BATISTA - 2000 - Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio-annotated

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/19/2019 BATISTA - 2000 - Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio-annotated

    1/20

    Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio

    Nilo Batista

    Índice

    1 Introdução  . . . . . . . . . . . . . 1

    2 Editoriais   . . . . . . . . . . . . . 63 Especialistas . . . . . . . . . . . . 74 Vigilantismo . . . . . . . . . . . . 95 Noticiário   . . . . . . . . . . . . . 146 Variedades . . . . . . . . . . . . . 157 Esportes   . . . . . . . . . . . . . . 168 A executivização em seu nível má-

    ximo: Linha Direta   . . . . . . . . 179 À guisa de conclusão   . . . . . . . 19

    1 Introdução

    Uma especial vinculação entre a mídia e osistema penal constitui, por si mesma, im-portante característica dos sistemas penaisdo capitalismo tardio1. Tal vinculação, mar-

    1 Para uma simplificada exposição das demais ca-racterísticas dos sistemas penais do capitalismo tar-dio, remeto o leitor a três artigos meus: “Prezada Se-nhora Viégas: o anteprojeto de reforma no sistema depenas” ( Discursos Sediciosos – crime, direito e so-ciedade no 9-10, p. 103 ss), A violência do Estado eos aparelhos policiais” ( Discursos Sediciosos – crime,direito e sociedade no 4, p. 145 ss) e Poder, historia ysistemas penales (Capitulo Criminológico, vol. 29, no

    3, p. 5 ss); para um aprofundamento, David Garland,The Culture of Control, Oxford, 2001, ed. Univ. Ox-ford, p. 167 ss; Loïc Wacquant,  Punir os pobres, Riode Janeiro, Freitas Bastos/ICC, 2000; J.M. Silva Sán-

    cada por militante legitimação do (ou, parausar um termo da moda, “parceria” com o)sistema penal – “parceria” na qual as fórmu-las bisonhas do editorial ou do espaço cedidoao “especialista” concorde são menos impor-tantes do que as mensagens implícitas, quetransitam da publicidade às matérias espor-tivas – tal vinculação levou Zaffaroni a in-cluir, em seu rol de agências do sistema pe-nal, as “agências de comunicação social”, eos exemplos que ministrou (“rádio, televisãoe jornais”)2 deixam claro que não se referiaaos serviços de relações públicas de tribunais

    ou corporações policiais. Uma das consta-tações do presente trabalho sinaliza para aultrapassagem da mera função comunicativapor parte da mídia, e nesse sentido falaremosda executivização dessas agências de comu-nicação social do sistema penal.

    Não se cometerá a ingenuidade de su-por que a legitimação do sistema penal pelaimprensa seja algo exclusivo da conjunturaeconômica e política que vivemos. Exis-

    tem, contudo, certos elementos inéditos, quenão podem ser associados apenas aos recen-tes saltos tecnológicos. Quando a imprensa,no século XVIII, acossada e censurada pelasburocracias seculares e religiosas do Antigo

    chez, La expansión del derecho penal, Madri, Civitas,1999.

    2  Derecho Penal – Parte General, Buenos Aires,Ediar, 2000, p. 18.

  • 8/19/2019 BATISTA - 2000 - Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio-annotated

    2/20

    2 Nilo Batista

    Regime, se engaja na revolução burguesa,participa intensamente do esforço pela des-legitimação racional das velhas criminaliza-ções de linhagem inquisitorial e pela aboli-ção das penas corporais cruéis e despropor-cionais. Na fundação histórica do direito pe-nal liberal, portanto, tendia a imprensa – afi-nada com o pensamento ilustrado, filosóficoe jurídico – à limitação e ao controle do po-der punitivo, larga e espetaculosamente exer-cido pelo absolutismo, e  pagava por isso. A

    primeira edição de   Dei delitti e delle peneé a edição de um panfleto apócrifo, cujo ti-morato autor previa problemas que efetiva-mente se esboçaram quando, provavelmentesob encomenda do Conselho de Veneza, in-comodado pelas considerações de Beccariaacerca das denúncias anônimas, frei AngeloFachinei o questionou duramente. Aliás, nãoseria impróprio assinalar nessa conjunturaaos panfletos e livros uma função perante os

    sistemas penais análoga à das drogas ilícitasno último quartel do século XX: não era ne-cessário escrevê-los ou traficá-los, sendo su-ficiente adquiri-los, guardá-los ou trazê-losconsigo, para uso próprio. No Rio de Ja-neiro de 1794, Silva Alvarenga – entre ou-tros – permaneceria preso por quase três anospela posse para uso próprio de obra dos aba-des Raynal e Mably, pouco lhe aproveitandodefender-se alegando que “não lera os di-tos livros”3, antecipação brasileira do “fumeimas não traguei” do candidato Clinton.

    Descartemos desde logo a mistificação,recorrente nas idealizações historiográficasda imprensa burguesa, de que seus linotiposguardaram fidelidade a este difícil começo,

    3

     Autos da Devassa – Prisão dos Letrados do Rio de

     Janeiro. Rio de Janeiro, Arq. Púb. RJ, 1994, p. 147.

    em nosso país representado seja pela simul-tânea instalação, em 1808, da Impressão Ré-gia e da censura nas atividades de uma juntaadministrativa que velaria para que “nada seimprimisse contra a religião, o governo eos bons costumes”4 –, seja pela significa-tiva circunstância de Hipólito da Costa terde imprimir o   Correio Braziliense em Lon-dres. Sem embargo de órgãos e jornalis-tas que, isolada e eventualmente, percebe-ram e profligaram as opressões penais, a im-

    prensa legitimou intensamente o poder pu-nitivo exercido pela ordem burguesa, assu-mindo um discurso defensivista-social que,pretendendo enraizar-se nas fontes liberaisilustradas, não lograva disfarçar seu encan-tamento com os produtos teóricos do positi-vismo criminológico, que naturalizava a in-ferioridade biológica dos infratores. Quemse assusta hoje com o “three strikes and  you are out ” californiano poderia perfeita-

    mente ter-se assustado há cento e vinte anos,quando von Liszt propunha o isolamento portempo indeterminado para a terceira conde-nação por certos delitos5. O controle penalda indisciplina operária, de anarquistas e dolumpesinato urbano – dos “vidas tortas” (va-dios, prostitutas, mendigos) – recebeu emgeral da imprensa o mesmo incentivo que,nos dias atuais, recebem as  razzias de guar-das municipais contra camelôs e flanelinhas,ou a mesma complacência que merecem hoje

    4 Nelson Werneck Sodré.  História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966, p.23.

    5  La teoria dello scopo nel diritto penale. Milão,Giuffrè, 1962, p. 57. Para a execução de tal condena-ção, Liszt não descartou como medidas disciplinarescastigos corporais, a cela surda e um “rigorosíssimo

     jejum”.

    www.bocc.ubi.pt 

  • 8/19/2019 BATISTA - 2000 - Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio-annotated

    3/20

     Mídia e Sistema Penal   3

    as mortes acidentais nas violentas incursõespoliciais pelas favelas.

    A especificidade da vinculação mídia-sistema penal no capitalismo tardio deve serprocurada antes de tudo nas condições so-ciais dessa transição econômica. Não éuma novidade histórica o emprego em escalada intervenção penal por ocasião de transi-ções econômicas, como Rusche e Kirchhei-mer perceberam na dissolução da ordem feu-dal6: os desajustados daquela conjuntura se-

    riam maciçamente executados até que seuaproveitamento útil, entre as casas de ras-pagem holandesas e os internatos de pobresingleses, inventasse a prisão7. O empreen-dimento neoliberal, capaz de destruir par-ques industriais nacionais inteiros, com con-seqüentes taxas alarmantes de desemprego;capaz de “flexibilizar” direitos trabalhistas,com a inevitável criação de subempregos;capaz de, tomando a insegurança econômica

    como princípio doutrinário, restringir apo-sentadoria e auxílios previdenciários; capazde, em nome da competitividade, aniquilarprocedimentos subsidiados sem considerar ocusto social de seus escombros, o empreen-dimento neoliberal precisa de um poder pu-nitivo onipresente e capilarizado, para o con-trole penal dos contingentes humanos queele mesmo marginaliza. Paralelamente, nãohá comparação possível entre os honestos

    ganhos dos editores da Enciclopédia

    8

    e os lu-cros astronômicos dos grandes negócios dastelecomunicações, cuja tecnologia constituium dos recursos materiais da própria transi-

    6 Punição e estrutura social. Rio de Janeiro, Frei-tas Bastos/ICC, 1999, p. 52 ss.

    7 Por todos, Dario Melossi e Massimo Pavarini,Cárcel y Fábrica. México, Siglo XXI, 1980.

    8 Robert Darnton.  O iluminismo como negócio. S.Paulo, Cia. das Letras, 1996.

    ção econômica, além de contribuir significa-tivamente para as próprias agências do sis-tema penal. A acumulação de capital queos negócios das telecomunicações propiciamtransferiu as empresas de informação paraum lugar econômico central: Pierre Bour-dieu, em sua aula televisiva, tratou logo delembrar “que a NBC é propriedade da Gene-ral Electric (o que significa dizer que, casoela se aventure a fazer entrevistas com osvizinhos de uma usina nuclear, é provável

    que... aliás, isso não passaria pela cabeçade ninguém), que a CBS é propriedade daWestinghouse, que a ABC é propriedade daDisney”9. Em termos brasileiros, seria ima-ginável uma reclamação contra os serviçosda Nextel veiculada pelo Jornal Nacional, oucontra uma lista classificada da OESP na pri-meira página do Estadão?

