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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    CURSO DE HISTRIA

    Batuques de negros forros em Porto Alegre:

    Um estudo sobre as prticas religiosas de origem africana

    na dcada de 1850

    Glauco Marcelo Aguilar Dias

    Trabalho de Concluso

    OrientadorProfessor Fbio Kuhn

    Porto Alegre

    2008

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    SUMRIO

    Introduo ......................................................................................................... 2

    Cap. 1 Negros forros e o territrio urbano................................................13

    Cap. 2 Negociao como fator de resistncia .............................................21

    2.1 A conquista das alforrias ..................................................................... 21

    2.2 Designao e Classificao .................................................................26

    2.3 Batuques, candombes e danas de negros ........................................... 30

    Cap. 3 As posturas municipais e a polcia..................................................50

    Concluso .........................................................................................................62

    Fontes ............................................................................................................... 64

    Bibliografia ......................................................................................................65

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    Introduo

    Iniciei este trabalho com a idia de buscar o incio da religiosidade de negrosafricanos1e tentar chegar a uma idia da origem destas prticas religiosas africanas em

    Porto Alegre2, mais especificamente. No entanto, no transcorrer da pesquisa e das

    leituras, logo de incio pude perceber que esta tarefa seria muito difcil e que

    demandaria maior aprofundamento.

    Embora exista um conjunto bastante grande de fontes para pesquisa, a mesma

    dificultada, paradoxalmente, pela quase inexistncia daquelas que se referem ao

    assunto. Joo Jos Reisnos esclarece que estes estudos enfrentam um grande problema,que o da escassez e o da natureza das fontes. Afirma que a "clandestinidade a que as

    prticas religiosas africanas foram empurradas e a prpria natureza secreta de muitos de

    seus rituais reduziu a sua visibilidade e, portanto, o seu registro sob, digamos, condies

    normais"3. Isto nos remete a um ensinamento de Paul Veyne de que toda construo

    histrica limitada e incompleta; h lacunas e ... o mais curioso que as lacunas da

    histria fecham-se espontaneamente a nossos olhos e que s as discernimos com

    esforo, tanto so vagas as nossas idias sobre o que devemos, a priori, esperar

    encontrar na histria..."4. Leva-nos tambm a escolha - ainda que seja muito ambiciosa

    1 Utilizarei esta expresso para no cair em anacronismo uma vez que no tenho a menor idia decomo era denominada a prtica religiosa dos negros africanos, exceto por palavras variadas e por vezesambguas como "divertimentos", "batuques", "zungs", "candombes", expressas nas fontes do perodoestudado.2 ORO, Ari. Religies Afro-Brasileiras do Rio Grande do Sul: Passado e Presente. RevistaEstudos Afro-Asiticos, ano 24, n. 2, 2002, p. 349. Segundo Oro, o batuque teria chegado Porto Alegrena segunda metade do sculo XIX, muito provavelmente pela migrao de escravos e ex-escravosoriundos da regio de Pelotas e Rio Grande. Entretanto, estudos historiogrficos recentes atestam apresena de negros escravos e forros em outras regies do Rio Grande de So Pedro do Sul, em particular,na regio de Porto Alegre, Aldeia dos Anjos (atual cidade de Gravata) e Viamo j desde o sculo XVIII.Ver KHN Fbio, "Gente da fronteira: sociedade e famlia no sul da Amrica portuguesa - SculoXVIII". In: GRIJ, Luiz Alberto et. al. (orgs) Captulos de Histria do Rio Grande do Sul.Porto Alegre:Editora da UFRGS, 2004 e ALADRN, Gabriel. "Libertos no Rio Grande de So Pedro do Sul:consideraes sobre os padres de alforria em Porto Alegre, Aldeia dos Anjos e Viamo (1800-1835)".In: MONTEIRO, Rodrigo Bentes (org.). Sobre espelhos distorcidos: exemplos de pesquisa em HistriaModerna (sec. XVI-XIX).Rio de Janeiro: 7 letras, no prelo. apud ALADRN, Gabriel.Liberdades Negrasnas Paragens do Sul: Alforria e insero social de libertos em Porto Alegre, 1800-1835.Niteri: UFF(Dissertao de Mestrado), 2008.3 REIS, Joo Jos. Magia Jeje na Bahia: A invaso do calundu do pasto de Cachoeira, 1785.Revista Brasileira de Histria. ANPUH/Marco Zero. So Paulo. v. 8 n.16, mar./ago.1988, p. 57-81.4

    VEYNE, Paul. Como se escreve a histria. Foucault revoluciona a histria. Braslia: Ed. UnB.1998. p. 11-20.

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    em se tratando de um primeiro estudo histrico - de um mtodo de anlise interpretativo

    das fontes "centrado sobre os resduos, sobre os dados marginais, considerados

    reveladores"5de indcios e traos que nos auxiliem nessa construo. Tentar encontrar

    "os detalhes secundrios, as particularidades insignificantes", "penetrar em coisasconcretas e ocultas atravs de elementos pouco notados ou despercebidos, dos detritos

    ou "refugos" de nossa observao".6Segundo Carlo Ginzburg, este um mtodo que se

    baseia no patrimnio cognoscitivo do homem, desde seus primrdios, e que foi

    resgatado atravs da anlise crtica da arte pelo "mtodo morelliano" ou mtodo

    indicirio, mas que pode ser utilizado tambm em outros campos, inclusive no da

    histria, pela anlise criteriosa das fontes, de modo a decifr-las.7A tentativa de tentar

    realizar uma abordagem de maior aproximao possvel dos agentes histricos

    estudados atravs de uma leitura dos seus comportamentos - expressos na escrita/fala de

    ambos e que pode traduzir uma leitura que cada qual faz do outro, como tambm de si

    mesmos.

    As prticas culturais religiosas dos negros africanos no Brasil estavam inseridas

    dentro de uma nova realidade cultural e social que lhes era inicialmente estranha e

    obviamente, estes mesmos negros, escravos, livres ou libertos, pertenciam a um estrato

    social entre as classes pobres ou subalternas. A sua insero e manifestao social,

    portanto, estavam subordinadas sociedade escravista dominante. E, considerando que

    estes mesmos negros, na sua quase totalidade, viviam margem da cultura escrita e,

    devido a isso, muito de suas culturas nos foram repassadas via tradies orais, ritos e

    mitos, manter-se- sempre uma dvida quanto releitura de seu passado mais remoto.

    Mas, talvez, "seja prefervel o risco da ousadia da dvida do que a dvida de no

    arriscar".8

    Ginzburg coloca que a cultura das classes subalternas - no caso refere-se aos

    camponeses do sculo XVI - muitas vezes se torna inacessvel para os historiadores em

    razo da escassez das fontes escritas e as que existem, em geral, esto ligadas cultura

    5 GINZBURG, Carlo. Sinais: razes de um paradigma indicirio. in Mitos, emblemas, sinais:morfologia e histria. 2 ed. So Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 143-179.6 FREUD, Sigmund, Il Mos di Michelangelo.,Turim, 1976, pp. 36-37 apud GINZBURG, C.1989, op. cit. p. 147.

    7 GINZBURG, op. cit. 1989, p. 177-178.8 REIS, op. cit. 1988, p. 59.

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    das classes dominantes. 9Isto significa que suas idias, suas crenas, suas esperanas e

    seus desejos chegam at ns apenas atravs de filtros e intermedirios e que os

    subalternos estariam condenados ao "silncio" reintegrveis apenas sob o signo do

    "nmero e do anonimato". Entretanto, seria possvel uma releitura dentro do quechamou de "circularidade", ou seja, influxo recproco entre a cultura dominante e

    subalterna. Os traos culturais movem-se por entre os grupos, camadas ou classes

    sociais, permitindo re-elaboraes contnuas. Pela comunicao e pela linguagem seria

    possvel supor a existncia de elementos, rastros que convergem e que podem nos

    reconduzir a uma cultura comum de determinados grupos, seja pela freqncia

    estatstica, seja pelas possibilidades latentes, ainda que numa documentao

    fragmentria e deformada. Os rastros so deixados pelo discurso do imaginrio naescrita e pelas marcas do processo em que o escrevente se situa. 10

    As fontes de que me utilizo para realizar esta tarefa so licenas ou

    requerimentos polciapara a realizao de festejos, candombes ou divertimentos de

    negros forros "ao modo de suas naes, encontradas no Arquivo Histrico do Rio

    Grade do Sul (AHRS), e as posturas municipais do perodo e tambm algumas atas da

    Cmara Municipal, pesquisadas no Arquivo Histrico de Porto Alegre Moyses Vellinho

    (AHPAMV).11 Na historiografia pude verificar que alguns historiadores

    chegaram a encontrar nas fontes elementos que pudessem ser utilizados para esse

    intento e, desde ento, tenho procurado encontrar algumas respostas, utilizando-me do

    raciocnio feito por eles sobre as relaes dos negros com a sociedade branca escravista

    e que denotavam resistncia e negociao, a despeito do controle social caracterstico e

    da disciplinarizao estabelecida nos cdigos de posturas municipais aliado ao

    efetiva das autoridades policiais.

