ancestrais eram incrivelmente saudáveis e fortes. É... bem, é nosso legado, acho quepodemos dizer. Está no nosso sangue. Aposto que você raramente adoece. Não é assim?

- Ah... não muito.

- E é forte... mais do que os outros jovens. E mais coordenada, certo?

Eu apenas dei de ombros.

- Bem, como eu disse, está nos nossos genes. Mas acontece que de vez em quando, acada cinco ou seis gerações, surge uma aberração.

- Uma o quê?

- Nasce alguém que não se enquadra no padrão genético. Como Alice. Enquanto asoutras mulheres Tarbell têm genes fenomenais, Alice sempre teve saúde deficiente. Durantetoda a vida. Ela está envelhecendo muito depressa, e os tecidos de seu corpo se degeneram. Nãoacredito que ela chegue a completar cinqüenta e cinco anos.

Pensei em Milla e no que ela dissera sobre os colares, sobre como eram amaldiçoados.Como acha que sua avó ficou daquele jeito? ela perguntara.

Eu não havia dito isso, mas se fosse verdade, se minha avó havia sido amaldiçoada, eu

Page 68: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 68/218

68

não lamentava por ela. Vovó podia morrer no dia seguinte, e eu não me importaria. Fiz a contarapidamente. Eu teria vinte anos. Vinte anos, e livre da minha avó - meu coração ficou mais levequando pensei nisso.

Uma idéia me ocorreu, uma peça desaparecida do quebra-cabeça da minha vida, umaresposta que Prairie poderia me dar.

- Você e minha mãe são filhas do mesmo pai? Sabe quem ele é?

Prairie balançou a cabeça. Às vezes eu tentara imaginar, olhando para minha avó comsua pele enrugada e o corpo alquebrado - se ela algum dia fora jovem, se algum homem aamara. Parecia impossível.

- Alice nunca falou sobre essa parte da vida dela.

- E quanto ao meu pai? - perguntei. - Sabe se minha mãe tinha um namorado, oualguma coisa nesse sentido?

Prairie olhou para mim com uma tristeza tão grande que eu quase desejei não terperguntado. - Clover era minha irmã mais nova. Quando saí de Gypsum, ela tinha apenasquatorze anos. E já ... estava grávida. E eu não sabia. Nunca soube.

Quatorze. Eu não podia acreditar. Quero dizer, sabia que era possível- estavam semprefalando nisso na aula de Saúde.

- Ela teria... vinte e nove anos - eu disse. Jovem demais para ser mãe de uma criançapequena, e mais ainda de alguém da minha idade.

- Sim... Clover, sua mãe, ela era muito tímida. Não tinha muitos amigos na escola. Eninguém que pudesse ser um namorado.

Então, ela era como eu, naquela época. Eu sabia como era não ter amigos. - Mas vovópode saber de alguma coisa.

Prairie comprimiu os lábios por um momento, como se tentasse decidir o que diria emseguida. - Se ela sabe, receio que jamais fale.

- Por que não?

Page 69: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 69/218

69

- Sei quanto é difícil viver com Alice - Prairie comentou com tom delicado. - Eu... aindalembro. Ela não tem o poder que gostaria de ter, e o jeito como é... Tudo isso a deixou revoltadae amarga. Talvez até incapaz de amar alguém... Acredito que tenha sido difícil para sua mãe,mais difícil ainda do que foi para mim. Clover era sensível, e às vezes acho que ela se

incomodava mais quando Alice era cruel comigo do que quando a crueldade era com ela. Euendureci, acho. Há muito tempo decidi que não a deixaria me magoar, e na maior parte dotempo funcionou.

Eu entendia o que ela estava dizendo, embora não revelasse.Era se convencer de que aspalavras de Alice não significavam nada. Quando ela se recusava a conversar, era lembrar quenão tinha importância. Era fechar aquela parte do coração que queria uma mãe, uma avó, e paraisso era preciso lembrar todo dia que ela não podia magoá-la se você não deixasse, se nãocometesse o erro de se importar demais.

Minha mãe não havia conseguido.

- Chub é filho de quem? - Prairie perguntou.

Senti meu rosto quente. - Ele chegou com um dos clientes da vovó. Está sob nossoscuidados.

- Alice o acolheu para receber o dinheiro do estado - Prairie refletiu. - Certo?

Eu assenti surpresa por ela ter deduzido corretamente e tão depressa. - Sim, mas... achoque ela também queria que ele fosse um ... projeto. Algo que ela pudesse consertar. Ele tem...

problemas. Quero dizer, é lento. Chub é ótimo, mas não está se desenvolvendo no ritmoesperado.

Eu me sentia desleal dizendo essas coisas. Esperei Prairie falar alguma coisa sobre omenino, fazer alguma crítica desinteressada, e me sentia pronta para odiá-la se ela disse algoerrado. Mas ela se limitou a mover a cabeça em sentido afirmativo, os olhos tristes. - Ele pareceser um menino doce. E você cuida muito bem dele. Deve ser difícil.

- Não. - A palavra soou mais ríspida do que eu pretendia. - Quero dizer, não meincomodo. Não é difícil, é divertido.

Eu não disse a ela como vovó agira diferente por um tempo, depois de candidatar-se àtutela do menino. Não queria admitir que havia sido idiota o bastante para ter esperanças,acreditar que as coisas haviam realmente mudado, durante aquele breve período quando vovómantivera a casa limpa e preparara refeições de verdade, e não fizera negócios com os produtos

Page 70: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 70/218

70

do porão. Não queria confessar que quase acreditara que ela podia mudar por causa de Chub.

- Sabe qual é o nome dele? O nome verdadeiro? Prairie perguntou com tom gentil.

Olhei para o meu prato. - Não. Ele é só Chub.

Eu havia pensado em mudar. Havia sugerido Charlie, mas minha avó rira e disseraachar que o nome dele era suficientemente bom. E a questão era que Chub conhecia esse nome,respondia a ele. Concluí que ele já tinha confusão demais em sua vida sem alguém acrescentarmais uma novidade.

- Tudo bem - Prairie respondeu. - E o sobrenome?

- Vovó sabe qual é, mas nunca me deixou ver os documentos - eu disse. - Ela diz

apenas que agora ele é um Tarbell.

Prairie assentiu. Seu rosto tinha aquela expressão novamente, aquela que eu sabiasignificar que estava pensando e tentando entender o que acontecia.

A garçonete chegou com o nosso jantar, e eu comi. Era incrível como aquele filé era bom. Tenro, suculento, saboroso... a melhor coisa que eu já provara.

Prairie mal tocou no dela. Suspirando, ela cortou um pedaço pequeno, e o colocou na boca. Mastigou e engoliu, mas tive a impressão de que nem sentia o gosto. Por mais que se

esforçasse para parecer calma, era fácil perceber que estava perturbada, quase amedrontada. Euqueria saber por quê.

Deixei os talheres sobre o prato. - O que faz aqui? O que quer de mim?

Prairie me olhou nos olhos - algo que ninguém jamais fizera comigo, até onde eu podialembrar - e respirou fundo.- Vou levar você comigo - ela respondeu. - Não pode continuar aquicom Alice.

Meu coração deu um salto dentro do peito. Ir embora - mesmo que não fosse como euhavia planejado, mesmo que fosse com uma estranha - a idéia era quase irresistível. Eu queriadizer tudo bem, é claro, vamos lá. Para o diabo com a escola, com os estúpidos Limpos quesempre haviam debochado de mim. Para o diabo com nossa casa caindo aos pedaços, com oquintal de mato queimado, as longas caminhadas até o armazém. Qualquer lugar seria melhorque aqui. Sentia-me tentada a gritar "É claro, vamos embora agora", antes que ela mudasse de

Page 71: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 71/218

71

idéia. Em vez disso, o que falei foi: - Não posso deixar Chub.

Prairie não parecia surpresa. Ela limpou os cantos da boca com o guardanapo e depôso garfo.

- Escute - começou - confesso que não contava com Chub. Na verdade, esperava partirhoje mesmo, esta noite. Isso complica um pouco a situação - mas nós ainda vamos embora. Sóvamos nos atrasar um pouco em relação ao que havia planejado, e o levaremos conosco.

Ela disse essa última parte bem depressa, antes que eu começasse a protestar.

- Mas... mas e ...

Ela ergueu a mão para me interromper. - Tente não se preocupar. Quero que deixe

todos os detalhes comigo. Pelo menos por enquanto. Tudo bem? Escute, sei que não tem muitasegurança com relação às minhas intenções, e talvez não confie em mim inteiramente, e isso...isso é compreensível. É sim. Eu entendo. Mas é que... não estou brincando, Hailey. Depois deme conhecer um pouco mais, vai entender que eu nunca brinco com coisas sérias.

Ela falava de um jeito que sugeria uma promessa, ou algo ainda mais sério que umapromessa. Como algo de que ela tivera de se convencer com muito esforço, e agora fariaqualquer coisa para não perder essa certeza.

- Não posso simplesmente...

- Você pode. - Prairie tentou pegar minha mão sobre a mesa, mas eu a afastei. - Tenho...recursos sobre os quais conversaremos melhor mais tarde. Tenho algum dinheiro. Podemospassar essa noite na casa, e você vai ter tempo para pegar algumas coisas, não muitas, só umavalise pequena. E não podemos deixar Alice perceber que está se preparando para partir. Elanão sabe. Disse a ela que estava voltando para Gypsum, me mudando para poder ficar maisperto de você. Falei que ia procurar uma casa na cidade.

- Você disse a ela... - Vovó nunca acreditaria nisso. Ninguém acreditaria que alguémvoltaria a morar ali, se houvesse alternativa. - Não tenho uma valise.

- Uma caixa, então. Podemos comprar tudo que for necessário para você e Chub.

- E depois? Para onde iremos? - Eu sabia que era loucura. Mas era tão tentadoracreditar em Prairie, no que ela dizia poder fazer!

Page 72: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 72/218

72

- Não quero dizer. Ainda não - ela respondeu. - Sei que estou pedindo muito, masprometo que logo revelarei tudo que você quer saber. Nesse momento, tenho que me concentrarem sair daqui com vocês dois. E você precisa me ajudar a fazer Alice acreditar no que eu disse a

ela. Acha que consegue?

Eu não disse sim... mas também não disse não.

Page 73: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 73/218

Page 74: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 74/218

74

- Olá, Hailey- Dun disse sorrindo, deixando os pés dianteiros da cadeira voltarem aochão com um baque surdo. - Você parece ainda mais quente em agosto. E quem é essa comvocê?

Atrás dele, Rattler riu. Era um som repentino, rouco, acompanhado por um esboço desorriso.

Dun olhou Prairie da cabeça aos pés, como costumava fazer comigo, demorando-se umpouco mais nos seios e nas pernas. Dun e Rattler deviam ter a idade de Prairie, provavelmente,mas Dun sempre me parecera mais velho, talvez por não ter alguns dentes e por estar semprecom o cabelo oleoso caindo no rosto. Depois de a olhar daquele jeito insolente, ele assobiou baixinho.

- Prair-ie Tar-bell- disse, enfatizando as sílabas. - Eu a reconheceria em qualquer lugar.Você está ainda melhor do que no dia em que partiu.

Senti que Prairie ficava tensa ao meu lado.

- Olá, Dunston - ela disse com tom firme. - Rattler.

- Maldição, você nos reconhece afinal, garota. Não esperava, agora que se acha superiora nós. Mas acho que simplesmente não conseguiu ficar definitivamente longe de nós, os rapazesda cidade. - Dun riu como se essa fosse a melhor piada que escutara em muito tempo. Vovó riu

com ele, acendendo mais um cigarro e emendando a gargalhada com um ataque de tosse.

- Eu me lembro de vocês. - Prairie praticamente mastigou as palavras.

- Alice me disse que está voltando para a cidade. Que maravilha. É claro, se vai voltarpara tentar se enfiar na minha calça outra vez, está um pouco atrasada. - As palavras de Duneram pastosas, resultado do excesso de cerveja. - Estou interessado em outra garota.

Vovó riu novamente, e os dois olharam para mim.

- Que sorte a dela - Prairie disparou com tom gelado. - Bem, se nos dão licença, Haileye eu estamos cansadas, e amanhã cedo vou encontrar um corretor para ir visitar uma casa,portanto, vamos para a cama.

- Hailey e eu estamos cansadas - vovó repetiu com tom debochado, irônico. Às vezes,

Page 75: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 75/218

75

quando bebia, ela fazia isso comigo, imitava o que eu dizia.

Mas alguma coisa me dizia que era um erro fazer isso com Prairie.

Esperei que ela reagisse com uma resposta ríspida, como quando conversara comminha avó mais cedo, mas ela não disse nada. Segurando meu braço, apenas me levou para asala.

- Venha - ela disse, e eu senti que sua mão tremia.

- Vai para cama, Prairie? - a voz de Rattler soou atrás de nós.

Senti que ela ficava ainda mais tensa, mas não houve resposta, e ela praticamente mearrastou para o quarto que eu dividia com Chub. Assim que entramos, ela fechou a porta e se

apoiou nela.

Eu fui ver se Chub estava dormindo bem acomodado. Ele estava encolhido no berço, eme senti aliviada por minha avó ter, pelo menos, colocado o menino para dormir. O pulsofechado e gordinho pressionava um lado do rosto. Ele sempre ficava quente quando dormia, esuas faces se tingiam de uma tonalidade rosada. Toquei levemente sua nuca e senti a pulsaçãoforte e regular.

Só então me virei para olhar para Prairie.

- Se Dun e Rattler sabiam sobre você, e provavelmente muito mais gente também sabia,por que nunca ninguém me disse nada?

- Fale baixo, Hailey - Prairie pediu com tom suave. - Muita gente tem medo de Alice.Ou ela paga bem pelo silêncio das pessoas, não sei. Além do mais, com exceção dos clientesdela, poucas pessoas devem lembrar. Alice nos mandava para a escola em Tipton, porque nãoqueria que nos aproximássemos das crianças daqui. E nunca tivemos amigos por lá também.

- E quanto a Dun e Rattler? Tive a impressão de que eles a conhecem bem.

- Havia algumas famílias com as quais Alice... socializava. Os Acey, os Sikes, e algumasoutras.

- Da Cidade do Lixo. Seus clientes.

Page 76: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 76/218

76

- Nem sempre eram os clientes, mas... sim. Alice sabia que eles apreciavam certassubstâncias ilegais. E encontrou um jeito de lucrar com isso. Ela precisava ganhar dinheiro,afinal.

Prairie suspirou e alisou o tecido de sua jaqueta, claramente abalada com aslembranças.

- Mas você escapou - eu disse. - E...

Eu quase não falei o que estava pensando. Mordi o lábio inferior e pensei em ficarquieta, deixar o passado em paz. Provavelmente, era o melhor a fazer. Mas no espaço dealgumas horas eu descobrira que havia perdido mais do que jamais soubera ter. Então, quandofalei novamente, minha voz soou amarga.

- E deixou minha mãe aqui para lidar com Alice sozinha. Como eu.

Prairie reagiu como se eu a houvesse esbofeteado.

- Hailey! Eu... Não foi assim. Você precisa saber que eu amava sua mãe mais que tudono mundo. Eu jamais teria ido embora se... se ...

Se o quê?

- O que aconteceu. Teria sido perigoso para nós duas, se eu ficasse.

O que podia ter sido tão ruim a ponto de ela ter de sair da cidade?

- Você matou alguém, ou algo parecido?

O rosto de Prairie exibiu uma angústia intensa, e por um segundo me arrependi de terperguntado. Se ela fosse uma assassina, talvez eu não quisesse saber.

- Não - ela disse em voz baixa. - Nada disso, mas o que eu fiz tornou impossível paramim, continuar na cidade. Você precisa acreditar em mim. E eu ia voltar para buscar sua mãe.

- É fácil fazer promessas - eu respondi. - Disse a ela que voltaria para buscá-la, e nãovoltou. Agora voltou e está tentando o que, me resgatar? Por que se sente culpada com relaçãoao que aconteceu com minha mãe?

Page 77: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 77/218

77

Senti meu coração oprimido e ouvia minha voz cada vez mais alta, mais aguda. Eusabia que devia parar. Mas seria fácil ceder e aceitar o que Prairie prometia... e também seriamuito perigoso. Se eu tomasse a decisão errada, não seria eu a única prejudicada. Chub tambémsofreria.

Antes que Prairie pudesse responder, eu dei as costas para ela.

- Esqueça. Não quero saber. Vou para a cama.

- Hailey...

- Se ainda estiver aqui amanhã, não que eu espere que esteja...

Não terminei a frase, porque não sabia o que dizer. A verdade é que queria

desesperadamente acreditar nela. Queria que ela me resgatasse. Mas receava acreditar nela, teresperanças, e depois vê-la desaparecer como todas as outras coisas boas que eu sempre desejei.

De repente me sentia cansada. Muito cansada.

- Hailey, podemos ir embora assim que Rattler e Dun saírem.Alice não vai acordardepois que apagar. Você sabe disso.

Prairie soava desesperada.

- O que eu sei é que não quero mais falar sobre isso - respondi, passando por ela a

caminho da porta. - Vou escovar os dentes.

Quando voltei ao quarto, ela pegou na bolsa uma pequena valise de higiene pessoal efoi para o banheiro sem dizer nada. Nenhuma palavra. Parecia exausta. Enquanto ela estava no banheiro, improvisei uma cama extra da melhor maneira possível com o que tinha à mão. Useimeu saco de dormir como base e o cobri com algumas colchas velhas dobradas, e dei a ela meutravesseiro. Para mim, improvisei um travesseiro com um moletom.

Quando Prairie voltou ao quarto, ela olhou para a cama no chão e sorriu para mim.Havia mais uma coisa que eu precisava fazer antes de dormir - eu tinha de ir ver o que

minha avó estava tramando com Dun e Rattler antes de poder relaxar. Fui até a sala e espieipela fresta da porta para a cozinha. A pilha de latas de cerveja havia crescido, e Dun estavadesmoronando na cadeira. Rattler estava sentado à mesa com um cinzeiro cheio de bitucas e bebia outro copo de água.

Page 78: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 78/218

78

Vovó falava com ele em voz baixa e séria, mas a expressão de Rattler era impassível. Eunão tinha certeza de que Dun estava acordado. E diante dos meus olhos, algo estranhoaconteceu: De repente Rattler levantou a cabeça e olhou para frente, para mim, mas eu sabia dealguma forma, que ele não olhava para mim - era como se ele estivesse vendo alguma coisa na

própria cabeça. Seus olhos perderam o foco e ele se espremeu como se estivesse com dor,levantando uma das mãos como se quisesse fazer minha avó parar de falar.

- Quem sabe que estou aqui? - ele perguntou.

- Ninguém - minha avó respondeu, bebendo um pouco de cerveja e deixando escorreruma parte do líquido pelo queixo.

- Não, há... há... você trancou aquela porta do fundo?

- Sim.

- Alguma coisa não está certa. Um carro...

- Não, é só o carro dela. - Minha avó bocejou sem se dar ao trabalho de cobrir a boca. -Aquela coisa estranha.

Rattler balançou a cabeça.

- Homens. São homens dentro do automóvel.

Minha avó pegou mais uma cerveja, soltando a lata de um daqueles anéis daembalagem de seis unidades. Até esse esforço era demais para ela. Sempre me espantou que,mesmo fraca como era, ela pudesse beber tanto.

- Está enferrujado - minha avó disparou. - Nada acontece por aqui há tanto tempo, queagora está vendo coisas.

Rattler balançou a cabeça com impaciência, franzindo a testa.

Eu voltei para a sala - não podia acreditar que minha avó não tinha mais medo dele.

- Não estou enferrujado, mulher maldita.

- Tudo bem, então está errado simplesmente. Acontece.

Page 79: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 79/218

79

- Acontece com os outros, Alice não comigo.

Alice riu, um som esganiçado que eu conhecia bem. Quando estava bêbada, ela achava

tudo muito engraçado.

Eu me afastei sem fazer barulho, sentindo meu coração disparado no peito. No meuquarto, Prairie estava sentada no chão, com o cobertor escondendo suas pernas até a altura dos joelhos. De repente me senti feliz por ela estar ali.

- Prairie, Rattler estava falando com a vovó. Ele disse...

Mas o que ele dissera exatamente? Nada específico, mas eu estava pensando nosrumores, nas mulheres cambaleando pela rua, voltando pra suas casas descalças na madrugada

gelada.

- Ele é tão sinistro - sussurrei.

Prairie assentiu. Ela não parecia surpresa.

- Não quero que você se preocupe com ele. Deixe que eu me preocupe com isso. Soucapaz de apostar que Dun já apagou na cadeira. Acertei?

Eu assenti, e agora meu coração batia na garganta.

- Acho que sim.

- Muito bem, um já caiu, e Alice provavelmente não está longe. Mais cedo ou maistarde, Rattler vai ficar entediado.

- Queria que ele fosse embora.

- Eu sei - ela disse. - Eu também. Mas deixe eu me preocupar com eles. Você precisadescansar se puder.

Eu não conseguia pensar em mais nada para fazer. Deitei-me, e Prairie apagou as luzes,mas havia luar suficiente penetrando pela janela para eu poder ver sua silhueta. Ela estava decostas, e eu via seu peito subindo e descendo numa cadência constante, no ritmo da respiração.

Page 80: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 80/218

Page 81: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 81/218

81

Capítulo 11O grito soou do outro lado da porta do meu quarto, e a voz era da minha avó.Prairie saltou sobre mim, cobrindo minha boca com a mão. Antes que eu pudesse

protestar, ela se inclinou e sussurrou:

- Quieta. Leve Chub para o closet, feche a porta e fique lá dentro. Não saia.

-Mas...

- Vá, Hailey. Por favor.

Chub tinha o sono pesado - quando dormia, nada o acordava.

Eu o peguei do berço, o que exigiu um certo esforço, porque ele havia crescido demais, e oaninhei com a cabeça perto do meu pescoço, sentindo sua pele quente e úmida. Olhei para trás,mas Prairie havia sumido; a porta do quarto estava entreaberta. Meu coração batia aceleradoenquanto eu caminhava para o closet. Arranquei algumas roupas dos cabides e as joguei nochão, depois deitei Chub sobre elas, cobrindo-o com um suéter que ajeitei como se fosse umcobertor. Beijei seu rosto infantil e saí do closet, fechando a porta quase completamente.

Quando atravessava meu quarto, ouvi um homem gritar: "Pare aí!" Depois ouvi doisestalos e a voz de Prairie falando bem baixo, dizendo palavras que eu não conseguia entender.Eu precisava descobrir o que estava acontecendo. Não estava preocupada com minha avó, não

exatamente, mas tinha de saber que tipo de problema Prairie trouxera com ela.

Caminhei pelo corredor na ponta dos pés, com as costas apoiadas à parede, e pareiescondida atrás dela de forma a poder enxergar a cozinha e a sala.

Page 82: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 82/218

82

O que vi me fez parar de respirar.

Havia um homem alguns passos além da porta, apontando uma arma para minha avó epara Prairie. Era um dos homens que eu vira sair daquele carro parado perto de casa - reconheci

seu paletó cinza e o cabelo grisalho e curto. Vovó estava sentada em sua cadeira habitual pertoda mesa, e compreendi pela trilha de baba que ainda molhava um lado de seu rosto que eladormira sentada, como às vezes fazia. Ela piscava muito e ajeitava o cabelo num gesto nervoso.Prairie estava parada atrás dela, imóvel.

Dun continuava no mesmo lugar em que eu o vira pela última vez, caído sobre a mesa,mas um pequeno detalhe mudara: agora uma poça de sangue se formava sob sua boca.

Ele havia levado um tiro.

Prairie parecia furiosa. Quis fazer algum sinal para ela, mas sabia que não conseguiriasem chamar a atenção do homem armado.

- Você - ele disse com tom calmo, firme. - Velha. Deite-se no chão. Deite-se de bruços comas mãos estendidas para os lados.

- Você não devia... - minha avó começou a protestar. De repente senti um forte cheiro deurina e soube que ela havia molhado a calça.

Um movimento atraiu meu olhar para o canto da cozinha.

Quando minha consciência interpretou o que eu vira, compreendi que Rattler se haviaescondido atrás do refrigerador. Mas... por quê? Ele estava ajudando o homem armado? Antesque eu pudesse concluir a reflexão, outra arma apareceu na mão de Rattler e houve um lampejo,um brilho de metal, e a faca de cozinha da vovó apareceu enterrada logo abaixo do ombro dooutro homem .

Eu gritei. Tentei gritar, pelo menos, mas o som que emiti foi mais uma exclamaçãoabafada.

- Afaste-se daqui, Hailey - Prairie gritou no mesmo instante em que Rattler soltou o caboda faca. Ele nem esperou o homem cair, jogando-o no chão da cozinha com um empurrão semtentar tirar a faca cujo cabo podia ser visto em meio ao sangue que cobria seu peito. Em seguida,Rattler olhou para Prairie.

Page 83: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 83/218

83

- Pegue Chub - Prairie gritou. - Agora! Fuja!

Eu me virei e corri para o meu quarto. Peguei Chub do closet - ele nem se mexera desdeque eu o deixara ali. Ouvi um estrondo na cozinha e o barulho de vidros se quebrando. Olhei

para a janela, pensando em pular com Chub - eram só alguns metros até o chão, nós sairíamosvivos e inteiros - mas percebi que sem Prairie, e sem o carro dela, não iríamos muito longe. Jamais escaparíamos. O caminho pelo quintal para o bosque era longo, e não teríamos como nosesconder na fuga.

E... eu não queria deixar Prairie.

Enquanto eu ia para o corredor houve outro estrondo, e um homem gritou "Afaste-se", eeu parei pouco antes do final da parede e espiei novamente a cena, dessa vez segurando Chubem meus braços.

Dun havia caído da cadeira para o chão, deixando uma mancha de sangue na mesa. Ohomem com a faca no peito estava sentado ao lado dele, fazendo barulhos horríveis enquantotentava continuar respirando, as mãos cobertas de sangue segurando o cabo da faca. Umsegundo homem estava parado na porta e apontava uma arma para Rattler - era o outro homemdo carro, um pouco mais baixo que seu parceiro, com cabelos e olhos negros e um paletó preto.Eu o vi entrar na cozinha passando por cima de um amontoado de madeira quebrada e cacos devidro, resultado da porta arrombada, e colocar-se exatamente entre Prairie e Rattler. Por umsegundo tive a idéia absurda de que ele estava protegendo Prairie, de que eles haviam ido ànossa casa para nos salvar de Dun, Rattler e minha avó, mas então o homem falou com os olhos

fixos em Rattler, que se ajoelhava lentamente e erguia as mãos no ar, aparentemente tãoamedrontado quanto surpreso.

- Deite-se de bruços, braços estendidos, ou serei obrigado a atirar - ele avisou, e Rattlerobedeceu.

Vi Prairie deslizando as mãos sobre o balcão atrás dela, encontrando um copo, um pratosujo, um pacote de salgadinho. Percebi que a torradeira estava fora de seu alcance, mas pormuito pouco. Quis gritar para ela agarrá-la e jogá-la contra o invasor, acertá-lo na cabeça, masnão conseguia falar, e apertava Chub com tanta força que ele choramingava com o rostoescondido em meu pescoço. Não sabia se devia voltar ao quarto e arriscar o salto pela janela,afinal, ou se tentava ajudar Prairie.

Antes que eu conseguisse decidir, vovó empurrou a cadeira para trás e tentou se levantar.

Page 84: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 84/218

84

- Parada, dona - disse o homem. - Para o chão como o seu amigo, braços abertos.

Mas minha avó se atirou contra ele, o cabelo grisalho e despenteado colado no queixomolhado de baba, as mãos se movendo no ar como se fosse difícil manter o equilíbrio. - Mas sou

eu quem...

- Para o chão! - ele gritou, levantando um braço na direção dela. Pude ver o que iaacontecer uma fração de segundo antes do tiro ecoar na cozinha, porque minha avó continuavainvestindo contra o desconhecido, indo na direção dele.

E não foi um só tiro - foram dois, um depois do outro, quase um eco, e enquanto minhaavó ainda era jogada para trás pelo primeiro disparo, o segundo abriu um buraco sangrento emsuas costas. Nesse momento Rattler se levantou do chão com grande agilidade, tendo seapoderado da arma do primeiro atacante.

O atirador demorou mais que minha avó para cair. Rattler o atingira na lateral do corpo,mas não parecia ser um ferimento grave. Ele cambaleou, levando as mãos à ferida e tentandoaspirar uma grande quantidade de ar. Rattler não teve mais paciência com ele do que haviademonstrado com seu parceiro, e o atingiu bem embaixo do queixo com o cabo da arma. Ohomem caiu ouvindo o som da própria mandíbula quebrando.

Houve um segundo de silêncio absoluto. Eu analisava o cenário, minha avó deitada decostas com os olhos abertos e sem foco, Dun caído perto dos dois homens que Rattler haviaferido. E no centro de tudo, Rattler: Se eu havia sentido medo de seu olhar no passado, agora

aqueles olhos eram dez vezes mais assustadores. Ele baixou a arma muito lentamente, e orevólver pendeu de seus dedos como se fosse cair a qualquer momento.

- Senhoras - ele disse, como se testasse a própria voz. - Fui muito descuidado. Isso é o quemereço por ter duvidado de mim mesmo. Não vai se repetir. Prairie, acho que vamos usar seucarro.

- Não vamos a lugar nenhum com você - Prairie respondeu. Rattler balançou a cabeça.

- Prairie, não fique nervosa. Não vou fazer nada além de levá-la para algum lugar ondepossa vigiá-la.

Os olhos dela se estreitaram, e vi neles um medo renovado. Não podia acreditar queexistia alguma coisa pior que aquilo - quatro pessoas caídas no chão em meio a um mar desangue, Rattler nos ameaçando com uma arma - mas de repente Prairie parecia mais apavorada

Page 85: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 85/218

85

que antes.

Foi o medo dela que me fez entrar em ação, finalmente. Lembrei que havia uma tesourana cozinha, dentro de um pote onde ficavam também as espátulas e colheres de pau ao lado da

pia, e corri naquela direção, pensando que, se Rattler atirasse contra mim, pelo menos ele nãoconseguiria atingir Chub. Esperei pelo impacto da bala quando agarrei a tesoura, batendo com alateral do quadril na quina da bancada. Gemi de dor no mesmo instante em que ouvi o disparo,mas ... Eu estava ferida? Prairie estava ferida? Girei sobre os calcanhares e Rattler haviadesaparecido. Eu estava intacta. Prairie também estava ilesa.

- Agora, Hailey, agora!

Ouvi o grito de Prairie e não precisei de mais nenhum incentivo. Chub chorava em meus braços, se debatendo apavorado. Deixei a tesoura ali mesmo e corri, segurado-o com força.

Segui Prairie para a porta, pisando sobre os cacos de vidro, escorregando no sangue e correndopelo quintal na direção do carro.

Rascal estava parado no meio do quintal. Seus olhos brilhavam iluminados pela luz dalua. Era uma imagem sinistra, e não consegui entender como ele continuava tão calmo quandohavia estranhos dentro de casa, invasores armados tentando nos matar. Por que ele não haviaatacado os desconhecidos, por que não latira e tentara mordê-los, por que não reagira com aagitação que demonstrava quando perseguia um esquilo ou um coelho?

Page 86: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 86/218

86

Fuga Mas eu não tinha tempo para pensar nisso agora.

- Prairie, preciso pegar Rascal! - Eu gritei.

Deixei Chub em seus braços, e ela o pegou abrindo a boca para protestar, mas não lhe deitempo para dizer nada, porque já corria para ir pegar o cachorro. Enrijeci todos os músculos dascostas, esperando pelo impacto de uma bala enquanto corria de volta para o automóvel, masnada aconteceu. Rascal era quente e macio em meus braços, e não protestava por ser carregadodaquela maneira nada cerimoniosa. Quase o derrubei quando abri a porta do carro, e quando ocoloquei no chão entre o banco traseiro e o encosto do banco dianteiro, notei que ele quase caiu.

Prairie já havia colocado o cinto de segurança em Chub, e ele parecia estar bem preso ao banco, pelo menos por algum tempo. Ela se sentou no banco do motorista e ligou o motor, e euquase não tive tempo para pular no assento traseiro com Rascal e Chub antes de as rodasentrarem em movimento. Ela acelerava como se pretendesse romper a barreira do som, superara velocidade da luz, como se quisesse colocar a eternidade entre nós e o desastre de minhaantiga vida.

Page 87: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 87/218

87

Capítulo 12Entramos na estrada escura ao som dos pneus rangendo no asfalto, e Prairie moveu o

volante duas ou três vezes de um lado para o outro, derrapando antes de recuperar o controledo automóvel.

Alguma coisa não estava certa com Chub. Seus gritos se tornaram soluços e eu sentiuma umidade crescente em sua perna. Toquei o tecido quente e molhado de sua calça, e quandoo apertei ele gritou.

- Oh meu Deus, Chub está ferido...

Antes que eu pudesse concluir a frase, Prairie pisou no breque e foi para oacostamento. Havíamos percorrido apenas alguns metros da estrada, mas ela parou o carro eacendeu a luz de emergência, virando-se no banco para olhar para mim.

- Dê-me o menino - disse com tom autoritário, baixo e urgente.

Eu estava aterrorizada e não sabia o que mais podia fazer, por isso levantei seu corpopesado com os pés voltados para frente, e o ouvi chorar e tossir ao mesmo tempo. Meusmúsculos protestavam contra o esforço, mas Prairie me ajudou puxando-o para frente. Elaesticou a perna de Chub com cuidado, exibindo uma mancha de sangue que era negra à luzfraca do interior do veículo, e o que ela fez em seguida me deixou sem fôlego.

Ela deslizou os dedos pela perna de Chub, para cima e para baixo, até interromper o

movimento e abaixar a cabeça. E então ela cantou... Só precisei ouvir algumas palavras parasaber que ela repetia os versos das páginas que eu encontrara no esconderijo de minha mãe.Não levou muito tempo - apenas dez ou quinze segundos - e enquanto Prairie murmurava osversos com uma voz suave e cadenciada, Chub se aninhou e suspirou, e finalmente ficou quieto.Ela então removeu a mão de sua perna. Cuidadosa, Prairie levantou a perna da calça do menino

Page 88: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 88/218

88

e deslizou a ponta dos dedos por sua pele, e depois cobriu a perna roliça com a calçanovamente.

- Agora ele está bem - disse. - Ele vai ficar bem.

Ela se virou para me devolver a criança, e eu acomodei Chub em meus braços. As mãospequeninas encontraram meu pescoço e ele se aninhou confortável. Senti os longos cíliosroçando meu rosto. Toquei a perna dele, o sangue pegajoso que já começava a secar e endurecere o buraco aberto no tecido - e embaixo dele, a pele perfeitamente lisa.

- Veja se consegue colocá-lo no cinto de segurança outra vez - Prairie sugeriu, ligando oautomóvel e voltando para a estrada, ganhando velocidade assim que os pneus deixaram ocascalho do acostamento e encontraram o asfalto. Íamos para o leste, e eu ainda tentava prendero cinto em torno de Chub quando passamos pelo Bargain Barn, pelo KFC, pela velha igreja batista Peace Angel, que haviam tentando transformar em restaurante durante um tempo, e que

agora era simplesmente nada.

- O que acabou de acontecer? - eu finalmente perguntei quando consegui deixar Chubrelativamente seguro. - O que foi que você fez?

Mas eu já sabia qual era a resposta, e estava apenas tentando controlar minha histeria.Era o que eu havia feito com Milla. O que eu fizera com Rascal. Prairie ficou em silêncio por ummomento, dirigindo em alta velocidade pela periferia da cidade, passando por uma seqüência borrada de caixas postais, garagens abertas e casas em variados estados de conservação.Finalmente, ouvi quando ela inspirou profundamente e deixou o ar sair lentamente, e quando

ela falou sua voz soou calma como naquela primeira vez que a vi sentada à mesa da cozinha decasa.

- Sou uma curadora - ela disse. - E você também é. Está no nosso sangue.

Eu sabia que era verdade, mas ainda assim as palavras dela me causavam espanto. Euainda não havia dado um nome àquilo. - Eu sou... isso não é ...

- Sei que você curou Rascal- Prairie disse com tom gentil. Senti meu rosto ficar quente.Pensei em negar tudo, mas não parecia haver muito sentido nisso. Prairie já sabia. E de certaforma, eu queria mesmo que ela soubesse. Tinha necessidade de que mais alguém entendesse.

- Ele foi seu primeiro? - Prairie perguntou depois de algum tempo.

- Hm.

Page 89: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 89/218

89

Olhei pela janela para a paisagem que passava voando, os celeiros e galpões escurosque se erguiam dos campos como sombras. E quase não contei a ela. Mas então comecei a falar.Contei a ela sobre o acidente com Rascal, sobre o sangue, os terríveis ferimentos no corpo do

animal, como havia sido a sensação de carregá-lo para casa, de aproximar meu rosto do pêlomacio... a urgência, a energia intensa que brotava dentro de mim e fluía por meus dedos para ocorpo quase sem vida.