    O compromisso da imprensa – cujos ór-gãos informativos se inscrevem, de regra, em

    grupos econômicos que exploram os bonsnegócios das telecomunicações – com o em-preendimento neoliberal é a chave da com-preensão dessa especial vinculação mídia-sistema penal, incondicionalmente legiti-mante. Tal legitimação implica a constantealavancagem de algumas crenças, e um si-lêncio sorridente sobre informações que asdesmintam. O novo  credo criminológico damídia tem seu núcleo irradiador na própria

    idéia de pena: antes de mais nada, crêemna pena como rito sagrado de solução deconflitos. Pouco importa o fundamento le-gitimante: se na universidade um retribu-cionista e um preventista sistêmico podemdesentender-se, na mídia complementam-se

    9

    Sobre a televisão. Rio de Janeiro, Zahar, 1997, p.20.

    www.bocc.ubi.pt 

  • 8/19/2019 BATISTA - 2000 - Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio-annotated

    4/20

    4 Nilo Batista

    harmoniosamente. Não há debate, não háatrito: todo e qualquer discurso legitimanteda pena é bem aceito e imediatamente incor-porado à massa argumentativa dos editoriaise das crônicas. Pouco importa o fracasso his-tórico real de todos os preventivismos capa-zes de serem submetidos à constatação empí-rica, como pouco importa o fato de um retri-bucionismo puro, se é que existiu, não passarde um ato de fé; neste último caso, talvez porisso mesmo o princípio da negação dialética

    do injusto através da pena nunca tenha alcan-çado um tão desnaturado sucesso. A equaçãopenal – se houve delito, tem que haver pena– a equação penal é a lente ideológica quese interpõe entre o olhar da mídia e a vida,privada ou pública.

    A primeira consequência da fé na equa-ção penal é conduzir a certos hábitos men-tais que recordam aquela inversão da viola-ção   tabu, descrita por tantos antropólogos:

    se a desgraça sobreveio, é certo que houveinfração. Os temporais natalinos de 2001,com um saldo trágico de dezenas de mor-tos no estado do Rio de Janeiro, imprimi-ram a seguinte manchete: “Ministério Pú-blico busca responsáveis pelas mortes” (OGlobo, 28.dez.01, p. 11). Se houve mortes,é certo que houve homicídio; do resto se en-carregará uma muito mal digerida teoria daomissão.

    A segunda conseqüência da fé na equa-ção penal reside no incômodo gerado pe-los procedimentos legais que intervêm paraa atestação judicial de que o delito efetiva-mente ocorreu e de que o infrator deve serresponsabilizado penalmente por seu come-timento. Tensões graves se instauram en-tre o delito-notícia, que reclama imperativa-mente a pena-notícia, diante do devido pro-cesso legal (apresentado como um estorvo),

    da plenitude de defesa (o   locus  da malíciae da indiferença), da presunção de inocên-cia (imagine-se num flagrante gravado pelacâmara!) e outras garantias do Estado de-mocrático de direito, que só liberarão asmãos do verdugo quando o delito-processoalcançar o nível do delito-sentença (= pena-notícia). Muitas vezes essas tensões são re-solvidas por alguns operadores – advogados,promotores ou juízes mais fracos e sensí-veis às tentações da boa imagem – medi-

    ante flexibilização e cortes nas garantias quedistanciam o delito-notícia da pena-notícia.No processo de minimização do Poder Ju-diciário, o neoliberalismo se vale de instru-mento análogo aos empregados na sua obraeconômico-social.

    Bem próximo ao dogma da pena encontra-mos o dogma da criminalização provedora.Agora, na forma de uma deusa alada onipre-sente, vemos uma criminalização que resolve

    problemas, que influencia a alma dos se-res humanos para que eles pratiquem certasações e se abstenham de outras – e semprecom o devido cuidado –, que supera crisescambiais, insucessos esportivos e é mesmocapaz de semear lavouras, não nos desmin-tam as penitenciárias agrícolas. A criminali-zação, assim entendida, é mais do que um atode governo do príncipe no Estado mínimo: émuitas vezes o único ato de governo do qualdispõe ele para administrar, da maneira maisdrástica, os próprios conflitos que criou. Pro-ver mediante criminalização é quase a únicamedida de que o governante neoliberal dis-põe: poucas normas ousa ele aproximar domercado livre – fonte de certo jusnaturalismoglobalizado, que paira acima de todas as so-beranias nacionais –, porém para garantir o“jogo limpo” mercadológico a única políticapública que verdadeiramente se manteve em

    www.bocc.ubi.pt 

  • 8/19/2019 BATISTA - 2000 - Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio-annotated

    5/20

     Mídia e Sistema Penal   5

    suas mãos é a política criminal. Alguémse recorda da última vez – à parte o casoda chamada “lei da mordaça”, que preten-dia intervir nos canais de comunicação entreoperadores do sistema penal e suas agênciasde comunicação – alguém se recorda da úl-tima vez em que a promulgação de uma leicriminalizante foi objeto de crítica pela im-prensa? Também aqui pouco importa quea criminalização provedora seja uma falácia,uma inócua resposta simbólica, com efeitos

    reais, atirada a um problema real, com efei-tos simbólicos: acreditar em bruxas costumaser a primeira condição de eficiência da jus-tiça criminal, como os inquisidores Kraemere Sprenger sabiam muito bem10.

    Abaixo destas crenças, e de outras que de-las derivam, temos a Igreja e seus sacerdo-tes, ou seja, o sistema penal e seus operado-res. As imperfeições do sistema penal sãovistas como produtos da corrupção humana

    no trato da fé. A brutalização à qual se ex-põem os integrantes das agências policiaisnão passa de uma questão moral (a chamada“banda podre” não configura uma constantesubcultural com raízes no exercício profissi-onal, e sim uma opção ética daquelas ma-çãs); a advocacia criminal constitui moda-lidade consentida de cumplicidade   ex post  facto  com o delito; membros do MinistérioPúblico vêem-se enaltecidos na razão direta

    do desprezo que tenham pela privacidade eoutros direitos civis dos acusados; magistra-dos que levem a sério a tarefa de velar pelasgarantias constitucionais e de conter o po-der punitivo ilegal ou irracional são fracose tolerantes (a tolerância já não é uma vir-

    10

    Cf.  O martelo das feiticeiras. Rio de Janeiro, Rosados Ventos, 1991, p. 49 ss.

    tude, como supunha Locke). Os problemasdo sistema penal são sempre e sempre con- junturais, e o melhor exemplo é a peniten-ciária. A despeito de todos os relatórios, deJohn Howard à última inspeção – melhor sediria, ao último motim – apontarem para a ir-remediável deterioração do emprisonamentosobre sua clientela, do que as taxas de rein-cidência penitenciária são o menos expres-sivo sinal, a boa penitenciária nos aguarda,num futuro eternamente adiado. Especial re-

    levo ganham aqui os discursos que, afinadoscom as novas tendências, assumem a prisãopós-industrial como lugar de mero confina-mento e neutralização do infrator. Em sín-tese, nenhuma das violências penais ultra-passa a consideração de disfunções momen-tâneas, desvios ocasionais no mais impor-tante conjunto de repartições públicas que oEstado ainda detém, embora com crescenteparticipação privada. A importância de um

    fluxo permanente de informações acríticassobre o sistema penal será melhor aferidaquando observarmos que uma de suas mar-cas em sociedades de classes, a seletividade,pode com êxito ser disputada e manipuladapela mídia.