    Minha inteno identificar nessas relaes provvel negociao entre esses

    9 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idias de um moleiro perseguidopela Inquisio. Traduo Betnia Amoroso. So Paulo: Cia das Letras, 1987. p. 15-34.

    310 CORRA, Manuel Luiz Gonalves. O paradigma indicirio na apreenso do modoheterogneo de constituio da escrita. Revista Estudos Lingsticosdo Grupo de Estudos Lingsticosde So Jos do Rio Preto/SP: Unesp. 1998. p. 72-74.11 Para melhor facilitar a redao e a leitura, a partir de agora utilizarei apenas as siglas referentesa estes institutos de pesquisa: Arquivo Histrico do Rio Grande do Sul (AHRS), Arquivo Pblico doEstado do Rio Grande do Sul (APERS) e Arquivo Histrico de Porto Alegre Moyses Vellinho

    (AHPAMV).4

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    agentes sociais; entender como se davam essas relaes e a maneira sutil utilizada para

    obteno dessas licenas pela superao, na prtica, da proibio existente no

    ordenamento das posturas municipais, bem como, identificar nelas elementos de

    resistncia cultural e de flexibilizao policial. Tambm, procurar indcios provveis deprticas de cunho religioso identificveis com a ancestralidade africana, como tambm,

    identificar a constituio desses grupos de negros forros, como se situavam e/ou

    ocupavam o espao fsico da cidade e como eram vistos pelas autoridades municipais.

    Em se tratando de negros forros, tentarei encontrar as formas como se davam essas

    alforrias procurando a suas origens. Para tanto, devido ao pouco tempo para a pesquisa,

    utilizei-me dos trabalhos de Paulo Roberto Staudt Moreira12 e de Gabriel Aladrn13,

    muito embora ambos tenham trabalhado perodos fora do marco temporal deste estudo.

    Para me aproximar do meu perodo, pesquisei algumas cartas de alforria - ainda que

    insuficientemente - entre 1842 a 1848 no Arquivo Pblico do Estado do Rio Grande do

    Sul (APERS), procurando relacionar com os dados e consideraes destes autores e de

    outros no que se refere busca dos elementos necessrios a este trabalho.

    A abordagem deste estudo, portanto, estar permeada pela tentativa de

    identificao dasprticas religiosas de negros africanos na cidade de Porto Alegre na

    dcada de 1850, mais especificamente daquelas ligadas herana africana. Achylles

    Porto Alegre, jornalista e cronista do final do sculo XIX e incio do sculo XX, em

    suas reminiscncias, no que se refere a esse assunto, j nos colocava algumas

    caractersticas importantes sobre essas prticas, exatamente os elementos que me

    chamaram ateno e que me instigaram escolha do assunto. Porto Alegre fala da

    segunda dcada do sculo XX, relembrando costumes dos negros urbanos da capital,

    provavelmente libertos, na segunda metade do sculo anterior, perodo em que ele,

    ainda garoto, iniciava a trilhar seus passos literrios e como jornalista.

    O batuque tinha alguma coisa da dana dos nossos selvagens e tinha tanto dediverso como de cerimnia religiosa ou fnebre.Havia pontos da cidade onde aos domingos, o batuque era infalvel. O beco

    12 MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Os cativos e os homens de bem: experincias negras noespao urbano - Porto Alegre (1858-1888). Porto Alegre: EST Edies, 2003; e MOREIRA, PauloRoberto Staudt. Faces da Liberdade, Mscaras do Cativeiro: experincias de liberdade e escravidopercebidas atravs das cartas de alforria - Porto Alegre (1858-1888). Porto Alegre: EdiPUCRS, 1996.13 ALADRN, Gabriel. Liberdades Negras nas Paragens do Sul: Alforria e insero social de

    libertos em Porto Alegre, 1800-1835. Niteri: UFF (Dissertao de Mestrado), 2008.

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    do Poo, o do Jacques e a rua da Floresta eram stios de eleio para obatuque. [. . .] j de longe se ouvia a melopia montona do canto africanoe o som cavo de seu originalssimo tambor. [. . .]Todavia, [. . .] o batuque sempre prosseguia pelo dia e pela noite adentro,No havia, porm algazarra. [. . .] em geral as casas onde eles se realizavamno eram assoalhadas, o arrastar pesado de muitos ps no cho no

    atordoavam a vizinhana.Havia tambm os batuques ao ar livre.Um dos mais populares era o do Campo do Bom Fim, em frente a capelinhaento em construo.Cada domingo que Deus dava era certo um batuque ali, [. . .] 14

    Esta afirmao de que o batuquetinha alguma coisa de cerimnia religiosa, que

    era realizado sem algazarra, principalmente aos domingos, em alguns pontos da

    cidade15, privados e pblicos, em especial o mais popular, no Campo do Bom Fim16, o

    que, podemos arriscar, demonstra certa territorialidade, nos remete idia de que osnegros daquele perodo, relembrados por Porto Alegre, praticavam freqentemente os

    seus batuques, aqui interpretados, pelas memrias do cronista, ambiguamente como

    divertimento e cerimnia. Podemos supor que os referidos batuques de Porto Alegre

    eram muito provavelmente permitidos pelas autoridades municipais e essa suposio

    descortina o outro agente deste trabalho: as autoridades policiais.

    O batuque, a que Porto Alegre se reporta como diverso ou cerimnia

    religiosa, estava proibido17 neste perodo pelo cdigo de posturas municipais e

    precisava de autorizao policial para que acontecesse.18 possvel supor, ainda que no

    diretamente, que havia entre esses grupos de negros e as autoridades policiais, relaes

    de tenso e distenso e que resultavam na realizao de seus festejos, ainda que sob

    14 PORTO ALEGRE, Achylles. Jardim de Saudades. Porto Alegre: UE/Porto Alegre/OfficinasGrafhicas Wiedemann & Cia, 1921. pp. 160-163. (grifos do autor).15 Atualmente as ruas citadas por Porto Alegre nesta passagem so, pela ordem, parte da JernimoCoelho, 24 de Maio e avenida Cristvo Colombo. MLLER, Liane Susan. As contas do meu rosrio

    so balas de artilharia. Irmandade, jornal e associaes negras em Porto Alegre 1889 a 1920. PortoAlegre: PUCRS, 1999. Anexo 3. p. 207-209. Sistematizao da denominao antiga das ruas da capitalpor Liane Mller em seu trabalho de mestrado na PUC/RS.16 PORTO ALEGRE, Achylles.Histria popular de Porto Alegre.Porto Alegre: UE/Porto Alegre,1994, p. 116. o atual Parque Farroupilha compreendendo tambm ao que hoje o Campus Central daUFRGS e o Instituto de Educao, alm de boa parte do bairro do Bom Fim a que deu o nome. A rea eraconhecida como Vrzea, por causa de seu terreno alagadio. A designao de Campos do Bom Fim foioficializada em 24 de abril de 1870, motivada pela construo da Capela do Bom Fim.17 AHPAMV. Cdigo de Posturas aprovado pela Lei Provincial n 403 de 18 de abril de 1858.Artigo 48. Fundo Cmara Municipal, 1.3.2.1/5 p. 91 e artigo 114. Fundo Cmara Municipal, 1.3.2.1/5 p.94.18 ZANETTI, Valria. Calabouo urbano: escravos e libertos em Porto Alegre (18401860).Passo Fundo: UFP, 2002. p. 196-199.

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    monitoramento da ordem policial. A despeito das regulamentaes da Cmara

    Municipal e da ao e/ou represso da polcia, os negros conseguiam desenvolver suas

    atividades culturais e religiosas.