Falei também. sobre Milla, sobre como quase nem me lembrava de ter corrido paraperto dela, contei sobre as palavras ecoando em minha cabeça, sobre a Sra. Turnbull me jogandono chão, e como meus sentidos haviam retornado com um repentino formigamento. Falei sobreter visto Milla recobrar a consciência e vomitar - e sobre como ela estivera bem desde então.

- O dom é forte em você - Prairie comentou quando terminei meu relato, a voz

expressando certa admiração. - Nunca ouvi falar sobre alguém ser capaz de fazer tudo isso semorientação de outra pessoa. Sua mãe e eu praticávamos com Mary durante horas seguidas, emsegredo, escondidas de Alice, mas levamos meses até podermos usar nosso dom.

- Mas Milla diz que fomos amaldiçoadas - respondi, sentindo que uma onda quenteinvadia meu rosto. - E que somos malucas.

- Não - Prairie me corrigiu com firmeza. - Você tem um dom, Hailey. Pode fazer algoque outras pessoas não são capazes de fazer.

Aquilo me fez sentir um pouco melhor. Há poucos dias eu acreditara que havia algo deerrado comigo, mais uma diferença entre mim e os outros garotos da minha idade, mas agoraPrairie me fazia crer que isso era algo de que eu devia me orgulhar. Porém, a conversa nãomudava os fatos: fugíamos de assassinos armados, deixamos para trás uma cozinha cujo pisoestava coberto de sangue, e minha avó havia morrido.

- Quem eram aqueles homens? Eles invadiram nossa casa porque sou uma Curadora?

Era minha culpa?

- Aqueles homens eram... profissionais.

- E o que isso significa? Quer dizer que eram pistoleiros?

- Digamos que eram... investigadores treinados. Acho que é esse o nome. Eles são

Page 90: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 90/218

90

assassinos quando é necessário, mas não acredito que seja esse seu principal objetivo. Prairieestava muito calma. Isso fazia meu pânico crescer ainda mais.

- O que eles queriam?

- Tenho certeza de que estavam atrás de você  , Hailey.

- De mim? Por que eles estariam atrás de mim?

- Porque você é uma Curadora.

- Mas como eles sabem disso? Se eu mesma acabei de descobrir...

Prairie suspirou. - Essa é uma longa história. Eu trabalho para um homem... não é um

 bom homem, embora eu não soubesse disso até recentemente. O nome dele é Bryce Safian. Nósfazíamos pesquisa em um laboratório na periferia de Chicago. Tentávamos descobrir como usarmeus dons de cura, como replicá-los para que pudessem ser usados no combate a váriasdoenças.

- Como assim, vocês queriam transformar pessoas normais em Curadores?

- É mais ou menos isso. Fizemos uma análise completa do meu genoma e ocomparamos a uma população controle para isolar o elemento que determina o dom. O passoseguinte teria sido descobrir como usar um processo especial para modificar o DNA de uma

pessoa qualquer para torná-lo parecido com o meu.

- Sempre pensei que essa conversa toda de DNA fosse... -Tentei lembrar o que haviaaprendido nas minhas aulas de ciências no início do ano, e lamentei não ter prestado maisatenção. - Pensei que essas coisas ainda não estivessem bem entendidas. Que fossem ainda umgrande mistério.

- Sim, isso certamente é verdade em grande parte, mas Bryce é muito bemfundamentado. Tivemos acesso a pesquisas recentes. Tínhamos um laboratório, equipamento,uma equipe de cientistas. Estamos muito adiantados.

- Mas isso tudo soa como uma coisa boa. Não é motivo para matar alguém.

- Sim, mas... Bryce tinha outros planos. Outras idéias sobre o que fazer com osresultados da pesquisa quando conseguíssemos isolar o gene do Curador, para colocar a

Page 91: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 91/218

91

situação em termos simples.

- O que quer dizer? - perguntei, sentindo um arrepio desconfortável.

- Ele... havia encontrado um jeito de usar o gene da Cura na indústria de guerra. Emum ambiente de batalha.

- Como assim, para curar soldados feridos? Para fechar ferimentos e permitir quecontinuassem lutando?

- É... mais ou menos isso - Prairie respondeu hesitante. - A questão é que ele estavadisposto a vender a pesquisa, os resultados que obtivéssemos com ela, pela oferta mais alta. Enão se importava com quem seria o comprador, desde que pagassem bem.

As palavras dela penetraram minha mente, e o arrepio que me percorria ganhouintensidade.

- Quer dizer que ele venderia o trabalho... para outros países?

- É possível - Prairie confirmou em voz baixa. - Para quem se dispusesse a pagar.

- Mas ainda não entendo por que ele precisa de mim. Se já havia descoberto comoconseguir o que queria usando toda a pesquisa que vocês fizeram...

- Não é tão simples. Não se pode de codificar realmente o DNA sem uma população,mais de uma pessoa, e Bryce estava desesperado para encontrar outro sujeito. Então ele meinvestigou, e descobriu coisas que nem eu mesma sabia. - Ela sorriu para mim, um sorrisopálido, triste. - Como, por exemplo, que tenho uma sobrinha, alguém que podia ter o mesmodom.

- Então ele mandou aqueles homens para me espionar, os homens que estavam na casada vovó - deduzi. - Deve ser isso. Eles estavam me seguindo. Eu os vi fora de casa uma manhã,e os vi mais tarde na cidade, falando com as pessoas.

- Sim, acho que foi isso que aconteceu. Bryce deve ter contratado alguém em Chicagopara descobrir tudo sobre o meu passado. E quando descobriram que eu usava uma identidadefalsa, eles acabaram desvendando, de alguma forma, quem eu realmente era. Quem realmentesou. E quando chegaram em Gypsum... bem, foi só uma questão de conversar com as pessoascertas. Sabe como são as cidades pequenas, todo mundo sabe tudo sobre todo mundo. E se

Page 92: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 92/218

92

ofereceram dinheiro...

- Todo mundo fala por dinheiro - eu concluí. As pessoas em Gypsum normalmentedesconfiavam de forasteiros, mas se havia dinheiro envolvido, provavelmente não era

necessário ter um grande poder de persuasão para fazê-los falar tudo que sabiam. - Mas nin-guém sabia sobre a Cura. Quero dizer, nem eu mesma sabia antes de... eu não sabia que tinhaisso em mim.

- Bryce devia saber que o dom é hereditário, porque eu contei a ele - Prairie explicoucom tom culpado, arrependido. - O que eu nunca imaginei é que ainda restasse alguém. Querodizer, alguém além de Alice, e ela não tem o dom da cura.

- Então, se seu chefe sabia que vovó era fraca, que ela não tinha o dom...

- Por isso os homens que ele mandou não pensaram duas vezes antes de matá-la. Elaera inútil para eles. Porque o que realmente queriam era você.

- Então eles vieram aqui e... não acredito que alguém em Gypsum nos tenha apontadopor um punhado de dólares. - Senti a amargura crescer dentro de mim, quente e intensa.

- Duvido que alguém tenha imaginado onde isso ia acabar. Aqueles homens sãoprofissionais, Hailey, devem ter chegado aqui com uma história convincente, uma mentirapersuasiva que conquistou a confiança das pessoas. Além do mais, o dinheiro que Bryce deveter oferecido... Bem, aposto que foi uma quantia irresistível.

- Seu chefe tem tanto dinheiro assim?

- Ele tem mais do que você pode imaginar, Hailey. - Prairie respondeu com tom neutro.

- Então, se ele é tão rico e poderoso, como você conseguiu escapar? Quero dizer, comochegou aqui sem ser detida por ele?

Prairie me olhou com uma expressão perturbada. Mesmo tendo apenas a luz pálida dopainel para iluminar seu rosto, pude ver nele as linhas de preocupação que se uniamaproximando as sobrancelhas.

- Um homem pode ser... genial em alguns aspectos, e completamente estúpido emoutros. Bryce era meu amante, Hailey. E embora ele tenha conseguido me enganar por muitotempo sobre quem realmente era... acho que havia alguns aspectos nos quais ele também não

Page 93: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 93/218

93

me entendia realmente.

- Estava apaixonada por ele? - perguntei horrorizada.

- Eu achava que sim. Mas quando compreendi o que ele pretendia fazer, bem, vamosdizer que recuperei a lucidez rapidamente. Tão depressa que consegui pensar em um planopara encontrar você antes de eles chegarem aqui. Eu o convenci de que achava uma grandeidéia procurar você, envolvê-la no nosso trabalho. Fingi que não sabia nada sobre a partesombria de seus planos. Disse a ele que precisava de um dia para comprar algumas coisas paravocê, para o seu... quarto ... o quarto que ele já havia preparado para acomodá-la no laboratório.E em vez disso, naquela manhã dirigi como uma louca para chegar à casa de Alice, rezandopara encontrá-la antes de ele dar a ordem para que você fosse capturada.

- Mas eu vi aqueles homens há três dias, antes de você chegar. Por que eles esperaram

até hoje à noite para tentar me pegar?

- Meu palpite é que eles não podiam agir sem a autorização de Bryce. E que estavamtentando encontrar um jeito de levá-la sem chamar muita atenção, sem envolver a polícia, depreferência. Bryce não ia querer esse tipo de problema.

- Então... como ele deduziu que você havia fugido?

Prairie suspirou, um suspiro longo e triste que pareceu enfraquecê-la. - Não creio queele tenha percebido. Bryce é tão... confiante, que não acho que tenha pensado que eu poderia

contrariar sua vontade. Mas os homens que ele comanda devem ter me seguido até a casa.Devem ter reconhecido meu carro - fui desleixada, não imaginei que Bryce teria fornecido a elesesse tipo de detalhe. E assim que eles relataram o que viram aqui, Bryce deve ter dado aautorização para irem atrás de nós.

- Oh. - Pensei nos dois homens arrombando a porta da nossa casa. Em como era teruma arma apontada em sua direção. Na aparência dos corpos mortos. Não conseguia acreditarque havíamos sobrevivido. Que escapamos de um ataque de assassinos profissionais eestávamos vivas. Vovó não sobrevivera. Ela estava morta. E pelo que eu havia visto na casa,Dun também podia estar morto. Ou os dois atacantes. Vasculhei minha mente para verificar sehavia algum tipo de luto, se estava abalada com a morte de minha avó e ainda não percebera.Mas só encontrei o vazio. Se algum dia eu havia amado minha avó, esse amor morrera há muitotempo. Agora tudo que eu sentia era alívio. Alívio, e horror por todo aquele sangue que vira jorrar e cobrir o chão da nossa cozinha, horror por como os olhos abertos olhavam para o nada,pela faca no peito daquele homem, seus dedos tentando agarrar o cabo e remover a arma que

Page 94: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 94/218

94

lhe roubava a vida.

Para não ficar focada nessas imagens, eu me virei no assento para olhar para Chub. Eledormia tranqüilo, e eu afaguei seus cabelos macios, ajeitando-os sobre a testa morna. E como eu

estava virada de lado, os faróis que surgiram repentinamente atrás de nós cortaram meu campode visão. Eles surgiram do nada - num minuto tudo era escuridão atrás do Volvo, e no instanteseguinte dois raios paralelos de luz iluminavam a estrada, a distância entre esse carro e o nossoreduzindo rapidamente. O outro automóvel devia estar nos seguindo há algum tempo, mas, noescuro, eu não percebi, e sabia que Prairie também não havia notado. Era um grande carropreto, e estava seis ou oito metros atrás de nós, se aproximando rapidamente.

- Segure-se - Prairie avisou. - Agora!

Eu me segurei. Não enxergava nada do veículo que nos seguia, porque seus faróis me

ofuscavam, mas agarrei o encosto do banco da frente com a mão direita, apertando-o com forçapara me apoiar. Prairie pisou fundo no acelerador e fomos lançadas para frente como um raio.Ouvi o motor do Volvo gemendo, cedendo à exigência de mais potência, mas as luzes do outrocarro iam ficando mais e mais brilhantes na medida em que ele se aproximava de nós.

De repente, Prairie girou o volante para a esquerda, para a faixa de ultrapassagem, episou no breque com tanta força que os pneus cantaram no asfalto, certamente deixando nochão um rastro de borracha. Ela tentava se manter na estrada, e houve um forte solavancoquando o veículo que nos perseguia tocou de raspão o pára-choque traseiro.

Fui jogada para frente e bati com a testa no encosto de cabeça do banco do passageiro,contra o plástico duro. Fui jogada novamente, dessa vez contra a porta, e senti o cinto desegurança pressionar minha clavícula quando Prairie pisou mais uma vez no acelerador,girando o volante freneticamente, manobrando o carro e descrevendo um semicírculo no meioda estrada, voltando na direção de onde viemos.

Como? Essa era a única palavra que ecoava nos meus pensamentos, e acho que chegueia abrir boca para pronunciá-la, mas não disse nada. Meu rosto doía, e eu sentia o sangueescorrendo morno do meu nariz. Percebi que o havia batido contra o plástico duro do encostode cabeça do banco da frente, mas estava assustada demais para me preocupar com isso.

.- Segure-se novamente - Prairie ordenou, e eu me segurei enquanto verificava se Chub

estava bem. Ele estava acordado, e parecia surpreso com seus olhos muito abertos e brilhantes,uma das mãos fechadas esfregando a boca - mas o cinto de segurança o mantinha no lugar, e elenão se machucara. Agora eu conseguia ver mais do carro que nos perseguia, e que era

Page 95: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 95/218

95

manobrado no meio da estrada para vir atrás de nós. Uma das rodas saiu da estrada para oacostamento, girando em falso sobre o cascalho antes de impulsionar o veículo de volta à pista,atrás de nós.

Meus dentes se chocaram uns contra os outros quando Prairie girou o volante outravez, e nós saímos da estrada, cortando um campo de canteiros baixos - alfafa, talvez, oumorangos. O carro passava por cima dos arbustos e o barulho era ensurdecedor. Prairie dirigiaem alta velocidade, atravessando a área plantada sem tirar o pé do acelerador. O outroautomóvel tentava nos seguir, mas o motorista não se importava em manter as rodas emcontato com a terra, entre as fileiras de vegetação. Percebi que eles cometiam um erro: tentavamcortar caminho e seguir em linha reta, em vez de acompanhar os ângulos que Prairiedesenhava. Em alguns trechos a folhagem era muito alta, e o automóvel tinha de passar por baixo dela.

Tínhamos uma chance. Prairie aumentou a distância entre nós e o outro carro quando omotorista estava quase perdendo o controle, se chocando contra galhos baixos e encontrandosaliências de terra que atingiam diretamente os eixos das rodas. Eu me inclinei para frente paradizer alguma coisa. Não sei o que era exatamente, e minhas palavras morreram nos lábiosquando percebi que ela nos conduzia diretamente para uma estrutura alta recortada contra océu escuro, um velho celeiro com teto arredondado.

- Prairie - consegui gemer aterrorizada. Estendi a mão para ela - não sei bem com queintenção, virar o volante, talvez, tentar nos desviar da rota de colisão que nos mataria - mas elafalou primeiro, exatamente quando uma nuvem encobriu a lua e tudo ficou ainda mais escuro,

deixando apenas a luz dos nossos faróis cortando o campo à nossa frente.

- Confie em mim, Hailey.

Page 96: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 96/218

96

Capítulo 13Acho que eu não confiava nela. Fechei os olhos com força e agarrei a mão de Chub. Se

íamos morrer, eu queria estar com ele quando isso acontecesse. Fui arremessada para frentemais uma vez quando Prairie pisou no breque, reduzindo a velocidade do Volvo antes de atin-girmos o celeiro. E então batemos. O Volvo foi sacudido pelo forte impacto e, apesar dosolavanco me fazer sentir a pressão do cinto de segurança, soube imediatamente que o celeironão havia parado o automóvel.

Nós nos chocamos contra a estrutura a uma velocidade de cinqüenta quilômetros, maisou menos, e as grandes portas de madeira se romperam e foram jogadas para o interior, ePrairie pisou no freio mais duas vezes, enquanto eu tinha a impressão de estar percorrendo umtúnel escuro no interior do celeiro, um espaço cheio de ângulos malucos e vigas altas, o ar cheiode fagulhas de feno girando à luz dos faróis. Identifiquei baias vazias dos dois lados, e quando

Prairie continuou dirigindo para o outro lado do celeiro até se chocar novamente, o impacto foicomo o primeiro, barulhento e destruidor, com madeira voando em todas as direções.

Não me contive e gritei: - Prairie, o que você... - antes de ela girar o volante uma últimavez para a esquerda. Senti as rodas passando por cima de pedras e raízes, o motor rangendoalto, os solavancos. Tudo durou dois ou três segundos, até Prairie parar o carro e desligá-lo.Fomos cercadas imediatamente pela escuridão e pelo silêncio.

- O que está... - Tentei falar, mas ela se virou no assento e cobriu minha boca com amão, olhando pelo vidro de trás. Eu também olhei para trás ao ouvir o ronco do motor do carro

que nos perseguia. Ele passou pelo buraco aberto por Prairie na porta do celeiro, mas emvelocidade superior à nossa, passou como um raio pelo nosso automóvel, e de repente decolou,as rodas da frente saindo do chão. Por um momento tive a impressão de que ele ia mesmo voar,mas no segundo seguinte a parte da frente descreveu uma curva descendente, e a parte de trássaiu do chão.

Page 97: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 97/218

97

Tudo parecia acontecer em câmera lenta, a parte de trás passando por cima da frentedo carro antes de desaparecer num abismo escuro. Houve um estrondo horrível, um clarãoassustador, uma bola de fogo na noite, e uma série de ecos menos intensos.

- Para onde ele foi? - perguntei, esquecendo de falar baixo.

Talvez eu tenha gritado. Chub começou a chorar.

Mas Prairie já soltava seu cinto de segurança.

- Saia do carro - ela ordenou. - Agora! Pegue Chub.

Não precisei de uma segunda ordem - mas quando me virei para ele, vi que Chub

havia sido jogado para fora da contenção do cinto de segurança, e estava no chão do automóvelcom Rascal. Ele emitia uns sons curtos e sufocados, como se tentasse chorar e não conseguisse.Eu o segurei, e quando toquei seu braço ele gritou. Meus dedos sentiram o osso pontiagudo forada pele.

Apavorada, levei Chub para fora do carro com todo cuidado possível, e a luz da lua mepermitiu ver que ele havia fraturado o braço logo acima do cotovelo. Meu coração ficouapertado, e os gritos de Chub tornaram-se ainda mais agudos com a dor.

- Ele está ferido, ele está ferido - gritei para Prairie. Ela se aproximou correndo e

estendeu os braços para pegá-lo, mas eu o segurei com força ainda maior.

- Posso curá-lo - disse Prairie.

- Não. Eu faço isso.

- Mas você está só começando, ainda não está preparada...

- Eu preciso curá-lo - insisti. Meus dedos já se fechavam em torno do ferimento,tomando cuidado para evitar a saliência do osso fraturado, tocando com delicadeza a pelequente de Chub.

Por um momento Prairie nada disse, mas nosso olhar se cruzou e havia quase um brilho à nossa volta, uma energia que ligava nós três. - Tudo bem - ela concordou finalmente.

Page 98: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 98/218

98

Fechei os olhos por um momento e reduzi a velocidade dos meus pensamentos,esvaziei a mente, e logo senti a energia começando a fluir de mim para Chub.

"Tá mé mol seo ...” Prairie murmurou o início do verso, e eu me juntei a ela, movendo os

lábios para formar as palavras que soavam familiares como se eu as pronunciasse desdesempre. Minha voz e a dela se misturaram até serem uma só, e sob meus dedos eu senti apulsação de Chub ficar mais lenta e estável, e depois seus gemidos enfraquecerem até ele ficarquieto.

A carne cortada se fechou sob meu toque, e senti os ossos se movendo e emendando.Passei a ponta dos dedos pela pele macia e senti a cicatriz onde ela se reparara, mas até essesinal desapareceu em segundos.

- Eu o curei - disse fascinada.

- Sim. Havia uma espécie de espanto na voz de Prairie. - Você é uma curadora deverdade, Hailey, é natural em você. Até sua mãe teve de trabalhar e se esforçar muito, e ela eraduas vezes mais eficiente do que eu jamais serei. Mas você... você é algo ainda mais raro.

Em meio à confusão mental provocada pelo esforço para curar Chub, ouvi o carropreto queimando e estalando no que eu agora sabia ser o leito seco de um rio. O terreno atrás doceleiro descia até o rio, que se abria de repente. As margens haviam sido cavadas pela águacorrente durante um ano de cheia, criando abismos verticais que, em alguns pontos, tinhammuitos metros de profundidade.

- Temos de ir - disse Prairie, segurando meu braço e me puxando para longe do Volvoe do celeiro parcialmente destruído, para longe dos destroços do carro preto. - Chame Rascal.

Só então notei que ele estava sentado ao lado do carro. Não parecia assustado, nemmesmo interessado na comoção. - Vamos, garoto - chamei, e ele se levantou sem nenhumahesitação para nos acompanhar. Olhei para trás, para o local do acidente, e me perguntei se oshomens que estavam no automóvel haviam sobrevivido. - Não deveríamos ir ver se... querodizer, e se eles precisam de ajuda?

- Eles estavam tentando nos tirar da estrada, Hailey. Quer mesmo dar a eles umachance de nos pegar?

- Não. - Andei mais depressa para segui-la, olhando para trás para ver se nossosperseguidores saíam do automóvel.

Page 99: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 99/218

99

- Alguém logo virá verificar o que aconteceu - Prairie acrescentou. - A fumaça deve servisível a quilômetros.

Ela estava certa; a fumaça que se erguia do local do acidente formava uma nuvem feiaque subia e se espalhava pelo céu estrelado. Eu me obriguei a olhar para o chão, para o terrenodiante de nós; não queria tropeçar em alguma coisa e derrubar Chub. Ele já havia sido ferido ecurado duas vezes naquela noite; na minha opinião, era suficiente.

- Aonde vamos?

Seguíamos por uma trilha escondida de vegetação baixa, um caminho que corriaparalelo ao leito do rio. Eu notei que à esquerda, no alto de uma encosta, além de uma hortacercada por arame daquele usado para construir galinheiro, havia uma casa quadrada e ampla.

A trilha era tão estreita que andávamos em fila indiana, com Prairie na frente, depois Chub e eu,e Rascal no fim da fila.

- Estamos quase em Tipton - Prairie comentou em voz baixa. - Aquela é a casa deBurnett.

- O velho Burnett?

- Bem... ele não era tão velho quando o conheci. Eu conhecia seu filho mais novo.Claude.

Claude Burnett. Eu já ouvira esse nome. Ele era um homem de quase quarenta anos, eas pessoas diziam que não era muito certo. De vez em quando, aos sábados, ele chegava emGypsum vestindo uma camisa limpa que punha para dentro da calça, cuja cintura usava altademais. O pai se apoiava nele e o apoiava ao mesmo tempo.

Com certo arrependimento, lembrei que certa vez eu havia debochado de Claude.Ofereci a ele metade do chocolate que estava comendo. Ele esperava do lado de fora dafarmácia, enquanto o pai comprava remédios, ou alguma outra coisa. Mostrei a ele o chocolate,e quando ele estendeu a mão grossa para pegá-lo, eu o escondi atrás das costas.

- Você não pediu por favor - eu disse, adorando sentir meu coração bater forte sob acamiseta. Eu devia ter uns oito anos, e era uma grande novidade ver alguém capaz de causarainda mais desconforto nas pessoas do que eu causava.

Page 100: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 100/218

100

- Eu o conheço - disse.

- Ele era amigo de sua mãe. Ela era sempre gentil com ele. Foi sua mãe quem o ensinoua falar.

- O que quer dizer?

Prairie deu de ombros. - Ele não falava muito, só algumas palavras. Clover conseguiutreiná-lo para falar frases inteiras. Acho que foi um tipo diferente de cura. Eu também brincavaaqui quando era pequena. Mary costumava nos trazer... há um atalho, uma trilha muito estreita- Prairie contou. - Ou havia, pelo menos. Aqui, acho que é por aqui.

Ela nos guiou por outro caminho que descia até um ponto de onde eu podia ver umasérie de pedras planas no leito no rio, uma sombra pouco nítida ao luar. Não precisávamosdelas para atravessar, já que o leito do rio estava seco, mas pisei com cuidado para não torcer o

tornozelo ao descer a margem lamacenta.

Estava pensando em Claude... e em Chub, que também não falava. Chub poderia ser...curado? Daquela maneira?

Prairie me conduziu até a outra margem do rio. - Agora vamos passar pelapropriedade dos Ellis. Você os conhece?

- Acho que não.

- Os filhos deles estudaram comigo e com sua mãe... mas aqui ... sim, acho que é isso ...

O caminho seguia do outro lado, uma trilha estreita e difícil que subia pela margem ese estendia na direção de um aglomerado de luzes longe dali. Quando nos aproximamos, vi queera outra casa com um celeiro e alguns galpões construídos em um terreno de algumas poucascentenas de metros.

- Como soube que tinha de fazer tudo aquilo? - perguntei. - Como bateu na parte certado celeiro e, como soube que o carro ia se chocar contra ele e passar direito, e não bater em umaviga ou baia, ou alguma coisa assim?

- Sorte - Prairie respondeu, e pude quase ver o sorriso que ouvi em suas palavras. - Nãoacha que merecemos um pouco de vez em quando? Além do mais, Hailey, portas de celeiro sãosó grandes chapas de madeira.

Page 101: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 101/218

101

- Mas como conseguiu ver as portas? Eu mal consegui enxergar o celeiro. E você tinhade bater no local exato, ou...

Ou estaríamos mortos.

Prairie caminhava mais devagar na minha frente.

- Eu lembrei só isso - ela disse com simplicidade. - Pensei em Clover... em como ela eClaude gostavam de brincar de caubói por aqui, e fechei os olhos e tentei criar uma imagemmental, localizar as portas ...

- Você fechou os olhos? Eu estava perplexa.

Ela sorriu para mim, e o sorriso durou só uma fração de segundo à luz pálida da lua. -

Bem, na hora me pareceu ser uma boa idéia.

Pensar em Prairie dirigindo pelo campo de olhos fechados era assustador... e talvez umpouco excitante. Pelo menos foi isso que eu pensei que causasse aquele arrepio nas minhascostas.

Prairie seguia em frente, caminhando com passos confiantes, e por um louco momentoeu me perguntei se ela estava ou não com os olhos fechados. Se ela nos guiava para longe de um bando de homens armados e decididos a nos matar orientada apenas por umasensação.

Não sei por que não me sentia mais amedrontada. Era estranho, mas o pensamentoquase me fazia sentir um pouco mis segura. Chub pesava tanto em meus braços que eu estavaentorpecida a partir do pulso, mas pelo menos ele se acalmara, dormia novamente com suatesta quente apoiada em meu rosto.

Decidi experimentar. Estendi a mão e toquei a elegante jaqueta de Prairie, e depoissegurei o tecido com força e fechei os olhos, induzindo meus pés a seguiram o rastro dos dela,sentindo Rascal bem atrás de mim. Se ela notou alguma coisa, não disse nada. Ela nuncatropeçava, nem eu, e foi assim que nos aproximamos dos galpões.

O celeiro dos Ellis estava em melhor estado de conservação que o dos Burnett, masfeno empilhado até o mezanino e dois tratores estacionados lado a lado, brilhando ao luarquando Prairie abriu a porta.

- Fique aqui - ela disse. - Vou tentar não demorar.

Page 102: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 102/218

102

Eu nem perguntei aonde ela ia. Sentei-me no assento do trator menor - na verdade eraquase uma versão ampliada de um regador de grama - e desfrutei do prazer de poder relaxar os braços, doloridos do esforço de carregar Chub, que dormia apoiado em meu peito. Rascal

deitou-se ao lado do trator, ignorando os sons das criaturas abrigadas no celeiro.

Antes eu tinha medo dessas coisas, ratos e morcegos. Agora até me alegrava com acompanhia. Fechei os olhos e tentei examinar as emoções que iam surgindo em mim. Senti queminhas defesas começavam a desmoronar. Os últimos dias haviam sido como um filme deterror, e eu não conseguia acreditar que era parte dele, que tudo aquilo havia acontecido. Mas osangue em minhas roupas era a prova disso. Vovó estava morta. Muitas pessoas foram feridasem nossa cozinha e no acidente de carro menos de um quilômetro distante dali. E a vida que eulevara antes - aquela vida que eu odiava tanto - ficara no passado.

Era difícil entender como eu conseguira ficar calma o bastante para sobreviver àsúltimas horas. Talvez estivesse em estado de choque, ou simplesmente me acostumara a lidarcom as dificuldades de viver com minha avó, e para isso construíra defesas mais resistentes queas que uma pessoa normal teria em uma situação como essa.

Mas eu não sabia ao certo por quanto tempo poderia mantê-las.

O que aconteceria se eu voltasse a me deixar incomodar pelas coisas, se me deixassecomeçar a sentir coisas? A idéia era aterrorizante. Eu percebi que era tão aterrorizante, pelomenos, quanto ficar sentada em um celeiro escuro, tremendo, com medo de levar um tiro. Não

sei quanto tempo passei ali, mas quando Prairie voltou e disse meu nome em voz baixa, eu mesobressaltei. Devia estar cochilando.

- Vamos - ela disse com tom urgente. Peguei Chub outra vez e nós a seguimos para aporta do celeiro, de onde partia uma trilha de cascalho que se estendia até a estrada. Havia alium carro com o motor ligado, o escapamento cuspindo uma fumaça branca que subia para océu rosado com a aproximação da manhã. Fiquei surpresa quando vi o carro esperando, masPrairie fazia coisas. Ela conseguia coisas de que precisava. Eu não sabia exatamente como, mas,naquele momento, isso não importava.

- É o carro dos Ellis? - perguntei.

Ela franziu a testa, unindo as sobrancelhas. - Sim... é. Lamento que tenhamos de usá-lo,Hailey. Não vamos danificá-lo, e eles o terão de volta. Mas...

Page 103: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 103/218

103

Ela não concluiu a frase, não era necessário. Precisávamos do automóvel. Tínhamos desair dali. Mesmo que eu não entendesse exatamente do que fugíamos, eu entendia essanecessidade.

Quando abri a porta, Rascal pulou para o interior do veículo e se deitou no chão naparte traseira, e eu prendi Chub com o cinto de segurança. Estava ficando boa nisso, masquando Prairie partiu pela trilha de cascalho na direção da estrada, ela balançou a cabeça edisse: - Temos de providenciar uma cadeira de segurança para esse menino.

Em afundei no banco do passageiro e observei a casa quando passamos por ela. OsEllis tinham uma garagem aberta, o que facilitara muito para Prairie a tarefa de tirar o carro delá, mas ainda restavam alguns obstáculos, como destrancar a porta e ligar o motor, a menos queela soubesse fazer ligação direta.

E se ela havia feito isso, eu não queria saber. Ainda não, pelo menos. Queria pensarnela como alguém que se preocupava por Chub não ter uma cadeira de segurança. Porque se elapensasse em Chub, ele estaria muito mais seguro. Até onde eu sabia, eu era a única pessoa quese preocupara com ele, e sabia que Chub não era uma criança fácil de amar. Ele era atrasado emmuitos aspectos.

Mas Prairie se preocupava com ele, e quando chegamos à estrada principal e ela pisoufundo no acelerador, senti uma profunda gratidão. Eu estava muito cansada. Ninguémimaginaria que uma pessoa que foi perseguida e atacada por atiradores, que viu pessoas mor-rerem, seria capaz de deitar e dormir, mas isso era o que eu mais queria, mais que tudo. Apenas

dormir.

Prairie não parecia tão bem. Sua expressão era fechada, pensativa, e as mãosagarravam o volante com força.

- Acho que chegamos lá em sete horas - ela disse. - Seis e meia se eu me esforçar muito.

- Aonde vamos?

Prairie ficou em silêncio por tanto tempo que eu pensei que ela não responderia, masela acabou sorrindo para mim, um sorriso que pareceu exigir grande esforço.

- Para casa.

Page 104: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 104/218

104

Capítulo 14Quando acordei o sol penetrava pelas janelas do Buick, e eu precisava ir ao banheiro.

- Estamos em Illinois, a caminho de Springfield. Há um Wall-Mart trinta quilômetrosadiante, mais ou menos - Prairie falou. - Precisamos comprar algumas coisas... pode esperar atélá?

- Hm... tudo bem. - Eu também estava com fome, mas decidi não falar nada. Por algummotivo, era como se eu não devesse mencionar. Depois de uma noite como a que tivemos quempensa em comida?

Eu. O que me causava espanto. Por outro lado, tinha a sensação de que devia me sentirpior. Como se talvez devesse estar em choque, horrorizada com tudo que havia acontecido, ou

alguma coisa desse tipo. Continuava esperando a culpa me atacar, mas nada acontecia. Sentiaaté certa antecipação. Apesar de tudo que havia acontecido, íamos para algum lugar novo.

Nunca havia deixado o Missouri em toda minha vida. Só estivera fora de Gypsumalgumas vezes, em excursões da escola a Hannival e St. Joseph para visitar o local onde MarkTwain nascera e o Pony Express Museum. Mas nunca estivera em uma cidade grande.

Meu estômago grunhiu novamente, e para encobrir o som eu perguntei a Prairie algoque me incomodava.

- Como é possível que não soubesse que minha mãe estava grávida?

Prairie ficou tensa e não olhou para mim. Ela não havia dormido nada, e o cansaço eraevidente nas linhas em seu rosto, em torno da boca, e nas sombras escuras sob seus olhos.

Page 105: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 105/218

105

- Quando deixei Gypsum, eu me mudei para Chicago. Escrevia para Clover quasetodos os dias - ela falou finalmente. - Eu sabia que os problemas seriam inevitáveis se Alicedescobrisse que Clover sabia onde eu estava por isso disse a ela para inventar uma história,dizer que tivemos uma briga muito séria, e que ela havia jurado nunca mais falar comigo.

- Por que vovó se importaria se ela soubesse de você?

- Ela tinha... planos para mim. Como acho que ela fez planos para você.

As palavras dela me encheram de medo. - O que quer dizer?

- Você precisa pensar em quem era Alice na juventude. Ela tentou ser Curadora pormuito tempo, antes de desistir. Mary me contou que Alice ficou devastada quando teve deaceitar que não tinha o dom. Ela jamais superou o fracasso, e para lidar com ele, transformou

toda sua infelicidade em culpa.

- Culpa? Mas quem ela culpava por isso?

- Alice decidiu que o motivo de sua incapacidade era que os Tarbell haviam misturadoseu sangue com o de outras famílias. Eles se casaram e tiveram filhos fora das famílias, e issohavia corrompido a linhagem, na opinião dela.

- Como assim, famílias? Que famílias?

- Nossos ancestrais imigraram para cá todos juntos. Os Morries, os Tarbell, todossomos descentes do mesmo vilarejo na Irlanda.

- Nós somos irlandesas?

- Sim. - Prairie sorriu, mas o sorriso não iluminou seus olhos perturbados. - Nossosancestrais viveram no mesmo vilarejo por séculos. Quando chegaram aqui, recomeçaram a vidado zero. Novos nomes, novas habilidades, novas casas, mas o plano era permanecerem sempre juntos. Todos eles são conhecidos como Banidos, e são...

- Espere - eu a interrompi. O que Milla havia dito? Nenhum de nós, Banidos, pode opinarou interferir nisso. - Por que eles eram chamados assim?

- Ninguém mais lembra. Quero dizer, havia todas aquelas histórias. Quando sua mãe eeu éramos pequenas, Mary nos contava histórias na hora de dormir, coisas sobre fadas, bênçãos

Page 106: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 106/218

106

e maldições.

- Você não acredita nelas.

- Eu... - Prairie hesitou, escolhendo as palavras com cuidado.

- Não é que não acredite. As bênçãos eram reais, mesmo que eu não consiga explicá-las,mesmo que não se enquadrem muito bem no que a ciência nos diz. Os Banidos são unidos poralgumas... coisas poderosas. Mary sempre me disse que nós, os Tarbell, existimos para serviraos outros Banidos, para curá-los quando precisassem de nós. Mas a história era mais que isso.As outras mulheres tinham a responsabilidade de manter o vilarejo, o povo, todos unidosdepois de terem deixado a Irlanda. Por isso podemos sentir a presença uns dos outros, por issosomos atraídos uns pelos outros.

Pelo menos essa é uma explicação para como me sentia quando estava perto dosMorries, mesmo que soe meio maluca. Em parte, fiquei aliviada por não ter imaginado tudoisso. Podia ser real, mesmo que fosse uma história tirada de uma fábula. - O que mais?

- Bem, quando deixaram a Irlanda, todos os homens receberam o dom da visão.Podiam ver o futuro, ou ver coisas que aconteciam em outros lugares. Deveria servir paraprotegê-los dos inimigos, desastres, até de coisas como tempestades que podiam danificar ascolheitas.