    Olhar para as relações entre a mídia eo sistema penal no capitalismo tardio im-plica abandonar instrumentos metodológicostradicionais, essencialmente interessados no

    que se denominava criminogênese comuni-cacional11. Sem embargo da contribuição demuitos trabalhos assim orientados, cumprereconhecer que quando o jornalismo deixade ser uma narrativa com pretensão de fide-dignidade sobre a investigação de um crime

    11 Para uma síntese, Nilo Batista, “Comunicaçãoe crime”, em  Punidos e mal pagos, Rio de Janeiro,Revan, 1990, p. 133 ss.

    www.bocc.ubi.pt 

  • 8/19/2019 BATISTA - 2000 - Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio-annotated

    6/20

    6 Nilo Batista

    ou sobre um processo em curso, e assumediretamente a função investigatória ou pro-move uma reconstrução dramatizada do caso– de alcance e repercussão fantasticamentesuperiores à reconstrução processual –, pas-sou a atuar politicamente. Quem duvida deque os infelizes foragidos cujos crimes sãorequintadamente exibidos no programa Li-nha Direta estão sendo julgados, sem defesa,naquele momento, e não pelo júri que refe-rendará o veredicto de Domingos Meirelles?

    Simplesmente, poderíamos dizer que o tra-tamento do assunto se desloca da estética –recorde-se o interesse do positivismo crimi-nológico por literatura – para a ciência polí-tica, e portanto os juristas têm algo a dizer edevem dizê-lo. Rigorosamente, o jornalismo já estaria nesse âmbito a partir do debate, tãoescamoteado entre nós, da pioneira privati-zação real – através de concessões feudali-zantes – da radiodifusão e da televisão12. O

    método da análise de discurso13

    foi empre-gado com sucesso num estudo sobre o pro-grama Linha Direta, ao qual nos referiremosadiante.

    2 Editoriais

    O método indiciário14 sugeriria que passás-semos rapidamente pelos editoriais, ondeencontraremos as formulações legitimantes

    mais explícitas e alvares, assumidamente12 Sobre tal debate nos Estados Unidos, cf. Noam

    Chomsky,   Secrets, Lies and Democracy,   Tucson,Odonian, 1996, p. 45ss.

    13 Eni P. Orlandi.  Análise de discurso.   Campinas,Pontes, 2001; da mesma,  As formas do silêncio, Cam-pinas, EdUnicamp, 1997; Paul Henry,  A ferramentaimperfeita, Campinas, EdUnicamp, 1992.

    14 Cf. Carlo Ginzburg. “Sinais – raízes de um pa-radigma indiciário”, em Mitos, emblemas e sinais, S.Paulo, Cia. das Letras, 1989, p. 143 ss.

    opinativas e doutrinais. Há, contudo, doisbons motivos para abordá-los. Em primeirolugar, sendo o editorial o lugar jornalísticoda argumentação e da polêmica, concentra-se nele a disputa desigual entre o acuado dis-curso criminológico acadêmico e o discursocriminológico midiático. Se, através da in-vestigação direta de delitos, da circulação depautas de interesse criminal, ou da franca in-tervenção sobre processos em andamento asagências de comunicação social do sistema

    penal se aproximam das agências executivas,precisam de um discurso para fundamentarsua   performance. Mais do que isso, preci-sam que   seu  discurso se imponha aos con-correntes. Neste sentido, toda e qualquer re-flexão que deslegitime aquele credo crimino-lógico da mídia deve ser ignorada ou escon-dida: nenhuma teoria e nenhuma pesquisaquestionadora do dogma penal, da criminali-zação provedora ou do próprio sistema penal

    são veiculados em igualdade de condiçõescom suas congêneres legitimantes. Os edito-riais, que desconhecem as primeiras e enal-tecem as segundas, estariam, dessa forma,pretendendo escusar-se por uma espécie deerro que lembra a ignorantia affectata do di-reito canônico. O fato é que a universidadenão consegue influenciar o discurso crimino-lógico da mídia, mas a recíproca não é ver-dadeira: a mídia pauta um bom número depesquisas acadêmicas, remuneradas em seudesfecho por consagradora divulgação, querevela as múltiplas coincidências que as via-bilizaram.

    Em segundo lugar, cabe anotar as contra-dições e ambigüidades do discurso midiá-tico. Mais de uma vez observamos que umacaracterística dos sistemas penais do capita-lismo tardio reside numa dualidade perversa:para os consumidores, mil expedientes para

    www.bocc.ubi.pt 

  • 8/19/2019 BATISTA - 2000 - Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio-annotated

    7/20

     Mídia e Sistema Penal   7

    evitar a institucionalização; para os consu-midores frustrados, encarceramento neutra-lizante duradouro. No Brasil, teríamos essesdois eixos bem representados na lei no 9.099,de 26.set.95, de um lado, e nas leis concer-nentes aos chamados crimes hediondos, deoutro. Pois bem, o tema da prisonização, dosefeitos deteriorantes da privação de liberdadesobre o condenado, funciona nos editoriaispara o primeiro campo, e desaparece delespara o segundo. Não por acaso, isto se re-

    pete também nos textos dos especialistas queparticipam da elaboração do discurso midiá-tico. Leiamos um pequeno trecho de artigode Julita Lemgruber:

    Vamos reservar as prisões para

    os criminosos violentos e perigo-

    sos. Todos os outros podem e de-

    vem ser punidos com penas alter-

    nativas15.

    Restaria para a psicologia judiciária a es-tafante construção conceitual do  viológrafo,eis que o fracasso do  perigômetro já come-morou um século.

    Não nos deteremos sobre o nível teóricodos editoriais. O âncora Boris Casoy re-pete sempre o mesmo bordão (“isto é umavergonha” ou “isto tem que acabar”) sem-pre que não está compreendendo muito bemum assunto criminal. O   Jornal do Bra-

    sil afastava do âmbito dos direitos humanosalguns acusados de tráfico de drogas que,“comportando-se como animais selvagens,não merecem qualquer comiseração”16. Um

    15 “Prisões ou escolas?”.   Jornal do Brasil,10.dez.01, p.6.

    16 Editorial, 15.dez.95. Remetermos o leitor aos ro-dapés da revista Discursos Sediciosos – crime, direitoe sociedade, onde uma seção –  Florilégio – recolhemuitos exemplos similares .

    policial que, de Diadema a Cidade de Deus,lesse isto, poderia sentir-se incentivado a es-pancamentos; pobre dele, estaria – esteve –na primeira página.

    3 Especialistas

    A posição estratégica da questão criminal namídia está muito distante da suposição ingê-nua – ainda que não necessariamente falsa

    – de que o sangue sempre aumenta as ven-das. O discurso criminológico midiático pre-tende constituir-se em instrumento de análisedos conflitos sociais e das instituições pú-blicas, e procura fundamentar-se numa éticasimplista (a “ética da paz”) e numa históriaficcional (um passado urbano cordial; sau-dades do que nunca existiu, aquilo que Giz-lene Neder chamou de “utopias urbanas re-trógradas”17). O maior ganho tático de taldiscurso está em poder exercer-se como dis-curso de lei e ordem com sabor “politica-mente correto”. Naturalmente, esse discursoadmite aliar-se a outros que não lhe rene-guem o ponto de partida: a modernidaderealizou-se plenamente, suas promessas es-tão cumpridas, e se o resultado final é de-cepcionante, tratemos de atenuá-lo pela cari-dade, pelo voluntariado, por campanhas pu-blicitárias; mas lei é lei. Paralelamente a te-orias sociais que excluem a conflitividade de

    suas costuras, caminham concepções jurídi-cas para as quais a teoria do delito é o maisaudacioso limite da reflexão. Os conflitossociais podem dessa forma ser lidos apenaspela chave infracional: a tragédia fundiáriabrasileira é reduzida à dogmática do esbulho

    17 “Cidade, identidade e exclusão”, revista Tempo,Rio de Janeiro, Relume-Dumará/UFF, v. 2, no 3,1997, p. 111.

    www.bocc.ubi.pt 

  • 8/19/2019 BATISTA - 2000 - Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio-annotated

    8/20

    8 Nilo Batista

    possessório, ainda que, para honra nossa, al-guns tribunais tenham, em acórdãos jamaisnoticiados na plenitude de suas estruturas ar-gumentativas, encontrado no texto constitu-cional a superação desse paradigma medío-cre. A pena já não interessa tanto como in-flição de sofrimento ou mesmo fórmula de-sastrada de solução de conflitos: a pena in-teressa como recurso epistemológico, comoinstrumento de compreensão do mundo. Poroutro lado, o desmonte do Estado encontra

    neste discurso uma eficiente picareta, capazde exibir os vícios da burocracia estatal – his-toricamente dominada pelas oligarquias na-cionais – como um problema do próprio Es-tado e não das classes sociais que quase sem-pre o ocuparam. Trata-se de procedimentoanálogo à enfática negação de qualquer de-terminismo nos crimes patrimoniais pratica-dos por pobres: a “moralização” do delito éa legítima sucessora de sua “naturalização”

    positivista, e os caminhos da responsabiliza-ção penal ficam livre de todo escrúpulo. Noreino do individualismo, só o indivíduo podeser responsável por estar na penitenciária.