    J colocamos acima que a negociao ser um elemento a ser decodificado,assunto este bastante trabalhado pela historiografia recente no trato das relaes entre

    negros e sociedade escravista. Joo Jos Reis, no seu estudo sobre a invaso do

    candombl de Accu, na Bahia, nos coloca, na anlise dos registros sobre esse fato que,

    para algumas autoridades era o caso do Juiz de Paz daquela regio em 1829 havia

    uma associao das prticas religiosas dos negros com a possibilidade de resistncia e

    de revoltas. O referido juiz acreditava que a sua ao repressiva baseava-se na

    observncia da lei imperial e na possibilidade da quebra da ordem. Mas a negociao

    destes negros diretamente com a autoridade principal da Provncia, o Governador, a

    quem recorreram por ofcio, frustrou a ao policial. Embora esse fato refira-se Bahia

    da primeira metade do sculo XIX, ele tem elementos que denotam uma divergncia e

    flexibilizao das autoridades bem como uma ardilosa interveno daqueles negros na

    utilizao dos mecanismos do sistema. O referido festejo invadido na comunidade de

    Accu realizava-se j h trs dias, o que significava que muito provavelmente teriam

    conseguido licena para tal e s mesmo devido ao barulho, j aps esses longos trs

    dias, passou a ser reprimido com violncia talvez pela denncia de quem passou a se

    incomodar com o barulho.19

    Marco Antnio de Mello, embora tenha seu estudo voltado cidade de Pelotas,

    tambm nos coloca que as prticas e manifestaes culturais dos negros se deram num

    quadro de expresso de resistncia cultural prpria, com papel ativo e decisivo no

    fazer-se histrico e na correlao de foras dos atores em questo e no que diz respeito

    ao batuque, embora essa palavra tambm defina diversas prticas de danas, rituais,

    festas e musicalidade de instrumentos de percusso, aqui no sul assume o significado

    mais estreito da religio dos negros africanos. Mello ainda coloca que dentro do quadro

    de resistncias j largamente estudadas pela historiografia (fugas, rebelies e revoltas,

    furtos, sabotagens, suicdios, homicdios, como tambm as festas e a sociabilidade nos

    botequins, grupos carnavalescos e as confrarias), as vivncias religiosas tambm podem

    constar entre aquelas caracterizadas pela negociaodo negro com o senhor e o poder

    19 REIS, Joo Jos e SILVA, Eduardo. Negociao e conflito: a resistncia negra no Brasilescravista. So Paulo: Cia das Letras, 1989. p. 32-63.

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    pblico.20

    Na tentativa de encontrar na linguagem dos pedidos de "licenas" pela superao

    da proibio dos "batuques, condombes, zungs ou reunies de pretos" e pela realizao

    de seus costumes religiosos, fazendo valer a sua cultura e a manuteno de umaidentidadecomum, que pretendo encontrar traos de negociao destes negros forros

    nas relaes com as autoridades policiais. Letcia Reis fala que, reconstruir a sua cultura

    nesta terra de branco, atravs da afirmao de uma autonomia, representava para os

    negros uma luta por espao poltico, nem muito pelo confronto aberto ou nem tanto pela

    passividade absoluta, mas, sobretudo, pela negociao, uma vontade maliciosa e

    dissimulada para chegar, sutilmente, a sua verdadeira inteno e assim, estabelecer sua

    presena na sociedade.

    21

    John Thornton discute tambm que a cultura um processo em constante

    transformao, em direta e indireta correlao de coexistncia entre seus diversos

    fatores (lngua, esttica, filosofia e religiosidade, estrutura familiar e social e os

    sistemas polticos), atravs das suas dinmicas internas e tambm pela interao com

    outras culturas. No caso que escolhemos para estudar, a religiosidade tambm definida

    por esta dinmica de mutao, como um processo cultural que requer um tempo

    considervel e sua mudana possvel pela manipulao das ambigidades e

    contradies. A cultura religiosa, embora seja mutvel na sua dinmica interna e pela

    interao com as outras culturas, ela, como a linguagem, segundo Thornton, mais

    resistente porque envolvem sistemas complexos de smbolos.22No entanto, segundo

    20 MELLO, Marco Antnio Lrio de.Reviras, batuques e carnavais: a cultura de resistncia dosescravos de Pelotas. Pelotas: Ed. Universitria/UFPel, 1994. p. 14-27.

    721

    REIS, Letcia Vdor de Souza. Negro em terra de branco: a reinveno da identidade. In:SCHWARCZ, Lilia Moritz e REIS, Letcia Vdor de Souza. Negras Imagens: ensaios sobre cultura eescravido no Brasil. So Paulo: EDUSP, 1996. p. 34-37.22 THORNTON, John K. A frica e os africanos na formao do mundo atlntico (14001800).Traduo de Marisa Rocha Mota. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 281-284. Thornton faz umaabordagem sobre a cultura africana, diferenas, continuidades e transformaes em frica e,principalmente, que o que nos interessa, no mundo atlntico. Trabalha com a presena e manifestaocultural de diversos grupos africanos nas Amricas, em especial Estados Unidos e Brasil. Situa o debateentre historiadores que defendem a continuidade da cultura africana nas Amricas e que sua influnciafora importante na formao de uma cultura afro-americana, e os que defendem que a desorganizaocultural na escravido tornara os escravos muito mais dependentes da cultura europia ou euro-americana.Citando estes debatedores, incluindo antroplogos, Thornton coloca ainda que existiam muitas culturasafricanas e que na disperso comercial de escravos, acabou por agrupar diferentes culturas nas Amricas,

    ao contrrio dos imigrantes europeus que foram mais homogneos durante a colonizao. Entretanto, aausncia de uma homogeneidade tnica e cultural levou os escravos a formarem uma nova cultura quepossui razes africanas, baseando-se em denominadores comuns de muitas e variadas culturas da frica,

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    Reis, no se pode inferir com isso que as prticas religiosas dos negros africanos

    permaneceram imutveis ao longo do tempo e a no ser por aproximaes podemos

    dizer que,

    ... muito provavelmente, o permanente e contnuo na religiosidade africana[...] sejam apenas certas concepes bsicas a respeito da relao de e entreas foras humanas e espirituais em face de fenmenos corriqueiros eextraordinrios da vida individual ou coletiva, certos procedimentos rituais, ouso de um conjunto de objetos e smbolos [...], um panteo mnimo dedivindades prprias de determinadas reas culturais.23

    Segundo Geertz, a cultura como uma teia de significados construdos pelo

    homem dando sentido a ele e, tambm , uma busca por explicaes, atravs do mtodo

    interpretativo, para uma maior aproximao destes significados.24Culturas e variaes

    culturais que possam ser levadas em conta do que concebidas como capricho oupreconceito.25 Cultura inserida, construda e transformada dentro do contexto das

    relaes empricas dos indivduos, levando em conta o comportamento dos indivduos e

    dos grupos sociais que onde as formas culturais encontram articulao. 26 Cultura

    como um conjunto partilhado de prticas e representaes em constante mudana,

    ocorrendo "atualizaes quotidianas [...] numa sntese de estabilidade e mudana, de

    passado e presente, de diacronia e sincronia".27

    Enfim, essas questes permearo o conjunto deste trabalho. Na primeira parte,dissertarei sobre estes grupos de negros na cidade de Porto Alegre, em particular, os

    libertos ou forros, tentando situar o perodo e o territrio urbano, bem como sua

    articulao nesse tempo e espao. A segunda parte, tentarei chegar a uma provvel

    designao e classificao destes grupos de negros, a conquista de suas alforrias, bem

    porm criada num contexto no qual os elementos da cultura europia serviram de material de ligao. p.253-254.23 REIS, op. cit. 1988, p. 57-59.

    824 GEERTZ, Clifford. A interpretao das Culturas. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1989. p. 4-9.No querendo, em poucas linhas, definir com exatido esse conceito em Geertz, importante colocar queele discute criticamente aspectos da interpretao da cultura das posies que tendem a generalizarcomportamentos humanos a partir de "universais culturais" e sustenta que a nossa leitura deve estarvoltada para o que "realmente" acontece entre os homens, num dado momento e lugar, e extrair dali norepresentaes "formais", mas significaes que so transmitidas historicamente, incorporadas emsmbolos, por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suasatividades. p.30-66.25 GEERTZ, op. cit. p. 27.26 GEERTZ, op. cit. p. 12.

    27

    MARSHALL, Sahlins.Ilhas de Histria. Rio de Janeiro: Zahar. 1990: p. 10 apud Moreira, 2001:p. 25.

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    como identific-los enquanto grupos de indivduos. Para isso, procurarei utilizar o

    debate historiogrfico que pude acessar sobre origem e procedncia destes escravos

    africanos.

    A designao, a representao e o real se relacionam a partir das experinciassociais dos sujeitos dentro de um contexto histrico no qual se inscrevem as aes dos

    indivduos e grupos. Regina Xavier discute que, para alm de vermos esse contexto

    somente a partir de sua capacidade normativa, precisamos entender tambm "a

    capacidade dos indivduos de interagir e de transformar o contexto"28. Ou seja, os

    indivduos e grupos sociais, pelas suas experincias e relaes entre si dentro de um

    contexto histrico, no s esto inseridos nele, mas o constroem e o reconstroem

    continuamente e o que precisamos fazer estabelecer a devida inter-relao entre eles.Nesta segunda parte ainda, analiso as fontes documentais em que certos grupos de

    negros forros dialogam com as autoridades policiais, tentando encontrar no contato

    destes negros "batuqueiros" com as normas sociais de ento a respeito, relaes de

    dominao e flexibilizao, submisso e resistncia, bem como, o processo de

    negociao que se estabelecia.