- Os Morries têm visões? - Pensei nos meninos na escola, em suas expressões sombrias,

zangadas, obstinadas, vazias. Todos, menos Sawyer.

- Agora nem tanto. Aquele dom, aquele poder, quase desapareceu.

- O que aconteceu com ele?

Prairie suspirou. - Há algumas gerações, tudo começou a desmoronar. Creio que deveter sido conseqüência de casamentos com pessoas que não pertenciam aos Banidos, issoenfraqueceu o dom. Mary disse que se lembrava da primeira Curadora destituída do dom,quando ela era pequena... Uma Tarbell que nasceu como Alice, fraca, doente e cruel. Mas elanão sobreviveu para ser adulta. Mary disse que as Curadoras mais fortes eram Banidas puras.Acho que ela ficou devastada quando uma de suas filhas nasceu... prejudicada. E Alice nunca seconformou com isso. Creio que ela sempre acreditou que se pudesse voltar à origem de seudom, ela poderia de alguma forma curar a si mesma.

Page 107: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 107/218

107

Voltar à origem... para a Irlanda? Fiquei agitada e senti meu coração bater mais depressaquando pensei naquela passagem aérea para Dublin. - Há algo que não lhe contei - eu disse, eexpliquei rapidamente sobre a pasta que havia encontrado no quarto de minha avó.

Hailey franziu a testa. - Então, Alice pretendia mesmo ir. Ela costumava falar sobre issoàs vezes... mas não consigo imaginar que diferença faria - não sei como ela poderia mudaralguma coisa simplesmente voltando ao vilarejo.

- Se fosse possível, todos os Morries ...

- ...poderiam ser reparados? - Hailey falou com tom suave.- Não é assim que funciona,Hailey. As mudanças nos Banidos são profundas, estão na base de quem somos. Eles têm medouns dos outros. Daquilo em que se tornaram. Os homens... eles perderam o senso demoralidade, podemos dizer. Muitos deles têm vícios. Não querem trabalhar, não querem cuidar

de suas famílias.

- Mas nem todos são assim - eu disse, pensando em Sawyer.

- Ah, definitivamente não. Ainda há homens Banidos que nascem com todadeterminação e o idealismo daqueles que se instalaram aqui no início. Mas no geral... bem, achoque foi assim que o lugar passou a ser chamado de Cidade do Lixo. Certa vez vi uma foto queMary guardava. Tinha quase um século, e não se percebia que aquela imagem era da Cidade doLixo. Casinhas arrumadas, canteiros de flores, famílias felizes, todos bem vestidos e sorridentes.

Pensei nos Morries na escola, em suas roupas sujas e remendadas, na aparência doentee mal nutrida que eles exibiam. Pensei em Milla, na combinação de fúria e medo que havia emseu rosto.

- Não entendo por que eles me odeiam tanto agora. Os Morries.

- É medo, Hailey. Depois que Alice nasceu... prejudicada ... eles acham que o dom setornou uma maldição. Não acreditam que você tem realmente o poder de curar, da mesmaforma que nunca acreditaram que eu e Clover o tínhamos. Eles temem que você tente curaralguém e acabe amaldiçoando essa pessoa.

- Você nunca curou ninguém quando morava aqui?

- Alice não permitia. Ela nos fez freqüentar a escola em Tipton, porque não queria queficássemos perto dos Morries. Mary nos ensinou em segredo. Alice sempre disse que nos

Page 108: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 108/218

108

espancaria se nos pegasse curando.

- Por quê?

- Acho que é porque ela nunca superou o fato de ser prejudicada. Ela tentou curarquando era jovem... Mary me contou. E não suportava pensar que as filhas podiam fazer algode que ela era Incapaz.

- E então vocês... não curavam? - Tentei me imaginar resistindo ao impulso, agora quesabia o que fazer.

- Eu... cuidava das pessoas às vezes, mas o mais comum era que eu não dissesse nada aelas. Sabe como é - uma amiga com uma marca de nascença. Outra com hematomas deixadospor uma surra do pai.

Seguimos em silêncio por um tempo, ambas perdidas em pensamentos. - Vocêconheceu seu pai?

- Não, e Alice nunca me disse quem ele era. Eu nunca soube nem mesmo se Clover e eutínhamos o mesmo pai.

Eu não conseguia imaginar minha avó jovem. Não podia imaginar um homem seapaixonando por ela, tendo um filho com ela. - E seu avô?

- Não. Ele morreu jovem, não muito tempo depois de Alice ter nascido, e Mary nunca

falou sobre ele. Tudo que Alice jamais me contou foi que ele tinha sangue misturado.

-Ele tinha?

- Sim. Não havia muitos puro sangue, nem na geração passada, e o marido de Mary eraparcialmente Cherokee, parcialmente alemão.

- Como pode ter certeza disso?Prairie lançou um olhar rápido na minha direção, sorriu com tristeza, e voltou a olhar

para a estrada. - Estudei genética quando finalmente consegui ir para a faculdade. E depoistrabalhei em um laboratório. Quando Bryce me contratou, eu já havia traçado minhas origens.

- Pode dizer tudo isso? Só pelo sangue?

- Você se surpreenderia. Os testes são um pouco complexos, mas é possível traçar sua

Page 109: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 109/218

109

hereditariedade com precisão considerável.

Pensei por um momento. - Você poderia... me testar? Quero dizer, consegue deduzirquem era meu pai?

- Não como está pensando, Hailey. A menos que se esteja fazendo um teste de DNAprocurando a identificação da paternidade, ou coisa parecida. Além do mais, se você estápensando na Cura, isso não tem importância. Alice estava enganada. Se o parceiro de umaCuradora for parcialmente Banido, ela vai transmitir à filha o dom da Cura em nove de cadadez casos.

- E pode fazer essa afirmação a partir dos seus testes? - perguntei surpresa.

- Não. Isso eu aprendi com Mary, Não é exatamente científico, mas não tenho motivos

para duvidar da veracidade dessa afirmação. Mary me disse que algumas Curadoras são maispoderosas que outras, dependendo do sangue de seus pais. E de outros fatores também, dentreeles alguns que duvido que possamos um dia compreender. Como Alice... Não sei por que odom foi corrompido nela. Eu... as vezes chego a sentir pena dela, por causa de como nasceu,com os poderes atrofiados como seu corpo, mas depois ...

Ela não concluiu a frase, não era necessário. Acho que nós duas tínhamos nossaslembranças da crueldade da vovó. Sim, era possível sentir pena dela... até você lembrar quemela era.

- Então, vovó queria ter certeza de que você se casaria com um Banido - adivinhei. -Para seus filhos não nascerem como ela.

- É isso mesmo - disse Prairie. - Mas vai, além disso. Alice começou a sentir que eraresponsável por garantir a continuidade da linhagem Tarbell. Ela costumava dizer que quandoeu me formasse no colégio, ela escolheria um puro sangue para mim.

- E quando você foi embora...

- Restou apenas Clover. E eu sempre me perguntei...

Só precisei de um momento para adivinhar o que ela queria dizer. - Você acha quevovó... escolheu alguém para minha mãe. Quando percebeu que você não ia voltar.

- Sim - Prairie disse com tom suave. - Acho que ela não quis esperar até Clover se

Page 110: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 110/218

110

formar. E eu acho que ela... Clover... não teve escolha, e ele ... quem quer que tenha sido ... deveter...

Enquanto Prairie se esforçava para encontrar as palavras mais adequadas, percebi

porque sua dor aparecia sempre que ela falava sobre Clover. Sobre minha mãe. Vovó asacrificou, a entregou a um dos Morries - os meninos de olhar cruel e jeito sombrio que euconhecia dos corredores do Gypsum Hall - para garantir que ela engravidasse de um purosangue. Para que a filha dela tivesse o legado Tarbell, para que ela fosse uma verdadeiraCuradora.

O horror me invadiu, fechando minha garganta e me impedindo de respirar. Eu erafruto da violação de uma menina ainda mais nova que eu. - Quando pensei em minha irmãsozinha, sem a única pessoa que se importava com ela, que podia protegê-la, meu coração separtiu.

- Ela morreu no parto? - perguntei com a voz embargada. Eu precisava saber.

- Oh... Hailey. - Prairie respirou fundo, preparando-se. - Não. Clover se matou.

-Ela...

Eu não conseguia falar. Sempre pensei em minha mãe como uma desconhecida, atéconhecer Prairie. Minha avó dissera que ela era mentalmente perturbada e eu acreditara, e dealguma forma isso a tornara menos real para mim. Eu me sentia como se houvesse nascido donada, de certa forma, como se um belo dia houvesse simplesmente aparecido na casa onde

cresci.

Mas agora eu sabia que havia sido diferente.

- Você tinha algumas semanas de vida quando ela morreu - Prairie continuou em voz baixa. Os investigadores de Bryce encontraram os registros no gabinete do condado, e ele mecontou há alguns dias. Fiquei... devastada. Pensei em como Clover deve ter se sentidoamedrontada.

- Como ela... você sabe.

- Ela se enforcou, Hailey. No closet do quarto. Bryce encontrou os registros policiais.

 Meu closet. Não era de estranhar que eu me sentisse atraída por aquele espaço tãopequeno; não era de estranhar que houvesse encontrado o esconderijo secreto. Era a presença

Page 111: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 111/218

111

dela que eu sentia ali, sua tristeza. - Mas... por quê ...

-Acho que ela se sentia sem alternativas. Estava envergonhada demais para me contarsobre a gravidez. E acho que ela sabia que eu teria voltado se tivesse me contado. À sua

maneira, creio que ela estava me protegendo.

- Mas e... - eu engoli o nó que se formara em minha garganta.

E eu, pensei. Ela não se importava comigo? Não queria ter certeza de que seu bebêestava bem?

- Você nunca deve imaginar que sua mãe não a amava - Prairie declarou com firmeza. -Sei que Clover a amava muito, mas ela sabia que Alice a teria tirado dela, como tentou tirartudo que ela queria. Alice a via como o futuro das Tarbell, e era com isso que ela se importava.Uma última chance para ela reparar tudo. Uma última chance para purificar a linhagem

sanguínea.

Você é o futuro, Hailey.

- E ela não teria permitido que nada interferisse nisso.

- Tenho certeza de que ela teria posto Clover na rua para impedi-Ia de criar você.

Eu mal podia absorver o horror do que Prairie estava dizendo. Pensei em todas asvezes que vi minha avó cochichando e rindo com Dun Acey, em como ele me olhava com

aquela expressão faminta. Seria ele o homem que minha avó havia escolhido para mim, o queme teria engravidado, o Banido puro sangue que garantiria que meu bebê fosse um Curadorcom o dom?

Tive a sensação de que ia vomitar. Deixei escapar um som estrangulado, e Prairie meolhou alarmada. - Hailey, você está bem? Já estamos quase chegando na rampa de saída - achaque pode agüentar?

- Acho que sim - respondi, engolindo em seco. - Por favor... conte-me tudo. Querosaber tudo. Como descobriu que minha mãe estava morta? O que foi que você fez?

- Quando ela parou de responder minhas cartas, fiquei preocupada. Haviaeconomizado algum dinheiro, e peguei um ônibus de volta a Gypsum para encontrá-la. Masquando cheguei em casa ... ela não estava lá, e Alice me contou que ela se suicidara. Eu ia em- bora, não conseguia pensar em outra coisa que não fosse sair daqui, sair daquela casa, sair de

Page 112: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 112/218

112

perto de Alice. Mas ela me impediu. Disse que podia convencer as pessoas de que eu eraculpada. Ela disse que Clover estivera falando muito sobre a briga feia que tivemos...

- A briga que você sugeriu que ela inventasse? Quando escreveu para ela?

- Sim. E ela disse que era melhor eu nem deixar as autoridades perceberem que euestava na cidade, ou seria levada para interrogatório ou coisa pior. Agora entendo que elaestava só tentando se certificar de que eu nunca mais voltaria. Porque se eu descobrisse sobrevocê, poderia ter lutado pela custódia. E ela não queria perder você.

Essa era a última peça do quebra-cabeça. Agora eu conhecia toda a história sobre porque havia crescido sem mãe. Ela não me abandonara de propósito. E se Prairie houvesse ido me buscar no passado, eu não teria Chub. Olhei para ele no banco de trás do carro, para suas facescoradas e sua boca formando um "o" pequenino e doce. Até Chub, eu havia crescido sem amor.

Mas ele me dera um motivo para seguir em frente. Para continuar tentando.

Prairie me salvara na noite passada, eu pensei quando alcançamos a rampa de saída daestrada, Mas Chub me salvara primeiro. Saímos da pista quase imediatamente para um imensoestacionamento. Eu estava faminta, e sabia que Chub sentiria muita fome no minuto em queacordasse.

- Vamos comer aqui?

Prairie fez uma careta. - Receio que sim. Tem um McDonalds no Wal-Mart. Voucomprar o que for necessário enquanto você leva Chub para tomar café e aproveita para comer.

-E você?

Prairie sorriu um sorriso inesperado e genuíno. - Se puder pegar uma salsinha e biscoito de ovos para mim, serei muito grata. Eu não como um desses há séculos. Ah, e pãointegral, talvez. E um suco de laranja. E um café gigante, está bem?

Ela pôs o dinheiro na minha mão e eu fechei os dedos em torno da nota. - Comoprefere seu café?

- Puro. E, Hailey, você está com alguns hematomas. Talvez seja melhor se... - Elaestendeu a mão e empurrou meu cabelo para trás, para longe da testa, arranjando-o de formaque caísse sobre a lateral do meu rosto.

Prairie havia tirado a jaqueta. Pelo menos não havia sangue em sua blusa de seda. Ela

Page 113: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 113/218

113

havia escovado os cabelos e passado batom, mas ainda tinha aquela aparência de quem passaraa noite sem dormir.

- Rascal precisa caminhar um pouco - eu disse, olhando para trás para verificar como

ele estava. O cachorro estava deitado no chão atrás do banco, com a cabeça apoiada sobre aspatas.

- Tudo bem, vou preparar Chub.

Depois de levar Rascal para uma volta rápida em um gramado próximo, notei quePrairie já havia tirado Chub do carro. Ele apontava para a enorme loja e fazia ruídos animados.Abri a porta do automóvel e Rascal saltou obediente para o banco de trás outra vez.

Enquanto atravessávamos sem pressa o amplo estacionamento, tomei duas decisões:

primeiro esse seria o dia em que eu começaria a tomar café. E segundo, eu também o beberiapuro. Creme e açúcar... essas coisas podiam deixar uma pessoa mais lenta.

A essa altura, os Ellies em Gypsum já teriam percebido que o carro da família haviasumido, não? Teriam ido lá fora para pegar o jornal, ou deixar o gato sair, e se olhassem para agaragem... Mas era sábado. Talvez dormissem até mais tarde.

Um quilômetro distante da casa deles, se a polícia já não houvesse sido chamada aolocal, o Velho Burnnett estaria acordando para encontrar o imenso buraco em seu celeiro e umcarro destruído dentro do rio seco que cortava sua propriedade. Sem mencionar o carro de

Prairie, o velho Volvo marrom, abandonado atrás do celeiro.

E quanto tempo demoraria até alguém encontrar a carnificina em nossa casa? Vovó era bem conhecida por algumas pessoas em Gypsum e no entorno dela, mas não eram pessoas quepodiam chamar as autoridades. Provavelmente seria outra pessoa - alguém vendendo utensíliosde alumínio ou verificando o medidor de água - que acabaria fazendo a horrível descoberta.

Dentro da loja, um homem idoso com um colete azul empurrou um carrinho decompras na nossa direção. - Bem-vindas ao Wal-Mart - ele disse.

- Obrigada, eu... nós vamos só, é, tomar café - eu disse, certa de que ele perceberia meunervosismo e saberia que havia algo de errado. Mas quando Prairie entrou na loja cheia declientes, ele se afastou de mim e empurrou outro carrinho para outra pessoa que entrava na lojaatrás de nós.

Page 114: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 114/218

114

Vi uma placa indicando os banheiros e levei Chub até lá. No interior do sanitário haviaum desses trocadores basculantes preso à parede, e eu me perguntei se a plataforma suspensasuportaria o peso de Chub, que agora tinha vinte e um quilos, de acordo com a velha balança dacasa de minha avó.

- Aqui - eu disse, levando-o para o maior reservado. Havia duas mulheres paradasdiante das pias, uma delas lavando a mão, a outra passando batom. Eu esperava que elastivessem a impressão de que Chub ia usar o banheiro.

Percebi que não tinha fraldas nem lenços umedecidos comigo, e me perguntei como ialimpá-lo. Ele ficaria ensopado. Peguei um punhado de toalhas de papel e as umedeci na piaantes de entrar no reservado. Chub disse alguma coisa que eu não entendi e puxou impacienteo elástico da cintura da calça. Eu o ajudei a tirar a fralda molhada e, surpresa, vi Chub se sentarno vaso sanitário.

Eu o colocara no vaso pelo menos uma dúzia de vezes em casa, prometendo lerhistórias para ele ou recompensá-lo com um biscoito, qualquer coisa que pudesse convencê-lo ausar o vaso sanitário - e ele sempre descia e saía correndo.

Mas agora ele se sentara sozinho no vaso. Ele terminou suas necessidades, desceu, epuxou a calça. Eu o ajudei a lavar as mãos na pia - ele adorava o dispenser de sabonete - equando estávamos secando as mãos, uma mulher baixinha com cabelos vermelhos e arrepiadosolhou para mim e disse: "Ah, que gracinha, é seu irmão?"

E antes de pensar realmente na resposta eu disse: - Sim, senhora.

Ela sorriu para nós e saímos do banheiro. Eu ia pensando, bem, por que não? Nãohavia ninguém ali para me desmentir. Podíamos ser parentes, pensei, nós dois tínhamos pelepálida e sardas. E mais tarde, se ele ficasse totalmente diferente, bem, se tivéssemos o hábito depensar um no outro dessa maneira - talvez não fizesse diferença.

Talvez pudéssemos ser normais, afinal.

No McDonalds, pedi para mim a mesma coisa que Prairie havia escolhido para ela, epara Chub pedi bolo e salsicha. Comemos depressa, e tentei não olhar em volta para os outrosclientes. Imaginei que, talvez, se eu não olhasse para eles, eles não olhariam para mim.

Quando Prairie chegou com o carrinho de compras cheio de sacolas, eu me sentiamelhor. Voltamos para o carro, e ela me entregou uma caixa grande.

Page 115: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 115/218

115

- O assento de segurança para o carro - disse. - Veja se consegue entender como essacoisa funciona enquanto ponho o resto das compras no porta-malas.

No final, tivemos de trabalhar juntas na cadeira de segurança, Prairie lendo o manual

de instruções, e eu tentando prender os cintos da cadeira ao cinto do automóvel antes decolocarmos Chub em seu novo assento. Rascal não parecia interessado no processo, mallevantava os olhos enquanto nós trabalhávamos. Chub bateu nas laterais plásticas da cadeiracom uma expressão pensativa. Eu voltei para o banco da frente e Prairie guardou o manual deinstruções e os sacos plásticos dentro da caixa, deixando-a no banco traseiro. Em seguida elatirou da bolsa uma sacola plástica.

.- Pensei - ela começou, mas parou hesitante. Ela abriu a boca e tirou dela uma pequena

girafa de pelúcia azul com lã brilhante formando uma crina ao longo de seu pescoço comprido.As pernas eram frouxas e moles, e a cara era fofa com cílios longos bordados em torno dos

olhos de botão. Ela entregou o brinquedo a Chub, que o pegou imediatamente e o segurou pertodo nariz, virando-o para um lado e para o outro.

- Raff - ele disse. - Prairie. Raff... Girafa

Estava falando, mesmo. Como isso estava acontecendo? Seria por minha causa? Eupodia estar curando Chub de alguma maneira, sem sequer tentar? Eu havia realizado três curas:Milla, Rascal e o braço quebrado de Chub, só nos últimos dias. Talvez isso agora fosse parte demim, e eu não podia desligar o dom.

Parecia impossível... Mas havia acontecido tanta coisa, que não era inacreditável.Entreguei a Prairie o saco de papel com o café da manhã. Arrumei o copo de café paraque ela pudesse beber, dobrando para trás a pequena tampa plástica, exatamente como eu haviaaprendido a fazer vinte minutos antes, ao tomar meu primeiro

Prairie agradeceu e comeu enquanto dirigia lentamente pelo estacionamento,procurando a saída por onde ela voltaria à estrada interestadual. Ela consultou o telefone e eupercebi que Prairie seguia instruções de um mapa que baixara anteriormente.

- Aonde vamos? - perguntei quando ela entrou em uma estrada de várias pistas commuitas lojas ao longo do acostamento.

- Bem, isso é um pouco complicado - Prairie respondeu. - Fique olhando lá fora e acheum... ah, lá está.

Page 116: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 116/218

116

Ela entrou em um estacionamento na frente de uma fileira de prédios baixos e passoupor uma lavanderia, um restaurante tailandês, uma padaria. Finalmente, ela estacionou nafrente de uma agência de Hertz, uma locadora de automóveis, e olhou para mim com umaexpressão muito séria no rosto.

- Isso vai soar um pouco estranho - disse - mas temos de fazer parecer que estamosalugando um carro.

- Temos que dar essa impressão, mas não vamos alugar realmente, entendeu? - dissePrairie.

- Sim.

- Como eu posso... tudo bem. Lembra-se de quando eu disse que os homens Banidos

costumam ter visões? E que podem ver o futuro?

- Sim... - Um arrepio começou na base da minha coluna. Senti que ia ouvir maisnotícias ruins, e não tinha certeza de que estava preparada para escutar ainda mais. Mas eutinha escolha?

- Os puro sangue ainda podem. Alguns deles, pelo menos. Bem, poucos. - Ela mordeuo lábio e olhou para as próprias mãos, que apertava com força. - Rattler pode.

- Rattler Sikes? - Como se houvesse outro Rattler. Dizer o nome dele era suficiente para

aumentar a intensidade do arrepio e transformá-lo em um tremor de medo.

Prairie assentiu. - Rattler e eu temos uma... história. Quando éramos crianças, elecostumava me seguir por todo lado. Nessa época ele já tinha as visões, e elas só se fortaleceramcom o passar do tempo.

- Mas isso significa que ele sabe exatamente onde estamos!- Pensar nisso me fez querersaltar do carro e correr.

- Não é bem assim que funciona. Ele não consegue ver o futuro por inteiro, ou escolherque partes vai ver. Ele só... abre a mente e tem lampejos, flashes. Imagens, fragmentos dofuturo. Ou às vezes ele tem visões de coisas acontecendo ao mesmo tempo, mas em um lugardiferente.

Lembrei daquele olhar sem foco quando Rattler estava na cozinha de nossa casa, em

Page 117: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 117/218

117

como ele havia ficado imóvel, como se tentasse se concentrar em alguma coisa que ninguémmais podia ver.

-Alguma coisa não está certa. Um carro... Homens. São homens dentro dele.

- Ele tivera uma visão dos homens de Safian.

- Mas o que vamos fazer? - perguntei em pânico.

Prairie tocou meu braço. - Fique calma, Hailey. É por isso que estamos aqui. Vamoscriar alguns cenários, despistá-lo. Vamos dar a impressão de que estamos alugando um carro. Evamos dirigir até a estação rodoviária. Vou seguir alguns caminhos diferentes, dar a impressãode que podemos estar a caminho do sul ou do oeste. Só precisamos confundi-lo para que elenão saiba para onde nos seguir.

- Mas no final ele vai...

- Pare - disse com delicadeza, mas firme. - Não perca a calma.Rattler só consegue me ver quando estamos conectados, quando existe alguma energia

entre nós. No momento estamos com medo, e estamos ligados pelo que aconteceu com Alice,mas vamos superar tudo isso. Vamos deixar para trás o que aconteceu e a conexão se romperá, eentão ele não vai conseguir nos encontrar.

- Não entendo. Como assim, vocês têm uma conexão?

- Os Banidos... nós somos atraídos uns pelos outros, como eu disse antes. E existe umaenergia em torno dessa atração. Mas se você se afasta, essa energia desaparece lentamente. Suamente, seu coração enfoca outras coisas e a atração desaparece. A ligação se rompe. Não parasempre, mas você passa a funcionar sozinha, fora da influência dos outros Banidos. Foi o que eufiz quando fui para Chicago. A atração desapareceu para mim, e Rattler era só uma parte domeu passado, e ele não podia mais me ver.

- Mas quando você voltou para Gypsum...

- Tudo retornou. A conexão, a energia. Mas podemos combatê-la. Já lutei contra issoantes. Já me afastei de Rattler no passado. Havia uma forte convicção na voz dela, masmesclada a alguma coisa que não me agradava, algo sombrio e aterrorizante.

Era quase como se ela estivesse tentando me convencer. Mas não tínhamosalternativas. - O que eu posso fazer?

Page 118: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 118/218

118

- Você e Chub vão levar Rascal para dar uma volta. Tem água mineral e uma vasilha deplástico no porta-malas. Só preciso de cinco ou dez minutos.

Fiz como ela dizia, olhando pela vitrine de vidro da loja enquanto cuidava de Rascal.Ela estava conversando com o homem atrás do balcão, que consultava o monitor de seucomputador. Chub estava feliz fora do carro, e ele caminhava ao meu lado, recolhendo pedras egravetos que chamavam sua atenção.

Na luz brilhante eu pude notar que Rascal tinha sangue no pescoço e nas costas, epercebi que Chub devia ter caído sobre ele no Volvo quando se machucara. Eu limpei ocachorro com um pouco de água mineral e um punhado de lenços de papel da caixa que os Ellismantinham no carro. Ele não se incomodou, na verdade, foi como se nem notasse. Pus a mãodiante do focinho dele para ser lambida, mas ele apenas olhou para a estrada, para os carros

que passavam por ela. Imaginei se ele estaria pensando em perseguir os carros, mas Rascal nãoparecia interessado. Ele não havia balançado a cauda nem erguera as orelhas, e me pergunteimais uma vez se ele estaria tendo alguma reação ao acidente, se alguma coisa dentro dele serompera.

Mas quando eu o chamei, Rascal atendeu imediatamente e me seguiu de volta ao carro,pulando dentro dele. Se havia alguma coisa com ele, não era nenhum dano cerebral.

Quando Prairie voltou, ela parecia um pouco mais calma. - Um a zero para nós - disse,consultando o telefone mais uma vez antes de sair do estacionamento. - Próxima parada,

estação rodoviária.

- Prairie - eu falei depois de alguns minutos de jornada -, o que aconteceu com Rattler?Em casa?

- Ah, aquilo... - Prairie respondeu, e um esboço de sorriso distendeu seus lábios. - Eu,ah, pratico kickboxing. Aquilo foi um chute circular. Não devemos usar esse tipo de golpe nasaulas... bem, enfim, eu sempre quis experimentar.

- Acho que funcionou.

- Sim, acho que sim.

Rattler não estava morto. Ele poderia delatar nosso paradeiro, quase me raptou, e atéonde eu sabia, o único ferimento que sofrera havia sido causado pelo chute de Prairie. Eu queria

Page 119: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 119/218

119

que ele estivesse morto - e depois me perguntei se ele estava nos "vendo" agora. Pensar nisso mefez arrepiar de medo e repulsa.

Eu nem prestava atenção enquanto Prairie ia percorrendo ruas menores e menos

movimentadas, dirigindo por uma série de bairros que eram cada vez mais pobres e sujos, antesde entrar no estacionamento de uma estação ferroviária.

- Dessa vez iremos todos juntos - ela disse.

Deixamos Rascal no carro com uma lata aberta de alimento para cachorro que Prairiehavia comprado no Wal-Mart. Ficamos fora do carro por aproximadamente meia hora, fingindoentrar na estação para comprar passagens. O que realmente aconteceu foi que Prairie fez ummonte de perguntas sobre quando os ônibus partiam de vários lugares, e no final ela pegou doispanfletos com os horários e os guardou na bolsa. Passamos algum tempo sentadas em cadeiras

desconfortáveis. Li uma velha revista que alguém havia abandonado ali, e Prairie comprou umalimonada de uma máquina para Chub.

Não demorou o suficiente para ser tedioso. Aquilo me surpreendeu. Imaginava quenunca poderia relaxar, mas quando Prairie murmurou que era hora de seguirmos viagem, eume senti aliviada. Depois foi a vez do aeroporto, e essa experiência foi um pouco maisinteressante, embora o terminal aéreo de Springfield fosse pequeno e não se parecesse em nadacom aqueles que eu via nos filmes. Mesmo assim, havia gente andando por ali, passageiros commalas, bolsas - isso me fez sentir vontade de viajar de avião para algum lugar. Nunca acrediteirealmente que teria uma chance, mas agora parecia possível. Agora eu estava com Prairie.

Também não era só pelo dinheiro e pela experiência que ela tinha; Prairie simplesmente mefazia sentir que eu era capaz de fazer coisas que nunca considerei fazer.

Depois do aeroporto, Prairie me levou ao centro de Springfield. Havia ali edifícios altosem quantidade suficiente para fazer parecer uma cidade real. Circulamos por um tempo, àsvezes quase sem nos movermos no tráfego, e quando Prairie saiu do centro da cidade a tarde jáchegava ao fim.

O último lugar ao qual Prairie nos levou foi um motel, um lugar comum em um bairrosimples perto da interestadual.

- Tudo bem - ela disse quando paramos no estacionamento. Preciso descansar umpouco antes de seguirmos viagem. Vou alugar um quarto para nós - fique aqui, está bem?

Eu não discuti. Não sabia ao certo se queria admitir para Prairie que nunca havia

Page 120: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 120/218

120

estado em um motel antes. Gypsum tinha dois - um Super 8 e um motel térreo chamado ShyView, e eu havia passado por eles centenas de vezes, imaginando como seria ter um quarto sópara mim, com tudo limpo e arrumado.

Chub cochilava, por isso o deixei no carro e levei Rascal para dar uma volta ali porperto. Vi Prairie passar pela porta de vidro e entrar no saguão, onde a vi conversando com ohomem que atendia atrás do balcão. Ela voltou depois de pouco tempo.

- Consegui um quarto para nós perto do fundo - disse, e nós entramos no carro parapercorrer o pátio e estacionar em uma vaga parcialmente escondida atrás de uma lata de lixo. -Não falei com eles sobre Rascal. Vamos ter de levá-lo para dentro escondido.

- Está com medo de a polícia estar procurando este carro, não é? E... os homens queBryce contratou.

Ela assentiu. - Mas hoje de manhã eu esfreguei barro nas placas antes de sairmos, porisso é difícil identificar os números.

Eu a ajudei a tirar as sacolas do porta-malas. Chub segurou minha mão e bocejou, e nósseguimos Prairie até a última porta no primeiro andar, e depois eu voltei e carreguei Rascalenrolado no meu moletom. Ninguém nos viu. Do nosso quarto nós podíamos ver o final doestacionamento e um Denny's ao lado do motel. Além disso, depois da cerca, havia os fundosde outro restaurante com mais latas de lixo e portas de serviço, e com lixo espalhado pelacalçada. Um homem fumava um cigarro sentado sobre um balde virado ao contrário.

Eu sabia como eram os quartos de motel pelo que vira na tevê. Esse tinha um cheiroestranho, não exatamente ruim, mas químico e úmido. Deixei a mochila sobre uma das camas evi Prairie tirando as coisas de suas sacolas do Wal-Mart.

- Espero que esteja pronta para assumir um novo visual- ela disse, e percebi que elatentava soar animada, apesar da exaustão. Prairie colocou uma caixa de L'Oreal Coleur Expertesobre o criado-mudo entre as camas. Depois ela tirou da sacola uma escova de plástico e umatesoura. Ela virou as duas sacolas maiores, e várias peças de roupa caíram sobre a cama. Aúltima sacola continha um punhado de pequenas embalagens de maquiagem, mas um enormepar de óculos de sol com armação branca.

- Isso tudo é... um disfarce? - perguntei.

- Sim. Temos de fazer o possível para nos tornamos invisíveis.

Page 121: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 121/218

121

E podermos voltar a Chicago. E depois encontrarmos um lugar onde possamos ficarseguras.

Seguras de coisas que até hoje eu nem sabia que existiam. De magia antiga e maldições,

de segredos sombrios, coisas extraídas de um conto de fadas distorcido. Na outra extremidadedo espectro, um homem que queria me usar como sujeito de um experimento.

Um cientista.

Pensei nas aulas de ciência que nunca mais freqüentaria. Percebi, para minha surpresa,que sentia falta de algumas coisas de minha antiga vida, afinal.

Chub se movia pelo quarto, tocando coisas e explorando. Ele encontrou o telefone eapertou todos os botões. Prairie sentou-se em uma das camas ao lado das compras e massageou

as têmporas com a ponta dos dedos.

- Falando sério, Hailey, precisamos dormir. - Ela pegou o celular na bolsa e pressionouas teclas. - Estou programando o despertador, vamos dormir por umas duas horas, pelo menos.Ainda teremos muito tempo para fazer o que é necessário. Tudo bem?

- Tudo bem - respondi com um suspiro. Não valia a pena discutir com ela. E eu sabiaque, provavelmente, ela estava certa, mesmo. E apesar de me sentir agitada agora, logo pegariano sono.

- Venha aqui - eu disse para Chub. - Hora de cochilar.

- Hora de cochilar - ele repetiu, mas, em vez de se acomodar na outra cama, ele sedeitou com Prairie. Ela devia estar quase dormindo, porque só suspirou e passou um braço emtorno de Chub, que se aconchegou em seu peito. Menos de um minuto mais tarde ouvi arespiração profunda de Chub, sinal de que ele dormia.

Tentei não sentir ciúmes, ficar feliz por Chub se sentir tão confortável com Prairiequanto eu me sentia. E de maneira geral, eu estava feliz. Exceto por agora estar sozinha. E eunão queria ficar só. Os medos, a ansiedade, tudo fervia dentro de mim, e eu temia que elas medominassem se eu ficasse sozinha com meus pensamentos.

Olhei para Rascal, que estava sentado imóvel ao lado da porta, olhando para ela. - Vemcá, garoto - chamei, e ele se levantou e trotou na minha direção. - Sobe - disse, e ele pulou sobrea cama.

Eu o abracei e puxei para mais perto de mim. Ele não tinha um cheiro muito bom, era

Page 122: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 122/218

122

uma combinação de cachorro molhado e alguma outra coisa, algo que eu não conhecia. Mas,ainda assim, era melhor que nada.

Estava preocupada por ele ainda não ter voltado ao normal, mas esse não era o

momento de ficar obcecada com isso. Apaguei a luz, e com as pesadas cortinas fechadas, oquarto ficou tão escuro quanto se fosse meia-noite. Havia um som constante vindo do teto, umventilador fazendo circular o ar com aquele cheiro estranho. O telefone celular de Prairie brilhava sobre o criado-mudo.

Eu tinha certeza de que não ia conseguir dormir com tantas coisas ocupando meuspensamentos, mas o próximo dado registrado por meus sentidos foi o despertador de Prairie.

Page 123: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 123/218

123

Capítulo 15Rascal estava encolhido ao meu lado, e nem se incomodou com o apito repetitivo do

celular. Quando saí debaixo das cobertas, minha boca estava seca como o deserto. Na outra

cama, Prairie se sentou e desligou o telefone, esfregando os olhos e bocejando.

Fui ao banheiro, bebi dois copos de água da torneira e lavei o rosto. Quando voltei,Prairie havia se levantado e enfileirado as compras sobre sua cama.

- Ei, olá, raio de sol- ela disse animada.

- Por que está tão feliz?

- Nada em especial... além de acreditar que conseguimos despistar Rattler. Quero dizer,

se ele ainda não apareceu, acho que estamos indo bem.

- Acha que funcionou? Todas essas voltas com o carro...

- Ele não está aqui, está? Então, suponho que ele tenha sido despistado por uma denossas outras paradas. Pelo que sabemos, ele pode estar em um ônibus a caminho do Texas. -Ela reuniu suas compras. - Sei que uma ducha seria ótima agora, mas acho melhor pintar seucabelo primeiro. Você vai precisar enxaguar a tinta depois do tempo de pausa, então é melhoresperar para tomar banho.

O sono a reanimara; à luz da lâmpada que ela acendera, notei que as sombras escurashaviam quase desaparecido de sob seus olhos. Passei a mão pelo meu cabelo. Era liso, reto,castanho, com luzes naturais. Eu sabia que algumas pessoas pagavam caro por uma cor como ado meu cabelo.

- Tudo bem - eu concordei finalmente. Meu cabelo era a única coisa que eu tinha e sabia

Page 124: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 124/218

124

ser especial. Mas se o que estava em jogo era nossa segurança, eu saberia superar. - Que cor?

- Pensei em tentarmos reproduzir o tom do cabelo de Chub. Vamos criar a impressãode que você e ele são irmãos.

Olhei para Chub, que se virava e suspirava enrolado nas cobertas. O cabelo dele eraclaro, quase branco, com reflexos dourados. Eu não conseguia imaginar aquela tonalidade emmim.