    O discurso criminológico da mídia, cujaimportância política dispensa maiores consi-derações, não se realiza apenas como noti-ciário, crônica (ainda que muitos cronistasse dediquem a ele) ou opinião (editoriais):àquelas seções científicas, versando da me-dicina à astronomia, vieram juntar-se umasseções criminológicas, regulares ou não. Oformato habitual das matérias criminológi-cas noticiam resultados, parciais ou finais,de pesquisas acadêmicas. Freqüentemente,é possível reconhecer a fonte do financia-mento a partir do objeto ou do método detais pesquisas. Quando o governo do estadodo Rio de Janeiro, dentro da “pedagogia dapaz”, promovia uma campanha contra armas,

    imediatamente o Iser (Instituto Superior deEstudos da Religião) concluiu uma pesquisaafirmando que as vítimas de roubo que este- jam armadas são mais suscetíveis de seremmortas – conclusão extraída de duas dezenasde casos, que desconsiderava a substanciosacifra oculta de reações exitosas por parte devítimas armadas, não registradas. À pautacriminológica do FMI (custo do preso, la-vagem de dinheiro, responsabilidade fiscal)quase sempre respondem financiamentos ex-

    ternos. Verbas da área da saúde ressusci-tam o paradigma epidemiológico, cuja ver-são pós-moderna confronta-se com o horrordeque–comonabombade neutrons –jánãose cogita de aniquilar os cortiços, mas simseus habitantes, criminalizados pela droga.

    Enunciados secundários do discurso cri-minológico da mídia (“a impunidade au-menta o número de crimes”; “nas drogas écomo uma escada, passa-se das mais leves

    para as mais pesadas”; “penas elevadas dis-suadem”, etc), que não alcançariam jamaisconstatação empírica, por serem completa-mente indemonstráveis, precisam de um res-paldo “científico”, que os conduza respeita-velmente à doutrina dos editoriais. É aí queentram os especialistas. Como o discursocriminológico da mídia não representa o pro-duto de um esforço na direção do saber, massim uma articulação retórico-demonstrativadaquele   credo  a que nos referimos, ele se-lecionará os especialistas segundo suas opi-niões coincidam ou dissintam daquelas cren-ças.

    Bourdieu atribuiu-lhes o nome provocantede fast-thinkers:

    Se a televisão privilegia certo

    número de fast-thinkers que pro-

     põem um fast-food cultural, ali-

    www.bocc.ubi.pt 

  • 8/19/2019 BATISTA - 2000 - Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio-annotated

    9/20

     Mídia e Sistema Penal   9

    mento cultural pré-digerido, pré-

     pensado, não é apenas porque (...)

    eles têm uma caderneta de endere-

    ços, sempre a mesma (sobre a Rús-

    sia, o sr. X; sobre a Alemanha,

    o sr. Y): há falantes obrigatórios

    que deixam de procurar quem te-

    ria realmente alguma coisa a di-

     zer, em geral jovens ainda desco-

    nhecidos, empenhados em sua pes-

    quisa, pouco propensos a freqüen-

    tar a mídia, que seria preciso ir  procurar, enquanto que se tem à

    mão, sempre disponíveis e dispos-

    tos a parir um artigo ou a dar uma

    entrevista, os habitués da mídia18.

    Credenciados pelo exercício profissionalou acadêmico, pela ocupação de um cargopúblico ou mesmo por um episódio de vidaprivada (Associação de Vítimas, etc), os es-

    pecialistas são chamados à complementaçãodo noticiário, quando suas próprias idéiasnão sejam a notícia. O caso do “maníaco doparque” exumou a psiquiatria forense maisrasteira e atrasada; crimes ambientais cha-mam a opinião de biólogos e militantes ver-des, que ingressam lepidamente em tormen-tosas questões jurídico-penais; na violênciapolicial contra a classe média, a   troupe dosdireitos humanos ganha o centro do pica-

    deiro, de onde é retirada, meio constrangida,quando o motim na penitenciária foi por fimcontrolado; etc. A regra de ouro deste circo,embora nem sempre percebida claramente,é que a fala do especialista esteja concordecom o discurso criminológico da mídia: sealgum trecho se afasta do credo, será banidona publicação “editada” da fala.

    18 Bourdieu, op.cit., p. 41.

    O alimento criminológico do público, por-tanto, são esses  hambúrgueres   conceituais,servidos em poucas linhas nos jornais e empoucos segundos na televisão. Não cabe exa-minar seu baixo nível nutricional. Sua re-ciclagem pela crônica é freqüente, como sepode ver na seguinte passagem:

    Como dizem os especialistas

    no assunto, a lavagem de di-

    nheiro através do sistema finan-

    ceiro transnacional exige algumgrau de organização, porque pre-

    cisa de uma rede de apoio fora do

     Brasil19.

    Ausente desta passagem todo o questiona-mento teórico ao conceito de crime organi-zado; bem demarcadas as diferenças entre osistema financeiro transnacional, “limpo” e“ético”, e o dinheiro que pode sujá-lo, seriamesmo preciso um especialista para formu-lar sua asserção básica? Se o assunto fossequímica, alguém invocaria um saber especi-alizado para a fórmula da água: como di-zem os especialistas, a água é composta porhidrogênio e oxigênio?! A primeira ora-ção (“Como dizem os especialistas no as-sunto”) não ultrapassa a função de argu-mento de autoridade; poderia ser suprimidasem qualquer perda semântica. Sua im-portância é puramente retórica: o cronista-

    criminólogo está fundamentado nos especia-listas, e a coincidência entre suas concepçõesnão passa de mera coincidência. René Dottiacertou em cheio quando, arrolando as dezpragas do sistema penal brasileiro, incluíaentre elas o que denominou de “juízes pa-ralelos: determinados profissionais da mídia

    19 Marcelo Beraba. “A bola e a rede”,   Folha deS.Paulo, 7.dez.01, p. 2.

    www.bocc.ubi.pt 

  • 8/19/2019 BATISTA - 2000 - Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio-annotated

    10/20

    10 Nilo Batista

    eletrônica e muitos juristas de plantão (...),apóstolos da suspeita temerária e militantesda presunção da culpa”20.

    4 Vigilantismo

    Sabe-se hoje que a criminalização secundá-ria – realizada seletivamente, e ainda as-sim na dependência de fatores aleatórios que,dentre outros, vão da iniciativa ou omis-são da vítima em registrar o delito ao in-

    teresse ou desinteresse da agência policialem investigá-lo – a criminalização secundá-ria não passa de ser pífia amostragem, cons-truída segundo o jogo dos estereótipos cri-minais e das vulnerabilidades sociais, dogrande incognoscível da criminologia: a cri-minalidade real (ou seja, a totalidade dosfatos que poderiam subsumir-se na progra-mação criminalizante primária, nas leis pe-nais). Por isso mesmo se afirma que o po-

    der criminalizante secundário é “pouco sig-nificativo no marco total do controle social”,e que a criminalização secundária “é quaseum pretexto” para um “formidável controleconfigurador positivo da vida social, que emnenhum momento passa pelas agências ju-diciais”21; a vigilância sobre a população.Detenções breves, esclarecimentos de iden-tidade, observação das atividades, registrosoficiais ou paralelos, “grampos” telefônicos– autorizados ou não –, acesso clandestinoa informações sigilosas bancárias ou fiscaissão alguns exemplos desse poder de vigi-lância que o sistema penal, mesmo paralelaou subterraneamente, exerce. Pense-se emcomo a criminalização das drogas é diaria-

    20 “As dez pragas do sistema penal brasileiro”, emJames Tubenchlak (org.).   Doutrina, Rio de Janeiro,ID, 2001, v. 11, p. 288.