    Na terceira e ltima parte deste trabalho procurarei tratar das posturas

    municipais e suas normativas que se relacionam com as prticas dos "batuques". As

    posturas municipais e a polcia, segundo Beatriz Teixeira Weber29em seu trabalho de

    mestrado, que faz uma anlise significativa sobre o regramento da vida urbana,

    demonstra a preocupao das elites com a preservao da ordem e da segurana pblica.

    Cita ao final do seu trabalho uma crtica da imprensa polcia a respeito de um conflito

    entre o Subdelegado do 3 Distrito com um preto quando de uma intimao para fazer

    cessar um "batuque infernal" que uns negros da Costa praticavam. O referido preto

    reagiu armando-se dentro da casa. O resultado foi a pronta priso do mesmo depois de

    pedido um reforo policial. Na seqncia houve divergncia entre o Delegado que, sem

    explicitar motivos mandou soltar o preto provocando a auto-demisso do Subdelegado.

    Esse fato, embora no defina o contedo de tal batuque, nos coloca que havia

    28 XAVIER, Regina Clia Lima. Tito de Camargo Andrade: religio, escravido e liberdade nasociedade campineira oitocentista. Tese de doutorado. Campinas/SP: UNICAMP, 2002. p. 6. ReginaXavier discute (com LEVI, G. "Usos da biografia" Amado e Ferreira (org). Usos e abusos da histria oral.Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1998, p. 175-176) o papel singular dos indivduos no fazer e re-fazerhistrico.

    929 WEBER, Beatriz Teixeira. Cdigo de Posturas e regulamentao do convvio social em PortoAlegre no sculo XIX.Porto Alegre: UFRGS. 1992. p. 153.

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    significativas divergncias entre as autoridades policiais, bem como, certa rede de

    influncias recprocas entre determinadas autoridades e certos indivduos ou grupos da

    comunidade negra. Essas divergncias tambm esto presentes nas licenas de que

    me ocupo para realizar meu estudo. No entanto, o que me surpreendeu no trabalho deWeber a afirmao de que no constava no cdigo de posturas nenhuma referncia

    proibio de batuques de negros em Porto Alegre.

    Paulo Roberto Staud Moreira,30 faz um levantamento da legislao e da ao

    policial na segunda metade do sculo XIX colocando que o papel da polcia municipal

    era o de vigiar e ordenar os espaos pblicos da cidade. A guarda municipal fora criada

    em 1831 e a sua competncia, alm das funes policiais, era de garantir o cumprimento

    das posturas municipais. Em 1841, cria-se a figura do Chefe de Polcia, geralmente um

    juiz de direito ou desembargador, a autoridade policial mxima. Para cada municpio

    haveria um Delegado e em cada distrito um Subdelegado. Weber nos coloca que as

    elites buscaram uma modernizao atravs de um plano de organizao e coero e, a

    partir da, montou-se uma rede de fiscais da Cmara e guardas municipais encarregados

    da execuo deste plano. A Cmara ainda cria a figura do Inspetor de Quarteiro

    nomeada pelo Subdelegado de cada distrito, que fazia a ligao dos fiscais com os

    guardas municipais. Ainda nos coloca a autora, o que muito importante, que as

    infraes ao cdigo de posturas eram consideradas contravenes no se tratando de

    crime ou delito.31

    Segundo Cludia Mauch, em se tratando de segurana pblica, o ingrediente

    controle era o elemento comum que permeou todas as frmulas de interveno das

    elites. Essa preocupao do poder pblico e das elites j vinha desde meados do sculo

    XIX, quando da proibio do trfico de escravos em 1850. Os pobres aumentaram em

    nmero e no imaginrio das elites o negro aparece como inferior, imoral, perigoso, no

    civilizado e afeito aos vcios e vadiagem. As elites brasileiras ao longo do sculo XIX,

    sempre viveram com a preocupao da possvel insubordinao de libertos e da

    populao pobre em geral. Livres precisavam estar submetidos a um controle

    30 MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. E a rua no do Rei! Morcegos e populares no incio dopoliciamento urbano em Porto Alegre sculo XIX. In: HAGEN, Accia Maria Maduro e MOREIRA,Paulo Roberto Staudt (orgs.). Sobre a rua e outros lugares: reinventando Porto Alegre. Porto Alegre:CEF, 1995. p. 51-96.

    1031 WEBER, op. cit. 1992, p. 83-84

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    institucional com o objetivo de se manter o mando sobre os subalternos. O cdigo de

    posturas municipais era a legislao necessria para ordenar a vida social das cidades e

    manter o controle geral da sociedade urbana, em particular daqueles (des)classificados

    como vadios, pobres, subalternos e perigosos.32

    Por fim, dentro destas questes levantadas em que situaes de conflito

    demandam aes de diferentes grupos sociais no sentido de estabelecer uma

    comunicabilidade entre as oposies que se estabelecem as aproximaes e

    afastamentos. E aqui, tambm se insere outro elemento conceitual, o da identidade que

    se constri nesse processo pelos grupos sociais. Na resistncia como ao de

    continuidade das caractersticas prprias de suas manifestaes culturais, inseridas s

    condies mais gerais de um contexto maior, e na negociao como fator decomunicabilidade entre esses dois mundos que se diferenciam, que se aproximam e que

    se legitimam pelo contraste entre culturas que as identidades se afirmam, a partir de

    um sentimento de pertencimento, reconhecido e aceito como tal pelo grupo com o qual

    se opem num determinado contexto.33 Identidade, uma construo imaginria que

    produz coeso social e que se constitui a partir da identificao de uma alteridade.34

    32 MAUCH, Cludia. Ordem pblica e moralidade: imprensa e policiamento urbano em PortoAlegre na dcada de 1890.Santa Cruz do Sul: EDUNISC/ANPUHRS, 2004. p. 26-27.

    11

    33 FERNANDES, Mariana Balen. Ritual do maambique: religiosidade e atualizao daidentidade tnica na comunidade negra de Morro Alto/RS. Dissertao de Mestrado em Antropologiapela UFRGS (datilografado) Ari Pedro Oro (orient.) Porto Alegre. 2004. p. 14-20.34

    PESAVENTO, Sandra Jatahy. Histria & Histria Cultural. 2. ed. Belo Horizonte: Autntica,2005. p. 89-91.

    12

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    1 Negros forros e o territrio urbano

    Nas primeiras dcadas do sculo XIX houve um considervel aumento do trfico

    atlntico de escravos e o Rio Grande do Sul era um de seus principais destinos de

    redistribuio.35 Os negros chegados na provncia, na sua grande maioria oriunda do

    porto do Rio de Janeiro, tinham sua entrada legal pelo porto de Rio Grande, o que

    facilitava bastante o controle do trfico, porm, no se exclui a entrada destes negros

    por outros pontos do estado, como na barra do rio Tramanda, quando a partir de 1850 ogoverno imperial comeara efetivamente a reprimir o trfico negreiro.36

    Foi em quatro de setembro de 1850, que o Gabinete Imperial promulgava a

    clebre Lei n. 581, a Lei Eusbio de Queiroz, que proibia definitivamente o trfico

    35 ALADRN, Gabriel. Liberdades Negras nas Paragens do Sul: Alforria e insero social delibertos em Porto Alegre, 1800-1835.Niteri: UFF (Dissertao de Mestrado), 2008. p. 15.36

    BRAGA, Reginaldo Gil. Batuque Jje-Ijex em Porto Alegre: A msica no culto dos Orixs.Porto Alegre: FUMPROARTE/SMC-PMPA, 1998. p. 26.