- Vamos ter que cortar, também - Prairie acrescentou com tom de quem se desculpa. -Eu não pediria, se não fosse importante.

Enquanto ela misturava a tinta, espalhando pelo quarto um cheiro forte, eu despi acamisa de flanela e fiquei apenas com o tom que usava por baixo dela.

- Primeiro vamos cortar - Prairie avisou, abrindo no chão o lençol que tirou de suacama. Ela colocou a cadeira no centro do lençol. - Vamos tirar um pouco do comprimento. Edepois, quando terminar a coloração, vou dar forma a ele, está bem?

Eu me sentei na cadeira e senti as mãos dela no meu cabelo. Ela fez um rabo de cavalo etorceu, e eu fechei os olhos e tentei relaxar. O primeiro corte deixou minha cabeçaestranhamente leve. Não queria pensar nos meus cabelos caindo no chão, por isso perguntei aPrairie algo em que estava pensando.

- Como não sabia que Bryce não era quem você pensava? Quero dizer, você estava...você sabe. - Dormindo com ele, pensei, mas não disse.Prairie parou. Eu sentia o calor de sua pele, as mãos bem perto do meu rosto.

- Acho que, no fundo, eu sabia que havia algo de errado. Mas é surpreendente comovocê consegue se convencer de coisas absurdas quando está em negação. Bem, vamos começar acoloração.

Ela foi espalhando a tinta sobre meu cabelo, começando pela raiz e puxando para aspontas. O cheiro era horrível e meu couro cabeludo ardia.

- Do que você gostava nele? - perguntei. - Quero dizer, no início.

Ela parou. Um pouco da tinta escorreu para a minha sobrancelha. - Bem... paracomeçar, eu achava que ele era gostoso.

Page 125: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 125/218

125

Limpei tinta da minha testa. - Em que sentido?

- Ele era... não sei, bonito, com uma aparência limpa, definida. E ele se veste bem -

muito bem. Ele gosta de roupas caras. E sempre se exercitou muito. Na verdade, acho quepodemos dizer que ele era um pouco compulsivo com relação à ginástica. Ele tem estaturamediana, mas é naturalmente atlético no porte físico. Ombros largos, braços fortes...

- Cabelo claro ou escuro?

- Castanho... Um castanho médio, eu acho. E olhos castanhos.

A descrição soava interessante, mas ele não me parecia tão especial assim. - O quemais?

- Bem, ele é muito inteligente. Acho que essa era a característica mais importante, paradizer a verdade. Ele tem um doutorado, ou diz que tem, pelo menos, embora agora eu não sabiamais se ele disse alguma verdade no meio de tantas mentiras.

Eu pensei nisso. O sujeito mais inteligente no Gypsum High era Mac Blair, mas eu jamais pensaria em dizer que ele era gostoso. Ele não era um geek, não exatamente - mas suamente tinha sempre alguma coisa a mais, normalmente um fato aleatório que ele encontrara nainternet.

- Como isso fez você gostar dele?

Prairie não respondeu por um instante. As mãos dela no meu cabelo eram confiantes eeficientes, distribuindo a tinta de maneira uniforme por minha cabeça.

- Acho que parte da atração estava no fato de eu nunca ter conhecido ninguém comoele antes. A maioria dos caras que eu conhecia - bem, você sabe como são as coisas no colégio.Ninguém tinha sequer curiosidade para saber como era o mundo fora de Gypsum. Eufreqüentei uma faculdade pequena, fiz aulas no curso noturno, qualquer coisa que fossepossível para conseguir os créditos necessários para me formar, e lá eu também não viviacercada por gênios. Mesmo quando trabalhava nos laboratórios, a maioria dos homens queconheci não estava contente por estar onde estava não se comprometia com o trabalho. Nãocomo Bryce.

- Mas também era... eu queria muito fazer alguma coisa com meu dom, você sabe.

Page 126: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 126/218

126

Queria ser importante. E Bryce me deu a impressão de que podia fazer isso acontecer. Acho quefoi um pouco de sede de poder, sabe?

- Pensou que, se estivesse com Bryce, ele poderia abrir portas para você? Conseguir umemprego melhor, mais dinheiro, coisas desse tipo?

- Não, não exatamente. Com essa história e todos os recursos de que dispunha, ele mefez pensar que as coisas com que eu sonhava eram possíveis. Acreditei que elas poderiamacontecer na minha vida. Quero dizer, agora entendo que vi o que queria ver e acreditei no quequeria acreditar. Mas era fácil demais depositar minha fé em Bryce, aquele homemincrivelmente bem-sucedido - e me deixei cegar pelo fato de ele me desejar.

- Mas e as outras pessoas? As pessoas com quem você trabalhava? Ninguémdesconfiou dele? Quero dizer, se estavam mais próximas dos dados, elas não se perguntavam oque ele estava pesquisando?

- Bem, sim. Há cerca de seis meses, Bryce começou a substituir vários empregados quetrabalhavam no laboratório havia muito tempo. Ele contratou pessoas de muitas regiões dopaís, inclusive algumas de outras partes do mundo. Eram pessoas de seu círculo mais próximo,e quando não estavam reunidas com Bryce, elas se mantinham distantes, não se relacionavamcom os outros. Acho que elas sabiam exatamente o que estava acontecendo... e participavamdaquilo. Ele não pode fazer tudo sozinho, não sem ser pego.

- E as pessoas que ele demitiu? Não ficaram zangadas? Não desconfiaram do que eleestava fazendo?

- Bryce deu muito dinheiro a eles, talvez os tenha feito assinar todo tipo de documentosde desligamento. E muitas pessoas sabiam desse meu relacionamento com Bryce e semantinham distantes, por isso não mantive contato com os que foram demitidos. Eu tinha umamigo... - ela sorriu ao lembrar. - Ele era um hilário. Seu nome era Paul, e ele era técnico nolaboratório, um rapaz brilhante que me fazia rir muito. Ele saiu de lá há poucas semanas. Achoque Bryce teve dificuldades para encontrar alguém capaz de fazer o que Paul fazia, porque eleera um gênio na segurança de computadores.

- Não ficou zangada quando Bryce o demitiu?

O sorriso de Prairie tremeu. - Sim... acho que sim. Quero dizer, quando penso nissoagora, sim, eu fico muito zangada, porque ele era a única pessoa além de Bryce que almoçavacomigo, ou tomava café, ou qualquer coisa. E não acredito que ele confiasse realmente emBryce. Ele fez para mim um backup de alguns sistemas de segurança sem contar nada a Bryce,

Page 127: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 127/218

127

disse que era para o caso de alguma coisa acontecer com ele.

- Talvez ele fosse apaixonado por você.

Prairie riu. - Talvez. Ele sempre corava quando conversávamos. Seus únicos hobbieseram paintball e jogos de computador, mas você sabe, ele provavelmente teria sido umnamorado melhor que Bryce. Acho que vou ter de trabalhar nisso, meu gosto com relação aoshomens.

Quando terminou de espalhar a tinta sobre minha cabeça, eu me perguntava se algumdia teria um namorado e, se tivesse se escolheria alguém bom. Sendo Banidas, talvez nãotivéssemos o senso comum das outras pessoas. Éramos atraídas por pessoas como nós, e atéonde eu podia dizer, a maioria dos homens eram desprezíveis. Bryce não era Banido, masPrairie cometera um engano quando se envolvera com ele.

- Nunca pensou em namorar Paul?

- Ele nunca pediu. Não sei... se ele pedisse, talvez as coisas fossem diferentes. Eugostava muito dele. Ele era mais baixo que eu, não que isso fosse importante, e tinha um rabode cavalo, então, se você gosta disso... mas era bom sermos amigos, porque foi ele quem me fezguardar um crachá extra quando mudaram todas as senhas do laboratório.

A conhecida ansiedade se instalou no meu estômago. - Por que isso foi bom?

Prairie não disse nada por um minuto, estudando atentamente a tinta sobre minhacabeça. - Porque agora eu posso voltar ao laboratório. Não vou desistir enquanto não destruir osdados. Não posso deixar Bryce prosseguir com... o que ele está fazendo.

- Como vai impedi-lo? - Eu tentava manter minha voz livre da histeria, mas sóconseguia pensar nos assassinos na nossa cozinha. - Acha que ele vai simplesmente deixar vocêentrar lá e...

- Não comece a se agitar - Prairie me interrompeu com delicadeza. - Precisamos sófocar no momento, no...

- Por isso estamos a caminho de Chicago? Não podemos ir para outro lugar qualquer?Algum lugar onde ele não possa nos encontrar?

- Nós vamos. Prometo. Assim que fizermos essa última coisinha, iremos para bem

Page 128: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 128/218

128

longe e recomeçaremos nossa vida. Mas Hailey, nenhuma de nós estará segura enquanto Brycecontinuar agindo.

- Mas não podemos esperar um pouco? Deixar as coisas se acalmarem? Você pode

procurar seu amigo Paul e pedir ajuda, e quando for seguro, você e ele podem, não sei, voltar aolaboratório, ou alguma coisa...

- Receio que seja ainda mais perigoso esperar - disse Prairie. - Não sei até onde Bryceconseguiu ir. Eles estavam muito perto de algumas descobertas fundamentais. Mas Hailey, vocêprecisa tentar não se preocupar com isso agora, de verdade. Relaxe um pouco enquantoesperamos a tinta agir no seu cabelo.

Fiquei assistindo ao Bob Esponja com Chub enquanto esperava a hora de remover atinta, e enquanto Prairie limpava tudo. Meu cabelo formava pilhas brilhantes sobre o lençol que

ela estendera no chão, mas tentei não pensar nisso.

Despi-me no banheiro e entrei no banho, deixando a água tão quente quanto podiasuportar. Passei muito tempo lavando o cabelo, removendo toda tinta, parada sob o chuveirocom a cabeça inclinada para trás.

Quando finalmente saí do banho, me sentia ao mesmo tempo pior e melhor. Pior,porque agora entendia qual era o principal motivo de Bryce, e estávamos voltando para lá. Emelhor, porque por fim acreditava que Prairie não me abandonaria. Eu me enxuguei e meenrolei na toalha. Depois limpei o espelho embaçado para conseguir enxergar meu reflexo.

Fiquei chocada. Meu cabelo estava muito claro, um tom pálido de dourado. Quase todacor havia desaparecido - e ele caía numa pesada linha reta terminando abaixo das minhasorelhas.

Meus olhos se encheram de lágrimas e eu engoli em seco. Era ridículo - minhaaparência era o último dos meus problemas. Mas eu desviei os olhos do espelho enquanto mevestia.

No quarto, Prairie apontou para as sacolas do Wall-Mart. - Tem uma blusa nova ali. Váem frente, mas mantenha os sapatos - não sabia quanto você calça, e as pessoas não vão repararnos seus pés. Nem no jeans. Então, na verdade, é só a blusa.

Eu desdobrei a camisa. Era preta com mangas cinza, e na frente havia uma estampa deum crânio prateado com um sorriso sinistro, com chamas saindo pelas laterais.

Page 129: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 129/218

129

- Eu sei que você odiou - disse Prairie. - Desculpe. Achei que podíamos criar um visualde roqueira para você.

- É... não é tão ruim - menti.

- Tenho aqui esses... - ela procurou dentro da sacola e tirou dela um par de brincos quelembravam pedaços de uma corrente de bicicleta. Ela também tinha uma algema de couro comfechos e rebites, e um anel de prata com uma caveira. - Se serve de conforto, escolhi essa blusaporque achei que ela era exatamente o oposto do seu estilo. Quero dizer, você é linda, como suamãe...

A voz dela falhou e eu me virei, em parte para dar a ela um pouco de privacidade, emparte porque tinha um pouco de vergonha de trocar de roupa na frente dela. Encontrei roupasíntimas e meias em outra sacola e as vesti, depois pus minha velha calça jeans e a blusa nova.

Havia nela aquele cheiro de Wal-Mart, limpo e químico, e ela era tão justa que tive de puxar asmangas para fazê-las subir por meus braços. Arranquei as etiquetas e as joguei no cesto de lixo.

- Muito bom - disse Prairie com um sorriso que parecia autêntico.

- Hay-ee? - Chub, que até então tentava enfiar a girafa dentro da fronha de umtravesseiro, parecia ter me notado de repente. - Cabelo... o que foi?

Toquei meu cabelo curto. - Tudo bem, Chub, é só uma cor diferente. É legal.

Chub gostou de suas roupas novas, calça de algodão e blusa de moletom. Quando elevoltou a brincar com a girafa, Prairie dedicou toda sua atenção a mim.

Ela empunhou a tesoura para repicar os fios, e eu vi meu cabelo caindo no chãoenquanto ela trabalhava. Finalmente, Prairie recuou para estudar o resultado. Mais algumasrepicadas, e ela foi buscar o secador de cabelo que o motel mantinha no banheiro.

- Gostaria de ter algum produto - disse, usando o secador por alguns minutos,ajeitando o cabelo de um jeito e de outro.

- Oh... - ela disse quando terminou. - Gostei muito, Hailey. De verdade. Acho quecombina com você. Quero dizer, pode deixar o cabelo crescer de novo, mas... bem, espero quevocê também goste.

Fui ao banheiro e olhei para o espelho. Seco, meu cabelo era de um loiro platinado brilhante, e o novo corte dava a ela uma forma mais leve, virado logo abaixo do queixo, um

Page 130: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 130/218

130

pouco mais curto na parte de trás, com camadas sobrepostas que eu podia sentir com a pontados dedos. Algumas mechas formavam uma franja leve sobre minha testa.

Era incrível. Melhor que qualquer coisa que eu poderia ter feito em Gypsum - eu soube

disso imediatamente. Por um segundo desejei poder voltar à escola só pelo tempo necessáriopara todos me verem. Eu parecia - capturei o pensamento e o retive por um segundo - pareciaalguém que integrava uma banda, alguém que todos gostariam de ser.

- Feliz com o novo visual? - Prairie me perguntou sorrindo quando voltei ao banheiro.

Antes que eu pudesse responder, Chub se levantou de um salto do chão onde estiverasentado, brincando com sua girafa. - Homens maus - ele murmurou, apontando para a porta.Depois pressionou o rosto contra minhas pernas e as abraçou.

Prairie se abaixou ao lado dele. - Onde estão os homens maus, Chub? - ela sussurrou. -Estão perto daqui?

Chub assentiu o lábio inferior formando um bico. - Lá fora.

Ela o abraçou e se levantou, pegando a bolsa de cima da cama e retirando dela umapequena lata preta.

- Qual é a... bem, a precisão dele? - ela sussurrou. - Com essas previsões?

- Essas o quê? Quero dizer, ele começou a falar agora. Nunca havia ido ao banheirosozinho, até ontem.

Se Prairie estava surpresa, não demonstrava.

- Pegue isto - ela me disse movendo os lábios, sem emitir nenhum som, apontando paraas últimas compras, uma mochila rosa clara com as etiquetas ainda penduradas. - Pegue tudo eponha ai dentro.

Enfiei nossas coisas na mochila, nossas roupas sujas e as compras feitas no Wal-Mart.Prairie pegou as sacolas plásticas e as enfiou na bolsa.

- Estou muito cansada - ela falou em voz alta. - Acho que vou me deitar um pouco.Hailey pode pegar minha bolsa? Acho que a deixei no banheiro.

Page 131: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 131/218

131

Ela balançava a cabeça enquanto falava, apontando para a porta do lado oposto.Segurei a mão de Chub e o levei comigo. Quando Prairie se abaixou na minha frente, eu aimitei. Prairie tateou a parede de um jeito frenético até encontrar o interruptor, sem desviar osolhos da porta. Ela acionou um interruptor e mergulhou o quarto numa semi-escuridão, e

depois agarrou o abajur sobre a mesa, segurando-o pela base. Com um dedo sobre os lábios, elapediu silêncio. Eu senti meu coração disparar sob a blusa nova.

Page 132: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 132/218

132

Capítulo 16Quando a porta se abriu com um estrondo, eu pulei. Pedaços de madeira voaram sobre

mim e Chub. Houve um baque e um homem saltou para dentro do quarto, se abaixando.

- Vai! - Prairie gritou.

Ela empurrou a mesa contra a cabeça do invasor. Eu não esperei para ver se ele estavaferido. Peguei Chub e saí correndo pela porta, com Prairie logo atrás de nós. Um cheiro horrívelnos seguiu, eu senti minha garganta fechando e comecei a tossir, e quando estávamos do ladode fora enchi os pulmões com ar fresco. O sol fora do quarto era tão brilhante que me ofuscoupor um momento, mas Prairie me empurrou com força para o carro.

- Rascal! - Eu gritei. - Vem, garoto!

Ele trotou para fora do quarto, aparentemente despreocupado. Prairie pegou as chavese destravou as portas do carro no instante em que estendi a mão para a maçaneta. Não meincomodei em tentar acomodar Chub, apenas o coloquei no banco traseiro com Rascal e puleino assento do passageiro ao lado de Prairie. Ela já engatava a ré para sair da vaga. Os pneuscantaram quando ela virou o volante e partiu na direção da saída do estacionamento.

Um casal que andava pelo estacionamento saiu do caminho correndo, o homemgritando e nos mostrando o dedo do meio, mas Prairie nem prestou atenção. Ela entrou no fluxodo tráfego, manobrando o Buick entre um carro compacto que seguia em alta velocidade e um

caminhão muito lento cheio de regadores de grama, e depois mudou de faixa duas ou trêsvezes, fazendo um retorno em U em um farol amarelo. Voltamos rapidamente para a rampa deacesso à estrada.

Eu só havia inalado um pouco do spray de pimenta ou o que quer que fosse, e havia

Page 133: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 133/218

133

conseguido limpar a garganta e voltar a respirar normalmente.

- Não acredito que tenham posto um rastreador no carro - disse Prairie. - A menos quetenha sido enquanto estávamos no hotel. Mas não, eles devem ter ido atrás de nós assim que

nos descobriram. Então...

Eu me debrucei no encosto e ajudei Chub a prender o cinto da cadeira de segurança. -Cadeira - ele disse.

Além de tudo, agora ele acrescentava palavras novas ao seu vocabulário mais depressado que eu conseguia acompanhar. - Isso mesmo, essa é sua cadeira especial- eu disse. - Muito bem, Chub. Bom menino.

- Eles nos encontraram - Prairie repetiu. De repente ela mudou de faixa mais uma vez,

indo para a direita e passando na frente de um carro que ia mais devagar. Prairie saiu por umarampa que terminava em um oásis de bombas de combustível e lojas de fast food.

- O que está fazendo? - Continue em frente - eu sentia a urgência em minhas entranhas,sabia que devíamos colocar a maior distância possível entre nós e o homem que invadira nossoquarto de motel.

- Os homens de Bryce nos encontraram - ela repetiu. - E não foi o carro. Não pode tersido. Vamos. Traga a mochila.

Ela entrou no primeiro restaurante, um Wendy's, e estacionou sem nenhum cuidado

em uma vaga próxima da porta. Eu agarrei Chub e a mochila, deixando Rascal no carro, e asegui para o restaurante. Prairie foi direto para o banheiro e abriu a porta.

- Bom - ela disse. - É individual. Entre.

Eu me senti estranha quando a segui, olhei para trás, mas ninguém estava prestandoatenção. Havia alguns clientes na fila, grupos de duas ou três pessoas nas mesas, um somconstante de conversas baixas.

Prairie trancou a porta. - Minha vez - ela disse, tirando da bolsa uma sacola do Wal-Mart. Ela despiu a camiseta a vestiu um suéter que tirou da sacola.

Era uma coisa feia, marrom com bordado de folhas e abóboras. E era grande demaispara o corpo magro de Prairie.

Page 134: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 134/218

134

- Aqui - ela disse, me entregando a pequena nécessaire plástica de jóias e maquiagemque tirou da bolsa. - Ponha todas essas coisas, inclusive os brincos, e faça a maquiagem.Capriche no delineador. Muito, mesmo.

Fiz como ela dizia, começando por esconder o hematoma roxo no meu rosto, e aobservei pelo canto do olho enquanto trabalhava. Ela tirou da bolsa uma faixa larga e prendeuos cabelos, afastando-os do rosto. Depois passou batom, exagerando a forma natural da boca.

Eu me concentrei na minha maquiagem, fazendo o melhor possível para aplicá-la comohavia praticado algumas vezes em casa por diversão. Sombra roxa, delineador escuro, váriascamadas de máscara - recuei um passo e olhei para o espelho.

- Uau - disse Prairie.

Aquele rosto não era o meu. Acho que era esse o objetivo.

Prairie havia passado blush e sombra nos olhos. Com o suéter e a faixa nos cabelo, elaparecia uma dessas jovens mães levando os filhos para o futebol.

- Uau você - respondi. - Hm, não é seu melhor visual.

Prairie ergueu uma sobrancelha e nós duas rimos.

Estávamos muito encrencadas, mas rir era bom, aliviava a tensão. Chub olhou para nós

duas, uma de cada vez, e depois me surpreendeu batendo com o punho fechado na minhaperna.

Ele não estava rindo.

Prairie ajoelhou-se diante dele.- Chub, querido, eles estão aqui? No restaurante? No estacionamento?

Chub balançou a cabeça, esfregando a boca com a mão rechonchuda que mantinhafechada.

-Não aqui.

- Tudo bem. Lá, então? No motel?

- Homens maus - ele disse novamente, dando a impressão de que ia chorar. Prairie o

Page 135: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 135/218

135

abraçou e ele se deixou envolver por seus braços, enterrando o rosto em seu ombro. Ela afagousuas costas e murmurou palavras doces até o menino se acalmar.

Eu me sentia estranha olhando para os dois. Chub sempre tivera a mim - só a mim. Eu

não tinha certeza de que queria dividi-lo.

Mas ele se virou para mim e abraçou minhas pernas com força. Enquanto umedeciaum pedaço de papel toalha para limpar seu rosto marcado pelas lágrimas, soube que Chubainda era meu. Meu irmãozinho se era assim que seria. A pessoa que me amava por quem euera.

Terminei de secar seu rosto, e enquanto isso Prairie virou a bolsa sobre a bancada dapia, espalhando tudo que havia dentro dela.

Não era muito: um molho de chaves numa argola simples de metal. O telefone celulare duas canetas. Uma carteira preta e quadrada. Um estojo de couro preto e pequeno, que elaabriu movendo o zíper e de onde tirou um batom, uma escova e um pó compacto.

- Eles estão nos rastreando de alguma maneira - Prairie disse em voz baixa. - Pelomenos eles não nos seguiram do hotel até aqui. Ainda.

- Por quê? Por causa do que Chub falou?

- Ele é um Vidente, Hailey.

Prairie me calou com essa declaração. Tentei processar o que ela disse: é claro, Chubhavia progredido muito nos últimos dias. Alguma coisa importante estava acontecendo comele, definitivamente - eu tinha certeza de que não havia registros de outras crianças aprendendoa falar e usar o banheiro sozinhas, e da noite para o dia. Mas Prairie queria que eu acreditasseque, além de tudo, Chub podia ver o futuro.

Todos os homens tinham o dom da visão, ela havia dito sobre os Banidos. Podiam ver ofuturo... para se proteger dos inimigos ...

Uma idéia começava a se formar na minha cabeça. Fechei os olhos e tentei focá-la. Nosdias que os clientes de vovó iam nos visitar, muitas vezes Chub parava o que estava fazendo,deixava de lado o livro ou brinquedo e vinha abraçar minhas pernas, segurando-as com força, oque ele sempre fazia quando estava com medo ou perturbado. E alguns minutos mais tarde euouvia um carro se aproximando e parando na entrada de casa, o barulho das portas, o grito de

Page 136: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 136/218

136

algum fracassado meio perdido. Talvez fosse verdade. Talvez Chub fosse um Vidente.

- De qualquer maneira, - Prairie disse - acho que temos de assumir que a coisa usadapara nos rastrear, seja ela qual for, está aqui comigo. Ou em mim.

Ela abriu a carteira e tirou de lá o cartão de crédito, a carteira de motorista e o dinheiro,guardando tudo nos bolsos da calça jeans. Depois, ela retirou duas chaves do anel de metal e ascolocou em outro bolso. E me entregou seu telefone celular. Em seguida, ela colocou o anel comas chaves e todas as outras coisas que estavam sobre a bancada da pia dentro da bolsa, e jogou a bolsa na lata de lixo.

Então Prairie pegou de volta o telefone celular e me deu um empurrão delicado. -Vamos embora - disse.

No estacionamento, ela se curvou na frente do automóvel enquanto eu acomodavaChub na cadeira de segurança no banco de trás e levava Rascal para dar uma volta.

- O que acabou de fazer? - perguntei quando saímos do estacionamento e voltamospara a estrada, agora em velocidade normal.

- Passei por cima do meu telefone celular. Quem estiver nos rastreando através delevai encontrar só uma pilha de destroços no chão do estacionamento do Wendy's.

Ela era esperta. Ainda não havia feito nada que não se pudesse aprender assistindo à

televisão, mas, mesmo assim, eu estava impressionada. Havia momentos em que sentia opânico me dominando e tinha de sufocá-lo com toda minha força de vontade. Mas haviaconseguido fazer o que tinha de ser feito: acompanhar Prairie, continuar cuidando de Chub. Euestava me segurando.

Imaginei se isso seria resultado de ter crescido em constante estado de alerta. Eu estavasempre vigilante - primeiro com as crianças que me pregavam peças quando eu era pequena, oucom minha avó me batendo quando eu passava por ela, ou, pior de tudo, com as mãos bobas eos olhares famintos dos clientes - eu tinha de estar sempre um passo à frente.

- Prairie - eu disse. - É... obrigada. Pelo corte de cabelo, pelas roupas, por tudo.

Ela sorriu, mas manteve os olhos fixos na estrada.

- Acha que tenho algum futuro nisso? Sabe como é, acha que posso ser estilista de

Page 137: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 137/218

137

estrelas, ou coisa parecida?

- Hm, com esse visual, não, acho que não - respondi, apontando para o suéter que elavestia. - Você parece pronta para uma reunião de pais e professores.

Prairie riu e nós seguimos em frente por algum tempo num silêncio confortável.

- Então - eu disse depois de um tempo. - Como aprendeu a cortar cabelo?

- Trabalhei em um salão de beleza.

- Pensei ter ouvido você dizer que foi garçonete.

- Sim, também. Fiz as duas coisas. O que aconteceu foi que, um dia, quando eu

trabalhava como garçonete, saí para caminhar e acabei indo parar numa área da cidade que eunão conhecia, na frente de um salão. Senti uma... compulsão para entrar. Não consegui resistir,então entrei e conheci a proprietária. Ela era polonesa, e seu nome era Anna. Nós nos demos bem desde o primeiro instante. Ela me contratou. Trabalhei ali enquanto estudava, e aprendi oofício. Depois que me formei consegui um emprego na área de pesquisa, e nós... perdemoscontato.

Eu sabia que a história ia, além disso, porque Prairie escolhia as palavras com muitocuidado.

- O que está deixando de me contar? Ela mordeu o lábio, e eu esperei.

- Lembra-se de quando falei que tive uma identidade falsa?

-Sim.

- Foi Anna quem me ajudou a conseguir o documento. Ela conhecia um homem,alguém que ajudava muitos imigrantes. Anna me ajudou a ser uma nova pessoa.

- Por que não podia ser simplesmente você mesma? Vovó jamais teria ido procurá-la.Você mesma disse.

- Mas nunca deixei de me preocupar. Depois de ter descoberto sobre Clover, chegueiao meu limite com Alice, não queria mais saber de Gypsum - de nada disso. Vi em que aspessoas ali haviam se transformado. Pensei que poderia levar comigo o dom da Cura e deixar

Page 138: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 138/218

138

todo o resto para trás. Os homens, clientes da vovó... as visões deles se tomaram turvas, muitosnem podiam mais ver o futuro, e havia muito crime e violência. Vi como eles tratavam asmulheres e soube que, se algum dia eu voltasse, seria novamente tragada por aquela vida.

- Por quê? - perguntei. - Quero dizer, também odeio Gypsum, mas está agindo como senão tivesse livre arbítrio. Quando completou dezoito anos...

- Os Banidos são ligados - Prairie me interrompeu. - Não viu isso? Não sentiu? OsMorries - a maneira como se sente atraída por eles?

Senti meu rosto vermelho: era como se ela pudesse enxergar dentro de mim.

- Não é sua culpa - Prairie disse com aquela voz suave. - Isso foi ordenado. Mas eusabia que precisava me afastar de tudo aquilo. Então, me tornei uma nova pessoa. Mas...

Por um momento ela não disse nada, e depois riu, mas havia mais dor que humor emsua risada.

- Anna também era uma Banida.

-O quê ?

- Não é só em Gypsum, Hailey. Há outros do vilarejo na Irlanda. Eles viveram lá porduzentos anos antes da fome chegar e ameaçar dizimá-los. Nosso grupo foi para a Polônia.Anna veio para os Estados Unidos há anos, depois que a mãe dela morreu.

- Então há... pessoas como eu no mundo todo?

- Não exatamente. Havia apenas algumas poucas famílias de Curadores originais, nãosei quantas, exatamente. Talvez só nós e aquela que foi para a Polônia, ou mais algumas poucas.Mas os Banidos que foram com eles... sim, há pessoas como nós por aí.

- Todas como os Morries?

- Bem, Anna não é como eles. Anna é... Eu a amava. - Ela tinha uma nota emocionadana voz, e mais uma vez me perguntei por que elas haviam perdido o contato.

- E ela contou tudo isso?

- Anna... preencheu as lacunas para mim. Eu sabia um pouco dessa história por

Page 139: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 139/218

139

intermédio de minha avó. Anna é puro sangue. Quando me viu naquele primeiro dia em queentrei no salão, ela soube. Sentiu que eu era Banida. Os que foram para a Polônia mantiveram ahistória mais viva, se preservaram melhor, aprenderam a reconhecer uns aos outros. Masagora... - Ela deu de ombros. - Com o tempo a história se perde.

- Mas como ela sabia? Como podia dizer?

- Não é difícil, Hailey - Prairie explicou. - Você vai aprender. Eu aprendi depressa. Vaiver tudo isso nas pessoas algumas vezes. Não com muita freqüência, e é quase sempre algofraco nelas. Quando os Banidos deixaram a Irlanda, começaram a vagar. E como aconteceu comos que vieram para Gypsum, eles se casaram com pessoas de fora do grupo. Os homensperderam a visão. Resta muito pouco na linhagem sanguínea, mas Anna me mostrou. Alguémentrava no salão, alguém com sangue Banido, e ela me ajudava a reconhecer a pessoa, a vê-la...ou não ver, exatamente, porque ... é uma sensação, acho que podemos dizer. Normalmente nem

eles mesmos sabem. Em um homem, pode haver certo déjà vu, como se às vezes as coisasacontecessem e eles já as houvessem vivido antes. Mas eles se convencem de que é tudo bobagem, ou tratam tudo como coincidência. As pessoas podem se convencer com grandefacilidade sabe, quando querem. É da natureza humana.

- Anna era uma curadora?

- Não. Ela diz que ninguém sabe o que aconteceu com a linhagem dos Curadores naPolônia, se ela morreu ou não, ou se os Curadores emigraram para algum outro lugar.

Por um tempo nenhuma de nós disse nada. Era muito para absorver.

- Então, acho que Anna fez o que tinha de fazer - eu disse finalmente. Por algumarazão, me sentia desolada. - Ela encontrou você. Uma estrela dourada para ela. Duas Banidaspuro sangue em uma cidade do tamanho de Chicago.

Se Prairie percebia meu tom, ela não fez nenhum comentário. - Não, Hailey. Não duas.Três.

- Três... o que quer dizer?

- Anna tem um filho.

Page 140: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 140/218

140

Chicago …

 

Capítulo 17Anoitecia quando chegamos nos limites de Chicago, uma cidade que tinha um

horizonte recortado por cintilantes fileiras de torres distantes se estendendo até onde a vista

podia alcançar nas duas direções. Saímos da estrada por um trevo muito movimentado e comtráfego intenso, de alta velocidade

Apesar do breve cochilo no motel, eu não conseguia manter os olhos abertos. Devia ter

cochilado por algum tempo, porque quando Prairie sacudiu meu braço com delicadeza para me

acordar, ela havia estacionado o carro nos fundos de outro motel, maior, mais novo e mais

anônimo que o primeiro; a parte dos fundos voltada para uma avenida larga onde havia uma

loja de carros do outro lado da rua. Eu nem perguntei onde estávamos. Executei toda a ação de

retirar Chub, profundamente adormecido da cadeira de segurança enquanto Prairie cuidava do

Rascal.

Dentro do quarto, desmoronei ao lado de Chub e só acordei na manhã seguinte,

quando o sol já penetrava pelas frestas da janela. Eu me sentei na cama, desorientada pelo

ambiente desconhecido. O quarto de motel era quase uma cópia daquele do dia anterior, mas ao

Page 141: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 141/218

141

contrário, com a televisão na parede oposta. Chub sentou-se na beirada da cama balançando as

pernas, assistindo televisão com o som bem baixo. Ele já estava vestido e seu cabelo com um

novo tom de loiro agora espetado.

Prairie estava perto da janela agarrando a cortina entre as mãos, olhando para o

estacionamento e Rascal estava sentado ao lado dela olhando para o nada. Quando a chamei

pelo nome ela pulou.

- Bom dia Hailey. – ela disse – Sente-se melhor hoje?

Para minha surpresa eu estava melhor. Sentia-me descansada e forte, e os

acontecimentos dos últimos dias haviam perdido o brilho em minha cabeça, como um filme ao

qual eu havia assistido, mas esquecera. Nunca ia esquecer as imagens do desastre na cozinha,

de minha avó no chão – mas eu sentia, enquanto me lavava e recolhia minhas coisas, como se

tudo houvesse ficado no passado, como se aquela fase da minha vida houvesse terminado.

Senti uma tênue esperança.

Era quase uma da tarde quando levamos Rascal para dar uma volta e colocamos as

coisas no carro, seguindo diretamente para um restaurante de beira de estrada onde

almoçamos. Meu apetite retornara e eu pedi hambúrguer e fritas e um copo grande de leite. Até

Prairie comeu quase toda sua salada com frango, e as linhas de preocupação em torno de seus

olhos se suavizaram.

- Então, - eu disse, terminando de comer minhas batatas. – acho que funcionou não é?

O que... você fez. Para ele não conseguir nos encontrar.

Não disse o nome dele, não suportava nem pensar nele. Rattler. A imagem de Rattler

cravando a faca no homem de paletó preto passou como um raio por minha mente e sumiu,

deixando apenas uma sombra pálida do horror daquela noite.

Prairie assentiu pensativa e bebeu seu café. - Se ele pudesse nos rastrear...

Ela não concluiu o pensamento, mas eu sabia em que estava pensando. Ele já nos teria

encontrado a essa altura, se as visões pudessem levá-lo até nós. Tentei adivinhar se Prairie haviadormido, ou se havia passado todo o tempo ao lado da janela, preocupada, esperando o velho

caminhão aparecer na frente do motel, esperando que ele arrombasse a porta como os homens

de Bryce haviam feito no dia anterior.

Page 142: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 142/218

142

Eu me sentia culpada porque havia desmoronado e dormido como uma pedra,

deixando para ela toda a obrigação de vigiar e toda a preocupação. Quase me desculpei, mas

não consegui encontrar as palavras.

- Então ele deve ter ficado em Gypsum - eu disse esperançosa. Prairie assentiu.

- Mmm. Com um pouco de sorte vou conseguir concluir... o que tenho de fazer esta

noite, então poderemos seguir adiante.

Ela não olhava pra mim, mas para fora pela janela. Eu tinha tantas perguntas! Ela disse

nós, mas estaria se referindo a nós três? E eu não tinha a menor idéia do que significava “seguir

adiante”, ou para onde iríamos em seguida, como viveríamos. 

- O que você precisa concluir esta noite? - perguntei. Finalmente ela olhou pra mim e

fez uma pausa, como se escolhesse as palavras com cuidado.

- Preciso destruir a pesquisa de Bryce.

- Como vai conseguir?

- Eu... tenho algumas idéias. A primeira coisa a fazer é entrar no laboratório. E para isso

eu preciso da minha cópia da chave. É muito perigoso voltar á minha casa, mas mantenho

cópias extras nas casas vizinhas, com pessoas de confiança.

- Não tem uma chave com você?

Prairie empurrou a salada pelo prato sem me encarar. - Essa é uma chave especial

Hailey. É um crachá, um cartão eletrônico com um código que tranca e destranca as portas, e

tenho certeza de que, a essa altura, Bryce já mudou o código para me impedir de entrar. Mas

tenho uma chave mestra na casa de uma amiga.

- Ela sabe que você está voltando?