    21 Zaffaroni, op. cit , p. 12.

    mente utilizada como pretexto para o exercí-cio de vigilância, e considere-se que no exer-cício de tal poder a seletividade é muito maisatenuada do que na criminalização secundá-ria: após a privatização da telefonia, no Bra-sil, os psicanalistas perderam a primazia es-tatística da escuta.

    O vigilantismo nasceu no capitalismo in-dustrial, e devemos a Bentham sua formula-ção mais sincera e alucinada. O panópticonão era uma proposta restrita à penitenciária,mas estendia-se às fábricas, às escolas, aosasilos e hospitais22. Inteiramente compatívelcom a idéia benthamiana de que os pobrestambém deveriam usar uniforme, o panóp-tico era o princípio básico de uma sociabili-dade da vigilância muito cara ao empreendi-mento burguês-industrial. A prevenção ex-tremada e invasiva deste modelo se inviabi-lizou espacialmente, na segunda metade doséculo XIX, com a modernização e o cresci-

    mento das cidades. Substituído, na vigilân-cia do disperso exército de reserva da mão-de-obra industrial, por um artefato “cientí-fico” do positivismo, a periculosidade pré-delitual que poderia ativar um medida de se-gurança detentiva, o princípio hibernaria àespera das condições tecnológicas que lheconcederiam um segundo e glorioso ciclo.Nessa linha, Arlindo Machado pergunta: “oque são os modernos sistemas de vigilância

    senão a atualização e a universalização dopanóptico”?23

    A transição da subjetividade visual dacâmera-arte para a objetividade da câmera-

    22  Le Panoptique, Paris, P. Belfond, 1977, especi-almente as cartas XVIII e subseqüentes (p. 150 ss).

    23  Máquina e imaginário. S. Paulo, Edusp, 1956,p. 222.

    www.bocc.ubi.pt 

  • 8/19/2019 BATISTA - 2000 - Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio-annotated

    11/20

     Mídia e Sistema Penal   11

    vigia, de que tratou Paul Virilio24, aceleradana guerra (John Ford filmava portos no Pa-cífico; Jean Renoir foi fotógrafo de reconhe-cimento aéreo), atingiria o paroxismo na vi-gilância policial de   shoppings, aeroportos,estradas e logradouros públicos das últimasdécadas. Para além dos avanços tecnológi-cos que aprimoraram seu desempenho e lhereduziram os custos, a vigilância eletrônicase encontrará, nos sistemas penais do capi-talismo tardio, com um personagem novo,

    que da execração e desprezo com que eravisto nos albores da modernidade passou aum reconhecimento e respeitabilidade con-sagrados em muitas leis: o delator. A vigi-lância eletrônica é um delator em tempo realque, afora eventuais violações da intimidade,dispensa todo o debate moral e jurídico deseus símiles humanos. Era completamentenatural que tal insumo técnico fosse apro-veitado pelo sistema penal, no exercício de

    seu poder de vigilância. Não menos natural,contudo, seria que as agências de comuni-cação social do sistema penal, dispondo deequipamentos de última geração, se vissemtentadas a empregá-los diretamente, na linhados reality shows que, como observou Gara-pon, dispensam a ficção por sua capacidadede “agir no real, com a participação daquelesque estão diretamente envolvidos”25. Esta-mos prontos para assistir aos acalorados lití-gios na vara de família do Ratinho, ou à can-did camera criminal do Fantástico.

    Em 30 de março de 2001, o programaGlobo Repórter ocupou-se de assédio se-xual. Um Sérgio Chapelin doutrinal inda-gava “qual o limite entre a paquera e o assé-

    24  A máquina de visão. Rio de Janeiro, J. Olympio,1994, p. 72 ss.

    25 Antoine Garapon. O juiz e a democracia. Rio deJaneiro, Revan, 1999, p. 112.

    dio sexual”, respondendo em seguida que “oassédio causa constrangimento e muita dor”,e convocando a participação da enorme au-diência: “Você já foi vítima? Ajude-nos coma sua informação”. A seguir, foram apresen-tados alguns casos. Um alto funcionário mu-nicipal, de cidade vizinha ao Rio, receberaum cartão, exibido e parcialmente lido, comuma declaração de amor de uma senhora quelhe mandava flores “até duas vezes por dia”.Registrou o fato na Delegacia de Mulheres

    local. Provocada a pronunciar-se, a delegadaafirma à repórter que algumas pessoas lheperguntaram: “será que ele não é chegadoà coisa”? O marido da sedutora, para de-cepção geral, nem a matou nem a abando-nou. O segundo caso teve como protagonistauma jovem cuja chefe, homossexual, preten-deu conquistá-la. Imagens e a identidade dachefe, que se recusou a falar, foram exibi-das. Entre uma história e outra, o especia-

    lista (no caso, o indefectível deputado Car-los Minc) se pronuncia. O último episódio sepassa também na Baixada Fluminense; dessafeita, sequer existe uma relação de poder emcausa. Um empregado de uma pequena fá-brica teria dito para um colega, certa ocasião,que ela “estava gostosa”, e teria tentado olharseu banho, através de uma janela. A repór-ter bate à porta da fábrica, gravando, e o in-feliz réu, aterrorizado pela câmera, diz queele não é ele. O patrão confirmará que ele éele, porém os outros empregados negarão osfatos. Nomes, fisionomias, tudo no ar. Aofinal, a repórter lembra: “a lei ainda está porvir”. De fato, um mês e meio depois dessamatéria, a lei no 10.224, de 15.mai.01, vi-ria a criminalizar o assédio sexual (art. 216-A CP). À parte a indigência da reflexão so-bre assédio sexual do programa, a mídia tevepoder suficiente para fazer lançar em docu-

    www.bocc.ubi.pt 

  • 8/19/2019 BATISTA - 2000 - Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio-annotated

    12/20

    12 Nilo Batista

    mentos oficiais de uma Delegacia de Polícia– legíveis na reportagem – a rubrica assédiosexual. Ninguém conseguiria tal proeza: in-vestigações policiais formalizadas sobre umcrime que “ainda está por vir”, a repartiçãopública como cenário de uma telenovela nu-trida pela intimidade sexual de pessoas re-ais26. O que dizer da exposição da imagemdessas pessoas, anunciadas como “acusadas”de um delito que não existia?

    Essas “pegadinhas” criminais devem ser

    completamente afastadas do debate acercado jornalismo investigativo, até porque nãohá nada desconhecido nessa investigação;aqueles três episódios vulgares, que pode-riam perfeitamente ter ocorrido nos estúdiosda TV Globo, só ganharam visibilidade porcausa da tese: precisamos criminalizar o as-sédio sexual que, como lembrou o prof. Cha-pelin, “causa constrangimento e muita dor”.Um caso típico de criminalização provedora;

    após 15 de maio de 2001, certamente desapa-receu do país o interesse sexual de superioreshierárquicos por qualquer de seus subordina-dos.