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    atlntico de escravos. Consta que aps isso, o pas entrou numa fase de prosperidade

    econmica, uma vez que parte dos capitais antes investidos direto no trfico ilegal de

    escravos convertia-se agora para a economia formal. A partir da, uma nova conjuntura

    de transformaes econmicas colocar em decadncia o sistema de produoescravista. Com o fim do trfico houve uma carncia de escravos, o aumento de seu

    preo e o direcionamento de seu contingente para as atividades produtivas mais

    dinmicas, isto , as plantaes de caf da regio centro-sul.37

    O trfico de escravos africanos estava sob intensa presso inglesa, entretanto,

    por diversas razes, o Brasil foi o que maior resistncia ops presso inglesa. A Lei

    Eusbio de Queiroz no foi a primeira a declarar proibido o trfico. Em 1831,

    atendendo a um tratado firmado com a Inglaterra, o governo imperial j promulgarauma lei que declarava que os africanos que entrassem no pas a partir de ento seriam

    livres e os contrabandistas deveriam sofrer severas punies. No entanto, a partir de

    1837 o trfico retoma com fora e em alguns anos atingia propores nunca antes vistas,

    desnudando a ineficcia da lei.38

    O fim do trfico atlntico de escravos para o Brasil fazia parte de uma estratgia

    de Londres para assumir a primazia mercantil no continente africano com o objetivo de

    manter um maior controle informal da frica, como de eliminar a concorrncia da mo

    de obra escrava. Ao pretender esse controle informal por meio de cnsules que

    protegeriam o comrcio, as pessoas e os lucros dos negociantes britnicos, a Gr-

    Bretanha encaminhou-se para a construo de um grande imprio africano, e com isso,

    o ano de 1851 marcar o incio da colonizao do continente africano pelas potncias

    europias. A Frana e outros pases europeus que tinham interesses no controle de

    portos e feitorias, a sucederiam e o sculo XIX terminaria com implementao de um

    violento programa colonizador e de partilha da frica, na chamada Conferncia

    Antiescravista, na cidade de Bruxelas.39

    Entretanto, o trfico permaneceu constante pelo menos at 1855, o que levou a

    uma vigilncia mais apurada do litoral brasileiro para evitar desembarques. Ainda em

    1857, a vigilncia se mantinha alimentada por uma rede de informaes que indicavam

    37 TELES FILHO, Eliardo Frana. Eusbio de Queiroz e o Direito: um discurso sobre a Lei n.581 de 4 de setembro de 1850.Revista Jurdica.Braslia, v. 7, n.76, dez.2005-jan.2006. p.5338

    TELES FILHO, op. cit. p.52.39 SILVA, Alberto da Costa e.Um rio chamado Atlntico: a frica no Brasil e o Brasil na frica.Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Ed. UFRJ, 2003. p. 64-69.

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    o trnsito de navios suspeitos ou identificados como notrios traficantes. Paranagu era

    mais uma base do trfico atlntico no sul, por onde desembarcaram muitos africanos.

    Na dcada de 1830 este porto mantinha uma estrutura logstica para aparelhamento e

    desembarque de navios que faziam a rota da frica, e com cobertura institucional,graas corrupo dos oficiais da alfndega e das autoridades judiciais e policiais.

    Muitos dos africanos desembarcados foram emancipados dos navios apreendidos e

    postos a trabalhar para o governo imperial ou para particulares, pelo perodo de 14 anos,

    depois do qual receberiam a definitiva carta de liberdade.40

    A partir de 1850, o trfico internacional de escravos foi substitudo pelo

    intermunicipal e interprovincial e, principalmente, pela exportao de escravos para a

    regio cafeicultora dada a sua demanda e devido ao aumento considervel do preo da

    mo-de-obra escrava. Dados demogrficos sugerem, entretanto, ainda no contexto do

    trfico ilegal, at 1850, uma volumosa compra de cativos aps a pacificao da

    provncia (ps-guerras cisplatinas e a Guerra dos Farrapos), j que a populao servil

    salta de 30.846, em 1846, para 71 911 cativos, em 1858. Embora pouco confiveis, os

    dados demogrficos da populao cativa registra uma queda entre 1814 at o final da

    Guerra dos Farrapos, elevando-se a partir da alcanando 25% em 1858 e permanecendo

    neste patamar at 1862. No entanto, os dados conhecidos de entrada e sada de cativos

    registram entrada apenas at 1850, a partir da a provncia teria apenas exportado

    escravos. Paradoxalmente, a populao escrava manteve um relativo crescimento, no

    mnimo at 1863.41

    Com o crescimento populacional da provncia, este registrou-se naturalmente,

    em maior grau, nas aglomeraes urbanas. As administraes municipais, neste perodo,

    apoiavam-se na Cmara de Vereadores constituda pelos chamados "homens bons",42

    isto , cidados proprietrios da regio. Porto Alegre, na segunda metade do sculo

    XIX, constitua-se num importante mercado de consumo para os excedentes agrcolas

    da colnia alem do Vale dos Sinos e tambm num importante porto escoador para a

    produo prspera desta regio. A complexificao da vida urbana expandira-se para

    40 MAMIGONIAN, Beatriz Galloti. A abolio do trfico atlntico de escravos e os africanoslivres no Paran.Catlogo Seletivo de Documentos referentes aos africanos e afrodescendentes livres eescravos. Curitiba: Arquivo Pblico do Paran, 2005. p. 3-6

    14

    41

    MAESTRI, Mrio. O sobrado e o cativo: A arquitetura urbana erudita no Brasil escravista. Ocaso gacho. Passo Fundo: UPF. 2001. p. 195-200.42 MAESTRI, op. cit. 2001. p. 68-69.

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    alm das reas limitadas pelos muros da cidade, surgindo os primeiros arraiais onde se

    erguiam olarias, moinhos, matadouros, lavanderias, doceiras e negros alforriados que se

    dedicavam a toda sorte de pequenos servios.43 A rea "intramuros" da cidade, pelo

    Cdigo de Posturas de 1831 estava assim delimitada em seu Captulo 1:

    "[...] pela Rua Travessa, que vai do Caminho Novo aos primeirosmoinhos de vento, que so hoje pertencentes a Antonio Martins Barbosa, ato meio da largura da estrada geral imediata; e desta, em linha reta, at aembocadura da rua da Olaria pela frente da chcara do Sargento Mor JooLuiz Teixeira, e das mesmas embocaduras em linha reta at o Riacho,seguindo por ele at a sua embocadura.44

    Em 1857, a lei 367 dividia a cidade em trs bairros. O bairro do Leste dividia-se

    com o do Oeste pela Rua do Ouvidor, o Largo da Matriz e a rua do Cemitrio.O bairro

    dos Subrbios dividia-se com o do Leste e Oeste pela rua da Figueira, o beco do Oitavo,calada em frente ao Batalho Treze e ruas da Misericrdia e Cordoeiro.45

    Em 1850, a populao somava 12.080 habitantes sendo destes 5.146 escravos

    (42,6%). J no final da dcada, a populao contava com 29.723 habitantes com 8.417

    43 PESAVENTO, Sandra Jatahy (org.) Memria de Porto Alegre: espaos e vivncias. PortoAlegre: Ed. Universidade-UFRGS/PMPA, 1991. p. 23.44 AHPAMV. 1.8.1. Cdigos de Posturas 1828/1891. Posturas Municipais de 1831da Cmara

    Municipal da Cidade de Porto Alegre aprovado pelo Conselho Geral da Provncia (documento impressoem 1847 pela typograpphia do Commrcio da Rua da Praia ). Caminho Novo a atual Rua Voluntriosda Ptria. MLLER, op. cit. p. 207. No sei dizer a que Travessa se refere essa passagem do Cdigo dePosturas, mas acredito que possa ser o Beco do Cordoeiro ou Cordeiro (atual Senhor dos Passos) pelaproximidade. ( Mapa de Porto Alegre de 1840 publicado em ZH de 4/12/1986, Encarte Origens do RioGrande do Sul, p. 5 ). Rua da Olaria era como se chamava na poca a atual rua General Lima e Silva.MLLER, op. cit. p. 208. muito provvel que at o incio da dcada de 1850 estes limitespermanecessem os mesmos, talvez englobando alguns arraiais como o da Baronesa e parte da CidadeBaixa. Tomando as informaes dessa fonte, podemos arriscar uma linha imaginria desta descrio doslimtrofes urbanos de Porto Alegre daquela poca, com os nomes atuais das ruas. Uma linha que cortaria a"pennsula" do incio da rua Senhor dos Passos, na rua Voluntrios da Ptria, at o Alto da Misericrdia,

    na Santa Casa, na Praa Dom Feliciano onde comea a "estrada geral imediata" (Aldeia dos Anjos), atualAvenida Independncia.

    15

    Dali seguindo em linha reta at o incio da rua General Lima e Silva (Rua da Olaria), ou seja,passando, talvez, pelas atuais ruas Professor Annes Dias (Eua da Misericrdia) e Andr da Rocha (Becodo Oitavo), e em linha reta, provavelmente pela atual rua Coronel Genuno ( antiga rua da Figueira ) ato seu final, no Riacho Ipiranga e "por ele at a sua embocadura", novamente no "Rio" Guaba, onde hojese situa o Centro Administrativo do Governo Estadual.

    45 AHRS. Relatrio do presidente da Provncia Jernimo Francisco Coelho, em 15 de dezembro de

    1856. A. 7.02. Cx 96. apud. Zanetti. op. cit. p. 61, na referncia a diviso dos bairros. As ruas citadasneste pargrafo so, respectivamente, as atuais Ruas General Cmara, Esprito Santo, Coronel Genuno,Andr da Rocha, Professor Annes Dias e a Senhor dos Passos. MLLER, op. cit. p. 207-208.

