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357 Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 15-16: 357-370, 2005-2006. Desde a penúltima década do século XIX, quando teve início o colecionamento etnográfico no Alto Xingu, a cerâmica wauja tem sido a classe de artefatos mais coletada. Desde as duas últimas décadas, somam-se a essa antiga “diáspora” de objetos milhares de “panelinhas” que os Wauja 1 produzem especialmente para as lojas de artesanato indígena. Contudo, o que se sabe sobre a cerâmica wauja não corresponde à sua impressionante dispersão pelo mundo. Esse enorme volume de artefatos cerâmicos é bastante variado dos pontos de vista formal, estético e das economias simbólicas em que eles se inscrevem. O objetivo desse artigo é oferecer alguns subsídios etnográficos para compreender essa heterogeneidade. A CERÂMICA WAUJA: ETNOCLASSIFICAÇÃO, MATÉRIAS-PRIMAS E PROCESSOS TÉCNICOS* Aristóteles Barcelos Neto** BARCELOS NETO, A. A cerâmica wauja: etnoclassificação, matérias-primas e processos técnicos. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 15-16: 357-370, 2005-2006. RESUMO: A cerâmica wauja é a mais elaborada classe de artefatos do sistema de objetos do Alto Xingu. Seus tipos variam desde minúsculas panelinhas até enormes panelas com 115 cm de diâmetro. Este artigo descreve o sistema nativo de classificação da cerâmica e seu padrão geral de fabricação, atentando para os detalhes que distinguem as qualidades técnica e estética das panelas conforme as percepções wauja. UNITERMOS: Índios Wauja – Cerâmica – Alto Xingu. (*) Quero registrar minha gratidão aos Wauja, em especial a Atamai, Itsautaku, Aulahu, Kamo, Yanahin, Kuratu e Hukai. Meus trabalhos de campo foram financiados pelo Governo do Estado da Bahia e pelo Funpesquisa/UFSC (ano de 1998), pelo Museu Nacional de Etnologia (ano 2000), pela FAPESP (anos de 2001, 2002, 2004 e 2005) e pelo Musée du quai Branly (ano de 2005). A CAPES e a FAPESP concederam-me bolsas de estudos em diferentes etapas da pesquisa. Agradeço a Lux Vidal, Maria Rosário Borges, Pedro Agostinho, Maria Rosário Carvalho, Michael Heckenberger, Rafael Bastos, Carlos Fausto e Bruna Franchetto os incentivos para o desenvolvimento das minhas pesquisas no Alto Xingu. (**) Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Pós-doutorando [email protected] (1) O leitor encontrará na literatura etnológica o termo “Waurá”, que é o etnônimo difundido desde a primeira publicação sobre o Alto Xingu (Steinen 1886). Optei grafar “Wauja” por este ser o etnônimo auto-atribuído. Os Wauja são um povo de língua arawak que, há mais de um século, habita as proximidades da margem direita do baixo rio Batovi, na região ocidental da bacia dos formadores do rio Xingu, estado do Mato Grosso, Brasil Central. No entanto, a história dos Wauja no Alto Xingu é bem mais antiga, pesquisas arqueológicas recentes apontam a chegada dos seus ancestrais à região por volta do século IX d.C. (Heckenberger 2001). Desde o século XVIII teve início nessa região a formação de um sistema social multiétnico que integra, além dos Wauja, outros nove grupos de diferentes filiações lingüísticas – Mehinako e Yawalapíti (Arawak); Kuikuro, Kalapalo, Matipu e Nahukwá (Carib); Kamayurá (Tupi-Guarani), Aweti (Tupi) e Trumai (de língua isolada). Os Wauja somam uma população de aproximadamente 380 pessoas, das quais 330 residem em uma aldeia circular com o sistema de praça central e casa das flautas.

BARCELOS NETO, Aristóteles. Cerâmica Wauja

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Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 15-16: 357-370, 2005-2006.

Desde a penúltima década do século XIX,quando teve início o colecionamento etnográficono Alto Xingu, a cerâmica wauja tem sido aclasse de artefatos mais coletada. Desde as duasúltimas décadas, somam-se a essa antiga“diáspora” de objetos milhares de “panelinhas”que os Wauja1 produzem especialmente para aslojas de artesanato indígena. Contudo, o que se

sabe sobre a cerâmica wauja não corresponde àsua impressionante dispersão pelo mundo. Esseenorme volume de artefatos cerâmicos é bastantevariado dos pontos de vista formal, estético edas economias simbólicas em que eles seinscrevem. O objetivo desse artigo é ofereceralguns subsídios etnográficos para compreenderessa heterogeneidade.

A CERÂMICA WAUJA: ETNOCLASSIFICAÇÃO,MATÉRIAS-PRIMAS E PROCESSOS TÉCNICOS*

Aristóteles Barcelos Neto**

BARCELOS NETO, A. A cerâmica wauja: etnoclassificação, matérias-primas e processos técnicos.Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 15-16: 357-370, 2005-2006.

RESUMO: A cerâmica wauja é a mais elaborada classe de artefatos do sistemade objetos do Alto Xingu. Seus tipos variam desde minúsculas panelinhas até enormespanelas com 115 cm de diâmetro. Este artigo descreve o sistema nativo de classificaçãoda cerâmica e seu padrão geral de fabricação, atentando para os detalhes que distinguemas qualidades técnica e estética das panelas conforme as percepções wauja.

UNITERMOS: Índios Wauja – Cerâmica – Alto Xingu.

