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A BARQUINHA: ESPAÇO SIMBÓLICO DE UMA COSMOLOGIA EM CONSTRUÇÃO Wladimyr Sena Araújo 1 O objetivo deste texto será o de apresentar de forma resumida o espaço simbólico de uma das religiões da Amazônia Ocidental designada de “Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz”, comumente chamada de Barquinha pelos seus praticantes. Este Centro foi criado no ano de 1945 por Daniel Pereira de Mattos na zona rural de Rio Branco, capital do Estado do Acre, foi pouco estudada e é basicamente restrita ao Estado do Acre. Através de pesquisa de campo realizada entre julho e dezembro de 1995, constatei neste local uma forte influência de práticas religiosas tais como o catolicismo popular, o xamanismo indígena, religiões afro e da filosofia do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento. É necessário destacar que o componente essencial da Barquinha, mas não o único, é o Daime. Através dele, os praticantes adquirem uma percepção diferenciada da realidade, entrando num estado alterado de consciência. PRIMÓRDIOS Daniel Pereira de Mattos, o fundador da missão, nasceu em São Luís do Maranhão e era filho de escravos. Ainda criança foi colocado em uma escola de aprendiz de marinheiro, onde adquiriu conhecimentos do mar. Entretanto, a sua trajetória de vida antes da chegada ao Acre ainda é bastante obscura. Sabe-se que o mesmo chegou a região acreana em meados do século, onde se instalou no bairro 06 de Agosto e, em seguida, na zona de prostituição por nome de Papôco, que ainda está situada à margem do rio Acre. Era um senhor bastante habilidoso e conta-se que sabia desempenhar com qualidade doze tarefas: construtor naval, cozinheiro, músico, barbeiro, alfaiate, carpinteiro, marceneiro, artesão, poeta, pedreiro, sapateiro e padeiro. Extrememente sensível, era considerado um grande boêmio das noites de Rio Branco. De suas mãos fluíam canções que falavam de amor, amizade e da mulher desejada. Em uma de suas andanças boêmias, adormeceu sob uma forte chuva muito próximo ao rio Acre. Ainda bêbado recebeu uma mensagem na qual dois anjos desciam do céu com um livro para ser entregue a ele. Anos depois, recebeu a mesma mensagem ao cair enfermo e ser tratado pelo conterrâneo Raimundo Irineu Serra, fundador do Centro de Iluminação Cristã Luz Universal (CICLU), um dos maiores responsáveis pela difusão do chá para a zona urbana. Após a revelação, Daniel resolveu criar a sua própria linha doutrinária formando assim a “Capelinha”, que atendia nos seus primórdios aos caçadores e suas famílias que por lá passavam. Este espaço era rústico, assim como são as casas dos seringueiros da região Amazônica. Pouco a pouco, a “Capelinha” ou “Capelinha de São Francisco” como assim era chamada, foi ganhando corpo e arrebanhando mais fiéis que passaram a fazer parte da doutrina. Hoje a Barquinha conta com aproximadamente 500 fiéis. 1 Mestre em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e professor da SEC/SEMEC (AC).

Barquinha - Espaço Simbólico de uma Cosmologia em Construção

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A BARQUINHA: ESPAÇO SIMBÓLICO DE UMA COSMOLOGIA EM CONSTRUÇÃO

Wladimyr Sena Araújo1

O objetivo deste texto será o de apresentar de forma resumida o espaço simbólico de uma das religiões da Amazônia Ocidental designada de “Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz”, comumente chamada de Barquinha pelos seus praticantes. Este Centro foi criado no ano de 1945 por Daniel Pereira de Mattos na zona rural de Rio Branco, capital do Estado do Acre, foi pouco estudada e é basicamente restrita ao Estado do Acre. Através de pesquisa de campo realizada entre julho e dezembro de 1995, constatei neste local uma forte influência de práticas religiosas tais como o catolicismo popular, o xamanismo indígena, religiões afro e da filosofia do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento.

É necessário destacar que o componente essencial da Barquinha, mas não o único, é o Daime. Através dele, os praticantes adquirem uma percepção diferenciada da realidade, entrando num estado alterado de consciência.