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    escravos (28,3%), em 1859.46

    O espao urbano em crescimento representava um grande atrativo tanto para

    trabalhadores livres pobres e libertos, como para escravos e contratados fugidos. Sua

    populao eram na maioria pobres, em geral descendentes de africanos e de nativos.Livres e libertos trabalhavam, lado a lado com os cativos e estabeleciam variadas

    relaes interpessoais e lutando para abrir espaos de expresso econmica, social,

    cultural, religiosa e de lazer, realizando seus batuques como espao de vivncias, entre

    outros.47

    Neste contexto, os negros se concentraram entre as populaes pobres.

    Inicialmente sem residncia fixa e morando em cortios ou malocas, estas populaes

    negras migraram para regies prximas rea central fazendo delas seus territrios de

    vida.48 A Cidade Baixa,49 constituiu-se em um destes territrios negros, conhecida

    pejorativamente como emboscada, refgio de escravos fugidos, onde habitava gente

    de menor importncia. Mas, com o crescimento da zona urbana, pelo adensamento da

    populao e pelos interesses imobilirios, parte dessa regio foi incorporada ao

    permetro urbano da cidade e o territrio negro passaria a ser arrastado para prximo do

    Riacho, no local chamado Arraial da Baronesa, territrio preferencial de ocupao por

    negros libertos, logo re-denominado de Areal da Baronesa devido ao seu terreno

    arenoso. A expulso destas populaes significou uma ao deliberada de varredura dos

    pobres da zona central da cidade.50A Cidade Baixa ligava-se aosCampos da Vrzea e

    tinha seus lugares mal-afamados como a rua do Imperador e a rua da Margem. 51Alm

    disso, regies inteiras eram consideradas perigosas como foi o caso do Areal da

    Baronesa e, mais ao final do sculo, a Colnia Africana. Esses lugares alm de serem

    46 MAESTRI, op. cit. 2001. p. 69. Tabela de evoluo da populao de Porto Alegre entre 1780-1900. Dados extrados, pelo autor, dos Censos do RS. 1803-1950, Porto Alegre: FEE, 1986.

    47 MAESTRI, op. cit. 2001. p. 165-166.

    48 PESAVENTO. op. cit. 1991: p.23, 24.49 A Cidade Baixa, em meados do sculo XIX foi a designao utilizada para toda a regio situadaao sul da Rua Duque de Caxias. A idia de ocupao negra da regio remonta do incio do sculo XIX eem razo disso esse territrio guarda uma identidade cultural tnica dos negros da capital. (Observatriode Porto Alegre/Procempa - www.observapoa.palegre.com.br).

    16

    50 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os excludos da cidade. In: SEFFNER, Fernando ( org. )

    Presena negra no Rio Grande do Sul. Cadernos Porto&Vrgula, n.11. Porto Alegre: UE/Porto Alegre,1995. p. 81-84.

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    pobres eram estigmatizados por serem bairros predominantemente habitados por negros,

    o que os tornava potencialmente mais perigosos.52

    Portanto, a histria dos negros urbanos tambm se mistura com a dos pobres

    como um todo, com os quais se relacionavam. Igualmente outros indivduos no-negroscompartilhavam com negros livres, libertos ou escravos o cenrio urbano. A populao

    negra era representada entre os nacionais (crioulos) e estrangeiros (africanos), podendo

    estes serem tambm livres ou libertos. Esses populares vivendo em extrema

    proximidade, exercendo ocupaes mal remuneradas e ocasionais e habitando regies

    consideradas perigosas, na tnue fronteira entre a legalidade e a ilegalidade, passam a

    ser considerados como "classes perigosas".53

    O conceito de "classes perigosas", segundo Chalhoub, teria surgido na primeirametade do sculo XIX, na Inglaterra, para designar grupos sociais situados margem da

    sociedade, ou seja, indivduos que j haviam abertamente escolhido uma estratgia de

    sobrevivncia margem da lei. No Brasil, este debate pautou-se na segunda metade do

    mesmo sculo, na tentativa de reorganizao da sociedade de maneira a se proteger

    destes perigosos indivduos. Utilizando um clebre criminalista francs, Frgier,

    tentaram aproximar o conceito de "classes perigosas" do que eles chamavam de "pobres

    viciosos". Esta definio, no entanto, abria para o entendimento de que poderiam haver

    pobres "bons", honestos e trabalhadores. Ao contrrio disso, esses dois termos, "pobres"

    e "viciosos", passaram a ser utilizados como sinnimos. Para as elites, no bom cidado,

    honesto e trabalhador a maior virtude seria o hbito da poupana e, sem essa grande

    virtude, graaria o vcio. No podendo poupar, logo, pela lgica desse raciocnio, os

    pobres carregariam vcios que os tornariam malfeitores, que por sua vez os tornariam,

    ento, perigosos. Portanto, ser pobre era, por definio, ser perigoso. Os pobres, na sua

    51 Respectivamente as atuais ruas da Repblica e Joo Alfredo. MLLER, op. cit. p. 208.52 MAUCH. Cludia. Saneamento moral em Porto Alegre na dcada de 1890. In: MAUCH,Cludia (org.) Porto Alegre na virada do sculo XIX: cultura e sociedade . Porto Alegre/Canoas/SoLeopoldo: Ed.Universidade/UFRGS/Ed. Ulbra/Ed. Unisinos, 1994, p. 10; e MOREIRA, Paulo RobertoStaudt. Entre o deboche e a rapina: os cenrios sociais da criminalidade popular em Porto Alegre (1868-1888). (Dissertao de Mestrado) Porto Alegre: UFRGS, 1993, p. 203. Sobre a "Colnia Africana" lertambm KERSTING, Eduardo Henrique de Oliveira.Negros e a modernidade urbana em Porto Alegre:A Colnia Africana 1890 a 1920. ( Dissertao de mestrado ). Porto Alegre: UFRGS, 1998.53 MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Os cativos e os homens de bem: experincias negras noespao urbano - Porto Alegre (1858-1888).Porto Alegre: EST Edies, 2003. p. 74-75.

    17

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    grande maioria negros, agora eram alvos da suspeio de perigo sociedade. Os libertos

    e forros, agora distantes do controle senhorial, sujeitos toda ordem de vcios,

    passariam a ser alvos preferenciais desta suspeio.54

    Os negros forros urbanos se ocupavam no comrcio informal dada asdificuldades de se ocuparem noutras frentes uma vez que encontravam concorrncia

    direta do trabalho escravo de ganho que estavam empregados em toda sorte de atividade

    e tudo estava regulado pela municipalidade em pontos fixos ou circulando pela cidade.

    Os pontos fixos estipulados pelas posturas municipais de 1858 eram as reas de

    mercado, que eram as praas do Paraso,55do Porto dos Ferreiros,56do Pelourinho,57do

    Hospital Militar58e da Alfndega. A circulao dos vendedores tambm estava regrado

    podendo ser nas ruas desde que no parados nas esquinas.59

    Somente em 1858, os negros libertos comeam a aparecer no recenseamento da

    Provncia num total de 3%, o que poderia denotar uma difcil conquista da alforria

    naquele perodo.60

    Algumas consideraes a respeito de peclio para a compra de alforria. Os

    escravos de ganho eram obrigados a sobreviverem com o que sobrava do magro jornal

    obtido, liberando o proprietrio das despesas e dos cuidados com seu sustento e

    controle, o que os permitia tambm viverem com uma relativa "liberdade" antes de

    conseguirem comprar suas alforrias. Entretanto, sobrava muito pouco ou quase nada

    para isso. No estudo de Zanetti sobre este assunto com inventrios entre as dcadas de

    1830 a 1860, conclui que a jornada de um dia do escravo de ganho era de $640 ris

    ficando estes com apenas $211 de peclio repassando $428 de seu ganho para seu

    senhor. Isso somaria no final do ms um peclio de 5$920 ris.61Considerando as cartas

    54 CHALHOUB. Sidney. Cidade febril: cortios e epidemias na Corte Imperial. So Paulo: Cia

    das Letras, 1996. p. 20-25.

    55 Atual Praa XV de Novembro. MLLER, op. cit. p. 208.56 Entre o litoral do Guaba, a atual Rua General Cmara at o atual Mercado Pblico, segundoZANETTI, op. cit. p. 68-69; e segundo MLLER, op. cit. p 207, Ferreiros seria um beco e quecompreende a atual Rua Uruguai, portanto, a mesma localizao geogrfica, muito provavelmente as duasautoras referiam-se ao mesmo lugar.57 Em frente Igreja Nossa Senhora das Dores. ZANETTI, op. cit. p. 68-69; e MLLER, op. cit.p. 209.58 De frente para a atual rua Duque de Caxias. ZANETTI, op. cit. p. 68-69.59 ZANETTI, op. cit. p. 68-69.60 ZANETTI, op. cit. p. 65-66.