- Não. – Prairie hesitou e mordeu o lábio. Eu podia dizer que ela estava tentando

decidir o quanto devia me contar. - Achei que seria melhor se não telefonássemos ou fizéssemos

alguma coisa... que pudesse alertar alguém. Tenho a chave da casa dela, por isso posso entrar

sem problemas. Quanto mais rápido eu entrar e sair, melhor.

Page 143: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 143/218

143

Eu... Ela agora dissera eu. Não nós. O pânico começou a se formar no meu peito. -

pânico de ser deixada sozinha, de ter que defender Chub contra qualquer ameaça que surgisse.

- Vou com você. - anunciei apressada, minha voz mais ríspida do que eu pretendia. -

Vamos todos juntos.

- Acho que não...

- Por favor. Podemos esperar no carro, vai ser melhor assim, podemos observar se...

se... 

Não terminei a frase, mas imaginei que Prairie sabia o que eu queria dizer. Eu podia

observar e dar o alerta se os homens de Bryce aparecessem, ou Rattler, ou quaisquer outras

ameaças com as quais eu nunca imaginara ter que me preocupar, ameaças que até alguns dias

atrás nunca haviam existido pra mim, mas que agora mudavam todo o curso da minha vida.

Eu argumentaria com Prairie, discutiria se fosse necessário. Não ia desistir. Ela me

salvara de Bryce, de minha avó e de Rattler, e eu era grata por isso. Mas ela não podia nos

deixar agora. Eu não a deixaria. Não tinha escolha.

- Tudo bem. - ela concordou finalmente, e eu deixei sair o ar que nem percebera estar

retendo nos pulmões. - Pode vir comigo á casa de Penny. Mas depois disso, quando chegarmos

ao laboratório eu entro sozinha.

Eu não ia discutir essa decisão... ainda. Um passo de cada vez.

Ela queria esperar anoitecer para ir a tal casa da vizinha, por isso passamos a tarde em

um parque onde Chub brincou nos balanços e escorregadores e cavou buracos e túneis em uma

caixa de areia, usando uma pazinha de plástico que alguém deixara para trás.

Tentei convencer Rascal a correr atrás de um graveto, mas ele apenas caminhava do

meu lado e se sentava sempre que eu parava. No final da tarde, Prairie nos levou de carro até o

Norte da cidade, para Evaston, o subúrbio onde ficavam seu apartamento e o laboratório.

Ela estacionou ao lado do lago e nós percorremos a pé uma trilha de terra ondepodíamos ver Chicago ao sul, a luz do sol poente refletida nas janelas de todos os edifícios

muito altos, dando a impressão de que a cidade era feita de ouro e espelhos.

Page 144: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 144/218

144

Chub estava mais interessado em jogar pedras da margem rochosa do que em olhar

para a cidade, mas eu não conseguia desviar os olhos do horizonte e do sol descendo

lentamente para o azul do escuro lago.

Finalmente era quase noite. Prairie dirigiu por um tempo antes de escolher uma vaga

para estacionar o carro em uma tranqüila rua transversal perto de um beco. Havia carros

parados dos dois lados da rua, mas um pequeno Acura vermelho saiu exatamente quando

estávamos passando. Foram necessários vários minutos de manobras cuidadosas até Prairie

conseguir enfiar o grande carro do Ellis na vaga apertada, mas ela parecia satisfeita quando por

fim desligou o motor.

- Queria ter uma coleira para Rascal. - Prairie comentou.

- Ele vai ficar perto de nós. Não vai fugir.

- Sim eu sei, mas aqui há leis que obrigam o uso de coleiras... bem , vamos ter que ir

sem ela mesmo. Quando chegarmos a casa de Penny ele pode entrar conosco. Ela adora

cachorros.

Deixamos a rua comercial e entramos em uma zona residencial. Prairie andava

depressa, e ela atravessou uma rua larga para entrar em uma alameda que passava por trás de

uma fileira de casas. Descemos a rua por alguns quarteirões, correndo em silêncio para

atravessar um cruzamento mais movimentado.

Eu tropecei em uma mangueira que havia sido deixada enrolada na entrada da

garagem. Tivemos de silenciar Chub várias vezes, ele estava cansado, não dormira de tarde e

cambaleava de um lado para o outro, resmungando e esfregando os olhos.

Prairie tocou meu braço e apontou uma casa pequena no fundo de um terreno, um

espaço dominado por uma construção maior de frente para a rua. Afaguei a mão de Chub e ele

se apoiou em mim, com o rosto apertado contra minhas pernas. Ele estava tão exausto que

começou a chorar em silêncio, soluços curtos abafados pela minha calça jeans. Havíamos

parado sob os galhos baixos de um salgueiro que começava a se encher de folhas para a

primavera, e eu esperava que ali estivéssemos escondidos de quem quer que olhe pelas janelasdos quartos.

- Essa é a casa de Penny?- sussurrei.

Page 145: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 145/218

145

- Sim. Não quero bater na porta porque ela vai acender a luz da varanda, mas ela não

vai se incomodar se eu entrar sem avisar. Temos uma espécie de acordo, molhamos as plantas

uma da outra quando viajamos esse tipo de coisa.

Prairie não parecia tão confiante quanto sua voz podia sugerir. Ela pegou as chaves

que guardara no bolso da calça jeans. Eu peguei Chub quando ela girou a chave na fechadura.

Ele ficou tenso em meus braços e eu o acalmei, segurando seu corpo agitado com mais força. Só

quando ouvi o clique abafado da porta se abrindo eu percebi que estivera prendendo o ar,

esperando... o que? Um tiro?

Em Gypsum eu vivia sempre tensa - nunca sabia o que encontraria ao voltar para casa,

quem eu encontraria desmoronando sobre a mesa da cozinha. Mas isso era diferente. Todas as

coisas com que eu me preocupava em Gypsum agora pareciam meio estúpidas – crianças

debochando de mim, ou o mau humor da minha avó ou Dun Acey tentando apalpar meutraseiro quando eu passava por ele.

- Acho que ela foi dormir cedo. - Prairie estava dizendo enquanto dava um passo para

o lado, me deixando entrar no hall escuro da casa. Rascal me seguiu. Ela deslizou a mão pela

parede cujo contorno eu mal conseguia enxergar à luz da lua, uma luminosidade pálida que

entrava pela porta atrás de nós. Houve um clique suave quando os dedos dela encontraram o

interruptor de luz, e a sala foi invadida pela claridade suave de um abajur sobre a mesa baixa.

Alguns passos na nossa frente, uma mulher idosa vestindo roupão cor de rosa de

tecido acolchoado estava sentada em uma poltrona estofada, os pés estendidos pra frente numângulo estranho, um de seus chinelos de cetim virado ao contrário no piso de madeira. Por um

segundo pensei que ela estivesse dormindo. Então notei a mancha escura que começava em seu

pescoço e descia pelo tecido do roupão, e quando dei um passo na direção dela, a razão ficou

evidente. Seu crânio havia sido esmagado.

Page 146: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 146/218

146

Capítulo 18Prairie emitiu um som ao meu lado, um grito estrangulado e interrompido. Empurrei o

rosto de Chub contra o meu ombro, protegendo-o da visão do corpo de uma mulher morta.Quando ele havia chorado momentos antes... ele sabia que alguma coisa ruim havia acontecido

dentro da casa.

Vi que fragmentos do crânio esfacelado podiam ser vistos muito brancos sob a pelerasgada e manchada de sangue, entre as mechas de cabelo ensangüentado, e recuei um passo.Meu pé encontrou um obstáculo no chão e eu tropecei, quase derrubando Chub. Eu cambaleeipara o lado, mas consegui me manter em pé. Olhei para baixo tentando ver em que haviatropeçado: uma frigideira velha e preta com cabo de madeira.

- Bem-vinda ao lar - uma voz profunda e rouca falou, e outra lâmpada se acendeu,deixando ver um homem sentado confortavelmente em um sofá de estampa floral, um braçosobre o encosto, o outro empunhando uma arma.

Era Rattler Sikes.

Havia um hematoma roxo em seu queixo, sob a sombra da barba por fazer, mas, alémdesse pequeno detalhe, ele parecia normal. Meu coração pulou no peito. Todos os esforços paradespistá-lo - nada havia funcionado. Ele havia visto todos os movimentos que fizemos?

Como se lesse meus pensamentos, o homem riu em silêncio. - Aposto que estásurpresa por me ver. - Acreditou mesmo que poderia me confundir com todos aquelestruques bobos? Deve ter esquecido que eu não costumo desistir.

- Rattler - Prairie disse com um tom furioso, a voz embargada. - O que você  fez?

Page 147: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 147/218

147

- Antes de começar a procurar alguma coisa para jogar em mim, Pray-ree, é melhorconsiderar que tenho uma arma, e você tem um menino pequeno em sua companhia, umacriança inocente que não fez nada de mal a ninguém. - O jeito como Rattler havia

pronunciado o nome dela sugeria deboche, como se ele o usasse para zombar de Prairie. - Eeu tenho um dedo muito rápido, por isso é melhor não me deixar nervoso, ou ele podesofrer um espasmo, e sei que nenhum de nós quer isso, certo?

- Antes vai ter de atirar em mim. - Eu me virei de forma a colocar meu corpo entreRattler e Chub.

- Ei, espere aí - disse Rattler. - Não estou atirando em ninguém, ainda não. Nãoquer saber como vim encontrar sua amiga aqui, Pray-ree? E devo dizer que ela não foimuito hospitaleira.

- Como teve coragem...

- Ela me viu batendo na porta da sua casa, e se aproximou empunhando aquelaenorme tesoura de jardineiro, fazendo todo tipo de pergunta inconveniente. E o jeito comoela olhava para mim me fez pensar que seria capaz de me matar com aquela tesoura depoda. Então, tive a idéia de esperar por você aqui, na casa dela. A janela é ótima para quemquer observar a estrada, e eu queria ver você voltando para casa. E agora veja isso, deve sermeu dia de sorte, porque você veio diretamente para cá, para mim.

- Ela nunca fez mal a ninguém...

- Ei, tudo que pedi a ela foi para me deixar entrar, e sugeri que ela ficasse sentadaquieta naquela poltrona enquanto esperávamos juntos por você. Não pretendia matá-la,nada disso. Mas depois eu pedi a ela para preparar um chá, e ela voltou com umafrigideira, furiosa e pronta para bater na minha cabeça com ela, mas não foi rápida o bastante. Enfim, as coisas não terminaram muito bem para ela, não é?

Pensei em como a mulher devia ter ficado amedrontada quando Rattler invadira acasa dela. Ele parecia segurar a arma sem muita força, quase sem atenção, mas eu sabia que

essa era uma impressão enganosa. Ele era capaz de acertar uma lata em cima do muro dosfundos da casa atirando do portão da frente da casa vizinha. Eu o observara da janela domeu quarto numa tarde de verão, quando ele e outros clientes de minha avó se revezavamnuma espécie de disputa de tiro ao alvo. Os outros competidores acertavam a área em

Page 148: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 148/218

148

torno da lata ou erravam completamente o alvo, mas Rattler não perdeu um tiro.

E agora ele olhava para Prairie com uma intensidade que poderia acender umafogueira. E ela sustentava aquele olhar penetrante. Havia algo entre eles, sim, alguma coisa

carregada de tensão e perigo - algo quase vivo.

- Você me fez perder tempo, menina - ele disse em voz baixa, o que me fez tercerteza de que falava apenas com ela. Era como se eu nem estivesse ali. - Mas não pode medeter. Não quando estou atrás de você.

Meu medo cresceu e se tornou algo novo, uma constatação de que Rattler nãoqueria nos matar - ele queria algo pior. Era como se ele quisesse  possuir Prairie, ser donodela, e de repente percebi que eu tinha mais medo de Rattler Sikes e dos outros homensBanidos do que de qualquer assassino profissional que estivesse nos perseguindo. Tinha

mais medo de Rattler do que de todos aqueles homens juntos.

- Não devia ter vindo aqui - disse Prairie, mas havia um tremor na voz dela, e umhorror evidente na maneira como ela recuou, afastando-se dele. Era como se a energiadistorcida que o cercava a diminuísse.

De repente Rattler riu, e o encanto se quebrou. - Agora vamos voltar a um patamarmais amistoso - ele disse com voz pastosa. - Sente-se, menina, acho que vai ficar bemconfortável naquela cadeira. Temos que ter uma conversa antes de voltarmos todos àestrada.

- Não vamos a lugar nenhum com você - Prairie respondeu.

Mas Rattler só deu de ombros. - Vou levar vocês para casa, onde é seu lugar.Podem ir por bem, ou podem ir por mal. Vocês decidem. Hailey pegue o garoto e coloque-opara dormir em um dos quartos. E leve o vira-lata com vocês.

Eu não precisei ouvir a ordem pela segunda vez. Atravessei a sala, evitando olharpara a mulher morta, certa de que Rascal me seguia. Queria que ele fosse um cão de guardamelhor - ele nem parecia se importar com como Rattler nos ameaçava. Meu coração batiatão depressa que eu tinha a impressão de que todos podiam ouvi-lo. No corredor, noteiuma porta aberta com uma cama arrumada e coberta por uma colcha e uma pilha detravesseiros em fronhas bordadas. Enquanto deitei Chub na cama e tirei a mochila dosombros, deixando-a no chão, tentei não pensar na mulher na sala, em sua cabeça abertadeixando vazar metade do conteúdo.

Page 149: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 149/218

149

- Gosto de como parece confortável nessa cadeira - ouvi Rattler dizer na sala. -Você está com uma aparência muito boa, Prairie.

Eu precisava fazer alguma coisa para detê-lo. Abri o zíper da mochila e a esvazieino chão. Entreguei a girafa de pelúcia a Chub e vasculhei os outros objetos com desespero.

- Hora de dormir? - ele perguntou bocejando. - Quero minha cama.

Apesar do medo, notei que ele falava bem e pronunciava as palavras com clareza.Evidentemente, ele havia esquecido o próprio medo, ou estava apenas cansado demaispara se importar.

- Pode cochilar aqui por enquanto - eu disse, afastando as cobertas dos

travesseiros. Ouvi Prairie murmurando alguma coisa na sala.

- Tudo bem. Boa noite. - Chub se ajoelhou na cama para me abraçar e beijar o topoda minha cabeça. Depois, ele se deitou e começou a se ajeitar sob as cobertas, mas derepente se sentou, e uma ruga surgiu entre suas sobrancelhas. - Não quero ver.

- O que, meu bem? O que você não quer ver?

- O olho do homem mau. Não quero ver.

Meus nervos estavam em frangalhos, e precisei fazer um grande esforço para alisaros cabelos de Chub, afastá-los de sua testa e beijá-la com delicadeza antes de deitá-lonovamente.

- Você não precisa. Vá dormir.

- Tudo bem.

Ele fechou os olhos, e os cílios longos lançaram sombras sobre suas faces macias.

Na sala, Prairie e Rattler falavam em voz baixa, intensa. Não havia nada que eupudesse usar apenas minhas roupas e as compras de Prairie. 

Olhei em volta analisando o que havia no quarto, mas tudo que vi foram fotosemolduradas, um jogo de pente e escova de prata, estátuas de porcelana, uma cesta com flores

Page 150: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 150/218

150

secas. Havia uma cômoda encostada a uma parede, e eu deslizei a mão pela superfície demadeira.

- Não pode me dizer que esqueceu quanto nós nos divertíamos- Rattler estava

dizendo, sua voz soando mais alta. - Você adorava nadar nua comigo e com os outros.

- Eu nunca gostei daquilo - Prairie disparou. - Eu odiava.

- Não é verdade. Você sabe que nós dois deveríamos estar juntos. Todo mundosabia

disso.

-Não. Não.Abri a primeira gaveta da cômoda. Camisolas e combinações, todas dobradas sobre

folhas de papel de seda. Tentei a segunda gaveta. Echarpes. Uma pilha macia de echarpes elenços, pedaços de seda de todas as cores - lindas, mas só isso. O desânimo me dominava.

- O problema é que você não fez o que devia fazer - Rattler prosseguiu. - Eu esperei,segui as regras da sua mãe, mesmo que você não as tenha seguido. Acha que eu não sabia sobrevocê e aquele garoto de Tipton?

-Ele era...

- Achou que era muito esperta se envolvendo com ele às escondidas? Pensou que

ninguém ia perceber, só porque escondia o namoro da sua mãe? Bem, eu sabia. Eu sabia. Aamargura na voz de Rattler me surpreendeu. Ele estava... com ciúmes? Seria possível?

Enfiei a mão na gaveta e fui afastando os lenços e as echarpes, empurrando-os para oslados. Meus dedos tocaram algo duro e afiado. Peguei o objeto. Ele era feito de osso ou marfim,e tinha duas pontas delicadas, longas e encurvadas em uma das extremidades, e umadecoração perolada e entalhada em forma de leque do outro lado. Devia ser algum tipo deornamento para cabelo, eu pensei. Estudei o objeto colocando-o sobre minha mão direita,virando-o de forma que as pontas estivessem apoiadas sobre meu pulso, e saí do quartopara voltar à sala.

- Enfim, não importa - Rattler estava dizendo. - Especialmente porque sua irmã asuperou na corrida pelo grande prêmio.

Ouvi Prairie inspirar intensamente, uma reação de medo e choque. - O que quer

Page 151: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 151/218

151

dizer?

Rattler riu com amargura. - É simples. Quando você foi embora, sua mãe disseque achava que Clover já tinha idade para namorar, afinal. Tive de fazer um grande

esforço de persuasão, disse que estava magoado com como ela estava sempre merejeitando, mas no final consegui fazê-Ia ver as coisas do meu ponto de vista. E acho quetive momentos maravilhosos com...

- Não diga o nome dela!

- Eu digo o que quiser Pray-ree - Rattler sussurrou. - Quer que eu soletre?

Eu entrei na sala.

Rattler olhou para mim, e por uma fração de segundo seu rosto ficou exposto, aexpressão aberta e sem reservas, e vi algo ali que não poderia ter imaginado nem em ummilhão de anos.

Dor.

Por causa de Prairie. Não era amor - eu me recusava a acreditar que um homemcomo Rattler poderia amar - mas era um sentimento tão forte que aparecia estampado emseu rosto quase como uma segunda pele; e de repente foi fácil, para mim, acreditar que

havia mesmo entre eles uma ligação muito antiga, não de gerações, mas de séculos. O queligava Rattler a Prairie era um nó que se tornava mais forte com a resistência. Mas quandoRattler percebeu que eu o encarava, a dor desapareceu e foi substituída por outra coisa,algo ardiloso e penetrante. Divertido, até.

- Pequena Hailey - ele disse. - Olhe só para você, praticamente uma adulta.

- Você nunca... Não pode ser. .. ela não teria... - Prairie tentava encontrar as palavras eparecia pronta para saltar da cadeira, para atacá-lo. Mas Rattler levantou a arma sem sequerolhar na direção dela, apontando o cano em sua direção.

- Devagar, Prairie - ele a preveniu, a voz um pouco mais alta que um sussurro rouco.

Depois ele me encarou, seus olhos brilhando como centelhas verdes à luz pálida doabajur. Um canto de sua boca se ergueu, formando um desenho que sugeria crueldade. - Você

Page 152: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 152/218

152

sabe quem eu sou não é mesmo, menina Hailey? - Rattler disse com tom suave, e de repente,sim, eu sabia, e minha mão agarrou com força o cabo do adorno para cabelo, enquanto meucérebro reverberava com esse novo conhecimento. - Eu sou seu papai.

Investi contra ele com a mão erguida, agarrando o objeto pontiagudo com toda forçaque tinha, e o som que ouvi quando aquelas duas pontas delicadas atingiram o alvo foidiferente de tudo que eu esperava quase como o de uma faca cortando um melão...

Mas o som que saiu de Rattler superou esse primeiro ruído, um barulho que não era

humano ou animal, mas algo entre os dois, alguma coisa selvagem, alguma coisa furiosa, e ele

levou as mãos ao objeto cravado em seu olho direito.

- Prairie! - eu gritei. Virei-me e a vi pulando da cadeira. Corri para o quarto e puxei ascobertas da cama. Chub estava apoiado sobre os cotovelos, o rosto contorcido e pronto para um

grito de horror. Ele não estava completamente acordado, eu percebi - às vezes acontecia,quando ele despertava assustado de um sono profundo; era como o pesadelo de umsonâmbulo.

- Sou eu, sou eu, Chub - eu disse, tirando-o da cama, enfiando tudo de volta na mochilae pendurando-a nos ombros. Ele começou a gritar se debatendo em meus braços enquanto eucorria para fora do quarto a tempo de ver Rattler arrancar o objeto de seu olho - a mão que opressionava coberta de sangue - e levantar a arma para apontá-la, uma hora para Prairie, emseguida para mim.

Ele atirou contra mim. Mas errou. Esperei pela dor que não veio, mas houve umestrondo na estante atrás de mim.

- Para o chão - Prairie gritou, me empurrando para longe dela com força, mas eume mantive em pé, continuei onde estava enquanto ela corria para a cozinha e abria umagaveta, vasculhando seu conteúdo com desespero.

- Rascal- gritei, e ele apareceu na sala com aquela aparência desinteressada. - Pega,garoto!

A mudança em Rascal foi espantosa. Numa fração de segundo, ele saiu da apatia esaltou sobre Rattler latindo e rosnando, mostrando os dentes. Dentes que cravou com forçana canela do homem, emitindo um som gutural e feroz que brotava do fundo da garganta.Rattler gritou de dor, mas quando ele abaixou a mão que empunhava a arma para acertar acabeça do cachorro, outro tiro soou e Prairie caiu sobre mim. Ela não disse nada, apenas fez

Page 153: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 153/218

153

um ruído abafado, um som como "unh”.

-Você...

- Estou bem - Prairie me interrompeu, segurando minha mão para me puxar para aporta.

- Rascal, vem! - eu gritei, e todos nós corremos enquanto Rattler tentava se levantarpulando, segurando a perna ferida pela mordida violenta.

Quando chegamos na varanda, Prairie cambaleou e quase caiu, mas eu a amparei

- Você não está bem - eu disse com o coração disparado. - O tiro a atingiu?

Senti a umidade quente do sangue sob meus dedos e, sob a luz de um poste na rua,vi o rasgo em seu suéter, o ângulo estranho em que ela segurava o braço.

- Ahhh - ela disse, respirando com dificuldade. - Tudo bem, ele me acertou. Masprecisamos sair daqui. Não é só por Rattler, Hailey. Há luzes acesas em minha casa, e elasestavam apagadas quando chegamos. Você não reparou? Os homens de Bryce estão lá, edevem ter ouvido o que aconteceu aqui.

-Mas...

- Eles virão para cá, Hailey. Para verificar o que houve. E depois virão atrás de nós.Outra vez.

- Como... o que eu posso ...

- Só me ajude a correr, vamos tentar chegar ao telefone público que fica a doisquarteirões daqui.

Eu me lembrei do celular de Prairie esmagado pelas rodas do Buick. Se havia ummomento em que eu precisava ser forte, o momento era esse. Prairie assumira o comandodesde o primeiro momento, quando a conheci, e eu a seguira. Nem sempre de boa vontade,e nem sempre havia acreditado ou confiado nela, mas eu a segui. Mas agora ela precisavade mim.

E tive de deixar de lado minhas dúvidas, minhas questões, meu medo. Tirei minha

Page 154: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 154/218

154

camiseta velha da mochila e amarrei as mangas com força em torno do braço de Prairie,acima do ferimento da bala, para estancar o sangramento. Ela estava quieta e pálida,mordendo o lábio sem emitir nenhum som.

Segurei a mão de Chub e amparei Prairie com meu outro braço, quase aarrastando, voltando à alameda por onde chegamos e por onde poderíamos ir à cidade.Rascal nos seguia novamente dócil. Qualquer sinal do cão violento que atacara um homemmomentos antes havia desaparecido. Ouvi os passos atrás de nós, o som dos pneus nocascalho, mas não havia nada.

Chegamos em uma farmácia fechada e eu vi o telefone público em meio a umcírculo de luz na entrada do estacionamento da loja. Hesitei - seríamos um alvo visível paraquem quer que chegasse ali. Um táxi passou lentamente pela rua.

Eu pulei na frente dele. Jamais havia andado de táxi em toda minha vida, masestendi a mão e levantei um braço para acenar, tentando pará-lo. Por um momento penseique ele ia passar direto, mas, no último instante, o motorista reduziu a velocidade.

- Não posso... meu braço - gemeu Prairie.

- Podemos cobri-lo...

Prairie balançou a cabeça. - Não. É perigoso demais. Se ele notar o sangue, vaiinsistir em nos levar a algum lugar. Polícia, ou hospital.

- E isso seria ruim? Por favor, Prairie, você levou um tiro. Precisamos de ummédico.

Ela balançou a cabeça com veemência. - Não. Você não entende. Bryce tem conexões.

Mais do que você pode imaginar. Tenho certeza de que ele tem gente cobrindo asocorrências policiais, no departamento rodoviário - se formos procurar as autoridades,podemos nos dar por perdidas. Mortas. Além do mais, não podemos levar Rascal.

- Mas...

O motorista do táxi abriu a janela. - Senhorita, vai entrar, ou não? - ele perguntoucom um sotaque acentuado.

Prairie balançou a cabeça novamente. Eu tomei uma decisão rápida. - Só preciso

Page 155: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 155/218

155

usar seu telefone celular, senhor. Por favor. Nós vamos pagar.

O motorista estreitou os olhos, visivelmente intrigado. - Não querem ir a nenhumlugar?

- Não, sinto muito, só precisamos mesmo usar seu celular.

Ele resmungou alguma coisa que eu não consegui entender e começou a subir ovidro, fechando a janela.

- Não! Por favor! - Desesperada, fiz um gesto pedindo a carteira de Prairie,esquecendo completamente que ela a havia abandonado no banheiro do restaurante, masela enfiou a mão no bolso e me deu um rolo de notas. Tirei do maço três notas de vintedólares. - Aqui. Só por alguns minutos. Prometo, terá seu celular de volta em seguida.

O motorista hesitou, depois suspirou e levou a mão ao bolso do casaco. Ele medeu o telefone, e eu dei a ele o dinheiro. - Não vai sair daqui - ele disse, apontando umdedo para mim.

- Sim, tudo bem.

Entreguei o celular a Prairie, e ela recuou alguns passos buscando abrigo nassombras. Enquanto isso fiquei esperando ao lado do carro, com Rascal sentado tranqüiloao meu lado. Chub assistia a tudo do meu colo, seus olhos muito abertos e preocupados.

- Fone - ele disse. - Prairie telefona.

- É isso mesmo, Chub. Pedimos emprestado o telefone desse bom homem paraPrairie poder fazer uma ligação. - Olhei para o homem, esperando que sua expressão sesuavizasse diante da doçura de Chub, mas ele olhava para frente impassível, com os braços cruzados.

Não demorou muito. Prairie voltou com passos arrastados e me entregou o celular. Elatremia.

- Obrigada - eu disse, devolvendo o aparelho ao motorista do táxi. Ele não respondeu,mas partiu ainda fechando a janela, guardando o telefone no bolso.

- Falei com Anna - Prairie contou. Agora ela tremia intensamente, o corpo todo. - Ela

Page 156: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 156/218

156

está a caminho. Precisamos nos esconder. Disse a ela que estaríamos naquele primeiro quintal.

Ela apontou na direção de onde viemos. Um bangalô compacto era separado da ruapor uma fileira de árvores e uma cerca sólida. Com sorte, as árvores nos manteriam escondidas.

Antes que eu pudesse responder, Prairie começou a balançar. Segurei seu braço bom etentei mantê-la em pé, depois praticamente a arrastei, quase a carreguei, Chub andando atrás denós, sua mão segurando a cintura da minha calça jeans.

Um muro baixo de pedras se estendia por toda a lateral do quintal. Não havia luzes nacasa. Rezei para os moradores terem sono pesado. Fiz Prairie se sentar naquela mureta depedra, e depois olhei novamente para o braço dela. Na escuridão, eu não podia saber se elaainda perdia sangue, mas o torniquete improvisado estava encharcado.

- Tem alguma coisa que eu possa fazer? - perguntei.– Você sabe... curar?

Prairie balançou a cabeça. - Curadores não podem se ajudar, Hailey.

- Mas... por quê?

- Não sei. Sempre foi assim. Mas somos fortes. Mais fortes que a maioria. Eu vou ficar bem.

O tremor se tornou menos intenso enquanto esperávamos, mas a pedra era gelada

debaixo de nós, e a noite parecia ficar mais fria a cada momento que passava. Chub estavaapoiado nos meus joelhos.

- Sono - ele murmurou, e eu deslizei os dedos por seus cabelos muitas vezes, como eletanto gostava.

Os minutos se arrastavam, com um ou outro carro passando pela rua a alguns metrosdali. Finalmente, um automóvel parou junto da calçada. Era pequeno, e a iluminação públicame permitiu ver que também era velho e amassado. O homem que saiu pela porta do motoristaera alto e tinha ombros largos.

Sua silhueta se recortou contra a luz da rua, e ele parou com os punhos cerradosolhando em volta. Não consegui ver seu rosto - ele tinha um capuz que mantinha sobre a cabeça- mas alguma coisa se moveu dentro de mim, aquele sentimento intenso e profundo que àsvezes eu experimentava quando me aproximava dos Morries, uma mistura de anseio, perda,

Page 157: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 157/218

157

conexão e medo. Seria ele um Banido? Como ele conseguira chegar ali tão depressa?

Prairie também o viu, e eu ouvi seu murmúrio surpreso. O terror invadiu minhas veiasquando percebi que ele nos vira. Eu me preparei para correr, embora soubesse que jamais

poderia ser tão rápida, não com Prairie e Chub para carregar.

Mas Prairie pôs a mão no meu braço para deter-me. - Está tudo bem - ela sussurrou. - ÉKaz. O filho de Anna.

Page 158: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 158/218

158

Capítulo 19Ele atravessou o jardim com alguns passos longos e quase nem olhou para mim antes

de abraçar Prairie com cuidado.

- Não acredito que é você - ela disse, passando o braço bom por cima de seus ombros. -Você está muito alto! Acho que devia ter só doze anos na última vez que o vi.

- Vamos para o carro - ele disse com urgência. - Minha mãe vai me matar se eu nãolevá-la para casa depressa, tia Eliz... - Ele parou e balançou a cabeça como se estivesseconstrangido. - Quero dizer, Prairie. Sinto muito. Mamãe me disse.

- Tudo bem - Prairie respondeu. - Fui Elizabeth por muito tempo... não se preocupecom isso.

- Sim, mas é que... quero dizer... enfim, sou Kaz - ele finalmente se apresentou,virando-se para mim e estendendo a mão. Não consegui ver os traços dele no escuro, mas a luzclara da iluminação pública fez brilhar seus dentes quando ele sorriu.

Quando apertei a mão, senti aquela espécie de eletricidade que sempre apareciaquando eu me aproximava dos Morries. Não era tão forte quanto a corrente que senti quandotoquei Milla, mas era cheia de energia. A pele de Kaz era fria pela exposição ao ar da noite, eseus dedos eram ásperos e calejados, mas a sensação de apertar a mão dela era boa, e a segureipor um segundo além do que pretendia.

E de certa forma ele era diferente de todos os Morries que eu conhecia, excetoSawyer. Eu me sentia segura com ele. - Sou Hailey - consegui responder. - E esse é Chub. Eaquele é meu cachorro, Rascal. É um prazer conhecê-lo.

Page 159: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 159/218

159

Ele assentiu, depois voltou a atenção para Prairie. - Podemos conversar mais emcasa, mas mamãe já preparou tudo, e parece que você está precisando. Como chegou aqui?

- Dirigindo - Prairie respondeu rangendo os dentes. - Mas o carro está num lugarmuito bom, ninguém vai notá-lo por dias.

- E... o cachorro também vem?

- Se você não se incomodar - respondi apressada. - Ele não vai dar trabalho. - Nãopodia abandonar Rascal depois de ele ter nos acompanhado até ali.

- Não me incomodo. Meu carro já viu coisas piores. Muito bem, Prairie, como vocêestá realmente?

- Pareço pior do que estou.

- Se você diz... - Ele segurou sua mão e a ajudou a ficar em pé. - Eu me ofereceriapara carregá-la, mas...

- Considerando que eu costumava ler histórias do Elmo para você, isso poderiaexigir um tempo para nos adaptarmos - ela disse com uma risada fraca.

Fui atrás deles carregando Chub, que cochilava. Quando chegamos ao carro, Kaz

ajudou Prairie a se sentar no assento do passageiro e a prendeu no cinto de segurança,enquanto eu acomodava Chub ao meu lado no banco traseiro. Rascal deitou-se no chão,como de costume.

Kaz acelerou e partiu, ganhando velocidade. Não falamos muito durante o trajeto,percorrendo ruas movimentadas em direção ao centro da cidade.

Kaz seguiu por uma estrada que contornava o lago e, de repente, lá estava, todaChicago brilhando como uma terra fantástica e cintilante à direita, o vazio negro do lago àesquerda. Eu não conseguia desviar o olhar daquela cena, mas logo retornamos ao labirintomais na área urbana da cidade. Belos edifícios antigos se erguiam à nossa volta, mas, namedida em que seguimos adiante, eles cederam lugar a bairros mais planos comconstruções mais simples.

- Estamos quase chegando - Kaz murmurou. - Agüente aí.

Page 160: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 160/218

160

Ele entrou em uma alameda estreita e logo parou o automóvel na entrada de uma casapequenina e espremida entre duas outras. Assim que desligou o motor, Kaz desceu do carro efoi ajudar Prairie, tirando-a do automóvel com grande cuidado.

- É melhor levá-la para dentro - disse como se pedisse desculpas.

Chub havia adormecido novamente e eu tentava retirá-lo do cinto de segurança e docarro sem acordá-lo. Finalmente consegui, e percorri a passarela de concreto que se estendia atéo quintal contornado por arbustos e por uma cerca alta que o separava dos vizinhos. Rascal meseguiu e percorreu toda a área com sua habitual eficiência. Uma escada de três degrausconduzia à varanda dos fundos, e ali uma mulher nos esperava parada na porta.

Mais uma novidade para enfrentar. Respirei fundo e subi a escada.

- Hailey - a mulher disse com tom suave. Ela devia ter a minha estatura, com curvassuavemente arredondadas e cabelos claros e encaracolados caindo sobre os ombros. - Meunome é Anna. Seja bem-vinda. Entre. O cachorro também, tudo bem.

A porta se abria diretamente para uma cozinha. O ambiente era confortável e quente, echeirava a pão e temperos. Prairie já estava sentada à mesa redonda, e Kaz punha diante delauma xícara fumegante. Ele removera o capuz do moletom, e finalmente consegui ver seu rosto.Os cabelos castanhos claros eram um pouco mais longos do que deveriam ser, e ele tinhaombros largos e queixo forte. Quando sorria, seus olhos azuis brilhavam intensamente.

- Aqui vocês estão seguros - ele disse, e pude sentir suas palavras, além de ouvi-Ias, avoz baixa percorrendo minha pele e meus nervos como uma corrente elétrica.

Anna caminhou até a pia e esfregou as mãos com uma pequena escova plástica e umagenerosa quantidade de sabão.

- Por favor, não pense que sou rude. Acho que agora preciso cuidar de Elizabeth.Quero dizer, Prairie. Sim? Depois conversaremos.

- Vamos tomar chá - disse Kaz. - E leite para Chub, talvez?

- Ah, eu... acho que ele não vai acordar - eu disse.

O relógio de parede marcava uma e meia. Eu não conseguia acreditar que já era tão

Page 161: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 161/218

161

tarde, mas muita coisa já havia acontecido essa noite. De repente eu me sentia completamenteexausta, e Chub pesava de maneira quase insuportável em meus braços. Queria muito mesentar, mas a mesa estava coberta de material de primeiros socorros - gaze, tesouras, frascosplásticos - e eu temia ficar no caminho.

Anna se virou de costas para a pia e sacudiu as mãos, espalhando gotas de água emtodas as direções.

- Kaz, leve Hailey ao quarto dela. Esse lindo menino...

- Chub - eu disse. - O nome dele é Chub.

Eu o carregava há horas, e tinha a impressão de que minha coluna nunca mais voltariaao normal. Estava exausta e sentia o cheiro desagradável do meu suor e do medo. Pior ainda, eu

sentia as lágrimas quentes que ameaçavam transbordar dos meus olhos.

- Chub - Anna repetiu. - Vamos colocá-lo na cama, está bem? Você e Chub vão ficar noquarto de Kaz. Prairie pode dormir comigo, minha cama é grande. Eu vou cuidar bem dela -estou estudando para ser enfermeira, não precisa se preocupar.

- Não posso ficar com seu quarto - protestei, mas a falta de convicção em minha voz eraevidente até para mim mesma.

- Oh. Oh, ukochana. Pobre criança, Kaz vai levar você agora.

Anna comprimiu os lábios quando se sentou na cadeira ao lado de Prairie. Então,ela segurou seu braço com grande delicadeza e começou a cortar a manga da camisa, quehavia colado no ferimento. Prairie estava quieta, mas sua pele brilhava pálida e úmida desuor e ela tinha olheiras muito escuras. O cabelo pendia em mechas de aparênciaengordurada, e a boca formava uma linha austera.