PRIMÓRDIOS

Daniel Pereira de Mattos, o fundador da missão, nasceu em São Luís do Maranhão e era filho de escravos. Ainda criança foi colocado em uma escola de aprendiz de marinheiro, onde adquiriu conhecimentos do mar. Entretanto, a sua trajetória de vida antes da chegada ao Acre ainda é bastante obscura. Sabe-se que o mesmo chegou a região acreana em meados do século, onde se instalou no bairro 06 de Agosto e, em seguida, na zona de prostituição por nome de Papôco, que ainda está situada à margem do rio Acre.

Era um senhor bastante habilidoso e conta-se que sabia desempenhar com qualidade doze tarefas: construtor naval, cozinheiro, músico, barbeiro, alfaiate, carpinteiro, marceneiro, artesão, poeta, pedreiro, sapateiro e padeiro.

Extrememente sensível, era considerado um grande boêmio das noites de Rio Branco. De suas mãos fluíam canções que falavam de amor, amizade e da mulher desejada. Em uma de suas andanças boêmias, adormeceu sob uma forte chuva muito próximo ao rio Acre. Ainda bêbado recebeu uma mensagem na qual dois anjos desciam do céu com um livro para ser entregue a ele. Anos depois, recebeu a mesma mensagem ao cair enfermo e ser tratado pelo conterrâneo Raimundo Irineu Serra, fundador do Centro de Iluminação Cristã Luz Universal (CICLU), um dos maiores responsáveis pela difusão do chá para a zona urbana.

Após a revelação, Daniel resolveu criar a sua própria linha doutrinária formando assim a “Capelinha”, que atendia nos seus primórdios aos caçadores e suas famílias que por lá passavam. Este espaço era rústico, assim como são as casas dos seringueiros da região Amazônica. Pouco a pouco, a “Capelinha” ou “Capelinha de São Francisco” como assim era chamada, foi ganhando corpo e arrebanhando mais fiéis que passaram a fazer parte da doutrina. Hoje a Barquinha conta com aproximadamente 500 fiéis.

1 Mestre em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e professor da SEC/SEMEC (AC).

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SÍMBOLOS FUNDANTES

Uma das características marcantes do Centro criado por Daniel reside no fato de muitos dos símbolos da casa estarem relacionados ao mar. A história de vida deste homem reforçou estes elementos, os quais fazem referências a seres aquáticos e a uma nau, chamada carinhosamente pelos adeptos de “Barquinha”. A barca para os seus integrantes tem dois significados. O primeiro é o de que ela representa a própria missão deixada por Daniel e a segunda expressa a viagem de cada um. Esta barca é a viagem de suas vidas, em resumo, uma viagem dentro da grande viagem.

Ainda assim, os praticantes acreditam que a embarcação da Igreja, local onde eles se reúnem para realizar as sessões é a própria barca. É preciso considerar que a barca é comparada às embarcações típicas que constantemente cortam os rios desta região. É dito ainda que o proprietário da Barquinha é Deus e esta é pilotada por São Francisco das Chagas, Mártir São Sebastião, São José e Daniel Pereira de Mattos, que tem como missão conduzir a nau ao encontro de Jesus, tentando, juntamente com os fiéis, evitar grandes tormentas, ou seja, as profanações que ocorrem neste mundo.

É uma barca que tem a designação de “barca Santa Cruz” e reflete um caráter escatológico. Por isso os fiéis recebem constantemente instruções de planos invisíveis para continuar a viagem mar a dentro.

“A viagem nada mais é do que a provação, onde a água agitada reflete as tentações do mundo de ordem mundana. A água se agita porque a sociedade humana quebrou determinadas regras divinas. As águas marítimas exprimem o sentimento descontrolado dos seres humanos e o desgosto do criador” (Araújo Neto, 1995: 13).

De forma mais ampla, ela é considerada a missão deixada por Mestre Daniel e vida de forma plena. Deus é o proprietário da barca, mas quem definirá o seu rumo são os fiéis através de suas atitudes.

A barca viaja em três planos cosmológicos: o céu, a terra e o mar. Aqueles que fazem parte da grande barca são chamados de marinheiros do mar sagrado e recebem este título no momento do “fardamento”.2 Fardados, eles desempenham tarefas para alcançar um grau de luz mais elevado no momento da desencarnação (morte) de cada um. Os adeptos afirmam que se houver uma boa preparação, os marinheiros passam a ser chamados após de oficiais após a morte.