    Há no Rio de Janeiro centenas de pontosde venda de drogas ilícitas, basicamente co-caína e maconha. A prisão de todos os ven-dedores de um ponto jamais impediu que,tão logo a força policial se ausente do local,as vendas se restabeleçam, com a imediata

    substituição da mão-de-obra: se os interes-ses do mercado lograram alterar a Constitui-ção, como se deteriam perante uma lei or-dinária? Toda a gente já leu a notícia pro-

    26 Alberto Torón registrou o caso de um Delegadode Polícia Federal que preparou para a mídia o cenáriode uma cela ocupada por um preso rico. Cf. “Notassobre a mídia no crimes de colarinho branco e o Judi-ciário: os novos padrões”, em Rev. IBCCrim no36. S.Paulo, RT, 2001, p. 260-261.

    vocadora “Tráfico retorna a suas atividades24 horas depois da PM deixar o morro X ”.Toda a gente sabe também onde ficam taispontos, inclusive a polícia, cuja aproxima-ção, saudada por alguns rojões, suspende asatividades mercantis ilegais, até sua retirada.Em agosto de 2001, repórteres da TV Globosimularam comprar drogas em algumas fa-velas e mesmo em ruas da Zona Sul, natu-ralmente com uma microcâmera. Numa fa-vela, surpreenderam ou estimularam uma es-

    pécie de pregão, similar aos das bolsas demercadorias. Em todos os locais visitados,duas dezenas de jovens vendedores foram fo-tografados com clareza suficiente para resul-tar em algumas indicações, com três prisões.Nada, absolutamente nada que não fosse co-nhecido, salvo a fisionomia de alguns dosmilhares de jovens negros e favelados quetêm neste comércio ilegal sua perigosíssimaestratégia de sobrevivência27. Nada de novo:

    ganharam o prêmio Esso. Nas comemora-ções (Bom Dia Brasil, 19.dez.01), além defrisar que seus colegas entraram “numa dasfavelas mais perigosas da cidade”, a jorna-lista enfatizava a “ousadia” dos “bandidos”:“oferecer drogas”. O merecimento nem sem-pre provém do que se informa, mas tambémdaquilo que se omite: a improvável repor-tagem sobre o desemprego e a miséria nasfavelas.

    Na mesma linha, sob o logotipo de umalupa com a inscrição “O Dia investiga”28,temos outra “pegadinha”. É fato toleradono Rio de Janeiro – durante curto período,legalizado pela chamada “lei do bico” –

    27 Sobre o assunto, Vera Malaguti Batista,  Difíceisganhos fáceis, Rio de Janeiro, Freitas Bastos/ICC,1999.

    28 “Acaba a farra na Vila Mimosa”.   O Dia,4.dez.01, p. 11..

    www.bocc.ubi.pt 

  • 8/19/2019 BATISTA - 2000 - Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio-annotated

    13/20

     Mídia e Sistema Penal   13

    que policiais suplementem seus ganhos tra-balhando em vigilância patrimonial privada,como ocorre em tantos países. É claro que talprática não se restringe às ruas dos mais va-lorizados bairros da cidade: também na VilaMimosa, o resíduo local da zona de baixomeretrício do Rio, e talvez ali com maioresrazões, encontraremos policiais no “segundoemprego”. Só um olhar muito preconceitu-oso e conservador, que no limite inabilita-ria a prostituta para qualquer ato oneroso da

    vida civil, farejaria um rufianismo na remu-neração pelos certamente difíceis serviços demanter a ordem na zona. A grande desco-berta investigatória de O Dia – com fotos namadrugada que imediatamente levaram à pri-são oito policiais militares – foi essa: na zonaé como no Leblon.

    Tanto na reportagem “Feira de Drogas”quanto na “Farra na Vila Mimosa”, o impor-tante não é o conteúdo da investigação jorna-

    lística, sabido e ressabido: o importante é adireta mobilização do sistema penal, o cum-primento de uma tarefa própria das agênciasexecutivas do sistema penal. Sob tais cir-cunstâncias, nas quais a mídia está não ape-nas pautando as agências executivas do sis-tema penal, como também selecionando en-tre candidatos à criminalização secundária(os repórteres de “Feira de Drogas” foram àMangueira e à Rocinha: poderiam ter prefe-rido Mineira e Borel; o repórter da “Farra”foi à Vila Mimosa: poderia ter escolhidoqualquer das inúmeras “termas” em funci-onamento), cabe falar de uma “executiviza-ção” das agências de comunicação social dosistema penal.

    O álibi para disfarçar essa articulação ób-via é buscado na tradição liberal do jorna-lismo investigativo. Todos se recordam dacampanha que O Globo moveu contra a Le-

    gião da Boa Vontade, com manchetes diáriasde primeira página, em março de 2001. Oque provavelmente todos ignoram é que aLBV recebera, dias antes, a concessão paraexploração de um canal aberto de televisãoeducativa. Não temos qualquer apreço pelaLBV, nem lhe reconhecemos aptidões espe-cíficas para administrar uma televisão edu-cativa. A LBV representa a indústria da ca-ridade da “velha economia”, como diriam oslocutores globais; a mesma indústria da cari-

    dade opera hoje por outros métodos, tercei-rizados, combinando recursos públicos comdoações de campanhas “politicamente corre-tas”. Com as matérias publicadas, a LBVfoi pautada para o Ministério Público, a Re-ceita Federal, o INSS etc. Festejando, me-ses depois, uma auditoria do INSS, um edi-torial afirmava: “O trabalho jornalístico, en-fim, abriu os olhos do Estado para as falca-truas debaixo do seu nariz”29.

    Apesar do álibi de cariz liberal, fica evi-dente que o “trabalho jornalístico” não ape-nas pautou agências do sistema penal e ou-tras agências públicas, como também que“abriu os olhos do Estado” na escolhida di-reção da LBV, não das centenas de corpo-rações nas quais provavelmente se encontra-riam “falcatruas” similares, tendo em suasmãos portanto a seletividade própria do sis-tema penal.

    O vigilantismo não se reduziu aos meiosfotoeletrônicos que lhe concederam esta se-gunda e gloriosa vida. O princípio subsisteem inúmeras propostas. O conhecido soció-logo Luiz Eduardo Soares, ao expor ao jor-nal   O Globo projetos de seu partido para ogoverno do Estado do Rio de Janeiro, men-cionou “a idéia de montar nos batalhões de

    29 O Globo, 27.nov.01, p. 10.

    www.bocc.ubi.pt 

  • 8/19/2019 BATISTA - 2000 - Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio-annotated

    14/20

    14 Nilo Batista

    Polícia Militar centrais de telemarketing, queofereceriam mão-de-obra cadastrada nas fa-velas”. Ouçâmo-lo:

     – Os batalhões podem mon-

    tar cadastros desses prestadores.

    ONGs forneceriam pessoas para

    trabalhar num serviço de telemar-

    keting muito simples, anotando os

     pedidos da população. Os bata-

    lhões funcionariam como fiadores

    desses prestadores e checariam, no fim, se o trabalho foi bem feito – 

    explica o sociólogo30.

    Trabalhadores pobres cadastrados na po-lícia, e supervisionados pela polícia. Paraquem leu Bentham, qualquer comentário se-ria supérfluo. Proposta formulada por umespecialista do Partido dos Trabalhadores.Tempos confusos.

    5 Noticiário

    O paradoxo de que a um Estado social mí-nimo corresponda um Estado penal máximoconduz às conseqüências concomitantes dedespolitização dos conflitos sociais e politi-zação da questão criminal. Os   faits-diversda antiga página policial migraram para aprimeira página, e as páginas políticas re-cebem um tratamento policialesco. A gi-

    gantesca transferência de poder e riqueza doâmbito público para o privado tem no des-merecimento de agentes políticos um pode-roso indutor de opinião: serviços públicossão ineficazes, e administrados por   gangs-ters. Decisões do Congresso Nacional capa-zes de afetar milhões de brasileiros obtêm di-vulgação ínfima se comparada com as ativi-

    30 O Globo, 25.dez.01, p. 3.

    dades inquisitoriais de alguma CPI, ou cominvestigações sobre a própria conduta de par-lamentares. A questão criminal se politizaigualmente como descredenciamento de ad-ministrações locais ou forças partidárias quese oponham ao  credo  criminológico midiá-tico, à expansão da intervenção penal. Todosviram a reação da imprensa quando o entãoministro da Justiça José Carlos Dias falou emdireito penal mínimo: era o homem certo nolugar certo, porém na ocasião errada.

    Na televisão, os âncoras são narradoresparticipantes dos assuntos criminais, verda-deiros atores – e atrizes – que se valem te-atralmente da própria máscara para um jogosutil de esgares e trejeitos indutores de apro-vação ou reproche aos fatos e personagensnoticiados. Este primeiro momento no qualuma acusação a alguém se torna pública nãoé absolutamente neutro nem puramente des-critivo. A acusação vem servida com seus in-

    gredientes já demarcados por um olhar mo-ralizante e maniqueísta; o campo do mal des-tacado do campo do bem, anjos e demô-nios em sua primeira aparição inconfundí-veis. Para ficar num caso sobre cuja incon-sistência há unanimidade, vejam-se os noti-ciários contemporâneos do inquérito policialda Escola Base.