(*) Quero registrar minha gratidão aos Wauja, em especiala Atamai, Itsautaku, Aulahu, Kamo, Yanahin, Kuratu eHukai. Meus trabalhos de campo foram financiados peloGoverno do Estado da Bahia e pelo Funpesquisa/UFSC(ano de 1998), pelo Museu Nacional de Etnologia (ano2000), pela FAPESP (anos de 2001, 2002, 2004 e 2005) epelo Musée du quai Branly (ano de 2005). A CAPES e aFAPESP concederam-me bolsas de estudos em diferentesetapas da pesquisa. Agradeço a Lux Vidal, Maria RosárioBorges, Pedro Agostinho, Maria Rosário Carvalho,Michael Heckenberger, Rafael Bastos, Carlos Fausto eBruna Franchetto os incentivos para o desenvolvimentodas minhas pesquisas no Alto Xingu.(**) Departamento de Antropologia da Faculdade deFilosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade deSão Paulo. Pós-doutorando [email protected](1) O leitor encontrará na literatura etnológica o termo“Waurá”, que é o etnônimo difundido desde a primeirapublicação sobre o Alto Xingu (Steinen 1886). Optei grafar

“Wauja” por este ser o etnônimo auto-atribuído. OsWauja são um povo de língua arawak que, há mais de umséculo, habita as proximidades da margem direita do baixorio Batovi, na região ocidental da bacia dos formadores dorio Xingu, estado do Mato Grosso, Brasil Central. Noentanto, a história dos Wauja no Alto Xingu é bem maisantiga, pesquisas arqueológicas recentes apontam achegada dos seus ancestrais à região por volta do séculoIX d.C. (Heckenberger 2001). Desde o século XVIII teveinício nessa região a formação de um sistema socialmultiétnico que integra, além dos Wauja, outros novegrupos de diferentes filiações lingüísticas – Mehinako eYawalapíti (Arawak); Kuikuro, Kalapalo, Matipu eNahukwá (Carib); Kamayurá (Tupi-Guarani), Aweti (Tupi)e Trumai (de língua isolada). Os Wauja somam umapopulação de aproximadamente 380 pessoas, das quais330 residem em uma aldeia circular com o sistema de praçacentral e casa das flautas.

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BARCELOS NETO, A. A cerâmica wauja: etnoclassificação, matérias-primas e processos técnicos. Rev. do Museu de Arque-ologia e Etnologia, São Paulo, 15-16: 357-370, 2005-2006.

Diferentes aspectos da cerâmica wauja foramdescritos por Lima (1950), Schultz (1972), Coelho(1981), Hartmann (1986), Myakaki (1978),Heckenberger (1996) e Barcelos Neto (2000).2Nenhuma dessas contribuições e nem mesmo oconjunto delas são exaustivos. Aliás, a cerâmicawauja é um objeto de estudo que está longe deatingir a exaustão. Nesse sentido, é importantemencionar que a profundidade temporal de 1000 anosda cerâmica arawak no Alto Xingu (Heckenberger1996 e 2001) é um desafio apenas preliminarmenteenfrentado. Ademais, deve-se considerar acomplexa circunscrição da cerâmica em temascosmológicos, sociopolíticos e estéticos (BarcelosNeto 2004a, 2004b, 2004c).

Concentrei o escopo deste artigo em aspectostecno-formais. Todavia, apesar de a técnica defabricação ser uma só – por modelagem3 –, osresultados finais têm significativas variações. Isso sedeve às habilidades desenvolvidas por cadaceramista. Alguns deles esforçam-se durante váriosanos seguidos para aperfeiçoar sua técnica. Doponto de vista wauja, são as diferenças no resultadofabril que interessam, pois elas implicam na durabilidadeda peça e no seu uso como pagamento ritual –peças de má qualidade não podem ter esse destino.

Alguns aspectos sociais da produção cerâmica

A arte oleira wauja corresponde à maiselaborada classe de artefatos do sistema de objetosdo Alto Xingu. Seus tipos variam desde minúsculaspanelinhas que cabem na palma de uma mão atéenormes panelas de 115 cm de diâmetro. Quandodestinadas aos rituais, as panelas são recobertas

com pinturas cuidadosas e refinadas que afirmam aeficácia estética que esses objetos devem ter em taiscontextos. A cerâmica wauja é suporte pedagógicodurante a reclusão pubertária das meninas, de brinca-deiras infantis, de tradução de imagens oníricas dosxamãs, de prestígios político e econômico, somadosao seu caráter de “objeto de luxo”, e de afirmaçãoidentitária na trama xinguana e extra-xinguana.

A tradicional reunião diária que os homensfazem em frente à “casa das flautas” (kuwakuho),ao anoitecer, é um evento excepcional para oetnólogo tentar entender os fatos do dia e saber oque poderá ocorrer nos dias seguintes. Váriosassuntos entram em pauta, mas nem todos indivídu-os participam diretamente ou opinam nas conver-sas. Com certa freqüência participei dessasreuniões. Num dia em particular, no início da minhatemporada de campo de 1998, o chefe Atamaitransmitiu recados recebidos pelo rádio: encomen-das de panelas feitas pelos Kamayurá e por outrasaldeias do norte do Parque Indígena do Xingu,avisos de que alguns Yawalapíti e Mehinakovisitariam a aldeia para buscar panelas anteriormen-te encomendadas e a cobrança de uma panelanukãi por um senhor Kuikuro, que a esperavaansiosamente, pois sua nukãi de cozinhar o caldovenenoso da mandioca tinha se quebrado, semanasantes. Os Wauja ficaram por alguns minutoscomentando sobre os recados e discutindo sobre odespacho das encomendas. Nessa mesma reunião,perguntei a um dos meus informantes qual era aimportância das panelas para os Wauja. Sempensar muito ele respondeu: “panela é nossa vida”.No dia seguinte, abordei o assunto das encomen-das de panelas com o meu anfitrião, o chefeAtamai, rapidamente ele começou a falar dosceramistas que ele julgava mais competentes e daimportância das panelas: “panela é escola mesmo.Panela é escola do Waurá”.

Para os Wauja, a “panela” é um tipo de“escola” estratégica no complexo jogo das identi-dades “étnicas” no Xingu e no panorama docontato com a sociedade nacional. As panelas sãouma metáfora da identidade Wauja. O aprendizadoda modelagem ensina os Wauja a serem Wauja.Esse discurso pode ser observado em várioscontextos, seja quando os Wauja oferecemexegeses míticas ou quando valorizam suas exímiashabilidades como ceramistas.

Conta esse povo de língua arawak que, hámuito tempo, todos os tipos de artefatos cerâmicos

(2) Nesse artigo, abordei apenas aspectos mito-cosmológicosrelativos à cerâmica. Segundo a visão perspectivista/animista que os Wauja possuem da sua cultura material,as panelas ligam-se ontologicamente a seres não-humanos (apapaatai e yerupoho), cuja agência patológi-ca consubstancia-se diretamente na argila e demaismatérias-primas usadas na fabricação e pintura dacerâmica. Em Barcelos Neto (2001), o leitor encontrará umadescrição do esquema de classificação dos seres não-humanos a partir das interpretações visuais que os xamãsfazem da mito-cosmologia wauja.(3) Como descrevo a seguir, os Wauja não utilizam atécnica de acordelamento, tão difundida em outras regiõesda Amazônia (Silva 2000).