Determinadas entidades também são chamadas de oficiais, como é o caso de Dom Semião, que chefia parte dos trabalhos das Obras de Caridade. Estes oficiais quando chegam para “trabalhar” usam determinados instrumentos referentes às forças armadas tais como lanças, espadas, algemas, cachorros, etc. Os registros destes instrumentos são revelados nos salmos entoados pelos presentes.

Essas forças armadas, compostas de entidades de luz, visam combater entidades do mal. Há portanto, um duelo entre entidades de luz e entidades das trevas; logo, a barca, juntamente com os marinheiros e oficiais, vem a ser um receptáculo de conversão de entidades maléficas e entidades benéficas. Esta conversão se dá através de batalhas mar a dentro.

O mar na qual esses marinheiros constantemente navegam é chamado de mar sagrado, devido ao fato de o Daime ser considerado água sagrada. Viajam, portanto, nas ondas do Daime sobre o balanço do barco Santa Cruz.

2 O fardamento representa a adesão do participante ao grupo na qual ele está participando. Na concepção

de Paskoali (1998), é também um renascimento, visto que, através dele, os indivíduos obedecem a certas regras de conduta para que possam ser reconhecidas realmente como adeptos da doutrina.

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É destacado ainda enquanto luz. Ela (a luz), é associada ao conhecimento, logo, àqueles que experimentam o Daime, estão ingerindo a Santa Luz e adquirindo novos conhecimentos, enxergando a si mesmo, o outro e outros mundos. Além disso, o chá sagrado representa a renovação, a revitalização e cura. O homem ao “navegar” com ele nasce novamente e com isso se reintegra.

Em duas das visões de Daniel, notamos a presença da água, isto porque o mesmo encontrava-se deitado às margens de um rio ou à beira de um igarapé. A primeira sem o uso do Daime e a última sobre o efeito deste enteógeno. Estas visões mostram uma passagem, a ligação com os tempos primordiais, com Deus e o início da missão.

O Daime é considerado uma substância de poder. Todavia, esta água sagrada não é acessível a qualquer momento. O homem terá que passar por uma série de provas, demonstrando assim que é digno dela.

A bebida também é tida como um instrutor que ensina os participantes dos rituais que a utilizam. Estes ensinamentos estão presentes desde o momento em que Mestre Daniel resolveu formar a missão através da visão do livro azul. O livro azul compreende os ensinamentos e é onde os fiéis recebem sintetizadas as instruções provenientes de planos sagrados elevados. Estas instruções são passadas através de lindas melodias, ricas em símbolos, chamadas de salmos.

EIXOS SIMBÓLICOS E RITUAL

O repertório simbólico da Barquinha, que está expresso na arquitetura, pode ser imaginado como uma colcha de retalhos, onde as partes se encaixam formando o todo. Designamos de costura a experiência ritual nos lugares da barca, porque é no ritual que temos a tônica da expressão do lógico e do sensível. Não é minha intenção discutir toda a simbologia da Barquinha, mas sim alguns eixos, para compreender melhor dentro da estrutura espacial, os trabalhos rituais apresentados/representados pelos marinheiros do mar sagrado e pelos oficiais do mar sagrado.3 De toda a extensa partitura simbólica, escolhi três símbolos principais da arquitetura: a mesa em forma de cruz, o cruzeiro e o parque.

1 - A mesa em forma de cruz está no centro de todo um conjunto de símbolos. A experiência sagrada demonstra a fundação do mundo e Mestre Daniel ao tomar contato com o sagrado fundou a missão e revelou o real, distanciando-se do mundo profano e de ilusão. Neste espaço está presente a mesa, o símbolo principal. Logo, a mesa em forma de cruz se torna a fonte cristalina do jardim dos símbolos.

Ao redor dela, existem seis cadeiras de um lado e seis do outro, representando os 12 apóstolos de Cristo. É necessário destacar que há uma hierarquia para se chegar até a mesa. Inicialmente, instruções são dadas a São Francisco das Chagas que as repassa ao Presidente do espaço.