    Por fim, a observação puramente quantita-tiva revela a importância estratégica da cri-minalização das relações sociais no noticiá-rio. Tomemos a edição de  O Globo  de sá-bado, 5 de janeiro de 2002. Deixando delado o caderno que se ocupa de economia,mundo e esportes, restam 16 páginas sobreo país e o Rio, além de colunas, editoriais eartigos. Leiamos essas 16 páginas. Na pri-meira, há três chamadas de matérias crimi-nais (“Seqüestrador mantém reféns em PortoAlegre”; “Polícia do Rio prende dois chefes

    www.bocc.ubi.pt 

  • 8/19/2019 BATISTA - 2000 - Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio-annotated

    15/20

  • 8/19/2019 BATISTA - 2000 - Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio-annotated

    16/20

    16 Nilo Batista

    facultam-lhe um tapinha só, daqueles quenão doem – logo após a revelação do resul-tado de um exame de DNA ao vivo e a cores;estará o filho em casa vendo a disputa de seuspais?

    Quem tiver paciência para assistir à longaentrevista (40’59”) da cantora e bailarinaGretchen à jornalista-modelo Luciana Gime-nez32 terá uma visão de como seria o pro-cesso civil de uma ação de reparação de da-nos. Gretchen foi ao Recife e, estando pre-

    sente numa casa noturna, dispôs-se – ou foiconvidada – a dançar num tablado contíguoa uma fogueira, resultando-lhe queimaduras.Testemunhas se pronunciaram, as lesões sãoexibidas, não falta a prova pericial – no tele-fonema de um médico –, a família se solida-riza, enquanto a produção do programa tentaem vão obter um pronunciamento da outraparte. Afora a revelia virtual dos gerentes dacasa noturna, são quase três quartos de hora

    nos quais uma lide, com todos os condimen-tos probatórios, diverte o público e adverteo infeliz magistrado que dela se ocupará nofuturo.

    Estamos fora do modelo convencional dotrial by media: não se trata aqui de influ-enciar um tribunal, senão de realizar direta-mente o próprio julgamento.

    7 Esportes

    O desempenho dos juízes de futebol é sem-pre avaliado negativamente quando eles ten-tam, como se diz, “segurar” o jogo valendo-se da pena menor (cartão amarelo). Peranteuma jogada duvidosa quanto à intenção deatingir o adversário, os juristas das leis dofutebol encarregados da apreciação daquele

    32 Rede TV!, programa Superpop, 19.dez.01.

    desempenho, geralmente árbitros aposenta-dos, invariavelmente se posicionam pela ex-clusão do atleta (pena máxima, cartão ver-melho). Advertências verbais, ainda que se-veras, são mal vistas. Alguém se recorda dealgum desses comentaristas criticar um ár-bitro por excessivamente rigoroso? Imper-ceptivelmente, a reportagem esportiva cola-bora na disseminação das idéias de que o me-lhor juiz é o que opta sempre por penas maisseveras, e de que as sanções são o instru-

    mento mais adequado para manter a ordemem campo.

    Quando, nas cercanias do esporte, surgealgum episódio criminal, as coisas ficammais explícitas, tal como se deu no trata-mento dispensado aos passaportes falsos, ouaos “gatos” cujos pais ou treinadores fizeramum segundo registro civil para viabilizar aparticipação em competições de faixa etárialimitada. Casos de doping são especialmente

    atraentes, porquanto se comunicam com oimaginário da droga. Quando um exame naurina de Júnior Baiano detectou detritos as-sociados à cocaína, na primeira transmissãosubseqüente de uma partida os telespectado-res de Galvão Bueno votaram majoritaria-mente em favor da pena máxima de suspen-são para ele – e era um zagueiro da seleçãobrasileira! Ficou claro que Galvão Buenotem seu público na mão, bem como que nãohavia nada mais importante a conhecer destepúblico além de sua brandura ou severidadepenal.

    Uma última observação, útil porque nemsempre a mística liberal pode ser desmentidacom tanta clareza. Uma reportagem espor-tiva deveria abranger a incondicional possi-bilidade de, em casa, o telespectador saberde tudo o que se passa no estádio. Retratosde Che Guevara, maciçamente usados por

    www.bocc.ubi.pt 

  • 8/19/2019 BATISTA - 2000 - Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio-annotated

    17/20

     Mídia e Sistema Penal   17

    uma facção da torcida do Flamengo, nuncasão enfocados. Em compensação, o exibici-onismo mais tolo e individual, do tipo “que-rido Galvão, mostra nós” ou “a gente se vêpor aqui e em Conceição da Roça Grande”são o tempo todo mostrados. Também o áu-dio é ciosamente controlado: quem ficou sa-bendo que o nome de Osama Bin Laden foigritado no Maracanã, no primeiro jogo dasfinais da Copa Mercosul de 2001? A provados nove pode ser obtida numa constatação

    mais simples. Criou-se o hábito de jogadorescomemorarem seus gols exibindo, numa se-gunda camisa portada sob a do clube,algumainscrição. É também geralmente algo tolo,variando de “papai te ama” a “foi Jesus quemmarcou”. Contudo, é potencialmente peri-goso, porquanto uma inscrição mais irreve-rente pode quebrar o monopólio do discurso:quem escolhe o que o telespectador vê é aemissora, não o atleta. No dia em que Ro-

    mário descobriu essa veia de tantos cronistasatuais, a indignação a favor, fez uma inscri-ção de apoio ao presidente Fernando Henri-que Cardoso. Mal estar na civilização glo-bal: era a favor, porém rompia um princí-pio. A solução foi entremostrar a inscrição,um pouco rapidamente, sem muitos comen-tários. O fato é que os goleadores correm di-retamente para a câmera atrás da baliza, po-rém esta câmera é cortada até que os censo-res se certifiquem da inocuidade do escrito.Aí, sim, a transmissão é autorizada. Naquelamemorável olimpíada, na qual os campeõesnorte-americanos levantaram o braço com asaudação dos Panteras Negras, as câmeras dehoje só enquadrariam até a cabeça.

    8 A executivização em seu nívelmáximo: Linha Direta

    O interesse do Instituto Carioca de Cri-minologia pelo programa Linha Direta foidespertado por uma notícia que relatava amorte, em confronto policial, de um assal-tante cuja biografia criminal fora dias antesexposta naquele programa (12.ago.99). Oprograma subseqüente (19.ago.99) comemo-rava o feito. Examinando os vídeos de ambas

    as edições, solicitamos e obtivemos do Pro-curador Geral da Justiça do Estado da Bahia,Fernando Steiger Tourinho de Sá – a quemagradecemos – cópia do procedimento con-cernente ao confronto que vitimara o agorafamoso Marcos “Capeta”.

    O exame do primeiro programa mostra umcruel Marcos “Capeta”, chefe de numerosobando, que maneja uma metralhadora ponto50, instalada na carroceria de uma picape,

    contra policiais atônitos, que empunham re-vólveres calibre 38, numa Kombi que ex-plode. Desnecessário será dizer que as cha-mas da explosão, naquilo que terá parecidoao diretor um grande achado, emolduram orosto cínico de Marcos “Capeta”, cuja alcu-nha se prestava a uma espécie de demoniza-ção ao pé da letra. Lamentavelmente, os do-cumentos depõem em outro sentido. Mar-cos “Capeta” foi morto numa casa situadaem local ermo, isolada e portanto facilmentesitiável. Seu corpo tinha 22 orifícios de en-trada de projéteis de arma de fogo, além deuma aparentemente desnecessária lesão con-tusa na região cervical. Das quatro armasque a polícia disse ter encontrado no local,uma não disparara (exame negativo para pól-vora combusta), e as outras três (dois revól-veres 38 e uma pistola 380) estavam par-cialmente carregadas: mas a metralhadora

    www.bocc.ubi.pt 

  • 8/19/2019 BATISTA - 2000 - Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio-annotated

    18/20

    18 Nilo Batista

    ponto 50 da encenação do Linha Direta sim-plesmente não existia. O numeroso bandotambém estava reduzido a um garoto de 14anos, com pelo menos oito lesões de pro- jéteis de arma de fogo (o respectivo laudotem passagens ilegíveis). Do depoimento dairmã de Marcos “Capeta” consta uma sortede última declaração dele: “Linha Direta sódisse mentira”. A festejada secretária de Se-gurança Pública da Bahia, nas colunas so-ciais freqüentemente apresentada como “a

    blonde  Kátia Santos”, declarou ao segundoprograma, o comemorativo: “ bandido aquina Bahia não faz carreira longa”.