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chegaram navegando e cantando sobre o dorso deuma grande cobra-canoa chamada Kamalu Hai.4Nessa ocasião, a cobra ofereceu-lhes a visãoprimordial desses artefatos, o que conseqüentementelhes conferiu o conhecimento exclusivo sobre a arteoleira da cobra-canoa. Além disso, antes de ir emborapara o oceano, Kamalu Hai defecou enormesdepósitos de argila ao longo do médio e baixo rioBatovi, para que os Wauja pudessem fazer suaprópria cerâmica. Os Wauja afirmam que a KamaluHai apareceu apenas para eles, por isso nenhumoutro povo do Alto Xingu sabe fazer cerâmica.5

Na aldeia Wauja, toda casa tem um ou maisceramistas. Aproximadamente 60% da populaçãoadulta fabricam ou têm, pelo menos, conhecimentodos processos técnicos de fabricação da cerâmicae de sua pintura. Nalgumas casas, há até cincoceramistas ativos. Ao fazer o levantamento de cadaunidade residencial de produção cerâmica, noteique os ceramistas considerados, pelos Wauja, osmais competentes e mais produtivos concentravam-se nas mesmas unidades residenciais ou tinhamlaços de parentesco consangüíneo. A investigaçãodas genealogias dos ceramistas aponta para o fatode que nesse grupo arawak a transmissão dosconhecimentos artísticos mais sofisticados tendem aassociar-se às altas “linhagens” de chefia. Dessemodo, a “escola da panela” tende a acompanhar ashierarquias internas wauja.

Mesmo tendo muitos ceramistas de ambos osgêneros na aldeia Wauja, apenas alguns são, defato, considerados exímios. Os melhores ematividade agrupam-se respectivamente em doisnúcleos de parentelas consangüíneas.

O aprendizado da cerâmica começa nareclusão pubertária, que funciona como a primeira“escola da panela”. Noto que essa “escola” só éoperativa dentro do grupo de substância do aprendiz,pois ninguém sai do seu grupo de substância para ficarrecluso em outro grupo. Em geral são as meninas que

aprendem cerâmica na reclusão pubertária. Oshomens, por sua vez, aprendem/começam a fazercerâmica depois dos trinta e cinco anos, porém, desdea adolescência participam de uma ou outra etapada coleta e processamento de matérias-primas.

A transmissão de conhecimentos artísticosespecíficos durante a puberdade e adolescência deuma pessoa restringe-se às relações de naturezaconsangüínea mais imediata, e isso não é válidoapenas para o aprendizado da cerâmica: os poucosaprendizes de músicas de flautas sagradas Kawokátambém são da parentela consangüínea do seuprofessor. Entre os Wauja, nenhum tipo deconhecimento artístico é difundido indistintamente,ele tende a ser reproduzido dentro do mesmogrupo de substância ou no máximo dentro damesma parentela consangüínea do seu conhecedor.Desse modo, é de se esperar concentrações deindivíduos talentosos, ou incompetentes também, deacordo com esta “segmentação” do conhecimento.No entanto, isso não garante que todos os aprendi-zes de um determinado grupo conservarão oconhecimento e a destreza em certas artes.

Existem os ceramistas que modelam bem, masque desenham relativamente mal, os que modelam edesenham bem, e os que são incompetentes emambas as técnicas. No entanto, há alguns homensque desenham bem, mas que não sabem modelar.Aparentemente, seria impreciso afirmar que amodelagem é uma arte “mais” feminina e o desenhoornamental “mais” masculino, visto que ambos osgêneros dominam tanto uma técnica quanto a outra.Contudo, num panorama mais amplo da culturamaterial, o desenho ornamental é mais masculino namedida em que os homens produzem uma diversi-dade muito maior de artefatos ornamentados, alémde terem uma pintura corporal mais complexa que afeminina. Há uma lista extensa de artefatos decultura material que apenas os homens sabem (oupodem) fazer: a composição de desenhos ornamen-tais no trançado é, por exemplo, uma arte exclusi-vamente de conhecimento masculino.

Etnoclassificação

Os artefatos cerâmicos wauja extrapolam umaclassificação enquanto equipamento meramentedoméstico. Muito do que é produzido atualmentedestina-se ao mercado de artesanato indígena, emespecial as panelas zoomorfas. Há também uma

(4) Vide texto completo da narrativa mítica em BarcelosNeto (2000 e 2002).(5) Há também ceramistas na aldeia mehinako, porém, osWauja afirmam que se trata de pessoas de ascendênciawauja e que, além disso, os poucos Mehinako que sabemfazer cerâmica teriam aprendido com os Wauja residentesem sua aldeia. Essas afirmações conferem com os dadosque obtive em 1998, 2000, 2001, 2002 e 2004 sobreemigrações temporárias de famílias ceramistas wauja paraa aldeia mehinako.

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panela (yanapo) usada exclusivamente no ritual deiniciação masculina (Pohoká) e vários artefatosfeitos com interesses puramente estéticos oulúdicos. Imagens oníricas dos xamãs podem, porexemplo, orientar a forma de uma panela, a qualmuitas vezes não integrará o equipamento domésti-co de nenhuma casa, trata-se nada mais do que umobjeto de deleite. A “panela-arara” (kajujutokana,Fig. 1) e a “imagem do veado-monstro” (kautá-kumã opotalapitsi) são exemplares da traduçãoplástica para a cerâmica de sonhos do xamãvisionário-divinatório (yakapá) Itsautaku.6

Além das propriedades utilitárias e formais queinformam o sistema de classificação da cerâmica,agregam-se aquelas de caráter cosmológico. Uma

e graves, sendo os primeiros cantados pelaspanelas menores e os segundos pelas maiores. Achegada mítica das panelas dá-se como umadramatização musical da sua natureza físico-formal,a escala tonal correspondendo à sua escaladimensional, a qual por sua vez está ligada àspropriedades utilitárias de cada panela. Porém, éimportante mencionar que a ligação entre essasescalas não é feita de uma maneira taxonômica.