A mesa é a peça principal de um grande origame, pois, de lá os rituais são abertos e também fechados. Nela, encontramos um livro azul aberto que expressam os 10 mandamentos.

3 Apresentação e representação caminham juntas, isto porque o praticante pode representar o sagrado

durante uma performance ritual. Por outro lado, entidades podem apresentar-se nos rituais, inclusive, usando o corpo dos adeptos. A arquitetura, os gestos, as melodias representam outros planos e outros seres, mas quando sentidos, tornam-se apresentados.

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As obras de Caridade constituem o principal trabalho da casa e performance na qual a mesa é usada. É importante destacar que o trabalho emerge da mesa em forma cruz, decorrendo daí uma ampliação espacial, onde as cortinas são abertas fundindo o restante do espaço.

Esta ampliação espacial tem o seu ponto de partida do centro da Igreja, que torna-se o principal canal de ligação entre os planos verticais e o horizontais, ou seja, os planos míticos sagrados e os seres sagrados, com o restante dos lugares do espaço arquitetônico e os homens religiosos. Gradativamente, e de forma sutil e harmônica, os lugares que estão em torno da mesa vão ganhando importância durante o processo ritual.

A primeira parte do ritual consiste apenas na execução de preces e salmos entoados pelos presentes. A segunda é a abertura das Obras de Caridade, onde 7 entidades são chamadas para realizar a caridade. Estes seres pertencem aos mistérios do céu, terra e mar.

Atrás da Igreja há um salão de atendimentos (terreiro) com 7 gabinetes (congá) onde três médiuns trabalham, incluindo aquele que incorpora a entidade responsável pelo salão de atendimentos. O responsável pelo salão é uma entidade por nome de Dom Semião. Este ser era incorporado por Francisca Gabriel, um dos médiuns que trabalhou com Daniel Pereira de Mattos. Hoje a mesma é uma das autoridades de um Centro criado por ela chamado de Centro Espírita Príncipe Espadarte, localizado nas proximidades do primeiro.4

Os médiuns aplicam passes nos clientes que procuram o local em busca de tratamento para enfermidades, problemas familiares e encostos. Dependendo da gravidade do problema, é aconselhado que os indivíduos retornem em um trabalho para desfazer serviços de quimbanda.5 Estes trabalhos são realizados durante as quintas-feiras.

Os serviços para desfazer trabalhos de quimbanda já eram executados no Centro de Mestre Daniel nas décadas de 40 e 50. Neste período o Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz já contava com três médiuns: Francisca Gabriel, Maria Baiana e Dona Inês. Eram estas senhoras que prestavam as Obras de Caridade da missão de Daniel, bem como desmanchavam trabalhos maléficos, considerados por eles de magia negra.

Para os espíritas apostólicos cristãos (marinheiros do mar sagrado/ soldados dos exércitos de Jesus), quando o paciente chega para ser tratado traz consigo uma entidade quimbandeira, uma entidade trevosa, que por motivos diversos tenta prejudicar a vida material e espiritual do indivíduo.

4 Além do Centro Espírita Príncipe Espadarte, formado em 1994, houve também a criação do Centro Espírita Daniel Pereira de Mattos, fundado por Antônio Geraldo, sua família e simpatizantes. Há ainda, o Centro Espírita Fé, Luz, Amor a Caridade (Centro de Maria Baiana), localizado na Estrada do Amapá (zona rural de Rio Branco). Este espaço foi criado em 1962 por Juarez Xavier e sua esposa Maria Rosa. Já o Centro Espírita Santo Inácio de Loyola é criado em 1994, sendo um dos menores e estando situado no bairro da Sobral. Este local é presidido por Antônio Inácio da Conceição. Finalmente, o Centro Espírita Nossa Senhora Aparecida, instituído em 1998 no município de Porto Acre. Este Centro é presidido pelo casal Sheila e José do Carmo, que antes pertenciam ao Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz. 5 A quimbanda para os fiéis expressa o lado oposto da umbanda. Desta maneira, as entidades

quimbandeiras são vistas como pertencentes ao lado da magia negra. Os trabalhos para desfazer serviços de quimbanda tem como principal finalidade de retirar da matéria, do corpo os exus. Os exus podem ser convertidos por entidades de luz.