- Venha - Kaz me chamou. - Quer que eu leve o menino?

Antes que eu pudesse protestar ele pegou Chub dos meus braços e o colocou apoiadoem seu ombro, com o rosto voltado para seu pescoço.

Tirei a mochila dos ombros e a segurei com uma das mãos, sentindo os músculosentorpecidos de carregá-lo. Anna limpava o ferimento de Prairie com algodão, e pairava no ar ocheiro de anti-séptico. A pele em torno da ferida estava escura por causa do sangue seco, mas o

Page 162: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 162/218

162

algodão ia se tingindo de um vermelho intenso. Eu estremeci e me virei. Esperava que Annasoubesse o que estava fazendo.

O corredor era estreito. No final dele, notei uma sala de estar pequena e arrumada. De

um lado havia uma porta entreaberta por onde transbordava uma luminosidade dourada, e um banheiro. Kaz abriu a porta do outro lado da sala.

- Eu, ah, peço desculpas pela bagunça - ele disse. - Não tive muito tempo para arrumartudo antes de vocês chegarem.

O quarto não estava desarrumado, não havia nada fora do lugar. E tudo era limpo. Eusempre havia sido obcecada por organização e limpeza, mas sabia que essa era só uma forma decompensar a falta de controle reinante em todos os outros aspectos da minha vida, e o quarto deKaz não era desorganizado. Era um lugar confortável, com livros abertos sobre a mesa e um

IPod e uma lata de refrigerante no chão, ao lado de uma poltrona.

Nas estantes, os livros se enfileiravam ordenadamente na companhia de troféus e deum conjunto compacto de alto-falantes. Pôsteres com temas esportivos cobriam as paredes,entre eles alguns de John Hopkins, Syracuse, e de outros integrantes de times variados. Caixotesno chão continham equipamento - luvas duas vezes do tamanho da mão de um adulto, rolos defita e cotoveleiras, e outras coisas que não sabia para que serviam. Um capacete azul e brancoocupava lugar de honra sobre a cômoda, dividindo o espaço com mais livros e um laptop Mac.A cama dele estava arrumada. A colcha simples cobria um edredom macio e um travesseiro.

- Se puxar as cobertas, eu posso deitar Chub na cama, e talvez ele não acorde - disseKaz.

- Você tem jeito com ele - eu disse, ajudando-o a acomodar Chub.

- Cuido dos filhos de uma família do outro lado da rua - ele deu de ombros. - Eles têmquatro filhos. Gosto de crianças dessa idade. Elas são... determinadas, sabe?

Sim, eu sabia. A palavra descrevia Chub perfeitamente. E de repente senti vontade decontar a Kaz tudo sobre ele, sobre nossa vida com a vovó, sobre como tudo havia terminado.Tinha a sensação de que poderia conversar com ele por horas, sem a timidez gaguejante quenormalmente tinha de enfrentar quando me relacionava com pessoas da minha idade. Talvezhouvesse uma oportunidade mais tarde. Mas, nesse momento, eu tinha outras coisas para focar.- Preciso ir ver como está Prairie.

Page 163: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 163/218

163

Na cozinha, Anna havia acabado de limpar o ferimento e contivera a hemorragia, maseu tive de desviar os olhos - a imagem da carne rasgada no braço de Prairie era mais do que eupodia suportar.

Ajoelhei-me diante dela, segurei sua mão livre e a afaguei. Queria fazer mais algumacoisa - mas não sabia o quê. Sabia que, se todas aquelas coisas ruins não houvessem acontecido,ela não me deixaria vê-la fraca ou amedrontada, como estava agora.

Mas o que eu podia fazer? Prairie e eu nos havíamos salvado bem, ela me salvara -muitas e muitas vezes. Provara que era digna da minha confiança.

- Logo eu vou estar bem - ela disse, fazendo um grande esforço para soar animada.Anna riu e enfiou a linha em uma agulha curva. O cheiro de anti-séptico dominava o ambiente.- Anna retirou a bala. Não era grande coisa.

Bala - a palavra dizia tudo. Apoiei o rosto sobre os joelhos de Prairie e senti meusombros tremerem, senti a mão dela no meu cabelo, na nuca, e ouvi sua voz suave dizendo quetudo ia ficar bem, e isso me fez chorar ainda mais, mas temia sacudi-la enquanto Anna dava umponto. Além disso, meu nariz estava escorrendo, ia molhar sua calça, e apesar de ela já estarimunda depois dos últimos dois dias, eu ainda não suportava a idéia de sujá-la um pouco mais,por isso me levantei trêmula e meio cambaleante, limpando o nariz na manga da camisa eengolindo as lágrimas com dificuldade.

- Hailey, há lenços de papel sobre a bancada - disse Anna com seu tom calmo, bondoso.

- Por favor, fique à vontade.

Fui pegar os lenços. Assuei o nariz, depois lavei o rosto com água fria na pia dacozinha, e lavei também as mãos antes de secá-las na graciosa toalha amarela. Em seguida,mesmo com medo de olhar, eu me sentei e observei como Anna ia fechando o ferimento compontos pequeninos e cuidadosos, desenhando uma linha de "x' pequeninos e pretos, únicalembrança de que ela havia sido alvejada por um tiro horas antes.

Kaz havia entrado na cozinha sem que eu notasse. - Chub continuou dormindo. Deixeisua mochila no quarto. Você pode, bem, usar o banheiro, ou ir para a cama, ou fazer o quequiser quando quiser. Pode usar as coisas da minha mãe.

- Sim, é claro - Anna concordou. - Obrigada, Kaz.

- Hailey, por favor, sinta-se em casa. Há toalhas no armário do corredor.

Page 164: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 164/218

164

- Obrigada, Kaz. - Eu sabia que estava imunda, devia estar cheirando mal, e me sentiaenvergonhada por Anna e Kaz me verem naquele estado. Mas não queria sair de perto dePrairie. Fiquei parada atrás da cadeira, vendo Anna concluir o trabalho.

- Então, Hailey, está no segundo ano do colégio? - Anna perguntou, erguendo os olhosdo curativo para sorrir para mim.

- Ah, sim... - Mas era improvável que um dia eu voltasse a pisar no Gypsum Highoutra vez.

- Kazimierz estuda no Saint Michael 's. Primeiro ano. O nome é polonês. Nós ochamamos de Kaz. E o Saint Michael's é um colégio excelente, cheio de bons professores. Você é boa aluna?

- Eu? Eu... não...

- Hailey é inteligente como a mãe dela - disse Prairie. Sua voz era suave e ela mantinhaos olhos fechados, a cabeça apoiada no encosto da cadeira.

- Ela vai ficar bem? - perguntei preocupada.

- Ah, sim, não há nada para se preocupar. Acho que ela só está muito cansada. Oferimento é superficial, e eu só limpei bem a área para evitar infecção. A bala não atingiu o osso.

Olhei para os pontos no braço de Prairie.

- Está tudo bem, sim. Tive de mexer no local para limpar, verificar se não havianenhum fragmento de osso ou corpo estranho, e isso foi desconfortável para ela. Mas agora voudar a Prairie alguma coisa bem forte para beber, e ela vai relaxar, vai sentir muito sono.

Vi Anna concluir a sutura e enfaixar cuidadosamente o braço de Prairie. Queria podersimplesmente tocá-la e curá-la como fiz com Milla e Chub, mas a urgência não estava em mim, eeu sabia que era verdade - não podia ajudá-la. Anna, Banida como nós, usava linha, agulha eanti-séptico, ferramentas tradicionais, e elas pareciam muito... inadequadas comparadas aonosso dom. E eu entendia como Prairie podia se sentir tentada a usar seus dons para curartantas pessoas quanto pudesse, como podia ter se sentido envolvida pelo esquema maluco deBryce, se acreditara que daquela maneira poderia encontrar uma forma de compartilhar seuspoderes.

Eu segurava a mão dela, e sentia sua pulsação lenta e estável. Pensei que ela tivesse

Page 165: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 165/218

165

adormecido, mas quando Anna começou a guardar seu material de primeiros socorros na caixa,Prairie ergueu o corpo na cadeira e piscou algumas vezes.

- Anna, não sei nem corno começar a te agradecer.

- Não precisa - somos família.

Pensei que, qualquer que fosse o motivo da separação, não podia ser tão grave, seAnna ainda considerava Prairie como alguém da família.

Anna olhou para mim e deu um tapinha no meu joelho. - Sua tia me contou sobre suaavó Alice. Lamento que tenha tido de viver com ela. Na Polônia, havia história sobre osBlogoslawiony.

- É como chamam os Banidos na Polônia - Prairie explicou.

- Sim, as pessoas que vêm do velho país. Enfim, depois que eles saíram da Irlanda, àsvezes nasce uma mulher Curadora que não é normal. O dom é demais para ela, ou essa mulhernão é suficientemente forte para utilizá-lo corretamente. Elas se tornam cruéis, e as famíliasprecisam trancá-las. Normalmente doentes, elas acabam morrendo jovens.

- Minha avó era... - Eu não conseguia pensar em nada para dizer. Ela era muitas coisas,todas ruins.

- De qualquer maneira, agora que está com sua tia, com nossa Eliza - nossa Prairie,tudo vai ficar muito melhor.

Prairie suspirou e estendeu a mão para tocar a de Anna. - Devo muito a você. Estavacerta. Você me disse para deixar aquele emprego, e tinha razão. Não sei o que mais dizer...exceto que sinto muito.

Devia ser esse o motivo do afastamento. Anna balançou a cabeça, baixou os olhos, masdepois de um momento ergueu os ombros e encarou Prairie.

- Não precisamos mais falar sobre isso.

- Mas... Todos esses anos pensei ter perdido você. E Kaz... ele agora é um homem.

Kaz olhava de uma para a outra.

Page 166: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 166/218

166

- Foi por isso que discutiram? Por causa do emprego de Prairie?

- Não se zangue com sua mãe - disse Prairie. - É minha culpa.

Sua mãe me perguntou o que fazíamos no laboratório, e eu menti. Eu me senti muitomal com tudo isso, mas Bryce me fez assinar um contrato de sigilo. Disse que seríamospatrocinados pela Universidade. Só descobri que o dinheiro vinha do governo há alguns dias. Eele me disse o que falar... disse que eu devia contar às pessoas que estávamos trabalhando emuma vacina para gado.

- Eu sei quando você está mentindo - Anna revelou com tom triste. - E também seiquando Kaz mente. Vocês não são bons nisso.

- Mas, mãe, como teve coragem de mandar Prairie embora daquele jeito? - Agora Kazestava muito bravo.

- Foi necessário - Anna respondeu. - Ela tentava usar o dom da Cura em um projetocientífico. Isso não é bom. Poderes Bajeczny são restritos ao povo do vilarejo, e czarownik

amaldiçoou os que partiram. Talvez os Banidos devessem morrer. Desde que o povo deixou aIrlanda, os homens perderam as visões, há violência e crimes. As mulheres são fracas,esqueceram a história.

- E eu? E o papai? Ou Prairie. Ou Hailey? - Ele olhou para mim ao dizer meu nome. -

Teria preferido que não houvéssemos nascido?

- É claro que não.

- Bem, então quer que façamos algo de proveitoso com nossa vida? Algo importante?Ou quer que eu seja um contador, um vendedor de sapatos, ou alguma coisa assim?

- Não há nada de errado com um trabalho honesto - Anna respondeu. Eu percebiacomo eles iam ficando cada vez mais nervosos uns com os outros. - Seja um vendedor desapatos - se for um bom vendedor, eu não me importo.

- Você não se casou com um vendedor de sapatos - Kaz murmurou furioso.

- Seu pai era um guerreiro. Você sabe disso. Ele foi um herói no Iraque.

Page 167: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 167/218

167

- E Prairie é uma líder. Uma inovadora - disse Katz. - Ela não tem culpa se o chefe era ummaluco.

- Obrigada, Kaz. - Prairie interferiu. - Mas cometi erros e preciso repará-los. Coisas

terríveis estão acontecendo por eu ter sido teimosa, por ter me recusado a ver o que sua mãetentava me dizer. Agora tenho que consertar tudo isso.

- Vamos deixar essa conversa para amanhã - disse Anna. Agora é hora de irmos todosdescansar. Amanhã é domingo, o salão vai ficar fechado, e todos poderão dormir.

- Mas e... - eu perguntei. Por mais acolhida e segura que me sentisse na casa de Anna,por maior que fosse o alívio de saber que Prairie ia ficar bem, eu não conseguia deixar de pensarem Rattler, lembrar dele segurando o próprio rosto com a mão ensangüentada. - E se Rattlervier atrás de nós?

Houve um breve silêncio enquanto Prairie e Anna se entreolhavam. Percebi queestavam perturbadas - e que não diziam o que estavam pensando.

- Por favor - sussurrei. - Não tentem esconder coisas de mim, eu preciso saber.

- Acho... que estamos seguras por enquanto - Prairie falou cautelosa. - O ferimento... eunão me surpreenderia se Rattler perdesse aquele olho. Ele deve ter perdido muito sangue. Nãovai conseguir fazer nada enquanto não tiver ajuda. Mesmo que ele tente apenas descansar eesperar até estar suficientemente bem pra viajar, não irá a lugar nenhum esta noite.

- Sua tia, ela descreveu... o que você fez. - Anna fez um gesto com a mão imitando oataque, e eu me encolhi ao lembrar da presilha de cabelo perfurando o olho de Rattler.

A reação era incontrolável, porque eu não suportava a lembrança. - Ela disse que foiprofundo... Pode ter havido alguma lesão cerebral. É possível que ele tenha piorado muitodepois que vocês o deixaram. É uma menina muito corajosa - Anna acrescentou apressada.

Eu sabia com que ela estava preocupada - temia que eu desmoronasse ao pensar napossibilidade de ter matado ou incapacitado Rattler. Mas isso não ia acontecer. Não lamentariapor ele. Esperava que ele estivesse caído no chão até agora, perdendo sangue até ficar fracodemais até para dizer o próprio nome.

E também sentia uma sensação profunda cujas raízes estavam cravadas naquele pontoem que o instinto supera a razão, que ele não estava morrendo. Sentia que qualquer dano que

Page 168: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 168/218

168

conseguisse causar a ele não seria suficiente. Sabia que, depois de curado, ele seria tão fortequanto antes, tão determinado, e que viria atrás de nós outra vez, de um jeito ou de outro.

Mas eu havia conseguido ganhar tempo para nós. Por ora, isso teria de ser suficiente.

Prairie me permitiu ajudá-la a se levantar. Kaz a amparou do outro lado e, juntos, nós aajudamos a percorrer o corredor, com Anna seguindo na frente. Anna abriu a porta do quartodela, onde um lindo edredom já havia sido afastado sobre a cama de casal.

- Vou ajudar Prairie a se lavar - ela disse. - Tenho uma camisola e um robe. Vocês dois,vão dormir também.

Kaz se ofereceu para levar Rascal lá fora enquanto eu escovava os dentes e lavava orosto. Eles não demoraram muito, e Kaz olhou de um jeito estranho para Rascal ao dizer boa

noite. Fechei a porta do quarto, satisfeita com a solidão e toda tensão do dia finalmente invadiumeu coração como uma onda, e eu senti que ia desmoronar.

Em vez disso, deitei na cama de Kaz e bati no colchão ao meu lado. - Vem, Rascal -chamei, e ele pulou na cama. Era bom poder abraçá-lo, sentir sua pulsação forte e regular sob opêlo macio. Era como se nem fosse mais tão importante o fato de ele ter perdido apersonalidade, de nem brincar mais. Fechei os olhos e lembrei como ele costumava ser, eafaguei o pêlo fofo em torno de seu pescoço, o que me fez sentir melhor.

Até meus dedos tocarem alguma coisa que não devia estar li. Apalpei a região com

cuidado, tentando identificar o objeto pequeno e duro sob sua pele. Ansiosa, apoiei-me sobreum cotovelo e acendi o abajur sobre o criado-mudo. Afastei o pêlo de Rascal e olhei de perto oque percebi ser um pequeno pedaço de metal preto brotando do inchaço onde a pele jácomeçava a recobrir o corpo estranho, e acompanhei o contorno com os dedos. Era pequeno.Nodoso.

Uma bala.

Afastei a mão e respirei fundo, afastando-me dele. Minhas pernas estavam enroscadasno lençol, e eu meio caí meio me arrastei para fora da cama de Kaz. O choque se misturou aodesgosto quando limpei minha mão no tapete, queimando a pele.

- Não, não, não - me ouvi sussurrar, e quando fechei a boca tentando calar as palavras,elas se transformaram em um gemido desesperado.

Page 169: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 169/218

169

Rascal havia sido alvejado. Eu me lembrei dele esperando no quintal da casa da vovó,com sangue no pescoço - devia ter sido atingido quando eles chegaram. Os homens de Bryceprovavelmente tentaram matá-lo para fazê-lo ficar quieto.

Talvez fosse um ferimento superficial, só uma lesão sem grande importância, algo queRascal curava com as próprias defesas. Eu me agarrei com desespero a essa idéia, mesmosabendo que era improvável, e me obriguei a olhar para ele. Rascal não se movera; estavadeitado e quieto, indiferente, ainda no mesmo lugar onde eu o deixara sobre a cama. Euprecisava saber. A náusea ameaçava me dominar quando me aproximei da cama de joelhos,olhando para o ponto onde a bala penetrara, tentando não fitar seus olhos inexpressivos. Rangios dentes com força e estendi a mão trêmula para tocá-lo, e quando ele não reagiu, tive asensação de estar tocando o próprio mal, e todo meu corpo resistiu meu coração batendo numritmo alucinado.

Quase não consegui. Fechei os olhos com força e senti lágrimas correndo quentes pormeu rosto, mas não consegui sufocar os pequenos sons que escapavam de meu peito, comosoluços abafados de desespero e horror. Mas me obriguei a deslizar os dedos pelo pescoço deRascal, e encontrei a irregularidade na pele em torno da perfuração por onde as balas haviampenetrado. Uma delas eu consegui sentir alojada profundamente no músculo, mas a outrapenetrara em seu corpo até onde eu não podia tocá-la através da pele, bem em cima do coração.Rascal havia levado três tiros. Devia estar morto. Mas não estava. Balas não podiam matá-lo.Porque ele já estava morto. Porque eu o transformara em um zumbi.

Eu era amaldiçoada. Não era uma curadora - era uma criadora de zumbis. No fundo,

sempre soubera disso. O acidente voltouà

minha mente como um filme em velocidadeacelerada, imagens congeladas que se sucediam com rapidez: o sangue, os órgãos escapando deseu corpo, a maneira como ele havia revirado os olhos uma última vez.

O vazio quando eu o trouxera de volta.

Eu o trouxera de volta. Dos mortos.

E agora ele não podia morrer. Fora atingido por tiros, as balas estavam em seu corpocomo prova, e haviam rasgado a pele, a carne e até seu coração, mas ele continuava em pé, umcachorro robô. Um cachorro zumbi.

Eu gritei e o empurrei da cama com toda força que tinha. Seu corpo caiu no chão comum baque, e ele se levantou lentamente sobre as patas, e ficou ali parado e imóvel, olhando parao nada. Eu me levantei e comecei a recuar me aproximando da porta caminhando de costas, e

Page 170: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 170/218

Page 171: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 171/218

171

Capítulo 20- Você precisa me dizer a verdade - eu disse quando Anna ajeitou a manta sobre mim e

Prairie. Estávamos sentadas juntas no sofá da sala de estar. - Toda a verdade.

Kaz levara Rascal para o quintal depois de eu dizer que não poderia passar nem maisum segundo com ele dentro de casa. Ele ferveu água para o chá, e nós quatro nos reunimos nasala de estar. Felizmente, Chub não acordou com a comoção.

- Nós nunca... não sei se zumbi é a palavra certa - Prairie começou hesitante.

- Mas é isso que Rascal é! - explodi. - Ele não pode ser morto. Voltou dos mortos. - Eume esforçava para controlar a respiração, e minhas mãos tremiam tanto que as uni e apertei comforça. - Por favor, me diga como isso aconteceu. Quero saber o que eu fiz.

Diga que Milla não vai acabar assim.

Diga que nunca farei isso com Chub.

- Não vai mais acontecer - Prairie afirmou com cuidado. Ela olhou para Anna, quehavia falado pouco desde que eu acordei.

Ambas pareciam tão preocupadas que minha ansiedade ameaçou explodir novamente,e senti o grito se formando dentro de mim, então apertei novamente as mãos até os dedos

ficarem brancos. - Como posso ter certeza?

- É só... você nunca tentar curar alguém que já morreu. Essa é a única regra. Mary nosensinou desde o início, a mim e a sua mãe, antes de termos curado qualquer coisa, até mesmoum lagarto. Ela não nos deixava curar nem um esquilo ou rato morto - nos fez prometer. -

Page 172: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 172/218

172

Prairie tentou segurar minhas mãos e as apertou com ternura até que, como um pedaço de geloderretendo, relaxei e a deixei entrelaçar os dedos nos meus. - Lamento que não tenha tidoninguém para ensinar, explicar tudo.

Você é o futuro, Hailey.

As palavras de minha avó, todas as vezes que ela havia olhado para rnirn daquele jeito estranho, ávido - tudo voltou à minha lembrança, tentando ocupar espaço e alimentaro terror. Eu resisti, concentrando-me na sensação da mão morna de Prairie na minha.Depois de um momento, percebi algo - o curativo havia sido removido de seu braço, e aferida que Anna havia suturado parecia melhor.

Curadores não podem curar uns aos outros, mas somos fortes. Ela me havia ditoisso. Eu era forte. Agarrei-me a esse pensamento e me mantive firme.

- Então me explique tudo agora.

- Não há muito para dizer. Só aquela regra única - jamais curar alguém que jámorreu. O corpo dessa pessoa vai voltar, pelo menos por algum tempo, mas sua alma játerá partido. Eles não sentem amor, dor, nada, nenhuma emoção. Respondem a estímulos básicos, comem e até dormem, mas não sonham. Não podem tomar decisões por contaprópria, embora ouçam e processem instruções e cumpram todas as ordens que recebem.

- Rascal faz o que eu mando. Se digo a ele para vir, ou ficar, ou... você sabia, não é?

- Eu... sim, tive certeza desde o momento em que o vi. Por isso procurei cicatrizesem seu corpo.

- E por que não me disse? Sabia o que eu havia feito com ele, e me deixou levá-lono carro conosco, me deixou tocá-lo...

- Hailey, eu sinto muito, mas não sabia como dizer tudo isso sem perturbá-la...

- Sem me perturbar? Estou muito perturbada, não acredito...

- Eu precisava manter você calma - Prairie me interrompeu. - Eu sinto muitomesmo, Hailey, mas você não estava preparada para saber.

- Ficamos em silêncio por um momento, e eu percebi que era verdade. Havia

Page 173: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 173/218

173

estado muito perto de perder o controle nos últimos dias. Mais uma coisa, e eu poderia terdesmoronado.

- Há quanto tempo você sabe sobre... o que acontece? Se você cura depois de...

- Mary costumava nos contar histórias - Prairie respondeu. Histórias de horroracho, com a intenção de nos assustar, para não nos sentirmos tentadas. Quando ela eramenina, uma das outras curadoras não se conteve e trouxe de volta um gato, um animalque ela amava, e foi como o que aconteceu com Rascal. Todas as crianças ficaram commuito medo de como ele ficava sentado na varanda, apenas olhando para o nada, imóvel.As pessoas não passavam pela casa.

- O que aconteceu com ele?

Prairie mordeu o lábio. - Mary disse que ele começou a... bem, seu corpo começoua se decompor. O corpo de um morto curado não consegue sustentar a vidaindefinidamente.

- Oh, meu Deus - gritei, sentindo o horror invadir minhas veias novamente. Rascalcomeçaria a se decompor? Seu corpo já estava apodrecendo?

- Um dia alguém - jamais descobriram quem - quebrou o pescoço do gato. Marydisse que foi uma bênção.

- Mas pensei que eles não podiam ser mortos.

- Existem meios... o tronco cerebral deve ser rompido. Uma... decapitaçãofuncionaria. Esmagar essa... área do cérebro... um rompimento definitivo entre as vértebrasseria suficiente, se... bem, você entendeu a idéia.

- Era uma pessoa boa, compassiva - Anna declarou.

Notei Kaz parado na porta e percebi que ele estivera ouvindo a conversa. Havia umaxícara em cada mão dele. Kaz aproximou-se e deixou as xícaras sobre uma mesa. Seus olhosencontraram os meus e havia tristeza neles.

- Lamento sobre Rascal - ele disse em voz baixa. - Mas não é sua culpa.

- É. Eu fiz aquilo. Ninguém mais. Não acrescentei que, de alguma forma, eu sabia que

Page 174: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 174/218

174

estava fazendo algo errado, mesmo quando senti a urgência fluindo de mim para o corpo semvida de Rascal. Antes mesmo de saber que era uma Curadora

- Quanto... tempo? - perguntei quando ninguém mais respondeu.

- A decomposição leva mais tempo do que levaria em uma morte normal- Prairieexplicou com aquele tom cauteloso. - Depende da saúde da pessoa - ou animal. Pode levar duasou três vezes mais que o normal para os tecidos se decompor. E outras condições afetam essetempo.

Calor pensei, e umidade, insetos, todas as coisas que aprendemos nas aulas de ciência.Eu sentia ânsia de vômito. Ainda não havia notado nada, exceto um cheiro ruim, e Rascal eraum cachorro jovem e saudável, mas em quanto tempo seu pêlo começaria a cair e seu corpo seencheria de gases que romperiam a pele?

Soltei as mãos de Prairie e cobri o rosto, tentando resistir às lágrimas. - Não suportoolhar para ele - sussurrei. - Não me façam olhar para ele.

- Ele está lá fora - Kaz lembrou. - Você está aqui,conosco. Está tudo bem.

Eu queria acreditar nele. Ele se ajoelhou na minha frente, Anna se aproximou, eficamos ali todos juntos. As mãos deles me confortavam, umas tocando meus ombros, outrasafagando meus dedos, e tudo isso ajudou a me acalmar. Eu me sentia mais próxima de Anna eKaz do que de pessoas que eu conhecia desde sempre. Quanto a Prairie - não conseguia mais

imaginar a vida sem ela.

Mas, no fundo, eu sabia que ainda era sozinha de um jeito muito importante. Haviafeito o que nunca devia ser feito, aquilo que Prairie e minha mãe sempre souberam que nãodeviam fazer. Fizera o imperdoável. E não conseguia deixar de pensar que poderiam sofrer asconseqüências por isso de muitas maneiras.

Pensei em Prairie quando o rosto dela ficara sombrio por minha desgraça. Reconheci ador solitária em sua essência. Ela também guardava um segredo, e me perguntei se um dia euseria como ela, marcada com um tipo de sofrimento que outros seres humanos não poderiamentender.

- O que você fez? - perguntei a ela. Eu precisava saber se era algo conectado com ascoisas que haviam acontecido com o que eu fizera. - Por que deixou Gypsum?

Page 175: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 175/218

175

O rosto dela empalideceu, mas não foi surpresa que vi estampada em seu rosto. Pelocontrário, foi quase resignação.

- Não hoje - ela disse a voz rouca traindo exaustão. - Hoje já tivemos de enfrentar coisas

demais.

- Pare de tentar me enrolar - reclamei. - Você me deve a verdade.

- Conversaremos amanhã. Prometo. Depois de todos termos uma chance de descansar.O sol vai nascer em poucas horas e não poderemos fazer o que deve ser feito, a menos quetodos tenham um pouco de descanso. Vamos dormir.

Quis discutir com ela, insistir na verdade imediatamente, mas a fadiga me vencia.Apesar do choque provocado pela descoberta sobre Rascal, apesar de ter um pesadelo vivo para

me preocupar, eu estava desesperada para fechar os olhos e deixar o sono apagar todos ospensamentos. Mesmo que fosse só por algumas horas.

- Prometa - implorei num sussurro.

- Prometo. - Ela me olhou diretamente nos olhos quando falou, e vi refletido sem eurosto uma sombra de mim mesma, um reflexo no verde profundo.

Ela passou o resto da noite comigo em meu quarto. Insisti para ela ficar com a cama deKaz, e quando Prairie protestou, eu me acomodei no ninho de cobertores que Kaz havia feito

para Chub e adormeci antes de ela dizer para eu não me preocupar.

Page 176: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 176/218

176

Capítulo 21De manhã ela havia desaparecido, deixando para trás uma cama arrumada e raios de

sol entrando pela janela do quarto de Kaz. Chub também estava acordado. Encontrei Prairie nacozinha depois de levar Chub ao banheiro, onde escovei os dentes e lavei o rosto.

Antes que pudesse exigir que ela cumprisse sua promessa e me contasse a história,Prairie me deu um copo descartável com café. - Há alguém que quero que conheça - ela disse. -Pegue um pãozinho para ir comendo no caminho. Anna vai cuidar de Chub enquantoestivermos fora.

Anna entrou na cozinha nesse momento, seu rosto pálido e cansado, mas ela sorriupara mim como se para isso não precisasse fazer nenhum esforço. Não havia nenhum sinal deKaz na casa, e o lugar parecia ainda menor sem a presença dele.

- Vão, vocês duas - ela nos incentivou, afagando rapidamente meu braço. - Estoupreparando gulasz, teremos um almoço especial quando voltarem.

Eu não estava com fome, mas peguei um pãozinho do prato que Anna deixara sobre amesa. Ele já havia sido cortado e recheado com cream cheese e damascos secos. Anna pôs umguardanapo de papel em minhas mãos.

- Não quero sair - eu disse, odiando como minha voz soava aguda e estridente, mas ohorror da noite anterior retomava ameaçando me dominar. Caminhava com desespero,

tentando dominar o pânico, mas sabia que se eu tivesse de passar pela criatura em que haviatransformado Rascal eu perderia o controle. - Não posso olhar para ele, simplesmente nãoposso.

- Está tudo bem - Prairie disse com gentileza. - Ele já foi. Está... descansando.

Page 177: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 177/218

177

- Como assim? - perguntei. - O que fez com ele?

- Eu fiz - Anna respondeu. Ela deu um passo adiante e tocou meu ombro, olhando para

mim com ternura, mas também com firmeza. - Foi humano, Hailey. Sou enfermeira, sei comofazer essas coisas. Kaz está enterrando o corpo no parque, um lugar onde há árvores, floresta,tranqüilidade. Mais tarde, quando você voltar, tudo já terá terminado.

Comecei a tremer, e lágrimas brotaram do canto dos meus olhos. Segurei a mão deAnna, cobrindo-a, tentando encontrar um jeito de agradecer, mas temendo que minha voz metraísse. - Tudo bem - consegui dizer.

- Anna vai me emprestar o carro - Prairie falou. - Vamos, podemos conversar nocaminho.

Mas não falamos muito. O carro de Anna era só um pouco mais novo que o de Kaz, e omotor falhava em cada cruzamento, como se fosse morrer sempre que ela reduzia a velocidade.Prairie pisava no acelerador, revivendo o motor, e nós percorremos os bairros em torno do lago,voltando ao trevo e para a estrada.

- Aonde vamos? - perguntei finalmente quando notei que seguíamos para o norte.

- Não estamos longe.

Alguns minutos mais tarde ela saiu da estrada para uma região de bangalôs de tijolos eoutra igreja ou tapema. Não havia nenhuma placa identificando o prédio diante do qual elaparou. Havia venezianas brancas nas janelas e tulipas nos canteiros na frente.

As longas rampas sinuosas eram a única indicação de que tipo de lugar era aquele.

- Um hospital? - Perguntei quando subimos nos aproximando da porta da frente, que seabriu deslizando quando pisamos no tapete.

- Uma casa de convalescença - disse Prairie. - Muito boa, com alguns dos melhoresmédicos do país em seu quadro de profissionais.

- Sra. Blackwell- cumprimentou animada a mulher que estava na recepção. - Vincenthoje está num bom dia. Ele vai ficar muito feliz com sua visita.

Page 178: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 178/218

178

Prairie trocou algumas palavras com a recepcionista ao se registrar como visitante.Olhando por cima de seu ombro eu li "Susan Blackwell" numa caligrafia perfeita.

- E quem trouxe hoje? A mulher sorriu para mim com franca curiosidade.

- Essa é Hailey. A família dela acabou de se mudar para cá e juntar-se à congregação daigreja. Ela também está interessada em prestar serviço voluntário.

- Ah, isso é maravilhoso! Hailey amamos nossos voluntários. E nossos pacientestambém. Especialmente aqueles que não têm família. As visitas sempre os beneficiam muito.

- O que significa tudo isso? - perguntei quando Prairie agradeceu à recepcionista e melevou por um corredor. Passamos por uma porta automática e caminhamos por outro corredorcom piso encerado e brilhante e quartos dos dois lados. Nos quartos havia camas de hospital

com pacientes nelas. Alguns estavam sentados, outros pareciam dormir. Ninguém olhava paranós.

- Venho visitá-los toda semana. E uso uma identidade falsa, como você percebeu. Elesnão fazem muitas perguntas quando alguém da igreja vem visitar. E há anos venho visitarVincent regularmente, então, eles já se acostumaram comigo.

- Quem é Vincent?

Ela caminhava mais devagar, e nós nos aproximamos do final do corredor. Eu respirei

fundo. Ela fez um gesto indicando que eu devia entrar no último quartoà

direita.

- Vincent era meu namorado - ela disse ao me seguir para dentro do quarto.

Havia um homem sentado na cama, coberto com um cobertor fino, as mãos unidassobre a coberta. Havia algo errado com ele. Sua pele era inchada e havia sobre ela uma camada brilhante de suor, e uma fina rede de cicatrizes recobria seu rosto e o que eu podia ver dos braços abaixo da manga da camisa. O cabelo era escuro, fino, e pendia um corte em torno dorosto.

Mas o pior eram seus olhos. Eles olhavam diretamente para frente, para o nada,piscando lentamente em intervalos regulares de poucos segundos. Eram as coisas mais vaziasque eu jamais vira. Não havia emoção, nenhuma evidência de sonhos ou esperanças, planos oudecepções, nada que desse a eles alguma profundidade. Quando entramos no quarto, elespiscaram e se viraram em nossa direção sem nenhum traço de emoção ou curiosidade, e tive de

Page 179: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 179/218

179

lutar contra o impulso de sair correndo dali, fugir, me afastar dele o máximo possível.

- Não contei por que saí de Gypsum - Prairie disse em voz baixa. - Nunca contei aninguém além de Anna. E menti para você antes. Quando disse que nunca curei ninguém que já

havia morrido. A verdade é que curei. Eu curei Vincent. Eu tinha dezesseis anos, e nósestávamos apaixonados. Íamos fugir juntos. Alice nunca soube. Estávamos esperando apenastermos dinheiro suficiente para ir para um lugar bem longe, onde Alice não pudesse nosencontrar, e planejávamos levar Clover conosco.

Ela se aproximou de Vincent e tocou seu rosto. Eu não conseguia imaginar como elasuportava tocá-lo. E ele nem parecia notar.

- Sofremos um acidente na noite de formatura - Prairie contou, ajustando a gola dacamisa de Vincent antes de se afastar da cama. - Ele foi jogado para fora do carro e morreu. E

diferente de você, Hailey, eu sabia que não devia fazer o que fiz. Havia sido prevenida sobre oque aconteceria, caso eu tentasse trazer alguém de volta.

- Como pode...

- Eu o amava. Pensei que ia morrer sem ele. E eu quis, realmente, desejei estar mortatambém, mas não tinha coragem para fazer acontecer. Por isso, em vez de segui-lo na morte, euo trouxe de volta. Creio que havia uma parte de mim que acreditava que, se eu rezasse muito,se quisesse de verdade, se confiasse que só daquela vez poderia dar certo, Deus teria piedade demim e o deixaria vivo. Uma vida real, não isso... Mas é claro que não aconteceu. E quando

percebi o que havia feito... eu fui embora. Essa parte era verdade. A única coisa que não dissefoi que levei Vincent comigo.

- Como o trouxe para cá? - perguntei preocupada.

- Chegamos em Chicago de ônibus na noite do acidente. Eu tinha algum dinheiro, osuficiente para comprar roupas limpas e as passagens de ônibus. No dia seguinte chegamosaqui, finalmente. E a noite toda tudo que ele fez foi olhar pra frente sentado naquele banco deônibus...

- Mas e os pais dele? Não ficaram aflitos quando ele não voltou para casa?

- Tenho certeza de que ficaram nervosos, Hailey, mas, diferente de Alice, eles sabiamsobre mim e Vincent. Sabiam que ele me amava, e ele havia dito aos pais que, se não dessemsua bênção, ele iria embora comigo da mesma maneira assim que concluíssemos o colégio. Eles

Page 180: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 180/218

180

protestaram... queriam que ele fosse para a faculdade, não que passasse o tempo todo comigo,mas ele não ouvia os conselhos. Acho que os pais dele... todos que sabiam sobre nós... sim-plesmente deduziram que havíamos fugido juntos. E tenho certeza de que procuraram por nósdurante algum tempo. Mas Vincent era maior de idade. Legalmente, não havia nada que eles

pudessem fazer.