O som próprio de cada panela é percebidocom leves batidas em seu fundo externo, a resso-nância permite ao Wauja examinar a boa ou máconsistência da manufatura. Além disso, procede-sea verificação ocular e tátil do polimento e depossíveis fissuras ocorridas durante a queima dapanela. O canto mítico das panelas é um índice desua forma. Na atualidade, esse canto é transformadonum modo êmico de perceber a qualidade dos objetoscerâmicos, portanto não devendo ser confundidocomo um modo classificatório dos mesmos.

As listas abaixo obedecem aos critérios nativosque classificam a cerâmica por classe e dentro decada classe por tamanho decrescente. Existemcinco classes (kamalupo, makula, héjé, tsaktsake panelas “zoomorfas”) e outros cinco tipos deartefatos cerâmicos isolados, ou seja, não agrupáveisem nenhuma das classes acima.

1. Kamalupo

Kamalupo (Figs. 2 e 8) é a classe de panelasde borda extrovertida e lábio arredondadogeralmente empregada no processamento damandioca e no armazenamento de alimentos. Asgrandes dimensões da base externa das kamalupo(algumas chegam a 115 cm de diâmetro, como akamalupo weke) permitem a elaboração decomposições gráficas complexas com motivosvariados, algo raro de ser encontrado em panelascom diâmetro externo inferior a 60 cm. A alturaexterna das kamalupo varia entre 35 e 58 cm. Odiâmetro da base externa é a medida de maiorvariação – de 60 a 115 cm. Há oito tipos dekamalupo, os quais não são determinados pelouso e sim pela relação entre altura e diâmetroexternos. Porém, é importante esclarecer que odiâmetro da base externa e a altura das paredesexternas são os índices que qualificam aspotencialidades de uso das kamalupo. Ou seja,são as dimensões que determinam os usos e nãoos usos que determinam o tipo.

Fig. 1 – Panela-arara fabricada por ItsautakuWauja a partir de um sonho xamânico.

abordagem mais detalhada da relação entre acosmologia e o sistema visual já foi realizada alhures(Barcelos Neto 2002 e 2004a: cap. 5). A mitologiawauja aponta uma relação curiosa entre as proprie-dades formais e sonoro-musicais dos objetoscerâmicos, a qual merece aqui algumas considerações.

Conta um mito que todos os tipos de artefatoscerâmicos chegaram originalmente navegandosobre o dorso de uma grande cobra chamadaKamalu Hai. As panelas7 chegaram cantando onome de Kamalu Hai numa escala de tons agudos

(6) Vide Barcelos Neto (2002) para uma etnografia desseprocesso de produção artística a partir do sonho e do transe.(7) No presente contexto, este termo inclui também ostorradores de beiju.

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As kamalupo possuem uma sub-lasserepresentada por três tipos de panelas (Heitein,Nunukatsãi e Nunukatsãitãi) cujo diâmetro dabase exterior mede entre 30 e 60 cm e a altura dasparedes externas não é superior a 35 cm. Suas

dimensões reduzidas limitam o seu uso a armazenare a servir alimentos líquidos de consumo rápido.Esses três tipos de panelas tiveram sua fabricaçãodrasticamente reduzida após a invasão doscaldeirões de alumínio (Tabela 1).

2. Makula

Makula (Fig. 3) é a classe de panelas de usodiverso com borda extrovertida e lábio plano,formando uma espécie de disco. Algumas são tãograndes quanto as kamalupo, com o detalhe deque podem ter maior altura e/ou menor espessuradas paredes e bordas. A altura média das panelasmakula varia entre 20 e 40 cm (Tabela 2).

3. Héjé

Héjé (Fig. 4) é a classe de artefatos cerâmicoscorrespondente ao torrador de beiju, um dos

Fig. 2 – Panela kamalupo weke.

Nome da panelaDimensões médias

do diâmetro da base

TABELA 1

Kamalupo weke

Kamalupo ahãpupuku (ou majatãpo)

Nukãi

Kamalupo mayayapo

Kamalupo tapapuku

Kamalupo kurisepun

Misapo

Witsopo

Heitein

Nunukatsãi

Nunukatsãitãi

Cozinhar caldo venenoso da mandioca,armazenar polvilho, farinha e água

Cozinhar caldo venenoso da mandioca,armazenar polvilho, farinha e água,espremer e lavar a massa da mandioca.

Ralar mandioca, cozinhar caldovenenoso da mandioca, pequi esementes de urucum

Cozinhar caldo venenoso da mandioca,espremer e lavar a massa da mandioca

Cozinhar caldo venenoso da mandioca,espremer e lavar a massa da mandioca

Cozinhar caldo venenoso da mandioca

Espremer e lavar a massa da mandioca

Ralar mandioca

Transportar água

Armazenar e servir mingau

Armazenar e servir mingau

Usos

90 a 115 cm

80 a 95 cm

65 a 80 cm

65 a 80 cm

65 a 80 cm

65 a 80 cm

60 a 70 cm

60 a 70 cm

55 a 60 cm

40 a 55 cm

30 a 40 cm

1.1

1.2

1.3

1.4

1.5

1.6

1.7

1.8

1.9

1.10

1.11

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poucos objetos do equipamento doméstico quecontinua insubstituível pela tecnologia de artefatosde metal. O héjé possui pequenas bordas extrover-tidas e lábios suavemente arredondados. Juntamen-te com as kamalupo de grandes dimensões, o héjéé o artefato cerâmico mais apreciado pelos Wauja.Considerado absolutamente indispensável, o héjéocupa o centro da casa, o ponto entre as portasfrontal e traseira e os dois postes centrais desustentação do teto (Tabela 3).

Fig. 3 – Panela makula weke.