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Os trabalhos para desfazer malefícios acabam acarretando um duelo entre o bem e o mal, entre entidades de luz e entidades das trevas. Estas últimas são consideradas arrogantes e teimosas. Estes seres desviantes e trangressores, quando convertidos através de entidades de luz, voltam para trabalhar na Barquinha.

Esta atividade ritual começa no próprio salão de atendimentos e somente os médiuns que trabalham nos gabinetes de atendimentos (congá) são autorizados a tomar o Daime; entretanto, podem realizar também as suas atividades sem o auxílio da substância.

Cada gabinete é composto por três médiuns: um deles é o responsável pelo trabalho naquele local e recebe a entidade que está a frente do congá. Os outros médiuns recebem entidades em seus corpos, ou seja, incorporam entidades que não são batizadas na casa e que não são entidades de luz.

Através da incorporação, a entidade sem luz é levada para uma pequena sala onde é determinado que faça um ponto riscado que a represente e sobre este materiais diversos. Estabelecido o ponto, a própria entidade queima o trabalho que ela realizou contra a pessoa. Em seguida, o ser quimbandeiro é aprisionado em uma morada no Astral chamado de “campo de concentração” e quando estiver preparada retorna como entidade de luz, realizando serviços benéficos na Barquinha.

A mesa em forma de cruz, além das Obras de Caridade, serve também para os trabalhos de concentração realizados às quartas-feiras. Esta sessão é feita com exclusividade no interior da igreja, logo, não há abertura de cortinas. Essa performance ritual dura entre uma hora e uma hora e meia e não existe nenhuma restrição ao posicionamento daqueles que participam das Obras de Caridade para estas sessões de concentração.

Algumas diferenças, entretanto, são notadas entre os trabalhos de Obras de Caridade e as sessões praticadas durante os dias de quartas-feiras. Uma das distinções está explícita na própria concentração, pois segundo a concepção dos praticantes, a “Barquinha” é uma escola e o Daime, o mar sagrado, trazendo consigo entidades professoras. Tal conceito relaciona-se ao emprego que os caboclos vegetalistas (cf. Luna 1986) fazem desta substância.

Isto explica qual a principal finalidade do trabalho de concentração: o desenvolvimento mediúnico, que por sua vez, visa a preparação do indivíduo da casa para trabalhar durante as Obras de Caridade e em trabalhos para desfazer serviços de quimbanda. O desenvolvimento mediúnico é uma das tarefas mais difíceis realizadas pelos adeptos.

Um outro fator é que durante o ritual, a quantidade de Daime servida é maior do que no trabalho de Obras de Caridade. Neste sentido, foi mencionado pelos adeptos que a proporção ingerida nas quartas-feiras destina-se ao “trabalhos” das pessoas. É um dia de “instrução”, portanto, de reflexão.

2 - O Cruzeiro é o grande pilar do barquinho Santa Cruz. Nele, podemos perceber um coração com 12 estrelas expressando os mistérios da paixão e morte de Cristo. Além disso, este lugar tem 4 portas de acesso, representando os 4 pontos cardeais.

Juntamente com as 12 colunas ele expressa também um terço, que pode ser visto nos dias de trabalho no interior da Igreja através do posicionamento de velas.6

6 É também o grande mastro que sustenta a Barquinha nos dias de festas oficiais.

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Neste local realizam-se as doutrinações de almas no dia 02 de novembro (dia dos mortos). O principal objetivo destas doutrinações é a de preparar almas dentro de uma certa norma cristã, que constitui a maior parte dos conceitos da casa.

As almas são arrebanhadas por Frei José Joaquim, o Pastor das Almas. É ele quem as leva para serem doutrinadas por intermédio de São Francisco. As almas são recebidas durante as sessões e são, desta forma, chamadas para serem doutrinadas. A doutrinação, por sua vez, não implica que a alma esteja salva mas que a mesma foi colocada em um estado de preparação dentro de um processo evolutivo, onde irá passar por um período de penitência para aliviar os seus pecados. Com isso, ela estará se preparando para o julgamento final.

São os praticantes que recebem as almas e é o Presidente do espaço que as envia para um salão de luz. Lá elas farão um preparo de vários dias para receber a doutrina. Quando estiverem doutrinadas, o Pastor das almas as leva novamente nos dias certos de trabalho para concretizar a doutrina.