- Eles devem ter ficado devastados - eu disse, imaginando como os pais do rapazhaviam se preocupado. Depois de tanto tempo, se ainda estavam vivos, eles continuavam semsaber o que acontecera com o filho. Pela infelicidade no olhar de Prairie eu soube que elatambém havia pensado nisso. - Para onde foram quando chegaram em Chicago?

- Eu o levei para um hospital, o melhor da cidade. E me certifiquei de que era o melhor.Gastei quase todo o dinheiro que me restava em um táxi e o levei ao pronto-socorro. Não haviamais ninguém ali, então o sentei em uma cadeira. Fingi estar procurando atendimento para

mim mesma, o que não foi difícil, já que eu também estivera envolvida no acidente e, diferentede Vincent, tinha cortes e hematomas que não haviam sido curados. Disse ao pessoal da re-cepção que meus pais não tinham documentos e eles me trataram como indigente, e eu só fiqueipor ali o tempo suficiente para ouvir conversas e descobrir o que fariam com Vincent.

- Espere, eles não souberam que vocês estavam juntos?

- Não, e ele não podia informá-los. Ele nem olhou para mim. Nem uma vez. Depoisdisso, eu me mantive informada sobre seu paradeiro, o que não foi fácil, porque eu estavatentando encontrar trabalho e um lugar para morar, ma eu consegui segui-lo sempre. Eu...

aprendi a ser criativa. E convincente. Um dos médicos no plantão do pronto-socorro era um jovem residente que estudava desordens do sistema imunológico. Isso era o que pensavam dele,na verdade... depois desse tempo, a equipe da clínica ainda acha que Vincent tem uma sériadesordem imunológica, e o submetem a testes freqüentemente.

- Eles podem examiná-lo assim? Fazer experiências?

- Tecnicamente não já que ninguém jamais assinou uma autorização e eles nemtentaram encontrar a família. Ele é um desconhecido, mas como usava uma pulseira com seunome gravado, todos o chamavam de Vincent. Para mim, isso era um... conforto.

De qualquer maneira, como você mesmo vai aprender um dia, quando há dinheiroenvolvido muitas coisas se tornam possíveis. O médico sobre quem lhe falei - aquele que estudao sistema imunológico - ele tinha muitos recursos, patrocínio, e providências foram tomadas. -Ela deu de ombros. - Descobriram como manter a pele intacta e os órgãos funcionando durante

Page 181: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 181/218

181

todo esse tempo.

- Mas como...

- Milagres da ciência moderna. - A voz de Prairie era pesada, cheia de pesar e emoção. -É irônico. Sempre me perguntei o que aconteceria se os médicos se reunissem com Bryce, o quepoderiam realizar... Mas nunca pude falar sobre um com o outro. Eles trabalhavam empropósitos cruzados, podemos dizer.

- O que os médicos daqui fazem com ele? - perguntei com a boca seca.

- Eles estão pesquisando regeneração celular - Prairie respondeu. - O organismo deVincent reagiu bem. Acho que devo gratidão a esses médicos.

Mas ela não parecia grata. Eu não a culpava por isso. Como devia ser para ela veralguém amado ali, mantido vivo artificialmente? Tentei imaginá-Lo com a idade de Kaz, cheiode vida, rindo, mas tudo que via era uma embalagem vazia.

- O que ele... faz? - perguntei.

- Ele é muito bom com tarefas simples, como separar contas e montar quebra-cabeça.Mas não se expressa verbalmente. Os médicos ainda têm esperanças. - Eu... não sei se isso épior. Veja isso. - Ela parou na frente da cama, na linha de visão de Vincent, se é que eleenxergava alguma coisa. - Vincent, bata palmas três vezes.

Sem nenhuma mudança de expressão, o homem na cama levantou as mãos e bateuuma contra a outra lentamente. Uma, duas, três vezes. Depois ele deixou as mãos caírem sobreas cobertas. Seus olhos nunca focavam nada, ninguém.

Vê-lo me causou um arrepio, mas eu não queria que Prairie soubesse quanto eu estavahorrorizada. - Não pode ficar se culpando. Você não podia saber.

Prairie balançou a cabeça com imensa infelicidade. - Eu sabia. E fiz o que fiz mesmoassim. Preciso ter certeza de que isso não vai acontecer novamente, e é por esse motivo quetenho de deter Bryce, seja como for.

Eu não suportava vê-Ia tão aborrecida. - Não se preocupe. Se as pessoas sabem o queacontece quando curam uma pessoa que já morreu, elas jamais farão tal coisa, nãodeliberadamente. Mesmo que Bryce consiga criar mais Curadores, ele não os induziria...

Page 182: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 182/218

182

- Hailey - Prairie me interrompeu com firmeza. - Você não entende. Isso é exatamente oque Bryce quer fazer... coisas como essa. Ele quer vendê-los pelo preço mais alto. Os Curadoresserão só uma ferramenta, como uma linha de montagem.

Olhei para Vincent, para seu olhar vazio, para a baba que escorria num fio fino pelocanto de sua boca. Eu não entendia. - O que alguém pode querer com...

O rosto de Prairie ficou sombrio. Ela segurou meu pulso e me puxou para o lado, até euestar a poucos centímetros de Vincent.

- Vincent, bata em você mesmo - ela sussurrou, e Vincent começou imediatamente aestapear um lado do rosto, depois o outro, as mãos abertas e firmes, os sons dos tapas ecoandono quarto.

Prairie olhou para mim para ter certeza de que eu via aquilo e a dor nos olhos dela meatingiu como uma faca. - Mais força - ela cochichou, e os dedos de Vincent se cerraram, e cadasoco fazia sua cabeça balançar e virar, mas ele ainda se batia...

- Pare! - gritei. - Por favor, Vincent, pare, não, não se machuque! - E sem precisar deuma nova ordem, aquela coisa chamada Vincent, o zumbi que habitava as ruínas de seu corpo,repousou as mãos sobre as cobertas. Seu rosto exibia hematomas recentes e alguns cortes, e olábio começava a inchar. Mas não havia nenhum sinal de que ele percebesse, muito menos deque se incomodasse.

Prairie recusou, se afastando dele com os olhos brilhantes pelas lágrimas que elacontinha.

- Por quê?

- Porque é possível mandá-los para a batalha, Hailey - ela disse com a voz embargada..- É possível carregá-los com explosivos e dar a ordem para se explodirem, mandá-los entrar emcentros comerciais ou escolas, e eles não vão hesitar, não vão pensar duas vezes.

- Não - cochichei horrorizada. - Ninguém seria capaz...

- Sim. Uma dúzia deles, colocados nos lugares apropriados, poderiam pôr de joelhos asgrandes cidades do mundo.

Page 183: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 183/218

183

Mas Bryce não poderia... ele não ousaria ...

- Eu vi. Eu vi a lista. Estava sobre a mesa de Bryce, Hailey. Governos instáveis noexterior... havia pelo menos meia dúzia deles. Ele não vai escolher os compradores, desde que

paguem bem.

- Mas onde ele conseguiria... - eu parei incapaz de encontrar a palavra certa. Matéria-prima? Bryce teria de encontrar pessoas mortas há pouco tempo, e muitas delas, se queriafabricar zumbis em número suficiente para vender.

Prairie riu com amargura. - Ele é inteligente, Hailey. Vai encontrar pessoas de quemninguém sentirá falta. São tantas nessas condições que você nem pode imaginar... sem teto,pacientes psiquiátricos, pessoas abandonadas pela família. E isso não é nem o começo. Se eleconseguir ajuda do nosso governo, e eu tenho fortes razões para acreditar que sim, vai ter

acesso ao hospital dos veteranos. Soldados mortos em outros países - corpos mandados de voltapara os familiares podem ser forjados, enquanto os verdadeiros são desviados.

- Acha mesmo que nosso governo se envolveria em alguma coisa tão horrível?

- Não, é claro que não, não oficialmente. Mas há corrupção em todos os níveis. Hailey,Bryce costumava receber visitas de homens que pareciam ser oficiais. Nunca prestei muitaatenção, porque imaginei que eles tivessem alguma coisa a ver com nosso financiamento. Mas,pensando nisso tudo agora, é muito fácil perceber que eles já haviam integrado o exército. Elestinham aquele ar militar. Havia alguém que chamavam de "o General”, e costumávamos brincar

com isso quando estávamos só nós - mas agora eu acho que esse homem era o principal contatode Bryce.

- Mas por que eles o deixariam vender os... eles... para os inimigos dos Estados Unidos?

- Os governos na lista travam batalhas no próprio território.

São extremistas, terroristas, estão em guerra uns contra os outros - ou com o própriopovo. Já cheguei a pensar que isso podia fazer parte do plano, algum patife do exército podiaquerer que eles se exterminassem.

Zumbis.

Page 184: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 184/218

184

Terroristas.

Agentes secretos atuando fora do controle do próprio governo, financiando esse estudode horror.

Era demais. Especialmente quando se pensava que, sem nem mesmo eles saberem, euera uma das chaves para o sucesso desse plano. Um dia antes eu nunca teria acreditado quepodia haver algo pior do que ser perseguida por assassinos.

Mas agora eu sabia que me enganara. Havia algo muito pior, e essa coisa estavaem mim.

Page 185: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 185/218

185

Capítulo 22Quando chegamos em casa, Kaz estava no quintal com Chub, jogando bola com ele.

- Hayee, olha, olha! - Chub gritou jogando a bola, sua voz clara e distinta, a fala

melhorando a cada dia. Kaz acenou rindo. Mas eu passei correndo por eles sem muito mais que

um olá resmungado.

Anna estivera cozinhando, como havia prometido, e a casa tinha um cheiromaravilhoso, mas não consegui falar com ela. Fui diretamente para o quarto de Kaz e fechei aporta, e me deitei na cama cobrindo o rosto com o travesseiro, tentando bloquear as imagens daminha mente. Vincent em uma cama de hospital, olhando para o nada sem enxergar realmente.Rascal depois de eu ter encontrado a bala e o empurrado para o chão, inerte e indiferente.Zumbis caminhando para a batalha, impassíveis, ignorando as imagens e os sons da guerra.Locais públicos cheios de gente, dominados por uma confusão de fogo e explosões.

Não sei quanto tempo fiquei ali tentando não pensar antes de ouvir as batidasdelicadas na porta. Removi o travesseiro de cima do rosto, mas não respondi.

- Posso entrar?

Eu não podia impedir Kaz de entrar no próprio quarto, por isso me sentei e passei asmãos pelos cabelos, esperando não ter uma aparência tão ruim. - Entre.

Ele abriu a porta hesitante e apontou para a cadeira em forma de saco no meio doquarto. - Você se importa se...

- O quarto é seu - respondi corando. - Quero dizer, eu deveria estar perguntando se

Page 186: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 186/218

186

você se incomoda.

Ele se sentou, apoiou os braços fortes sobre os joelhos, e olhou para mim. Querodizer, ele realmente olhou para mim, de um jeito com o qual eu não estava acostumada.

- Prairie me falou sobre Vincent e tudo mais. Uau é muita coisa para... você sabe,descobrir. Sinto muito.

Eu dei de ombros. - Sim, acho que é. Pelo menos a cura... bem, eu estava meacostumando com essa parte.

- Mas o resto?

- O resto. Ah... Não consigo... - Tentei pensar em um jeito de descrever o que eu sentia -

quase culpada por alguma coisa, porque se Bryce conseguisse me encontrar, eu sabia que ele meobrigaria a acatar seu plano. - A coisa dos zumbis. Não consigo entender como alguém podefazer isso de propósito.

- Sim...

- Você sabia? Sobre Rascal?

- Não. Quero dizer, percebi que havia algo de errado com ele, e fiquei meio surpreso...Sabia que Prairie era capaz de curar animais, porque ela curou a pata do nosso gato uma vez

quando ele caiu da janela, há muito tempo. E quando a conheci pude perceber que vocêtambém é uma Curadora. Então pensei que era estranho que não pudesse curar seucachorro. Mas eu nunca soube sobre... essa coisa de mortos reanimados, até Prairie mecontar agora há pouco.

- Mortos reanimados? - Fiz uma careta.

- Bem, foi... o que Prairie disse. Acho que ela não consegue dizer zumbi.

- Mas, Kaz, se você o visse...

- Ei, por mim tudo bem, pode chamá-los pelo nome que quiser. Quer dizer... carne emdecomposição andando por aí, isso meio que define um zumbi. Ele sorriu para mim, e eu mesenti um pouco melhor. - Além do mais, com exceção desse pequeno detalhe, acho que é legal oque você consegue fazer. Seu dom.

Page 187: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 187/218

187

Aquilo me surpreendeu, mas então lembrei que ele havia crescido sabendo que era umBanido. Sempre soubera. - E você? perguntei. - Também tem... você sabe, tem visões?

- Às vezes. Normalmente, só quando algo realmente ruim vai acontecer. Como quandoeu era criança e tive aquela visão da nossa garagem em chamas, e fiz minha mãe ir lá ver o queestava acontecendo, e ela encontrou uns trapos usados para limpar tinta da pintura das paredes.Eles haviam pegado fogo em um canto da garagem. Ou quando nossa vizinha teve um infarto.Eu vi alguns dias antes, vi a mulher caída no chão de seu apartamento, morta. Coisas assim.

- Pode ter deliberadamente uma visão de alguma coisa que quer ver? - Como se ummaluco furioso e assassino estava atrás de você, por exemplo. - Mas eu não disse isso.

Kaz balançou a cabeça. - Não, não é assim que funciona. Não se pode invocar a visão. É

algo que simplesmente acontece de vez em quando... fico meio tonto, e é como se houvesse umasegunda camada no meu campo de visão, imagens nebulosas que vão e voltam. Se eu fechar osolhos, então a visão acontece. Caso contrário, tudo que sinto é náusea, ânsia de vômito, quasecomo um quadro típico de enjôo provocado por movimento.

- Então, você não vai querer ter uma visão enquanto está dirigindo, por exemplo.

- Sim... Seria horrível. - Kaz sorriu para mim, e percebi que ele havia conseguido algoquase impossível- ele me animara.

- Obrigada - falei. - Por ter cuidado de... do sepultamento de Rascal...

- Ah, não foi nada. Tudo bem. - Por um minuto pensei que ele ia dizer mais algumacoisa sobre o assunto, mas ele se levantou e estendeu a mão na minha direção, me ajudando alevantar da cama. - Você perdeu o almoço. Guardei um pouco de comida.

Depois de tudo, a tarde foi boa, por mais incrível que pareça. Prairie e Anna estavamenvolvidas numa conversa muito séria quando eu saí do quarto, e Chub havia conseguidoencurralar o gato de Anna, e tentava pegar o animal para abraçar, uma experiência que odeixou com alguns arranhões nos braços e lágrimas nos olhos. Pensei em curar os ferimentos,mas decidi que esse tipo de capacidade deveria ser reservada para quando fosse de fatonecessária. Chub ainda precisava conhecer os machucados e as dificuldades da infância, porquesó assim se tornaria forte e auto-suficiente.

Kaz esquentou meu prato no microondas, e depois que terminei de comer, nós todos

Page 188: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 188/218

188

fomos para o parque levando uma bola, bastões e uma sacola. Ele tentou me ensinar a jogarlacrosse, e nós perdemos algumas bolas no meio dos arbustos do parque. Empurramos Chubnos balanços, e demos migalhas de pão para os patos, e quando a noite já começava a cair, euhavia conseguido esquecer tudo por algum tempo, o que, suspeitava, havia sido a intenção de

Prairie e Anna.

Quando nos dirigíamos a uma pizzaria sobre a qual Anna e Kaz falaram muito bem,Prairie se aproximou de mim.

- Vou ao laboratório amanhã cedo. Só há um guarda de plantão aos sábados. Estoupensando em esperar até ele ir ao banheiro, ou alguma coisa parecida, e entrar com meu cracháeletrônico.

Ela não parecia muito confiante. Imaginei que o plano era mais complexo, mas que ela

não queria revelar os detalhes para não me preocupar. - Quer que eu vá com você?

- Não... acho melhor eu ir sozinha.

Eu não discuti. Talvez devesse argumentar, mas havia sido muito bom não pensarnesse assunto por algumas horas, e eu não queria abrir mão desse momento de paz. Em vezdisso, tentei banir o assunto para o fundo da mente, dizendo a mim mesma que teria muitotempo para me preocupar com ele mais tarde, mas quando chegamos em casa e eu dei banhoem Chub e o pus na cama, me senti repentinamente exausta. Não dormira muito nos últimosdias, e de repente o cansaço me dominava. Deitei-me na cama de Kaz, com Chub aninhado na

cama feita com cobertores ao meu lado, e mergulhei num sono profundo e sem sonhos.

Acordei com alguém sacudindo meu braço.

- Hailey, acorde. - Era Kaz cochichando, seu rosto envolto pelas sombras e difícil de verà luz da lua. - Temos um problema. Vou chamar Prairie. Encontre-nos na cozinha.

Eu me levantei com cuidado para não acordar Chub. Lavei o rosto antes de ir para acozinha. Quando Kaz e Prairie entraram um minuto depois, ela parecia completamente alerta,como se nem houvesse dormido.

- Você já enfrentou muitos problemas recentemente - disse ao me ver. - Kaz, devia tê-ladeixado dormir.

- Ela tem o direito de ouvir o que vou dizer.

Page 189: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 189/218

189

- O que é? - perguntei, um instante antes de uma porta se abrir no corredor e Annaaparecer na cozinha.

- O que estão todos fazendo...

- Tive uma visão, mãe - Kaz anunciou. - Elas precisam saber.

Notei que Anna ficou tensa e lembrei que Kaz havia dito que suas visões sempreprenunciavam algo ruim. - O que é? - ela sussurrou, o rosto subitamente pálido.

- Bryce... Ele tem estatura mediana? Cabelos castanhos, já ficando grisalhos aqui? - Kazapontou para as próprias têmporas.

- Sim.

- Eu o vi em um quarto... Parecia ser um quarto de motel. Ou um alojamento? Haviapessoas nas camas... gente ferida. Ferimentos graves, Prairie, as pessoas estavam inconscientes.

- O que ele estava fazendo?

- Não se trata do que ele estava fazendo, ele estava apenas sentado ali, fazendoanotações ou escrevendo alguma coisa em seu laptop...

- O que é então? - Prairie perguntou com voz aguda e tensa. - O que você viu?

- Sinto muito, Prairie... Ele tem outra Curadora.

Page 190: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 190/218

190

Capítulo 23- Como assim... outra curadora?

- Não consegui vê-la com muita nitidez. Ela tinha cabelo comprido, e estava inclinadasobre os enfermos, cantarolando ou falando. Não consegui ouvir, nunca ouço nada quandotenho essas visões.

- E por que acha que ela os estava curando?

- Bem... em primeiro lugar, era óbvio que todos ali estavam... morrendo. - Kaz hesitou.- Quero dizer, estavam inconscientes, e um deles tinha a cabeça raspada e o que parecia ser umacicatriz recente. E outro tinha um tubo na boca, daqueles para respiração, e gesso no corpo.Eram rapazes. Homens jovens.

- Militares - Prairie respondeu. - Deviam ser. A única questão é... de onde.

- E a Curadora, essa mulher. Ela os tocava, punha as mãos sobre o rosto dos feridos. -Kaz demonstrou segurando o próprio rosto com as duas mãos. - E depois... é difícil dizer,porque a visão aconteceu em saltos, passando de uma cena para outra, mas depois, ah... elesacordavam ...

- Acordavam? - Prairie repetiu angustiada.

- Sim, eles se moviam, abriam os olhos, se sentavam. Isso foi tudo que eu vi.

Prairie ficou em silêncio, mas percebi que ela estava refletindo.

- Quem pode ser? - Anna perguntou depois de um momento. - Não havia mais

Page 191: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 191/218

191

ninguém no seu vilarejo? Tem certeza?

- Ninguém - Prairie respondeu com veemência. - Clover está morta. Hailey está aqui.Alice está arruinada. Mary está morta. Não há mais ninguém... Não consigo imaginar onde ele

encontrou outra.

- Uma das nossas, então - Anna deduziu. - As Curadoras devem ter saído da Polônia,afinal.

- Temos de ir agora. Até eu mesma me assustei ao ouvir essa declaração. Prairieprecisamos detê-lo. Você precisa destruir a pesquisa. Não podemos permitir que ele a encontre,não podemos deixá-la criar zumbis.

- Mas nós não...

- Não temos muito tempo - insisti. - Não é isso, Kaz? O intervalo de tempo entre asvisões e os fatos previstos... não é muito grande, é?

Kaz olhou de mim para Prairie. - Não sei. Talvez um ou dois dias. Talvez... menos.

- É possível que ainda tenhamos tempo - insisti.

- Eu vou ajudar - Kaz decidiu, empurrando a cadeira para longe da mesa para selevantar. - Vamos nós três. Mamãe fica para cuidar de Chub. - Vai cuidar dele, não é, mãe?

- O que pretendem fazer?

- Tudo que for necessário para deter aquele miserável.

- Kaz - Anna reagiu. - Isso não é necessário.

- O que não é necessário, mãe? Dar ao chefe de Prairie todos os nomes que ele merece?Ela tem razão, ele precisa ser detido. Temos que destruir tudo.

- E por que está falando em nós? - Anna perguntou incisiva.

- Não há nenhum nós...

- Eu vou com ela - Kaz repetiu. - Ela não pode fazer tudo isso sozinha.

Page 192: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 192/218

192

- Não diga bobagens - Anna o censurou, tremendo de medo e raiva, ou com umacombinação dessas duas emoções.

- Não é bobagem - reagiu o rapaz. - Prairie está certa. Precisamos destruir a pesquisa edeter esse homem.

- Esse homem é  perigoso, Kazimierz. Ele contratou pessoas para seqüestrar Hailey. Elesmatam quem os atrapalha.

- Meu pai foi para a guerra - Kaz lembrou. - Lá também havia morte, mas você nãotentou impedi-lo de ir.

Compreendi que ele não ia desistir, e tive a sensação de que ninguém seria capaz de

dizer a ele o que fazer. E eu o entendia: ninguém jamais me diria novamente o que fazer.

- Anna - Prairie falou em voz baixa. - Eu entendo. Vou sozinha.

- Não pode ir! - protestei. - Não pode ir sozinha, Bryce a matará!

- Não se eu tiver um plano - ela respondeu, mas percebi que estava apenas tentandoparecer forte. - Não se eu tiver uma estratégia.

- Estratégia não basta - Kaz a interrompeu com voz firme.

- Você precisa de ajuda. Eu posso ver coisas que vão acontecer. Especialmente seestiver lá, se estiver perto. Posso fazer a diferença.

- Não posso pedir tanto - Prairie protestou. Ela ergueu os ombros e os deixou cair.Percebi que seu braço se movia com facilidade, mesmo com o curativo. - É minha culpa se tudoisso aconteceu e...

Não vou deixá-Ia sozinha - eu anunciei.

- Vamos com você - Kaz acrescentou. Ele olhou para Anna.

- Mãe, você não me educou para ser covarde. Meu pai era corajoso, você me diz issotodos os dias desde que posso me lembrar. Não pode negar.

- Seu pai não está mais conosco, Kaz. Não posso perder você... não posso.

Page 193: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 193/218

193

O rosto de Anna refletia uma agonia típica de mãe aflita. Prairie também pareciahesitar.

Mas eu sabia. Sabia que Kaz não se deixaria dissuadir.

- Se acontecer alguma coisa, se Kaz for ferido, eu também estarei lá - disse a Prairie comurgência, rezando para ela me entender. - Podemos curá-lo - ele vai estar seguro conosco.

Anna me olhou com atenção, os olhos apertados numa expressão de alerta. Depois elaolhou para Prairie novamente. - O que você acha? - perguntou em voz baixa.

- Não posso pedir mais nada a você - Prairie respondeu. O que já fez por nós, receber-nos em sua casa, Hailey e eu, isso já é perigoso.

Ela tinha razão. Bryce não se importava com os inocentes que tinha de tirar docaminho. Ele não ia parar. Não se incomodava com todas as pessoas que tinham de morrer paraque ele continuasse com sua pesquisa, para poder estudar Prairie e me estudar, aprender comousar nosso dom para transformar pessoas em zumbis. Para esses zumbis matarem outraspessoas. Tudo que esse homem tocava parecia resultar em morte. Ele queria me usar como uminstrumento para matar, uma ferramenta para torná-lo mais forte, mais rico e mais poderoso,enquanto outras pessoas morriam.

A cozinha mergulhou no silêncio. Kaz caminhou até a janela e olhou para a rua escura,os braços cruzados sobre o peito, a postura sugerindo que estava tenso e preparado.

Depois de um longo momento, Anna assentiu devagar. Compreendi que a decisãohavia sido tomada. Kaz e eu havíamos vencido essa batalha. Iríamos com Prairie. ]

- Vou protegê-la como se fosse meu - Prairie prometeu num sussurro. - E Haileytambém. - Farei tudo que estiver ao meu alcance para voltarmos ilesos dessa missão.

Anna assentiu. E nós partimos.

Kaz foi dirigindo. Prairie ia no banco do passageiro, ao lado dele, e não falava muito.Ela prendera os cabelos num rabo de cavalo e vestira jeans, blusa de moletom, e calçara umvelho par de tênis que Anna lhe havia emprestado. Vestida dessa maneira ela mais parecia umacolegial que aquela mulher elegante que eu vira pela primeira na cozinha da casa de minha avó.

Kaz seguia sem dificuldades para a estrada que contornava o lago, voltando pelo

Page 194: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 194/218

194

mesmo caminho que havíamos percorrido na noite anterior. A lua quase cheia pairava sobre aágua bem perto do horizonte, seu reflexo tremulando na superfície escura do lago. Quandochegamos em Evanston, desejei repentinamente que o trajeto fosse mais longo. Não me sentiapreparada.

Prairie murmurou as instruções. Ela nos levou por uma região de casas antigas esimples que iam se tornando menores na medida em que nos afastávamos do lago, até serempraticamente chalés. Atravessamos a ferrovia e eu vi o centro de Evanston diante de nós.

No quarteirão seguinte havia vários prédios de escritórios, construções baixas emodernas. - Ali - Prairie apontou. - Estacione perto das lixeiras.

Kaz fez como ela dizia e desligou o motor.

Éramos protegidos por uma fileira de árvores, e o Civic estava parado sob galhos baixos que o escondiam... Havia muitos carros no estacionamento, clientes do restaurantetailandês e da lavanderia automática do outro lado da rua.

- Vou dizer o que estou pensando - anunciou Prairie. - O dado está nos computadoresno laboratório, na área de segurança. O crachá vai permitir nossa entrada na área principal dolaboratório.

- Acha que Bryce pode estar lá dentro? - perguntei.

- É possível... mas o mais provável é que ele tenha colocado segurança extra no local, eque tenha instruído os guardas para me deterem, caso eu apareça. Pela força, se for necessário.Porém, duvido que haja alguém lá dentro no meio da noite.

- Deixe-me ir - Kaz pediu. - Sozinho. Eles não estão esperando um homem.

Prairie balançou a cabeça. - Não. Eu tenho que ir com você.

- E eu? - perguntei.

Prairie fechou os olhos por um momento. Quando voltou a abri-los, havia neles umasombra de dúvida, de incerteza. - Deve ter um. guarda no saguão - ela disse. - Um guardanoturno. A menos que tenham contratado alguém novo, é um homem idoso que gosta decochilar no horário de serviço. Mesmo assim, ele é perigoso. Pode acionar o alarme, fechar todasas portas e atrair toda a equipe de segurança para o local. E Bryce pode ter instruído o guarda

Page 195: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 195/218

195

para entrar em contato com ele antes de fazer qualquer outra coisa.

- Quer que eu o distraia? - perguntei.

Prairie parecia desconfortável. - Não consigo pensar em nenhuma outra coisa. Penseique talvez pudesse fingir uma emergência qualquer, não sei, alguma coisa como... se estivesseferida, talvez ... Assim que nós entrarmos, você sai. Pense em uma desculpa qualquer, diga aoguarda que se enganou, enfim, faça o que for necessário. Saia de lá e espere por nós em algumlugar de onde possa ver o carro.

Ela enfiou a mão no bolso e me deu um telefone celular. - É de Anna. O número de Kazestá na agenda do aparelho - disse. Pressione e segure a tecla "3" e ele vai discar diretamente.Telefone se vir alguém entrando no prédio depois de nós... qualquer pessoa. Ou se tiver algumproblema.

Não gostava da idéia de ficar para trás, mas não via alternativa. - O que vai fazer comos computadores?

- Tenho acesso de administrador de rede a todos os servidores. Paul me deu a senha junto com as chaves do prédio. Precisamos acreditar que Bryce nunca vai descobrir. É nossaúnica esperança. Tenho certeza de que ele mudou as fechaduras, mas aposto que não mudou asenha de administrador de rede. Só preciso entrar e executar o programa de formatação dodisco.

- Qual é a quantidade de dados armazenados? - Kaz perguntou. - Porque vai levarhoras para formatar um disco muito grande.

- Eu... não sei ao certo.

- Bem, não tem importância - Kaz decidiu sua voz baixa traindo forte tensão. - Vaihaver fogo.

Nós duas olhamos para ele.

- Como assim?

- Eu vi. Tive uma visão... esta noite vai acabar em fogo.

Page 196: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 196/218

196

Capítulo 24- Você teve uma visão? - perguntei. Mas Prairie me interrompeu.

- Fogo? Oh, meu Deus... eu devia ter pensado nisso.

- O que é?

- As paredes... em todos os escritórios internos. Vão queimar.

- Trouxe uma coisa que peguei na garagem de casa - Kaz revelou. - Para usar comoacelerador. Não quis dizer nada na frente da mamãe, porque ela teria enlouquecido se soubesse,mas isso vai ajudar a propagar o fogo e...

- Não, o que estou querendo dizer é que as paredes são inflamáveis. Bryce nos feztrabalhar com sujeitos específicos, voluntários que diziam ter o poder de prever o futuro. Ealguns eram simplesmente muito mais do que se podia esperar. Videntes, entende? Eu tinhacerteza disso. E Bryce estava pesquisando maneiras de bloquear suas visões.

- Para o alistamento militar - Kaz deduziu.

- Como é que é? - Eu estava perdida, mas os dois praticamente completavam as frasesum do outro.

- Como se o outro lado tivesse Videntes? Seria necessário bloquear as visões, certo? Oueles poderiam antecipar seu próximo movimento.

- Mas isso é algo muito difícil de fazer - Prairie concluiu. - A única coisa que

Page 197: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 197/218

197

encontramos e parecia prejudicar um pouco esses sujeitos e suas visões foi ferro. Mas Bryce nãopodia colocar paredes de ferro no laboratório, então ele encontrou um homem que conseguiainserir partículas de ferro em espuma de poliuretano. Daquele tipo usado em sprays, sabe?Aquele material que expande? O problema é que as paredes se tornaram cem vezes mais

inflamáveis que madeira, então ele contratou uma equipe para vir aplicar o material em umfinal de semana no outono passado...

- Isso é perfeito - Kaz a interrompeu.

- Perfeito para destruir o prédio, eu pensei, mas não para sairmos dele com vida.

- Que tipo de acelerador você trouxe? - Prairie quis saber.

- Algumas latas de fluído para isqueiro e um pouco de solvente para tinta. E fósforos.

- Muito bem, ótimo. - Prairie suspirou. - Já havia pensado em tudo isso, não é?

- Eu... sim. Mas não conte nada a minha mãe. Ela me deixaria de castigo pelo resto davida.

Saímos todos do carro, e Kaz ia levando sua mochila cheia de suprimentos. Eu fiqueipara trás, apoiada no automóvel enquanto eles caminhavam na direção do edifício. Os doisandavam pela extremidade do estacionamento, como se fossem atravessar a rua para o centroda cidade. Quando chegaram no prédio, eles continuaram em frente mantendo-se bem

próximos da parede da frente, quase invisíveis na escuridão.

Havia chegado a hora. Respirei fundo e toquei meu colar com a ponta dos dedos, apedra vermelha era morna sob meus dedos. Fechei os olhos por um segundo e tentei esvaziar amente de tudo que não fosse o que tinha de ser feito.

Então, atravessei o estacionamento correndo e me joguei contra a porta de vidro, batendo as mãos contra ela e empurrando com força. Não tive tempo de olhar para Prairie eKaz escondidos nas sombras. A porta se abriu e eu entrei no saguão do edifício. À esquerdahavia uma fileira de elevadores, e à direita eu vi um balcão encurvado e um homem sentadoatrás dele, um senhor idoso vestindo uniforme marrom e lendo um jornal.

Ele levantou a cabeça, seus olhos cheios de surpresa, e me viu correndo para o balcão.Eu me apoiei nele ofegante.

Page 198: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 198/218

198

- Preciso de ajuda! - gritei. - Um carro... estava passando... atropelou alguém ... Subiuna calçada perto do estacionamento. Acho que tem gente muito ferida.

O homem baixou o jornal mais devagar do que eu achava que a situação merecia. - Está

dizendo que aconteceu um acidente lá fora?

- Sim, por favor, pode vir comigo? - Preciso...

- Eles vão seguir a rotina normal - o homem disse com má vontade. Li o nome dele noretângulo dourado preso à sua camisa. Maynard. - Preciso telefonar...

- Não há tempo! - Agora eu estava gritando, dominada por um medo que me faziaabandonar a cautela. Se ele usasse o telefone para pedir ajuda, estaria tudo perdido; a políciachegaria em pouco tempo, e Prairie e Kaz não conseguiriam entrar no laboratório. - Por favor!

- Sim, assim que eu...

Mas isso foi tudo que ele conseguiu dizer. Porque quando minha mão passou por cimado balcão e tocou a lateral de seu pescoço delicadamente, ele arregalou os olhos por umsegundo e todo seu corpo ficou rígido, como se ele houvesse encostado em um fio de altatensão.

Depois, ele caiu sobre o balcão.

Eu não sabia que ia fazer o que fiz.

E, ao mesmo tempo, soubera exatamente como fazer o que fiz. Poderosa: a palavra soouem minha mente enquanto eu me afastava do balcão. O dom do qual eu havia duvidado, aoqual eu resistira à habilidade que eu finalmente usara e reconhecera como minha - era maispoderoso do que eu me permitira perceber.

Eu sabia que o guarda não estava morto ou mesmo ferido. O que eu havia feito foratransmitir uma onda de energia relaxante que, de alguma forma, se impusera ao seu circuitocerebral e o tirara de circulação temporariamente. Como dormir. Como um sono realmenteprofundo. Eu compreendia tudo isso de uma forma primitiva, visceral, tomava consciência dacompreensão que fluía de algum lugar dentro de mim, de onde ela havia existido sempre, desdeque eu nascera. Desde que fora concebida, até, na violenta união de meus pais, recebera o domdiretamente da fonte que nos embebia de poder desde as primeiras Famílias.

Page 199: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 199/218

199

Ouvi a porta se abrir atrás de mim Kaz e Prairie entraram. - Eu vi - disse Prairie. -Falaremos sobre isso mais tarde.

Apenas assenti. Depois lembrei.

- Não podemos deixá-lo aqui, não se vai haver um incêndio...

Kaz correu para trás do balcão, pegou o guarda, jogou-o sobre um ombro e se viroucomo se ele não pesasse nada. Prairie hesitou apenas por um instante antes de apontar para ocorredor.

- Vamos deixá-lo na porta dos fundos. Lá ele estará escondido... e seguro. Depois ela sevirou para mim. - Sua parte está feita por enquanto, Hailey. Vá lá para fora. Espere por nós.

Eu os vi seguir pelo corredor, a cabeça do guarda balançando contra as costas de Kaz.Prairie havia acabado de entrar na minha vida, e eu não queria perdê-la. Eu não queria quenada acontecesse com ela. Mas nós estaríamos sempre em. perigo, a menos que terminássemosesse assunto. Bryce continuaria nos perseguindo enquanto nos considerasse útil para o seutrabalho.

Segui em frente. Depois de algumas curvas no corredor havia uma porta reforçada semnenhuma identificação. Prairie passou pela fechadura seu crachá eletrônico e, ao ouvir o estalometálico, empurrou a porta. Corri para alcançá-los antes que entrassem. Quando me viu, Kazhesitou só por um segundo antes de segurar a porta para mim.

- Hailey, não! - Prairie cochichou.

- Ela tem o direito de estar aqui - Kaz opinou quando eu já passava por ele.

Segurei a mão de Prairie e a apertei com força. - Não vou voltar.