    1861 ZANETTI, op. cit. p. 84.

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    de alforrias que pesquisei no perodo de 1842 a 1848, numa delas um escravo nag, de

    ofcio marinheiro, comprou sua alforria por 900$000 ris,62 podemos supor que um

    escravo de ganho precisaria trabalhar doze anos e meio para poder comprar sua alforria,

    isso considerando que ignorasse a sua subsistncia durante todos esses anos, o que seriaimpossvel, obviamente. Mesmo um escravo de 35 anos, avaliado em 650$000 ris,63

    necessitaria de no menos de nove anos para juntar todo esse peclio. O que corrobora a

    afirmao de que era muito difcil a conquista da alforria nesse perodo, principalmente

    por pagamento. Mesmo assim, embora a dificuldade, estudos recentes sobre alforria por

    pagamento comprovam que ela era conquistada com maior freqncia tanto pelos

    negros africanos quanto pelos nacionais.64

    Ganhadores obtinham o direito de viver independentemente, em casebres ouquartinhos alugados - "viver sobre si" autorizado em 1847 pelas posturas municipais

    desde que com licena expressa da Cmara. O Cdigo de Posturas expressa a deciso do

    Estado escravista de controlar o cativo que se autonomizava relativamente do senhor,

    devido s especificidades do mundo urbano. Em Porto Alegre, nos anos 1840-50, as

    ruas do Arvoredo e do Rosrio65 eram logradouros tradicionalmente habitados pela

    populao negra e pobre, livre e escrava - mascates, artesos, prostitutas, vendedores,

    etc. As autoridades viam com maus olhos essa liberdade relativa dos ganhadores

    urbanos, em especial convivendo com livres pobres e libertos. Devido ao pequeno

    retorno dos ganhos ou mesmo o pouco ganho, temia-se que fossem induzidos

    criminalidade para pagar seus amos e se sustentar. Ganhadores freqentemente

    lanavam mo prostituio e ao roubo para obterem ou completarem seu ganho. Alm

    disso, temia-se que os humildes quartinhos servis se transformassem em sedes de

    conspiraes ou de atos ilcitos.66

    Os escravos de aluguel tambm eram alugados a terceiros, por tempo limitado, e

    62 APERS. Livro 12 Registros Diversos do 1 Tabelionato de Registros da Capital. Registro deCarta de Liberdade. 1845. p. 95v.63 APERS. Livro 12. 1845. p. 123v.64 ALADRN, op. cit. p. 55-59. Os africanos neste trabalho de Aladrn compunham 54% daalforrias pagas o que o fez concluir que a liberdade era possvel a estes muito mais nessa modalidade, namedida que conseguissem acumular peclio. As pagas por terceiros era predomnio de "crioulos" talvezpela maior inter-relao que podiam ter entre familiares e associaes. O negro africano, segundo se podeinferir, tinham muito mais acesso alforria se a comprassem diretamente ao seu senhor.65 Atuais ruas Coronel Fernando Machado e Vigrio Jos Incio. MLLER, op. cit. p. 206 e 209.

    1966 MAESTRI, op. cit. 2001. p. 160-161.

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    durante esse perodo tambm no representavam, ao seu senhor, despesa com sade,

    vestimenta e alimentao, que corria por conta do contratante. Os libertos tambm

    alugavam seus servios, com ou sem especialidade, nas diversas oficinas da cidade.67Os

    negros, escravos, de ganho ou de aluguel ou libertos, empregavam-se nas mais variadasocupaes urbanas. Aguadeiros, pintores, estivadores, carregadores, sapateiros,

    vendedores, remadores, tabuleiros, etc.68

    A seguir, no prximo captulo, faremos um balano sobre a conquista das

    alforrias segundo a historiografia j citada, muito embora no seja esse o foco de meu

    estudo. Apenas para tentar identificar o universo de negros forros, e logo mais, tentar

    identificar sua possvel origem e designao. Ao final, realizar uma anlise das relaes

    destes negros forros e as autoridades municipais e policiais atravs dos requerimentos

    polcia identificados nas fontes.

    2 Negociao como fator de resistncia

    2.1 A conquista das alforrias

    67 ZANETTI, op. cit. p. 87.68 MAESTRI, Mrio. O escravo gacho: resistncia e trabalho. Porto Alegre: Ed.Universidade/UFRGS, 1993. p. 43.

    20

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    As cartas de alforrias, na sua maioria, apresentam dados das justificativas que o

    senhor fazia para a sua concesso, seja pelos bons servios, amor de criao ou por

    serem filhos de escravas e muitos deles por serem dos prprios senhores. Raramente as

    origens dos recursos aparecem claramente nas alforrias. Moreira na sua pesquisa colocaformas tais como esmolas, subscries voluntrias, capitais de inventrios, recursos

    obtidos da solidariedade da famlia, das irmandades e confrarias, sorteios e loterias,

    negociaes de contratos de servios com terceiros em troca de adiantamentos, trabalho

    de ganho, etc, tambm de familiares, geralmente, de pais, mes, esposos ou amsios.

    Outros recursos contam em testamentos pesquisados pelo autor como legados de parte

    do valor em que estava avaliado o escravo. Portanto, as alforrias eram transaes que

    envolviam transferncia de propriedade, registradas em Cartrio pelas partes envolvidase comprovadas por testemunhas. Os senhores as concediam de forma seletiva, como um

    instrumento de explorao daqueles que tinham de pagar por sua liberdade, bem como

    de obrigar a anos de servio obediente, no caso das condicionais.69

    Algo que vemos repetidamente nas alforrias so as razes sentimentais dadas

    pelos senhores que tornariam o liberto dependente por gratido, quando na verdade se

    tratava de um contrato comercial.70Dona Clara Maria de Oliveira forra sua escrava, a

    parda Clara, de 24 anos, "pelo amor que lhe tenho de criao e mesmo por ser minha

    afilhada de batismo, avaliada em oitocentos mil ris, dos quais recebi a quantia de

    quatrocentos mil ris".71 provvel sim que haviam laos sentimentais e que fossem

    fortes uma vez que se tratava de uma afilhada de batismo. No vamos crer que houvera

    sempre hipocrisia da parte da classe senhorial no que se refere a declarar seus

    sentimentos escravos ou ex-escravos em registros pblicos. Mas, convenhamos que se

    tratasse, tambm, de um negcio, cujo valor da parda Clara ficava em 50%. bem

    provvel que esta forra teria continuado prxima a sua ex-ama, ainda que liberta. Este

    exemplo pode servir para colocar a idia equivocada de uma relao unicamente

    paternalista,72mas que na realidade tambm resultado de uma retribuio em dinheiro

    69 MOREIRA, op. cit. p. 1996. p. 13-20 e MOREIRA, op cit. 2003. p. 186-187.70 MOREIRA, op. cit. p. 1996. p. 23.

    71 APERS - Livro 12. Registros Diversos do 1 Tabelionato de Registros da Capital. Registro deCarta de Liberdade - 1844. p. 51v.

    72 ALADRN. op. cit. 2008. p. 17-19. Questionando a idia de benevolncia do senhor, Aladrnafirma que as alforrias cumpriam, em momentos diversos, ora uma funo estrutural de reproduo das

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    e de um capital humano acumulado pela escrava que, muito possivelmente poderia ter

    entrado na negociao da liberdade.

    Lara coloca que a escravido no Brasil foi, ao mesmo tempo, uma relao de

    classes, uma subordinao racial e uma relao social paternalista. Ainda que opaternalismo seja utilizado para dominar, a discusso sobre termos e conceitos no deve

    descartar a anlise concreta das relaes sociais e dos confrontos e solidariedades

    vividos e experimentados pelos agentes destas relaes.73A resposta contra a dominao

    essencialmente violenta no era, tambm, necessariamente violenta. A autora defende a

    idia de que o discurso que enfatiza unicamente a violncia da dominao e que enfatiza

    a resistncia escrava apenas quando ela rompe a relao de dominao acaba por negar

    a estes cativos sua condio de agentes histricos.74Os negros agiam conscientemente

    com objetivo de influenciar no seu destino e, se possvel, subverter os arranjos de sua

    prpria dominao.75

    Outras cartas citadas por Moreira apresentam alm do negcio em si - compra e

    venda - aspectos que valorizam o tempo de trabalho do tal escravo, sua lealdade, zelo,

    respeito e bons servios. provvel que essas caractersticas tambm fossem valoradas

    pelo escravo no momento da negociao, pelo que, se no, talvez, no fosse necessrio

    transcrev-las. Alm da proximidade com o senhor, na relao paternalista, ele contava