Alguns fiéis dizem ter visitado o salão de luz onde habitam as almas penitentes. Essas viagens são marcadas por uma ampla subjetividade, mas é importante salientar que enquanto símbolo do contexto do espaço, o salão tem uma importância coletiva e as viagens individuais reforçam a sua existência.

Dentro do cruzeiro ficam as pessoas que participam da composição da mesa nos trabalhos realizados no interior da Igreja. Nas imediações do lugar ficam os demais integrantes e participantes que entoam salmos e rezam preces.

Semelhante ao trabalho de doutrinação é o batismo de eguns sem luz, os exus, considerados por eles “entidades das trevas”. Para o Presidente do local, Manuel Hipólito de Araújo, existe uma diferença entre doutrinação de almas e batismo de eguns sem luz. Isto porque as almas, em sua grande maioria, já foram batizadas. Porém, segundo ele, falta a elas um preparo cristão.

Os exus são convertidos em espíritos de luz quando são levados a um lugar mítico no Astral designado de campo de concentração. Assim como as almas, estes exus passarão por um processo de re-significação simbólica e terão inclusive troca de nomes.

3 - O terceiro eixo consiste no parque. Este foi criado em 1959 por Antônio Geraldo da Silva. O lugar foi destinado as “brincadeiras” da irmandade com as entidades dos três mistérios. Ele assume arquitetonicamente duas formas: a primeira como barca e a segunda enquanto cálice. Este cálice é um instrumento de consagração, porque ao tomar o Daime o indivíduo comunga e estabelece um elo de ligação com Deus.

O lugar do parque é composto por uma série de símbolos. Existem doze colunas que circulam o salão de baile. As doze colunas representam sempre os apóstolos de Cristo, mas, durante os festejos, são colocados estandartes simbolizando entidades dos mistérios do céu, terra e mar sobre estas colunas.

O coreto que está no centro do salão de baile representa Jesus Cristo ou Oxalá durante as festas. Acima do coreto encontra-se uma pequena embarcação semelhante aos barcos que cortam os rios da Amazônia e acima desta barquinha é possível observar uma luz amarela. A luz é o Daime, o mar sagrado, por onde viajam os seus marinheiros.

Os bailados realizados no parque são considerados uma extensão dos trabalhos realizados na Igreja. Existe uma mobilidade espacial, isto é, pela dinâmica apresentada, o espaço torna-se móvel.

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A finalidade do bailado é a de satisfazer as entidades que trabalham nas Obras de Caridade em datas específicas santificadas. Os seres chamados para brincar têm a permissão para se satisfazerem dos gozos materiais - neste caso, a dança - e se utilizam dos “aparelhos” para bailar pontos que as identificam. As entidades também tem o poder de enviar pontos através dos aparelhos, que os recebem e os escrevem na sequência. Estes pontos louvam entidades dos três mistérios.

As “brincadeiras” servem também para a iniciação a incorporação, porque muito raramente há este tipo de prática nas dependências da Igreja. O bailado, por deixar as pessoas mais descontraídas através do Daime, dos pontos e, principalmente através do movimento, auxilia as pessoas a desenvolverem a sua mediunidade. É necessário frisar que a incorporação pode ocorrer sem o uso da substância.

Pois bem, o bailado tem essa finalidade de atender as entidades que se dispõem a prestar caridade naquela casa e os indivíduos que trabalham no Centro utilizam o lugar para efetuar uma brincadeira que resulta também em uma auto-análise da vida. A “brincadeira” produz trilhas para pensar os problemas de cada um através das instruções recebidas. A dança serve ainda para curar, arrebanhar entidades trevosas e estabelecer um dom, pois os homens trocam com outros homens e também com seres divinos.

O lugar do parque torna-se dinâmico porque os corpos são envolvidos por eles. Ele é um companheiro de dança. Desta maneira, aqueles que participam do bailado percebem o lugar, o círculo sagrado, porque através do olhar sobre este, é perfeitamente possível ver outros mundos e torná-los visíveis através dos gestos de lá para cá; é quando começam a circular no disco, na borda do cálice sagrado ou na barca, símbolos de realidades sagradas que vem e vão. Aqueles que bailam em conjunto com o espaço tornam-se escultores dançarinos porque dão forma a realidade invisível.7

Elementos internos tais como sentimentos e pensamentos aliam-se aos externos (música, cheiros, luzes, etc) e produzem movimentos que falam de outras realidades e de outros seres. O Daime pode estabelecer uma conexão, um canal de ligação às outras dimensões dos três mistérios.