Nome da panela Dimensões médiasdo diâmetro da base

TABELA 2

Makula weke

Makula tapapuku

Makula tapapukutãi

Makula

Makulatãi

Makulatãitsãi

Cozinhar grandes quantidades de peixe, sementes deurucum e pequi, espremer e lavar a massa da mandioca,cozinhar caldo venenoso da mandioca na falta de umanukãi

Cozinhar peixe

Cozinhar peixe

Cozinhar peixe, torrar farinha

Panela pequena usada para comer peixe individualmente,normalmente pertence a homens adultos casados

Panela muito pequena usada para comer peixeindividualmente, normalmente pertence a criançasepré-adolescentes

Usos

75 a 85 cm

70 a 75 cm

65 a 70 cm

45 a 65 cm

20 a 45 cm

10 a 20 cm

2.1

2.2

2.2

2.3

2.4

2.5

Fig. 4 – Torrador de beiju.

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4. Tsaktsak

As panelas tsaktask são conhecidas porterem no interior bolinhas de cerâmica que astornam semelhantes a um chocalho. Possuem,invariavelmente, bordas extrovertidas e lábiosarredondados. Sua fabricação também foiamplamente reduzida após o ingresso de caldeirõesde alumínio (Tabela 4).

5. Panelas zoomorfas

Esta é a classe de artefatos cerâmicos queapresenta a maior diversidade de formas. Sãoas únicas panelas que possuem borda direta.Não há nenhuma prescrição formal para amodelagem dessas panelas. É possível encon-trar panelas-morcego com borda direta ouextrovertida, e panelas-pássaro com lábioarredondado ou plano. A combinação de formasé bastante livre. As bordas podem receberapêndices a formar cabeças, patas, antenas,asas, braços, pernas, ferrões e rabos. É

possível encontrar pernas ou pés aplicados nabase, e cabeças nas extremidades opostas deuma mesma panela a formar um apapaataibicéfalo.

Nas panelas zoomorfas é representado umnúmero muito extenso de animais (Figs. 1 e 5),inclusive aqueles conhecidos após o contato comos brancos, como cachorros, gatos, galinhas,vacas e animais nativos de outros continentes queos índios conhecem em zoológicos. A modelagemdesses animais “estrangeiros” não é freqüente.Algumas panelas inspiradas em dinossauros vistosem filmes exibidos na televisão fizeram sucessoentre os Wauja tanto como brinquedo infantilquanto como recipiente para servir alimentos. Osanimais dos ecossistemas xinguanos são ospreferidos para modelagem. Em 1998 e 2000,identifiquei a representação de 47 espécies deanimais nativos na cerâmica, conforme a lista daTabela 5.

As dimensões das panelas zoomorfas variamenormemente: há algumas que cabem na palma deuma mão (Fig. 6) e outras tão grandes que servem

Nome do artefato Dimensões médiasdo diâmetro da base

TABELA 3

Héjé weke

Héjé ahãponapuku

Héjé ahãponapukutãi

Héjé ahãkapuku

Héjétãi

Torrar beijus muito grandes, em geral aqueles servidosdurante as festas inter-aldeãs

Torrar beijus grandes

Torrar beijus para unidades familiares de 10 a 12 pessoas

Torrar beijus para unidades familiares de 7 a 9 pessoas

Torrar beijus pequenos

Usos

90 a 105 cm

80 a 90 cm

65 a 80 cm

45 a 65 cm

35 a 45 cm

3.1

3.2

3.3

3.4

3.5

Nome da panela Dimensões médiasdo diâmetro da base

TABELA 4

Tsaktsak weke

Tsaktsak

Tsaktsaktãi

Tsaktsaktãitsãi

Servir mingau de pequi e mandioca

Servir mingau de pequi e mandioca

Destinada ao mercado de artesanato indígena

Destinada ao mercado de artesanato indígena

Usos

45 a 50 cm

25 a 45 cm

15 a 25 cm

5 a 15 cm

4.1

4.2

4.3

4.4

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Wauja Latim

TABELA 5

AwajatualuAluwaAtapojaAutuAwauluEyusiEwejoIkixunoIxehoIyumuKãkãyaKajujutoKajutukaluKyakyaKujupojaKulukulusiKumesiKupáMalulaMeiMepelesiOutalaPahoPuixaSakaluTalapiTalauTemeTeme okupalaTikauTulupiTupatuUlakoUlupu-kumãYakáYalatuYanumaka kapalaYanumaka yalakiYapuYasiyuláYulumaYumaYutáWajãWapiWejejeWeu

UrubuMorcegoVespaQueixadaRaposaRãAriranhaAbelhaCapivaraMutumGaivotaAraraSapo-cururuCorujaGavião-real“Pássaro grande, parece urubu, come minhoca”Beija-florCarrapatoTatu-canastra“Formigão”SanguessugaOnça pardaMacaco-pregoMatrinchãPapagaioPeixe-pato“Pássaro parecido com tapa-tapa”Anta“Carrapato de anta” ou “Carrapato estrela”“Parece rã”Peixe pintadoPeixePeixe-elétricoUrubu-reiJacaréCaranguejoOnça pintadaOnça pintada negraArraia“Parece pato, só que mergulha”PiranhaPirararaVeado campeiroPássaroPeixe cachorra“Parece rã, mas é menor”Escaravelho

Português

Coragyps atratus foetensChiroptera spp.Espécie não identificadaTayassu pecari pecariDusicyom velutusPipa pipaPteronura brasiliensisApis melliferaHydrochoerus hydrochaerisCrax fasciolataLarus maculipennisAnodorhynchus sp.Bufo marinusBubu virginianus nacurutuHarpya harpyaEspécie não identificadaTrochilidae sp.Gênero AmblyommaPriodontes giganteusEspécie não identificadaHirudrus medicinalisFelis pardalisCebus apellaCharacidae sp.Amazona aestivaEspécie não identificadaEspécie não identificadaTapirus terrestrisGênero AmblyommaEspécie não identificadaPseudoplatystoma corruscansEspécie não identificadaElectrophorus electricusSarcorramphus papaCaiman crocodilusTrichodactylus fluviatilisPanthera oncaPanthera oncaElipisurus strongylopterusEspécie não identificadaPygocentrus sp.Phractocephalus sp.Ozotocerus bezoarticusEspécie não identificadaRaphiodon sp.Espécie não identificadaEspécie não identificada

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para cozinhar um peixe-cachorra inteiro, como aitsakana8 (panela-canoa). No conjunto de panelasque a literatura xinguana denomina “zoomorfa” hátrês que não são animais: uma delas é a itsakana,que, como o próprio nome diz, é uma panela-canoa, ou seja, um “modelo reduzido” de umacanoa. As duas outras exceções são a iyãukana(panela-gente) e a yerupohokana (outro tipo depanela-gente).