Ela me olhou nos olhos por um momento, depois assentiu. Tudo bem. - Tudo bem.Vocês dois, comecem a molhar os cantos da sala, perto das paredes. Vou executar o programade formatação do disco rígido. Duvido que consiga entrar no servidor, porque isso requer umaleitura de retina e tenho certeza de que minha identificação foi bloqueada, mas posso formatar amáquina da minha estação de trabalho.

Prairie acendeu as luzes e vi que estávamos em um amplo laboratório, com estações detrabalho e monitores de última geração, além de aparelhos que eu nem conseguia identificar.

Page 200: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 200/218

200

Havia máquinas que pareciam robôs em vários estágios de montagem sobre plataformas, ediversas fileiras de caixas iluminadas com cabos de ligação dos mais variados calibres. Maiscabos atravessavam o piso.

A única coisa ausente ali era a presença humana - visível apenas nas pilhas de papel,notas adesivas e copos descartáveis de café, além de um ou outro suéter esquecido nas cadeiras.Era como se as pessoas que ali trabalhavam nunca levassem nada de pessoal para o laboratório.Não havia fotos, nem desenhos de crianças presos às paredes dos espaços delimitados pordivisórias, nem plantas, pesos para papel ou esculturas.

Prairie desapareceu no final de um corredor do outro lado da sala, e Kaz abriu amochila para retirar a lata de fluído, que me entregou.

- Não vamos precisar de muito - ele disse. - Concentre-se na parede seca.

Começamos a trabalhar desviando de todo aquele equipamento. No início eu fuicuidadosa, mas depois segui o exemplo de Kaz e comecei a empurrar as coisas que estavam nocaminho, afastando mesas para me aproximar das paredes. O cheiro forte de substânciasquímicas pairava no ar, ardia em meus olhos e me fazia tossir, e a adrenalina invadia minhasveias.

Pensei ter ouvido alguma coisa - um baque, um grito sufocado. E o som vinha docorredor por onde Prairie havia desaparecido. Kaz também ouviu o barulho, e nós dois ficamosquietos, olhando um para o outro e tentando escutar alguma coisa além do zumbido constante e

 baixo dos equipamentos. Em seguida, nós dois corremos para a origem dos ruídos.

Mal havíamos entrado no corredor quando ouvimos um estrondo de metal e madeira euma porta batendo contra a parede alguns metros à frente. Prairie apareceu no corredor seguidapor outra pessoa.

Bryce Safian - só podia ser. Um homem de impressionante porte físico com cabeloscastanhos e curtos e camisa social engomada. Ele segurava uma arma contra as costas dePrairie. Kaz reagiu antes que eu pudesse interpretar a cena - ele correu e se colocou entre Brycee Prairie, jogando-a no chão.

Quando Kaz agarrou a arma na mão de Bryce, ela disparou, e no segundo seguinte elesegurou a própria mão. O sangue escorria por entre seus dedos. Ele havia sido ferido na mão, eagora Bryce apontava a arma diretamente para seu peito. Kaz recuou devagar, enquanto Prairiese levantava.

Page 201: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 201/218

201

O homem olhou para mim, me estudou por um instante, depois relaxou. Ele sorriu,exibindo uma expressão cruel e calculista que não era muito diferente de como minha avócostumava me olhar quando pensava que Dun ou outro de seus clientes havia dito alguma coisa

engraçada.

- Você deve ser Hailey. Eu sou Bryce Safian. Pode me chamar de Bryce. - O sorriso deletornou-se mais largo. - Foi bom eu ter decidido vir dar uma olhada em tudo no laboratórioquando soube que meus empregados haviam deixado você escapar outra vez. Sua ingenuidadeé impressionante. Incrível, realmente.

- Sua mão... - eu disse, vendo o sangue de Kaz pingar no chão.

- Não se preocupe com ele - Bryce falou com desdém. - Ele não é digno do seu tempo.

Sabe, Hailey, se as coisas fossem diferentes, eu poderia ser seu Tio Bryce.

Olhei para Prairie. Jamais a vira tão zangada. Bryce seguiu a direção do meu olhar. -Sim, é isso mesmo. Estava pensando em pedir sua tia em casamento. Isto é, até ela deixar claroque havia entre nós profundas diferenças de caráter, podemos dizer.

-Você não tem caráter- Prairie disparou. - Não tem vergonha. Não é ... humano.

Bryce riu, um som profundo e reverberante. - Isso é muito engraçado, vindo de você,querida. Na minha opinião, é você quem merece essa descrição. Sabia - ele continuou, olhando

mais uma vez para mim - que sua tia tem anormalidades cromossômicas tão severas que,tecnicamente, ela não poderia estar viva em nenhuma condição conhecida pela ciência?

- Oh, céus - ele acrescentou, batendo com a mão na testa e fingindo se preocupar. - Eunão devia ter dito isso, considerando que você - e seu jovem amigo aqui, também - têm asmesmas... Deficiências.

Kaz ergueu as mãos ensangüentadas como se pretendesse atacar Bryce, mas ele brandiu a arma apontando para Prairie, depois para Kaz novamente, ameaçando-os. A mão queempunhava o revólver era firme. - Não tenha nenhuma ideia brilhante - ele me disse. - Vocêstodos perdem sangue normalmente - e eu já deveria saber, considerando todos os testes querealizamos aqui. E presumo que perder sangue em quantidade suficiente pode matá-los, comomataria qualquer ser humano normal. E eu sei que não pode curar seu amigo sem tocá-lo.

Eu já sentia o formigamento, a energia vibrante que assinalava a necessidade de curar.

Page 202: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 202/218

202

Não conseguia desviar os olhos da mão ferida de Kaz. Meus dedos pulsavam com a compulsãode tocar a mão dele, encontrar o ferimento e deixar minha energia fluir por ele. Mas eu nãopodia alcançá-lo. Bryce jamais permitiria. E sem tocá-lo, eu não poderia curá-lo. Milla, Rascal,Chub... Eu tivera de tocá-los, encostar as mãos neles para sentir minha energia fluindo de meus

dedos para o corpo de cada um.

- É meio divertido, na verdade - Bryce continuou. - Se você conseguisse chegar pertodo garotão aqui, provavelmente o curaria, mas eu tenho muitas balas, por isso só precisariacontinuar fazendo muitos buracos nele. Tem alguma dúvida sobre quem venceria o jogo, raiode sol?

- Você não sabe o que está fazendo - Prairie resmungou.

- Ah, mas eu sei! Quem está fazendo testes há meses? Hmrnm? Ouso dizer que tenho

conhecimento íntimo sobre como funcionam esses poderes especiais, sabe? De fato, acredito quepoderia ferir seu jovem amigo aqui com gravidade suficiente para obrigá-la a fazer uma escolhamuito difícil. Não é isso, Prairie?

Ela parecia devastada, e um soluço sufocado morreu em sua garganta. Lembrei dapromessa que ela fizera a Anna. Eu o protegerei como se fosse meu.

- Não tem importância - Bryce continuou com um sorriso preguiçoso. - Não precisomais de você. Encontrei alguém. Ela não é tão bonita, e duvido que seja tão... divertida. Mas écooperativa - muito cooperativa, considerando que se tornou uma... digamos, hóspede

permanente neste laboratório. E agora que tenho Hailey, os dois são tudo de que necessito paraconcluir o trabalho. É uma pena, realmente, que você não possa ficar para dividir a glória.

Então, a visão de Kaz havia sido real. Bryce encontrara outra curadora, e a trancara alicomo pretendia me manter cativa. Meu coração ficou pesado quando percebi que todo aqueletrabalho podia ter sido em vão. Bryce planejava me manter viva, mas ele não tinha a intenção demanter Prairie ou Kaz por perto. Senti que o desespero superava a determinação que me haviaimpelido na noite anterior.

- Não vai viver tanto tempo - Prairie anunciou, surpreendendo-me com sua fúria. Eladeu um passo na direção de Bryce, sem demonstrar nenhum medo. - Pode atirar em mim, sequiser. Vá em frente, eu o desafio. Sua nova namorada nunca vai criar zumbis para você. Nãofoi essa a ordem recebida, e não vai poder lutar contra isso.

Bryce riu os olhos iluminados por um humor genuíno. - Oh, Prairie, quanto idealismo!

Page 203: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 203/218

203

É renovador. Sempre amei essa sua característica. Se você soubesse...

- Soubesse o quê?

- Onde acha que encontrei sua sobrinha?

Prairie hesitou, e eu vi a incerteza brilhando nos olhos dela.

- Os homens que contratou - arrisquei, chegando mais perto de Prairie. - Seus homens.Seus homens mortos.

Bryce gargalhou. - Isso é tão divertido para mim! Porque, quando conseguiram rastreara verdadeira identidade de Prairie, eles encontraram um aliado inesperado. Alguém que sedispunha a nos dizer tudo que sempre quisemos saber sobre você, pequena Hailey, por um

preço. Alguém se dispunha a criar a oportunidade perfeita para meus homens irem pegá-la, quenão só não sentiria sua falta, como também tomaria providências para que ninguém maissentisse.

Um murmúrio começou nos meus ouvidos e progrediu rapidamente para um rugido.Balancei a cabeça e sussurrei um "não" desesperado, mas de repente sabia de quem, exatamente,ele estava falando.

- Sua avó, Hailey - Bryce anunciou incapaz de disfarçar a satisfação em sua voz. - AliceTarbell. Ela a vendeu por cinco mil dólares e uma passagem para a Irlanda. Ah... e pela

promessa de que ... sem querer ser indelicado, mas... bem, prometi que quando chegasse a horade você procriar, nós providenciaríamos alguém da sua espécie.

De repente Kaz deu um salto para frente, atirando-se contra o tronco de Bryce,tentando derrubá-lo. Mas o ferimento havia enfraquecido Kaz, e ele cometeu um erro decálculo. Bryce deu um passo para o lado e apertou o gatilho, uma cena à qual assisti quase emcâmera lenta, e depois ouvi o tiro e vi a mão ferida de Kaz se mover, descrever um arco no ar e bater contra a parede provocando um spray de sangue.

Page 204: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 204/218

204

Capitulo 25O buraco no braço de Kaz permaneceu limpo e redondo por um segundo, antes de o

sangue começar a verter por ele. Eu agora podia ver que o ferimento na mão era grave, os dedosensangüentados se dobravam formando ângulos estranhos, o indicador pendia por uma finatira de pele. Uma forte onda de náusea brotou do meu estômago, seguida por intensa vergonha.Eu devia ser uma Curadora - como podia ser tão fraca?

Prairie estendeu a mão para Kaz, mas Bryce bateu com a coronha do revólver sob seuqueixo e a jogou contra a parede enquanto Kaz caía no chão, o rosto muito pálido enquanto eletentava apertar com a mão ilesa o braço ferido, procurando estancar o sangue com os dedosacima do ferimento.

Bryce suspirou. - Eu disse que poderíamos fazer tudo isso por bem, ou por mal, Eliz...

Quero dizer, Prairie.

Dei um passo na direção dela, mas Bryce ergueu o braço e apontou a arma para mim. -Fique onde está, Hailey. Talvez deva lembrar que sua tia não vai poder fazer nada se você semachucar. Um arranjo interessante, não acha? Vai ser fascinante estudar essa resistência naturaldos Curadores ao dom de seus semelhantes. Estou ansioso por essa pesquisa.

Prairie estava a centímetros de Bryce, apoiada contra a parede, e no segundo em que elese virou, percebi que ela enrijecia os músculos com a evidente intenção de atacá-lo. Balancei acabeça e tentei formar a palavra não com os lábios, sem emitir nenhum som, porque sabia que

Bryce a mataria, mas também sabia que ela não se importava com isso. Vi quando ela atacou, eesperou ouvir o som do tiro enquanto um grito silencioso se formava em meu peito.

Mas Bryce me surpreendeu.

Page 205: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 205/218

205

Ele bateu com a coronha do revólver contra a cabeça dela, atingindo-a acima datêmpora, e Prairie caiu como um fantoche com as cordas cortadas. Mas ele não a matou.Quando ele olhou para mim e para Kaz, havia algo em sua expressão que eu reconheci. Era umamistura de anseio e desafio. Tinha alguma coisa parecida com o jeito como Rattler havia olhado

para ela. O velho laço de sangue não existia ali, mas naquele segundo percebi que Brycetambém a amara, à sua maneira. O suficiente para não ter atirado nela.

E percebi que o amor era, no mínimo, tão perigoso quanto irresistível. - Não pense quenão vou gostar de matá-la lentamente - Bryce manifestou-se, mas agora nós dois sabíamos queele tinha uma fraqueza, e pela primeira vez vi a incerteza em seus olhos. Ele mantinha orevólver apontado para mim, mas se ajoelhou ao lado de Prairie para sentir sua pulsação.

Se ao menos houvesse uma maneira de usar essa fraqueza contra ele! Olhei para Kaz.Ele tinha os olhos fechados, o rosto contorcido pela dor. Pude perceber que ele começava a

perder o equilíbrio, e a quantidade de sangue que brotava de seu braço era chocante. A baladevia ter atingido alguma estrutura muito importante. A necessidade de curá-lo se ergueudentro de mim como uma onda quente e envolvente, pulsando em todos os nervos e se es-tendendo para a ponta dos dedos, e meu desejo de tocar Kaz, seus ferimentos, era irresistível.

Eu o induzi a abrir os olhos e me encarar - e ele atendeu ao meu comando mental. Nosegundo em que os olhos encontraram os meus eu senti novamente, aquela conexão que havianotado quando ele tocou minha mão pela primeira vez.

A diferença é que agora a vida dele dependia disso. A vida de todos nós.

Fitei seus olhos com toda profundidade de que era capaz e tentei me desligar de tudo,exceto do dom que era parte de minha herança de sangue. Os olhos de Kaz tremularam, seuslábios se entreabriram. e senti meus batimentos cardíacos mais lentos. Minha respiração foiperdendo intensidade até quase desaparecer. Alguma coisa aconteceu também com minhavisão; os limites desapareceram, substituídos por um halo tremulante e incerto, e não havianada além de mim e Kaz. Privada de oxigênio comecei a perder a visão e senti meus pulmõesclamando por ar, mas era tudo tão lindo, tão delicado e intenso, que eu sentia como se meucoração pudesse se partir em mil pedaços, como se tudo desaparecesse contraposto à forçadaquele elo entre nós, uma ligação que nos tornava muito mais fortes do que poderíamos sersozinhos.

Eu caí.

Não percebi que ia acontecer até cair no chão aos pés de Prairie. Bryce gritou alguma

Page 206: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 206/218

206

coisa e desviou o revólver que mantinha apontado para Prairie, virando-o na minha direção. Eume preparei para sentir o impacto da bala, me perguntando onde ele me acertaria, tentandoadivinhar se preferiria me aleijar apenas, mas manter-me viva em seu laboratório - ou se memataria.

Então, Bryce se chocou contra mim com muita força, expulsando o ar que ainda haviaem meus pulmões. Levei um segundo para compreender que Kaz o havia empurrado queconseguira reunir a energia necessária, lançar mão de uma última reserva de força, para atacarde onde estava apoiado à parede.

- Afaste-se, afaste-se dele - Kaz gritou. Eu tentei, mas Bryce era pesado demais, e estavacaído em cima de mim, quase me matando com seus joelhos e cotovelos e... Deus, onde estaria aarma? Ele ainda tinha o revólver, mas foi repentinamente puxado para cima, arrancado desobre mim e jogado contra a parede. Havia sido Kaz. Kaz, cujo braço ileso ainda era muito forte,

Kaz, cujo braço ferido já começava a melhorar, porque eu o curara, não com perfeição, porqueera difícil curar sem tocar alguém, mas o suficiente. O suficiente.

Kaz chutou Bryce e a arma voou da mão dele para o corredor. Eu o empurrei com todaforça que tinha e consegui rolar para o lado, tentando alcançar Prairie. Mas sabia que não podiafazer nada por ela agora. Não podia curá-la, não podia despertá-la.

Kaz mexia na mochila que ficara aberta no chão, retirando dela a última lata de fluidopara isqueiro, segurando-a com o braço dobrado enquanto removia a tampa. O cheiro meatingiu como um soco quando ele sacudiu a lata sobre Bryce, ensopando suas roupas e lavando

seu rosto com o líquido claro. Bryce levou as mãos aos olhos e começou a gritar um urro deraiva que se transformou em terror quando Kaz riscou um fósforo.

Muitos gritos. Eu havia finalmente recuperado a voz, e ela se juntava a de Bryce.Afastei-me da bola de fogo em que Bryce se transformara, arrastando Prairie comigo, vendo o brilho das chamas se tornarem cada vez mais intensas. Os gritos de Bryce se tornaram umhorrível uivo de dor, e ele rolou para a porta por onde havia entrado. Kaz segurou meu braço eme pôs em pé.

- Você não tem muito tempo - ele disse com urgência. Verifique o servidor, certifique-se de que ela conseguiu começar a formatação. Precisamos tomar medidas de precaução, casonem tudo seja destruído pelo fogo. Eu cuido de Prairie até você voltar.

- Não espere por mim - eu disse, já correndo para aporta. - Vá, leve-a com você.

Page 207: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 207/218

207

Mas nosso olhos se encontraram e uma energia sombria foi transmitida nesse olhardemorado, e eu soube que ele não partiria.

Eu também não teria ido.

Corri para fora da sala. A fumaça me seguia na forma de nuvens escuras, pesadas egordurosas, e eu soube que o fogo devia estar se alastrando na sala principal. A última coisaque vi foi Kaz se abaixando ao lado de Prairie, puxando a camisa sobre a boca, e rezei para quehouvesse ar suficiente para eles.

A porta se abriu e eu entrei na sala do servidor, menor que as outras. Ali ainda era frioe escuro, porque o fogo não chegara àquele local, e números brilhantes rolavam pela tela doúnico monitor sobre a mesa numa velocidade vertiginosa. Prairie havia conseguido - os dadoseram apagados do disco rígido, desapareciam como se nunca houvessem existido.

 Já era hora de termos uma boa notícia.

Esvaziei a lata de fluído para isqueiro em torno do equipamento e me virei para sair,correr de volta para Prairie e Kaz, para me reunir a eles e tentar fugir do prédio, escapar doincêndio, e ainda corria quando percebi uma porta na outra parede da sala do servidor. Erauma porta pesada, reforçada, como aquela do laboratório principal, com um visor instalado naparede ao lado dela.

Eu hesitei. O fogo ardia, e os dados eram apagados. Devia ser o suficiente.

Mas a porta estava trancada. Havia além dela alguma coisa suficientemente importantepara Bryce tê-la trancado em local isolado. Mais dados? Equipamento específico?

De repente eu lembrei o que ele havia falado: ela se tornou hóspede permanente neste laboratório.

Sua nova Curadora - estava aprisionada em algum lugar perto dali, e aquele era o único localque não havíamos examinado.

O medo invadiu meu corpo. Eu precisava encontrá-la e tirá-la do prédio em chamas,salvá-la da morte, se pudesse. Não tinha uma rama, não tinha mais nem uma gota de fluídopara isqueiro, mas tirei do bolso o crachá eletrônico e o aproximei do visor com o paineleletrônico. Ouvi o clique da porta se abrindo e, sem pensar, a empurrei.

O que vi do outro lado me causou um horror tão profundo que eu quase corri de voltapara o fogo. Um grito começou a se formar em minha garganta e explodiu com o desespero de

Page 208: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 208/218

208

um animal enjaulado. Tentei correr, mas minhas pernas não funcionavam - meu cérebroaterrorizado não conseguia controlar meus movimentos, apesar do pânico eletrizante estimulartodas as minhas terminações nervosas e a adrenalina inundar meu organismo, ameaçandoafogar minha consciência.

Lá dentro, sentados em cadeiras dobráveis, eu vi uma dúzia de homens imóveisvestindo calça cáqui e camiseta comum. Pisquei para reduzir o ardor da fumaça em meus olhose engoli o ar tóxico, enchendo meus pulmões com ele. Entendi que aqueles não eram homenscomuns. Eles estavam em decomposição. O tom de pele variava do branco gesso ao cinza, mashavia também os que estavam roxos, e em alguns casos a pele já se desprendia dos ossos. Emseguida registrei o cheiro, pior do que todos que eu já sentira, e a náusea subiu do estômago atéminha garganta. Alguns daqueles homens não usavam sapatos, por isso era possível ver a carneinchada e se separando dos ossos em seus pés. O que estava mais perto de mim tinha a camisetamanchada e, tomada de assalto por uma segunda onda de náusea, percebi que seu peito vazava,

liberando fluidos corporais.

O pior de tudo eram os olhos. Vazios, como se as almas daqueles homens houvessemsido sugadas pelas órbitas. Todos viraram a cabeça lentamente na minha direção. Um a um, elesse levantaram e começaram a andar na minha direção, todos com os braços estendidos.

Eles eram zumbis. E vinham atrás de mim.

Page 209: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 209/218

209

Capítulo 26Por um momento não consegui me mover, as pernas ainda paralisadas pelo choque.

Mas o zumbi mais próximo surgiu na minha frente, e seus dedos roçaram meu braço. Elesestavam cobertos de sujeira e fuligem, e a pele que cobria suas mãos havia começado a se soltardos ossos. Gritei e recuei, mas não antes de ver que as órbitas de seus olhos transbordavamcarne podre e solta, as gengivas haviam recuado e se desprendido dos dentes, e os cabeloscobriam a cabeça em tufos irregulares. O cheiro era tão forte que quase sufoquei tentando nãovomitar.

Virei e corri para a porta, mas ele conseguiu me agarrar pela camisa. Fui puxada paratrás e percebi que o zumbi não havia sido enfraquecido pelo processo de decomposição. Outramão macabra agarrou meu pescoço e me virou, e percebi que todos convergiam na minhadireção, todos com as mãos estendidas, a boca aberta e o queixo caído.

Eu gritei e empurrei aquelas mãos mortas. Gritei novamente, mais alto, quando minhasmãos tocaram a carne úmida, escorregadia e flácida. Uma das mãos cobriu meu rosto, apertoumeu nariz e a boca, me deixando sem ar. Respirei o cheiro de podre e meus gritos setransformaram em expressões de fúria, enquanto eu lutava para me livrar de todos os corposque se aglomeravam à minha volta, mas eram muitos.

Mordi a mão que me sufocava. Mordi forte.

Meus dedos se fecharam em torno de um dedo e eu investi toda minha força na luta, e

ouvi um som repugnante quando o dedo se desprendeu da mão, cuspi e continuei gritando, járouca, e pisei com força nos pés mais próximos dos meus, mas eram muitos. Outra mãosubstituiu à primeira, e mais uma, puxando meu cabelo, os dedos tentando encontrar meusolhos.

Page 210: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 210/218

210

Eu ia morrer. Os zumbis haviam recebido a ordem para me matar - destruir todosmenos Bryce deduzi. Há quanto tempo ele construía aquele exército em decomposição? A julgarpelo estado dos corpos, há dias. Semanas, até, considerando o que Prairie me dissera sobre adecomposição ocorrer mais lentamente. Talvez mais, se Bryce estivera trabalhando em métodos

para retardá-la.

Eu ia morrer, mas a fúria me mantinha lutando. Meus dedos encontraram carne,empurraram, lutaram, e eu insisti na difícil resistência mesmo quando eles encontraram tecidospodres. Eu sabia que não podia matá-los. Seus corpos patéticos seguiriam se movendo até todacarne se desfazer e eles não serem mais que esqueletos, e só quando os últimos tecidosapodrecessem, eles estariam realmente mortos. Eu, por outro lado, morreria como morrem oshumanos; eles apertariam meu pescoço e me deixariam sem ar, torceriam e quebrariam meusmembros e me jogariam no chão para pisotear a vida para fora do meu corpo.

- Hailey! - Kaz surgiu na porta atrás de mim. Ele hesitou só por um segundo,observando a cena, e depois pegou uma das cadeiras dobráveis. Brandindo-a na frente docorpo, Kaz afastou os zumbis.

Eles se aglomeraram na minha frente, por alguma razão desprovidos do instinto parame cercarem e atacarem pelas costas, e Kaz os atacou com a cadeira, derrubando vários deles,perseguindo os que ainda restavam em pé e repetindo os golpes com força redobrada,impressionante. Ele batia com a cadeira como eu o vira bater com o taco de lacrasse, comprecisão fatal e a força de todos os músculos desenvolvidos e condicionados.

Uma a uma, as mãos foram se afastando de mim. Eles eram lentos para se ajustar àsmudanças de circunstâncias, e tropeçavam uns nos outros e hesitavam, as mãos agarrando o ar,a expressão do rosto inalterada. Os que haviam sido empurrados para longe agora selevantavam do chão e caminhavam para Kaz, e eu compreendi que tinha apenas algunssegundos até eles se adaptarem à nova ameaça. Usei toda minha energia para chutar e arranhar.Consegui libertar meus braços quando chutei as pernas do último zumbi, derrubando-o.

- Agora. - gritei, agarrando o braço de Kaz e puxando-o para a porta. Ele arremessou acadeira contra os zumbis que avançavam, e nós dois caímos contra a porta quando eu a puxeicom força e fechei.

- Estão trancados lá dentro - eu disse, mais como uma prece do que como umaafirmação, e Kaz agarrou minha mão e nós voltamos correndo pelo corredor enfumaçado.

Agora as chamas lambiam o chão, e eu soube que o fogo atingiria a sala do servidor em

Page 211: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 211/218

211

poucos segundos.

- Prairie... - gemi, minha voz sufocada pela fumaça.

- Levei-a para o saguão - Kaz me orientou. - Tente não respirar até sairmos daqui.

Enchi os pulmões de ar pela última vez e o retive, e nós corremos juntos até nãopodermos enxergar através da fumaça, e depois estendemos as mãos para as paredes e nosorientamos assim, seguindo por corredores até atravessarmos o fogo. Senti as chamas melambendo e soube que, se nossas roupas pegassem fogo, estaríamos perdidos, e então,repentinamente, irrompemos no saguão onde a fumaça era mais fina, e eu vi Prairie caída einconsciente ao lado do balcão onde o guarda estivera lendo seu jornal.

Ela parecia morta, a cabeça virada para o lado sobre o braço estendido, e meu coração

parou de bater por um instante.

- Ela vai ficar bem?

- Eu vou tirá-la daqui - Kaz conseguiu dizer, jogando-a sobre um ombro como haviafeito com o guarda anteriormente. Eu tossi, tentando expulsar a fumaça dos pulmões, e quandoo segui para além da porta principal e para o ar frio da noite, respirei com avidez o ar fresco epuro. Antes que pudesse recuperar o fôlego, Kaz agarrou meu braço e me puxou para longe doprédio, para a sombra das árvores enfileiradas na rua.

- Precisamos correr - ele disse.

- E a curadora? - perguntei com voz rouca e arfante. - Ela continua presa lá dentro, emalgum lugar!

Foi quando ouvi as sirenes se aproximando. Kaz também as ouviu. Ele olhou para trás,para o prédio, onde as chamas agora saíam por todas as janelas. Depois olhou para mim comtamanho sofrimento nos olhos, que eu soube que não havia esperança. A curadora morreriasozinha e em agonia, cercada pelas horríveis criaturas que ela fora forçada a criar. Prairie gemeu baixinho e se moveu nos braços de Kaz.

- Precisamos nos apressar - ele repetiu, e eu soube que não voltaríamos a falar sobre acuradora.

Quando acomodamos Prairie no banco de trás, viaturas da polícia e dos

Page 212: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 212/218

212

 bombeiros percorriam as ruas em alta velocidade se aproximando do laboratório. Eudei as costas para o edifício em chamas e olhei pelo para-brisa para a noite fria. Kaz jápisava no acelerador para nos tirar dali.

Page 213: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 213/218

213

Capítulo 27Prairie despertou pouco antes de chegarmos em casa. Ela tinha um hematoma na

cabeça, mas como eu já havia testemunhado como ela se curara do tiro, não me preocupei. Kaza informou sobre tudo que havíamos descoberto no quarto atrás do laboratório, e descreveucomo conseguíramos escapar. Eu ainda não conseguia falar sobre o assunto. Ainda sentia asmãos moles e frias em mim, e sabia que jamais seria capaz de esquecer a sensação dos meusdedos penetrando na carne decomposta das criaturas.

Anna ouviu uma versão muito resumida. Por um acordo tácito, ficara decidido que apouparíamos dos piores detalhes. Os ferimentos de Kaz agora pareciam apenas arranhõessuperficiais, suas mãos funcionavam normalmente, e o buraco em seu braço se fechara, por issonão contamos a ela sobre a verdadeira extensão dos ferimentos. E não mencionamos os zumbis.

Mas ela escutara tudo que os âncoras dos telejornais haviam divulgado, e choroualiviada ao constatar que havíamos escapado do incêndio, que se transformara em um infernoque destruiria completamente todo o prédio. Equipes de emergência se reuniram no local, enesse momento os trabalhadores tentavam salvar os prédios vizinhos. Havia doissobreviventes: o guarda de segurança fora encontrado vagando pelo fundo do edifício, tonto edesorientado, mas sem nenhum outro ferimento. Ele não conseguiu dar detalhes sobre ocomeço do incêndio, porque as lembranças dos eventos daquela noite terminavam nosanduíche que comera no intervalo do jantar.

O outro sobrevivente fora retirado do prédio em uma maca.

Vimos a mesma cena várias cenas pela televisão. E nenhum de nos conseguia desviaros olhos da tela. - É ele - Prairie disse na primeira vez, quando viu pela televisão os médicoscarregando a maca para uma ambulância parada perto dali. - São os sapatos dele.

Page 214: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 214/218

214

Mas só havia um pé. Um mocassim de couro que havia descascado e formado bolhasno calor do incêndio, mas permanecera no pé de Bryce. O outro pé estava descalço, e eraevidente que a calça fora destruída pelo fogo. A carne enegrecida da perna de Bryce ficou

visível assim que a câmera o focalizou.

- Queimaduras em mais de oitenta por cento do corpo - o repórter anunciou com tomsigiloso, sem esconder a excitação. A história geraria material para os jornais por alguns dias,era evidente, especialmente porque os "detalhes inusitados" sobre o laboratório sugeriam queali era realizada importante pesquisa científica com recursos fornecidos pela universidade,embora ninguém ainda houvesse confirmado essa informação.

Bebemos café forte enquanto assistíamos ao jornal. Anna preparou um prato desanduíches e os colocou sobre a mesa enquanto os primeiros raios rosados tingiam o céu lá fora,

anunciando a chegada de um novo dia, mas ninguém tocou neles. Eu me perguntava seconseguiria voltar a dormir algum dia, se o amanhecer não se tornaria uma imagem comumpara mim.

Quando eu começava a cochilar com a cabeça apoiada em Prairie, a voz do âncorainterrompeu a transmissão. - Lá está, queridos telespectadores - ele disse, incapaz de esconder aanimação. - Conforme previsto parece que o edifício está completamente... Oh, meu Deus,vejam aquilo!

Todos nos inclinamos para frente quando o prédio desmoronou em câmera lenta, ospisos superiores se desmanchando como um modelo de papel machê.

Segurei a mão de Prairie. - Eles devem estar mortos - sussurrei, mas nós duas sabíamosque era uma pergunta.

Ela assentiu. - Foi anunciado que a temperatura ultrapassou os quinhentos graus. Eagora isso... nada mais será encontrado quando o fogo for debelado. Talvez alguns fragmentosde ossos.

Eu assenti e me aproximei um pouco mais dela, rezando para que estivesse certa, paraque os zumbis queimassem como todas as outras criaturas. E tentando não pensar na Curadorapresa lá dentro.

Um momento depois, porém, ela ficou tensa.

- Esquecemos - disse, ajeitando o cobertor que nos cobria. Esquecemos seu

Page 215: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 215/218

215

apartamento. Temos que ir lá para destruir todos os documentos e backups.

Eu ergui o corpo. Kaz já estava se levantando. Anna tentou puxá-lo de volta. - Agoranão - ela disse. - Está exausto. Tudo lá foi destruído, Bryce está no hospital, provavelmente vai

morrer.

Mas ela não vira os zumbis. Nós os havíamos visto.

A discussão foi encerrada quando Kaz abraçou Anna com força, interrompendo seudiscurso. - Amo você, mãe - ele disse cada sílaba uma promessa. - E vamos voltar inteiros.

O trajeto e volta a Evanston foi ainda mais difícil do que na primeira vez, embora nãohouvesse lá mais nada que pudesse nos atingir. Tudo havia sido destruído pelo incêndio. Masnão havia mais em nós a energia de antes. Aquela era uma viagem triste, o final de uma jornada

que fora marcada por ganhos e perdas, e mal falamos durante todo o tempo, exceto quandoPrairie dava uma ou outra orientação com relação ao trajeto.

Encontramos uma vaga em uma rua movimentada, e Kaz manobrou o automóvel paraencaixá-lo no espaço reduzido. O prédio de apartamentos tinha poucos anos, e era uma torrereluzente de tijolos, aço e vidro.

- O que há nos documentos, afinal? - Kaz perguntou quando saímos do carro.

Ele levara a mochila, mas dessa vez a usaríamos para tirar coisas do apartamento e

levá-las conosco. Prairie havia dito que tudo que precisávamos pegar estava em uma gaveta dearquivo, e havia também o laptop de Bryce. Planejávamos rasgar os documentos assim quevoltássemos para a casa de Anna, onde destruiríamos o laptop também.

- Até onde sei, são basicamente anotações que ele fazia para uso próprio. Talvez astenha transferido para arquivos eletrônicos posteriormente, mas havia listas manuscritas, comoaquela de que lhe falei sobre os contatos em exércitos estrangeiros. Não sei realmente o que hánesses papéis, mas imagino que tenhamos de nos garantir.

No hall reluzente, o segurança assentiu e sorriu para Prairie. Ele a reconhecia de suasvisitas anteriores era óbvio. Bryce não devia ter informado ao guarda sobre a mudança nascircunstâncias do relacionamento. Quando nos aproximamos dos elevadores, Prairie seaproximou de mim, o bastante para eu poder ver as linhas finas em torno de seus olhos, asolheiras profundas sob eles. Ela parecia muito cansada.

Page 216: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 216/218

216

- Está quase acabando - Prairie me disse em voz baixa, e tentei decidir se ela tentava seacalmar tanto quanto queria me tranqüilizar.

O elevador subiu lentamente até a cobertura. Percorremos um corredor acarpetado e

suavemente iluminado. Havia apenas dois apartamentos, as coberturas. Prairie introduziu achave na fechadura e o último obstáculo foi removido. Bryce não tivera tempo para mudar asfechaduras, mas eu havia aprendido a não tomar nada por certo.

A porta se abriu revelando um belo apartamento discretamente mobiliado. O sol domeio-dia iluminava a superfície de mesas, os pisos de madeira, um vaso de tulipas. Os móveiselegantes foram arranjados em torno de um tapete estampado. Tudo parecia normal.Convidativo, até. Meus ombros praticamente se encurvaram com o alívio. Finalmente, eu sentiaque havíamos chegado ao final da jornada.

- Vamos levar só um minuto - disse Prairie, voltando à mesa na sala íntima ao lado dasala de estar, onde começou a reunir alguns papéis.

Kaz estendeu o braço para me amparar, e eu me apoiei nele, deixando que ele meapoiasse, respirando o cheiro confortante de roupa limpa e sabonete. Meus olhos se fecharam, eeu me perguntei se seria possível dormir em pé, porque eu me sentia capaz de dormir parasempre.

Foi quando ouvi a voz.

- Sr. Safian?

Era uma voz feminina com forte sotaque estrangeiro, uma voz parecida com a deAnna, mas mais próxima de suas raízes polonesas. Eu fiquei paralisada ao sentir a tensão deKaz ao meu lado. Prairie derrubou os papéis.

A voz soou atrás de uma porta fechada no final do corredor.

Olhei para Prairie expressando minha confusão. - Quarto de hóspedes - ela sussurrou.Dei um passo naquela direção, mas ela me deteve tocando meu braço.

- Ela é Banida - eu disse, porque podia senti-Ia mesmo através da porta fechada,mesmo de longe. O pulsar do sangue, os sentidos aguçados, tudo estava ali.

- Sr. Safian? - a voz repetiu, agora choramingando. - Fiquei sozinha a noite toda. - Sr.

Page 217: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 217/218

217

Safian!

- É ela - disse Kaz. - Aquela que vi pela visão. Só pode ser.

- Não sabemos - disse Prairie. - Não podemos ter certeza...

- Não voltou, prometeu voltar, não voltou, estou com muito medo.

A voz se transformou em soluços. A mão de Prairie apertou meu braço, e um medorenovado brotou em meu peito, progredindo rapidamente para o terror.

- Por favor, não fique zangado, Sr. Safian. Faremos o seu trabalho não vamos maislutar, não vamos mais resistir. Faremos o que nos mandar fazer. Agora traga minhas irmãs, porfavor. Traga minhas irmãs de volta para mim?

Fim  

Page 218: Banished - Sophie Littlefield (PT)

7/31/2019 Banished - Sophie Littlefield (PT)

http://slidepdf.com/reader/full/banished-sophie-littlefield-pt 218/218

218