O bailado, assim como as demais performances rituais, servem como um dinamizador da cosmologia onde os símbolos são transmitidos e/ou modificados. Os trabalhos de Daniel tentam dizer alguma coisa: os diversos atos inscritos nas performances rituais constituem ação, logo, expressão; expressam não só idéias, mas sentimentos. Neste caso, a missão deixada por ele ultrapassa a fronteira que separa o mundo sagrado do mundo profano. Isto porque as pessoas retornam para a vida cotidiana embriagadas pelo aprendizado do sagrado.

COSMOLOGIA EM CONSTRUÇÃO

A Barquinha insere-se no chamado ecletismo religioso, segundo a literatura antropológica, que propicia ao indivíduo uma experiência que se dá:

“Por uma operação (...) através da qual são ecleticamente reaproximados, sobrepostos e/ou refundidos elementos oriundos das várias tradições, nativas e importadas, que a mobilidade geográfica das pessoas e dos produtos culturais põe hoje a sua disposição. Novas entidades coletivas apontam no horizonte dessas operações, mas elas tendem a ser transconfessionais, ameaçando desde já, nesse

7 Concepção de Arruda (1988) para o relacionamento entre o performer e o espaço.

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sentido, redesenhar nessas sociedades centrais o mapa do campo religioso contemporâneo. Parece possível esperar das consequências desse fenômeno uns efeitos de transformações mais radicais que as do tradicional ‘sincretismo brasileiro’ (Sanchis 1995).

Neste sentido, pensamos que a idéia de ecletismo religioso se encaixa muito bem para a formação de um pensamento religioso para as religiões não-indígenas que fazem o uso da ayahuasca. Mas acreditamos que ao invés desta circulação do indivíduo, mais fluída por várias religiões, sem ter a preocupação de se sedimentar em uma, respeitando desta maneira a diferença das religiões, os adeptos da Barquinha mantém com esta uma relação mais regular. São as práticas religiosas que circulam neste tipo de religião amazônica que são mais fluídas.

Pensamos que se trata de uma cosmologia em construção. Por cosmologia em construção denomino um conjunto de práticas religiosas que tendem a formar uma doutrina específica onde existe uma grande velocidade na incorporação e retirada de elementos de práticas religiosas diversas.

Além disso, o hinário é um outro reforço para tal concepção, isto porque os integrantes da Barquinha não falam do livro como algo que está completo. Suas letras são repassadas para eles como instruções e quando novos salmos são recebidos é sinal que novas instruções acabaram de chegar.

A composição simbólica desta linha doutrinária está elaborada, em parte, pela proposta de Mestre Daniel, bem como pela visão de mundo desses líderes religiosos que são provenientes de lugares distintos e de culturas diversas. Portanto, o Centro torna-se um aglutinador de culturas. Mas o termo aglutinador por si só não basta, isto porque ele torna-se um ordenador de elementos culturais, constituindo algo autêntico, novo e dinâmico. E neste caso, a Barquinha é uma nau de re-significação pela incrível flexibilidade do espaço - daí a metáfora cosmologia em construção.

Para melhor exemplificar o que queremos dizer por cosmologia em construção, vamos pegar como exemplo a construção de uma grande barca. A barca para ser construída terá vários tipos de madeira em vários locais. Desta forma, vamos encontrar as vigas, tábuas, mastro, leme etc, todos com madeira compatível com a barca. Da mesma forma, encontramos o suporte de encaixe para a sua construção: os parafusos, os pregos e outros. Após a construção da barca, da grande barca, pode-se afirmar que a mesma está “estruturada”.

Mas a finalidade da barca é navegar, viajar mar a dentro, dias e noites, no calor ou no frio. Seu proprietário resolve deixá-la diferente e começa a colorir e a desenhar formas geométricas na cabine onde pilota a nau. São pequenas alterações de grande significado que aos poucos vão sendo comungados pelos tripulantes da embarcação.