O uso quotidiano das panelas zoomorfasresume-se basicamente em servir alimentos cozidose guardar pimenta, sal, restos de comida e peque-nos objetos, como linhas, agulhas, pinças, miçangasetc.. As panelas zoomorfas têm um caráter lúdicoinquestionável, que adquire maior saliência entreaquelas destinadas às crianças: elas são panelas-brinquedos. Tais objetos são de uso individual,cercado de muito ciúme. Toda criança tem suaprópria panelinha zoomorfa, que normalmente épresenteada logo que ela aprende a comer sozinha.Muitas crianças atam cordões em suas panelas e asarrastam como se fossem carros e tratores.Quando os adolescentes saem da reclusão nãocomem mais em panelinhas, seu peixe é servidosobre um pedaço de beiju, jovens do sexo masculi-no só voltarão a ter seu peixe servido em paneli-nhas quando se casarem.

6. Outros artefatos cerâmicos (Tabela 6)

Na Festa do Pequi – ritual sazonal realizadoentre outubro e dezembro, quando essa fruta madurae começa a cair das árvores – são fabricadospequenos objetos com a forma dos órgão genitais

masculinos e femininos. Eles são usados em umabrincadeira ritual na qual homens e mulheres trocaminsultos e lançam contra si os pequenos genitais decerâmica. A violência com que esses objetos sãousados os torna extremamente efêmeros.

Matérias-primas e processos técnicos

A fabricação e pintura da cerâmica entre osWauja são ofícios que demandam um númeropequeno de matérias-primas submetidas a proces-sos técnicos bastante especializados, resultandonuma cerâmica de alto padrão técnico.

A argila escura (kamalu yalaki) e o espongiáriolacustre akukutai (usado como anti-plástico após umprocesso de secagem e queima) são as matérias-primas que compõem a pasta de modelagem. A coletadesses dois materiais ocorre no período da baixamáxima dos rios e lagoas, que corresponde aos mesesde agosto e setembro. O período de maior produção

Fig. 5 – Panelinha-sanguessuga.

(8) O sufixo kana refere-se à forma côncava ou oca dequalquer objeto, kanatãi é a sua forma diminutiva.

Fig. 6 – Apayupi Wauja mostra miniaturas de panelas.

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cerâmica é entre os meses de novembro e março, osquais marcam a estação das chuvas. Certas quantida-des de argila e anti-plástico podem ficar guardadaspor vários meses nas casas, sendo usadas na medidaem que se faz necessária a fabricação de uma novapanela, seja por encomenda, ou para substituir algumapeça que por acaso se quebrou.

O processo de fabricação de uma panela passapor oito a dez etapas a depender do artefato que seobjetiva fazer. Para a obtenção da argila e doespongiário lacustre akukutai é necessário mergulharnos pontos do rio e da lagoa onde existem osdepósitos. Como os mesmos encontram-se relativa-mente distantes, é preciso que a carga seja transpor-tada de canoa e carregada até a aldeia em cestos dotipo mayapalu ou em bacias de alumínio.

Para transformar o akukutai em anti-plástico,o mesmo deve secar ao sol por uns cinco dias edepois passar por um processo de queima numafogueira de gravetos, que o tornará um pó ocre,passando então a ser chamado de akukupe,9 que é

de fato a matéria-prima usada como anti-plásticoentre os Wauja. Antes de iniciar a modelagem deuma peça, o ceramista limpará a argila de impure-zas, como eventuais gravetos, pedacinhos demadeira e cascas de frutos e moluscos. É importan-te notar que não há detritos líticos na argila usadapelos Wauja. O trabalho de limpeza é simples erápido, pois ele não é exaustivo, ademais, durante oprocesso de modelagem pode-se aprimorar alimpeza.

Um ceramista wauja não limpa antecipada-mente toda a argila que armazena em sua casa aolongo de uma estação de coleta, mas apenas aquantidade necessária para modelar a peça que eledeseja. Por outro lado, todo o akukutai coletado élogo queimado e o pó resultante (akukupe) écuidadosamente guardado em fardos protegidoscontra umidade. As reservas domésticas deakukupe são tão valiosas quanto as de argila. OsWauja dizem que a mistura correta de argila eakukupe para obtenção da pasta de modelagem épercebida antes pelo tato do que pela visão. Com amistura de akukupe, a plasticidade da argila pura(fria por definição) torna-se “quente”, ou seja,adquire a plasticidade ideal para a modelagem. Aadição de akukupe à argila não deve ser excessiva,pois com o passar dos dias a peça modeladapoderá ressecar e endurecer muito rapidamente,expondo micro-rachaduras, que comprometerão aintegridade da peça. Por outro lado, se a quantida-de de akukupe adicionada for inferior ao necessá-

Nome do artefato Dimensões médias

TABELA 6

Mutsukuri

Yanapo

Ulukati

Munutai

Kohojujuto

Pote com tampa usado para armazenamento de água

Panela usada no ritual iniciação masculina (Pohoká)

Socador de pimenta cilíndrico

Bases cônicas de apoio para as panelas etorradores de beiju

Fragmentos da base das kamalupo e dos torradoresquebrados usados na montagem dos “fornos” decasca de árvore para a queima da cerâmica

Usos

Diâmetro: 35 a 40cm;Altura: 60 a 70 cm

Diâmetro: 20 a 30 cm;Altura: 20 a 25 cm

Comprimento: 12 a 16 cm

Diâmetro: 10 e 16 cm;Altura: 12 a 22 cm

Por serem fragmentos deformas circulares, suas dimen-sões são muito variadas eirregulares. Em geral, medemde 50 a 90 cm de comprimento

6.1

6.2

6.3

6.4

6.5

(9) Segundo Heckenberger (1996: 70), o akukupe usadopelos Wauja é o mesmo cauixi amplamente descrito porarqueólogos nas indústrias cerâmicas pré-coloniais daAmazônia. Nas palavras do autor: “Em todos os casos, atécnica de manufatura dos recipientes cerâmicos da FaseIpavu (datada ente 800-900 d.C) é semelhante àquela daspanelas xinguanas contemporâneas, produzidas em suaquase totalidade pelos Waurá.”