    Perguntávamo-nos aqui no Instituto:quem matou Marcos “Capeta”? Um grupode policiais baianos, fascinados pela famaao alcance do dedo, ou o jornalista MarceloRezende – quer dizer, a TV Globo? Parecia-nos que a agência de comunicação social,dispondo dramaticamente sobre fatos e

    personagens reais, inclusive e especialmentepoliciais pautados para aquela caçada,estava assumindo um papel próprio dasagências executivas do sistema penal; pelaprimeira vez, cogitava-se da hipótese de“executivização” daquelas agências.

    O grande estudo sobre Linha Direta foiempreendido por Kleber Mendonça33, nomarco teórico da análise do discurso. Kle-ber Mendonça revela como a TV Globo se

    coloca ali como instância de serviço públicoque tende a corrigir as insuficiências do sis-tema penal, “a fazer a justiça funcionar comodeveria”. Até abril de 2001, ou seja, emquase dois anos de atividades (o primeiroprograma é de 27.mai.99), o programa co-memorava a prisão de 103 foragidos (ignora-

    33  A punição pela audiência – um estudo do Linha

     Direta. Rio de Janeiro, Quartet/Faperj, 2002.

    se se Marcos “Capeta” integra este número).Observa Mendonça que o sucesso do pro-grama pode ser explicado na (perigosíssima)reunião de aspectos de telejornalismo e tele-novela, “os dois produtos de maior audiênciada emissora”. A partir do “lugar de autori-dade” do qual o programa se investe, a mis-tura de dados reais e dados ficcionais (na dra-matização de um crime que muitas vezes nãofoi presenciado por ninguém) se encaminha,de forma grosseiramente óbvia, a despertar a

    indignação dos telespectadores, convocadosa informar algo sobre o paradeiro do vilão,que escapou às conseqüências de seu bár-baro cometimento. Mendonça desnuda commaestria as “marcas da verdade” que esta-rão afiançando as simulações dramatizadas.Cenários e diálogos inventados depõem so-bre a frieza de assassinos, ou sobre os delei-tes do estelionatário foragido. Impressiona ofato de que o acusado, quando consegue fa-

    lar, tem suas declarações editadas, entrecor-tadas por cenas ou observações destinadasa descredenciá-las; como diz Mendonça, “acada declaração de inocência do acusado, oprograma intercala uma outra ainda mais en-fática, que não só atesta que ele de fato é umcriminoso como ainda reafirma o cinismo dopreso”. Inúmeras deslealdades narrativas doLinha Direta são expostas por Kleber Men-donça, como no caso em que um preso tentadar uma cabeçada na câmera da TV Globo,e o fato é duplicado: “tentou dar  outra ca-beçada no cinegrafista”, diz o apresentador,porém, esclarece Mendonça, “o telespecta-dor, de fato, via a cena pela segunda vez, já que a edição abriu a reportagem com estacena”. Paralelamente, as vítimas vivem si-tuações, reais ou dramatizadas, em que to-dos os recursos – Mendonça se deteve sobre

    www.bocc.ubi.pt 

  • 8/19/2019 BATISTA - 2000 - Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio-annotated

    19/20

     Mídia e Sistema Penal   19

    a música de fundo – sinalizam para a inocên-cia e a desproteção.

    O trabalho de Kleber Mendonça é defini-tivo, e põe a nu as múltiplas violações de ga-rantias constitucionais semanalmente prati-cadas naquele sinistro empreendimento. Nocaso de réus ainda não sentenciados, a pre-sunção de inocência e o direito a julgamento justo são simplesmente escarnecidos; não fa-lemos da imagem. Interessa-nos, contudo,especialmente ressaltar a executivização da

    comunicação social. Pense-se na coincidên-cia de que o Linha Direta inicia suas caçadashumanas três anos após o processo penal bra-sileiro ter assumido o princípio de que o acu-sado tem o direito de conhecer real – e nãoficticiamente – a acusação para defender-se(lei no 9.271, de 17.abr. 96). Linha Diretaé um processo e um julgamento público quenão devem satisfações à Constituição ou àsleis, porém produzem efeitos reais: o mais

    importante não reside na prisão, e sim nopróprio julgamento que fará, por exemplo,o júri de uma cidade do interior, perante oqual provavelmente um promotor zeloso exi-birá uma cópia do programa.

    Encerremos com um episódio ilustrativo.Pouca gente sabe por que Marcelo Rezendefoi substituído por Domingos Meirelles. Éque, em 25 de novembro de 1999, a juízada 12a Vara de Família do Rio determinara

    a intimação de Marcelo Rezende, por edi-tal, para submeter-se a exame de DNA numaação de reconhecimento de paternidade, quealiás seria julgada procedente em primeirainstância34: estava ele na situação de “resi-dência incerta e não sabida”, como rezava oedital, tal e qual suas vítimas. O implacá-vel perseguidor de foragidos também era, de

    34 O Dia, 2.dez.99, p. 4, e 10.nov.00, p. 4.

    certa forma, um homem procurado pela Jus-tiça.

    9 À guisa de conclusão

    Desgarrando-se de suas bases estruturaiseconômicas, o credo criminológico da mídiaconstituiu-se como um discurso que impreg-nou completamente o jornalismo, das meno-res notas ao obituário35, abrangendo inclu-sive publicações que se pretendem progres-sistas36.

    Este discurso aspira a uma hegemonia,principalmente sobre o discurso acadêmico,na direção da legitimação do dogma penalcomo instrumento básico de compreensãodos conflitos sociais. Este discurso habilitaas agências de comunicação social a pau-tar agências executivas do sistema penal, emesmo a operar como elas (executivização),disputando, com vantagem, a seletividade

    com tais agências. A natureza real dessecontubérnio é uma espécie de privatizaçãoparcial do poder punitivo, deslanchado commuito maior temibilidade por uma mancheteque por uma portaria instauradora de inqué-rito policial.

    Entre as múltiplas omissões desta resenha,está a publicidade. Um importante estadista

    35 A saudosa Rosa del Olmo notabilizou-se pelopioneirismo e argúcia com os quais seus trabalhos re-velaram as funções políticas – inclusive a nível in-ternacional – e sociais da criminalização das drogas.Seu obituário no   Jornal do Brasil  (20.nov.01, p.20)frisava que na América Latina “não havia ninguémcomo ela para discorrer sobre tóxicos e seus malefí-cios”, referindo-se ainda ao “notório vigor com quesustentava a luta contra os tóxicos”.

    36 Cf., por exemplo, a cobertura que  Cadernos doTerceiro Mundo deu à 1a Conferência Executiva deSegurança Pública para a América do Sul (out-nov.2001, no 236, p. 14 ss).

    www.bocc.ubi.pt 

  • 8/19/2019 BATISTA - 2000 - Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio-annotated

    20/20

    20 Nilo Batista

    do século XX sabia que “quando a propa-ganda já conquistou uma nação inteira parauma idéia, surge o momento asado para a or-ganização, com um punhado de homens, re-tirar as conseqüências práticas”37. Linha Di-reta já retira conseqüências práticas do dis-curso criminológico único da mídia, da quala publicidade não passa de um  continuum re-tórico. Podemos estar nos aproximando domomento em que certas iniciativas proces-suais de alguns operadores do sistema pe-

    nal que aceitaram este jogo só possam sercompreendidas através dos manuais de pro-paganda e   marketing, sem que ao mesmotempo o cidadão entrevistado por uma repor-tagem policialesca tenha assegurado seu di-reito ao silêncio.

    Quando da sanção da nova e tão atrasadalei de drogas (lei n˚ 10.409, de 11.jan.02), oPresidente da República vetou o artigo 54,que o Congresso Nacional aprovara: “Os

    meios de divulgação manterão sob sigilo osvalores atribuídos a drogas e equipamentos

    apreendidos”. Desejo destacar não a incons-titucionalidade do dispositivo, que represen-tava uma vedada censura, mas sim a fami-liaridade com a qual a agência política decriminalização primária tratou aí as agênciasde comunicação do sistema penal. Era comouma proibição dirigida a uma agência execu-tiva: as delegacias de polícia judiciária man-terão sob sigilo... Se as tendências de legiti-mação e superposição que tentamos descre-ver neste artigo se incrementarem, talvez odispositivo vetado e outros similares tenhamvigência, num futuro não muito distante: pordecreto.

    37 Adolf Hitler.   Minha luta. S. Paulo, Moraes, p.363.

    www.bocc.ubi.pt