Este barco viaja a lugares diferentes e enfrenta grandes tempestades. Logo, a embarcação precisa de reparos urgentes para continuar viajando. As viagens continuam e os tripulantes, em especial o proprietário da barca, conhecem lugares diferentes e, consequentemente, pessoas distintas. Passam a dialogar, estabelecem a troca, dão e recebem, experienciam, aprendem, voltam mudados. Resolvem lembrar, dinamizar a memória, buscar os fios de significados e com isso traçam novos desenhos, motivos através dos quais fazem lembrar o outro.

Mas a barca muda ao longo do tempo. Apesar da estrutura interna de suporte da nau, os tripulantes procuram a cada dia que passa dar uma nova roupagem a ela. E assim continuam além da linha do horizonte a navegar com as lembranças presentes.

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Esta re-significação parte do pressuposto das viagens por parte dos dirigentes a outros planos e, com isso, as visões desses lugares míticos são manifestadas na arquitetura. As viagens são as mirações que eles tiveram para a construção simbólica do local, porque foram nestas mirações que estes líderes tiveram visões sagradas e essas revelações justificam um agregado de símbolos que foram incorporados no decorrer de décadas.

O homem religioso da Barquinha está imerso em símbolos e está marcado consciente ou inconscientemente por eles. Esses lugares são vividos, experienciados individual ou coletivamente durante um longo período de atividades. Resta lembrar que a Barquinha é a linha ayahuasqueira que realiza o maior número de performances rituais apresentadas na região acreana e adjacênscias.

Os trabalhos constituem a ação do sujeito dentro dos lugares do espaço. A ação do sujeito enquadra-se naquilo que podemos denominar de espaço performático e, juntamente com este espaço performático, a ampliação espacial, na qual os lugares são fundidos no decorrer dos rituais.

Os rituais da Barquinha marcam profundamente o reencontro de tradições européias, indígenas e africanas. O ritual funciona como manifestação dessas culturas que estão presentes através da prece, miração e incorporação.

Na primeira, a prece representa um elemento católico oriundo da Europa e remodelada no nordeste brasileiro. A miração relaciona-se ao xamanismo indígena e a incorporação aos cultos africanos. Para exemplificar melhor o que queremos dizer, podemos mencionar a doutrinação de almas onde os três aspectos relacionam-se ao espaço performático. Enfim, o reencontro dessas tradições culturais marca a permanente construção da sua cosmologia.

É preciso observar que durante os rituais os homens da Barquinha dinamizam o processo de re-elaboração simbólica. É quando algo novo pode ser visto durante os trabalhos da missão de Daniel. A mobilidade da barca provocada pelos sujeitos que a compõe produz esta dinâmica, pois voltam mudados, transformados. Esse é o sentido da construção, não só de produzir efeito sobre a arquitetura do local, mas tocar os sujeitos envolvidos, os marinheiros do mar sagrado.

BIBLIOGRAFIA ARRUDA, Solange (1988). A arte do movimento - as descobertas de Rudolf Laban na dança e ação humana. São Paulo: PRN Gráficos e Editores associados Ltda. GROISMAN, Alberto (1991). Eu Venho da Floresta: Ecletismo e Práxis Xamânica no Céu do Mapiá. Florianópolis: UFSC (dissertação de mestrado). LUNA, Luis Eduardo. Vegetalism: Shamanism among the Mestizo Population of the Peruvian Amazon.Estocolmo,Almqvist & Wilksell International, 1986. MONTEIRO DA SILVA, Clodomir (1983). O Palácio de Juramidam. O Santo Daime: Um Ritual de Transcendência e Despoluição. Recife: UFPe (dissertação de mestrado). SANCHIS, Pierre (1995). “As Tramas Sincréticas da História”. In Revista Brasileira de Ciências Sociais. Ano 10, número 28. SENA ARAÚJO, Wladimyr (1999). Navegando nas Ondas do Daime: História, Cosmologia e Ritual na Barquinha. Campinas: Editora da Unicamp, no prelo. PASKOALI, Vanessa Paula (1998). Navegar é Preciso, Morrer não é Preciso. Rio Branco: UFAC (monografia de conclusão de curso em Ciências Sociais).