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rio, a panela não suportará a pressão durante asfases de raspagem e lixamento. A resistência deuma panela ou torrador depende, em grande parte,da dosagem correta de akukupe.

As vasilhas de cerâmica são sempre iniciadaspelo fundo a partir de um pedaço homogêneo deargila temperada que é achatado e esparramadopara os lados até se obter o diâmetro e a espessurapretendidos. Pedaços menores de argila sãosucessivamente adicionados de baixo para cima atése modelar a lateral, que é executada com movi-mentos sinuosos e sincronizados que configuram alateral tradicionalmente ondulada (Fig. 7). Emseguida, modela-se uma borda extrovertida comlábio arredondado ou plano a depender do tipo depanela que o ceramista resolveu modelar.

panela zoomorfa for muito pequena, ou se estásendo feita sem requintes, o ceramista modelará deuma só vez a panelinha, puxando das bordas asformas zoomorfas que ele escolher.

Terminada a modelagem, a peça vai para o sol.Dependendo do seu tamanho, ela poderá ficarvários dias secando, e se o ceramista não tiverpressa de terminar a peça, a mesma poderápermanecer por algumas semanas num canto dacasa ou do rancho oleiro. Entre abril e maio de1998, durante minhas freqüentes visitas a uma dasprincipais unidades domésticas de produção decerâmica, eu sempre via uma kamalupo wekerecém-saída da secagem, que nunca tinha suaconclusão avançada. Quando deixei a aldeia wauja,a peça continuava como eu a tinha visto dois mesesantes. Mas quando se tem pressa, uma panelakamalupo weke pode ser totalmente concluída em,no mínimo, duas semanas de intenso trabalho.

O resultado da modelagem é sempre uma peçagrossa, com excesso de pasta, que depois dasecagem ao sol passará por, pelo menos, umadezena de raspagens e lixamentos até atingir atextura e espessura ideais. Para a raspagem usa-setradicionalmente as conchas de um molusco bivalvechamada ulu, ou ulutãi (a mesma concha, porémde menor tamanho), a ulu é também usada paradescascar mandioca. O uso dessas conchas é hojerestrito, pois desde algumas décadas elas foramsubstituídas por colheres no processo de raspagemda cerâmica, e por tampas de latas de manteiga noprocesso de descascar mandioca. As conchas têmmenos eficiência técnica nos dois processos devidoà necessidade de afiá-las com freqüência, poisdependendo da dureza da superfície a ser raspadao fio de sua lâmina quebra-se em diferentes pontos,chegando às vezes a provocar leves sulcos nasuperfície da peça. O trabalho de raspagem podelevar horas ou, a depender do tamanho da peça,até uma semana, nesse caso ele pode ser executa-do por mais de uma pessoa. Todo o excesso depasta que foi retirado no processo de raspagem éguardado para ser reutilizado. Normalmente, emcasas onde a produção é grande, essas raspas deargila ressecada ficam acumuladas em bacias dealumínio ou panelas inacabadas.

O lixamento é o processo seguinte à raspagem.Aqui também a eficiência técnica de outros materiaissubstituiu quase que totalmente o kausepése, umafolha de textura relativamente fina, que era um dospoucos materiais conhecido como lixa. Atualmente

Fig. 7 – Mulher wauja fabricando uma panela nukãi.

Caso ele esteja modelando uma panelazoomorfa, os apliques que caracterizarão o animalpoderão ser adicionados posteriormente, mas se a

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usam-se lixas industriais de várias texturas à basede areia, cola e papel ou lonita. O kausepése éempregado na fase final de lixamento, mas isso sóse o ceramista não tiver a mão uma lixa industrial detextura fina. Começa-se sempre pela lixa maisgrossa, passando então para lixas com texturas quediminuem gradativamente. Assim como as raspasde argila, o pó que resulta desse trabalho éguardado para reaproveitamento.

O último processo antes da queima consisteem alisar a peça com uma pedrinha redonda (Fig.8), que é constantemente molhada com o sumo deuma casca de árvore chamada yapita. A qualidadefinal das peças depende muito dos processos delixamento e alisamento. O torrador de beiju, porexemplo, não pode ter a superfície interna rugosa,pois o beiju poderá grudar, deitando fora toda umalaboriosa dedicação culinária. Peças com aspectorugoso ou com texturas grossas e salientes, além deserem inadequadas ao trabalho doméstico, nãocorrespondem ao padrão estético desejado pelosWauja.

numa única estrutura sempre corresponde àexigência técnica da distribuição homogênea decalor.

Numa única estrutura de queima podem seracondicionados artefatos cerâmicos de diversostamanhos. Nesse caso, as kamalupo e makula sãocolocadas em posição invertida, e em cima, embaixo e/ou em suas laterais distribuem-se aspanelinhas zoomorfas. Em uma estrutura de queimafeita apenas para panelinhas, as maiores ficam embaixo e a menores em cima. Tais estruturascomportam apenas uma kamalupo ou uma makulapor queima.

A queima dura de três a quatro horas, adepender do tamanho do “forno”. No auge daliberação de calor, as peças ficam vermelhas comobrasa, atingindo temperaturas superiores a 450graus centígrados. Lentamente, a ajata vai virandocinza e as peças, que antes da queima eramacinzentadas, adquirem um tom ocre muito claro(“biscoito”). Considera-se que a queima terminouapenas quando as peças estão frias, ou seja, emcondição para pintura. A queima da cerâmica waujatem apenas uma exceção, que é a da panelatsaktsak. Por ter a parte inferior oca, ela não podeser submetida às altas temperaturas de queima comajata, pois o fundo estouraria durante a queima, asolução técnica para o caso específico da tsaktsaké uma queima branda e demorada numa fogueira degravetos.

A última etapa do processo de produçãocerâmica é a pintura, que pode ser executadasegundo quatro técnicas variáveis de acordo comas tintas empregadas. Uma delas, a yuri, é feitacom fuligem e com um aglutinante vegetal extraídoda madeira de uma árvore homônima. Para aobtenção da tinta, a madeira de yuri deve serraspada e macerada com água e fuligem até seobter um líquido espesso, não sendo necessária suaqueima. A tinta pode ser aplicada diretamente sobreas superfícies interna e externa, aliás, tintas pretas,como a yuri são empregadas tanto na decoraçãoexterna com motivos gráficos quanto no enegrecimentointerno das peças. Em algumas casas, vi ceramistasguardarem o preparado de yuri por várias sema-nas; e se ele secar basta adicionar água. A tinta yuriproporciona um brilho leve e uma pigmentaçãointensa à peça, mas tem pouca durabilidade, pois sedescasca quando exposta ao sol ou se acondicio-nada em ambientes muito úmidos. A yuri também éempregada na pintura de artefatos de madeira como

Fig. 8 – Ulusã Wauja alisa uma panela nukãi.

A queima da cerâmica é realizada ao ar livre,no interior de uma estrutura cônica, feita de cascasde árvore (ajata, espécie não-identificada)distribuídas uniformemente e recobertas comkohojujuto (pedaços de panelas quebradas). Aestrutura de queima varia entre 60 cm e 100 cm dealtura. A necessidade de o calor atingir de modomais ou menos homogêneo a totalidade das peçasimpõe limites às dimensões das estruturas dequeima. Assim, o número de peças a ser queimado

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remos, máscaras, pás de beiju, desenterradores eraladores de mandioca, e no enegrecimento da fibrawixato (taquarinha), usada para fabricação decestos cargueiros.

A mãuatã é a outra tinta usada na pintura demotivos gráficos e no enegrecimento do interior daspanelas e torradores de beiju. Seu uso, porém, éexclusivo na cerâmica, e emprega uma técnica umpouco mais laboriosa que a anterior. Mãuatã é umpigmento vegetal extraído da casca de uma árvorehomônima. Depois de macerada a casca e diluídaem água, a tinta está pronta. Com um pincel dealgodão fino o pintor desenha os motivos sobre asuperfície e cobre uniformemente o interior e aborda da peça com mãuatã, que é logo absorvidapela superfície seca e porosa da peça. A pinturaapresenta então uma coloração marrom muitoclara. Para o escurecimento e a fixação da pinturacom mãuatã, a peça deve ser submetida a umaquecimento numa pequena fogueira de sapé, sóassim a cor negra, característica dos motivosgráficos e do interior das panelas, pode sobressair-se e fixar-se de vez.

O topepe é um pigmento mineral de coravermelhada encontrado nas lagoas e nos rios daregião, sendo empregado cru apenas no exteriordas panelas, geralmente visando produzir camposavermelhados para contrastar com camposdecorados com motivos gráficos pintados com astécnicas do yuri e do mãuatã . Diferentementedessas técnicas, ele é passado na peça crua, sendoapenas através da queima que a cor avermelhadado topepe fixa-se definitivamente, demonstrandoser dentre todos os pigmentos o mais durável. Apintura vermelha com topepe é feita esfregando umpequeno pedaço do mineral umedecido na áreaescolhida. Por não serem empregados pincéis napintura com o topepe, a limitação na composiçãocom motivos gráficos tradicionais nesse tipo detécnica é grande, pois sem pincéis é impossívelexecutar os pequenos detalhes característicos dosmotivos. Dentre todos os artefatos de cerâmicawauja que pude analisar – isso contando comcentenas de peças pertencentes a vários museus(Barcelos Neto 1999) –, a técnica de pintura comtopepe tem sido empregada na composição dosmotivos gráficos yetulaga naku (“campo do jogoda bola de mangaba”), puku tiwi (círculo grande) euwi onapula (“caminho de cobra”, motivo sinuoso

também conhecido como kassukupé), além domotivo mohãja-mona, que corresponde aoscampos avermelhados num ou noutro pequenodetalhe das panelas zoomorfas. Uma característicaimportante é que não há sobreposição de técnicasde pintura: sobre o mohãja-mona não se empreganenhum outro motivo, ou seja, numa superfície pintadacom topepe não se pinta com yuri ou mãuatã.

Além do topepe, emprega-se outro pigmentovermelho, o yuku (urucum) que é extraído a partirdo cozimento das sementes da árvore bixaorellana. O urucum é usado na pintura, ou melhor,na unção do exterior de peças de médias epequenas dimensões, em especial as panelaszoomorfas. Nessa técnica, ao invés dos tradicionaispincéis de algodão, empregam-se apenas as palmasda mão untadas de urucum.

Somados à destreza do pintor, os pincéis dealgodão são instrumentos de precisão, meiosperfeitos para a pintura da cerâmica, tanto que osWauja desprezam os pincéis industriais, porque osmesmos têm cerdas flexíveis e o cabo rígido o queacaba dificultando ou borrando as peças. Ospincéis de algodão têm cabos levemente flexíveis epontas macias e firmes, permitindo o mesmodeslizar de modo suave sobre as superfíciesporosas das panelas. A espessura do pincel podeser aumentada ou diminuída a depender daquantidade de algodão enrolado na ponta. Oresultado da pintura com pincel de algodão ésempre satisfatório quando a proporção entre aespessura do pincel e os traços do desenho éequilibrada. Esses pincéis de algodão são usadosna pintura da grande maioria dos artefatos wauja.Tendo durabilidade efêmera e sendo de fácilconfecção, tais pincéis são constantementesubstituídos a cada sessão de pintura.

Todos os processos técnicos envolvidos naolaria wauja são também processos estéticos. Abeleza dos artefatos alcançada ao fim dessesprocessos não é apenas um índice de sua eficáciatécnica, mas também social (Barcelos Neto 2004a,2004b, 2004c). Nesse sentido, a cerâmica waujacorresponde àquilo que Alfred Gell (1992) chamoude tecnologia do encantamento. Sua capacidadede encantamento é, do ponto de vista da cosmologiawauja, o atributo que confirma a sua posiçãohíbrida entre o mundo dos humanos e o mundo dosseres sobrenaturais.

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ABSTRACT: The Wauja ceramics is the most elaborate class of artifacts in theUpper Xingu system of objects. Their types varies from very little recipients to 115 cmdiameter bowls. This article describes the native classificatory system of the ceramicsand its general pattern of fabrication focusing on Wauja perceptions of the technicaland aesthetic qualities of the bowls.

UNITERMS: Wauja Indians – Ceramics – Upper Xingu Cultural Area.

Recebido para publicação em 15 de outubro de 2005.