    tambm com a retribuio por servios prestados.76

    As alforrias trabalhadas por Moreira no final da dcada de 1850 e incio da de

    relaes sociais escravistas e ora uma conquista escrava, revelia ou margem dos interesses senhoriais.O paternalismo seria, segundo a interpretao de Aladrn, um instrumento de controle social e, por outrolado, seus cdigos e regras eram permanentemente redefinidos e disputados, o que permitiria aos escravosaproveitarem certas brechas para "arrancarem" conquistas de seus senhores.73 LARA, Silvia Hunold. Campos da Violncia: escravos e senhores na Capitania do Rio deJaneiro 1750 a 1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1988. p. 106-113. Para Lara, no completa aexplicao de que a valorizao da violncia o elemento determinante do modelo de desenvolvimentoda sociedade escravista, opondo-a presena de traos humanizantes nas relaes entre senhores eescravos; citando Genovese ( Roll, Jordan, Roll. The World the Slaves Made, NY: Phanteon,1974: p.3-7) ela sustenta que restringir o debate sobre a dominao escravista apenas na violncia do sistema, "seriaempobrecer a anlise, reduzi-la a questes que esto mais apoiadas em concepes e valores atuais quenos presentes em prticas e confrontos vivenciados por aqueles" personagens do passado.74 LARA, op. cit. p. 341-355. A autora insiste em que a utilizao do discurso da "violncia" devaser uma denncia em e por princpio como essncia das sociedades desiguais e no apenas comoelemento constitutivo de uma dominao de classe especfica. Para alm de apenas contrapor violncia evtima, nosso discurso deve buscar recuperar as prticas dos negros, escravizados ou libertos, comosujeitos histricos, agenciadores de suas vidas mesmo em condies adversas do sistema de dominao.75 ALADRN, op. cit. p. 19.

    2276 MOREIRA, op. cit. p. 1996 p. 29.

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    1860, perfazem um total de 466 sendo que 225 foram compradas e destas 143 foram

    conquistadas com recursos prprios dos escravos ou de suas famlias. Mesmo que ele

    no tenha conseguido identificar os recursos de todas as alforrias, conclui que

    provvel que a grande maioria das alforrias em que no constam explicitamente aorigem do dinheiro, tenham sido pagas pelo prprio alforriado ou com recursos de sua

    famlia, associaes e comunidade tnica.77Quase a totalidade destes alforriados teve de

    gastar todas as sua energias na acumulao gradual de parcos recursos, em um processo

    arriscado e permeado de desgastantes negociaes cotidianas.78Parece fora de dvida

    que as atividades urbanas podiam efetivamente facilitar a formao de peclio entre os

    escravos, o que acarretava um maior ndice de manumisses pagas.79

    As alforrias por condio foram quelas que de uma maneira mais geralpossibilitava concretamente a conservao da dependncia entre ex-escravo e seu

    senhor. Estes tipos de carta eram verdadeiros contratos que indicavam as obrigaes

    contradas de ambas as partes, mas sempre ressaltando a continuidade da dependncia

    do ex-cativo.80

    Carta de liberdade passada por Pedro Jos de Souza e sua esposa para o pardo

    Antnio diz:

    "[...] nos coube por folha de partilha de meu finado pai Filisberto Jos

    de Souza , cujo pardo lhes damos de hoje para sempre a sua liberdade semrecebermos dele quantia alguma e s o libertamos por remunerao dos bonsservios que nos tem prestado e prestou a meu finado pai e s o obrigamospor este a nos fazer enquanto for vivo, qualquer obra de seu ofcio decarpinteiro que nos for necessrio sem que sejamos obrigados a pagar-lhe eindo o dito pardo vicioso, declaramos mais que, teremos sempre o direitoem qualquer tempo que ele entregar-se ao vcio a fazer ele viver em nossacompanhia, porm tendo-o como liberto que de hoje para sempre fica sendo,cumprido as condies que lhe impomos."81

    Vemos que o ex-cativo fica completamente ligado ao seu antigo senhor.

    Podemos inferir que talvez esse escravo j fosse afeito algum vcio, mas, tambm era

    um profissional de ofcio bastante considerado j que seus ex-amos continuam

    77 MOREIRA, op cit. 2003. p. 258-259.

    78 MOREIRA, op cit. 2003. p. 271.

    79 ALADRN, op. cit. p. 43-47.

    80 MOREIRA, op. cit. 1996. p. 48-52.

    81

    APERS - L 12. Registros Diversos. 1 Tab. de Registros da Capital. Registro de Carta deLiberdade - 1843. p. 23v. ( grifos meus ).23

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    desejosos de seus servios, condies que, aparentemente, no muito rgidas, mas que

    colocam o liberto em um grau de dependncia pela vida toda. Igualmente, sua alforria

    embora no fosse por pagamento de algum valor a mesma estava remunerada pelos

    servios prestados e pelos servios que continuaria a prestar a seus ex-senhores.Outra condio muito recorrente era por morte, prendendo o escravo a uma

    promessa de liberdade. Domingas, crioula, 30 anos pouco mais, fora alforriada pela sua

    senhora Alexandrina por

    "tendo-me sempre servido com boa vontade, por isso [...] que lhe confirmoa liberdade pela presente carta, com a condio porm de me servir pelamesma forma que at aqui tem feito, durante todo o tempo de minha vida, elogo que eu deixar de existir poder ento ir gozar de sua liberdade [...]".82

    A ambigidade deste tipo de alforria condicionava o "ex-escravo" a continuarcativo. Esse tipo de alforria, considerada um ato de generosidade ou de benevolncia

    dos senhores, era mais fortemente passvel de revogao j que impunha condies que

    poderiam ou no ser cumpridas.

    Chalhoub nos coloca em seu livro Vises da Liberdade uma posio interessante

    sobre o debate do j tratado paternalismo senhorial.83A afirmao de que a alforria no

    seria totalmente uma desvinculao do laos que definem a relao escravo e senhor, ou

    seja, "a representao senhorial dominante sobre a alforria no sculo XIX, pelo menos

    at seu terceiro quartel, era a de que o escravo, sendo dependente moral e materialmente

    do senhor, no podia ver essa relao bruscamente rompida quando alcanava a

    liberdade."84Nesse contexto, a previso de revogao da alforria fica restrita apenas

    lei. Essa possibilidade reforaria a ideologia da relao entre senhores e escravos que

    caracterizava o paternalismo, a dependncia e a subordinao, traos que no se

    encerraria com a alforria. Essa era a viso da auto-descrio do imaginrio senhorial

    para fortalecer a ideologia do carter benevolente da alforria. Mas, a revogao da

    alforria, pergunta, foi um fator eficaz de controle sobre os negros alforriados? A

    resposta dentro de seus estudos a de que muito raramente essa estratgia fora utilizada

    82 APERS L. 12. Registros Diversos. 1 Tab. de Registros da Capital. Registro de Carta deLiberdade - 1843. p. 45 e 45v.83 CHALHOUB, Sidney. Vises da Liberdade: uma histria das ltimas dcadas da escravidona Corte.So Paulo: Cia das Letras, 1990. Cap. Atos Solenes. p. 131-174.

    84 CHALHOUB, op. cit. 1990. p. 136.

    24

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    pelo senhores. Em sendo verdade que os libertos continuavam a demonstrar respeito,

    obedincia e submisso temendo seu retorno ao cativeiro, nesse caso, o pequeno

    nmero de histrias desse tipo apenas confirma a eficcia do recurso.85Continuando o

    seu raciocnio, nos coloca que as alforrias quase sempre eram concedidas com algumadeclarao de afeto pelos senhores e, ficava compreendido que os libertos deveram

    continuar demonstrando estima e gratido aos seus antigos proprietrios.86Nas alforrias

    estudadas por ele concluiu que havia por parte do senhorio em torno da alforria uma

    forte expectativa de continuidade de relaes pessoais anteriores, o negro liberto como

    dependente e o senhor como patrono e protetor. No entanto, alerta para no generalizar,

    pois difcil avaliar at que ponto os libertos efetivamente compartilhavam dessa

    ideologia da alforria. Contrape, para exemplificar, quatro casos das alforrias queestudou em que se caracterizam dois negros libertos "ingratos" e outros dois que se

    utilizaram da dependncia e da proteo como estratgias no sentido de lhes viabilizar

    melhores condies de sobrevivncia. Coloca que estes libertos no compartilhavam da

    ideologia da alforria, porm, desempenhavam os papis a eles atribudos com o intuito

    de atingir certos fins.87

    "As atitudes dos escravos, e qui dos dominados em geral, interpretada segundo duas possibilidades opostas e excludentes: a introjeode valores senhoriais ou dominantes, ou a elaborao de "estratgias de

    sobrevivncia", que envolvem quase sempre astcia e dissimulao. Achoplausvel pensar que a ideologia da alforria "seduzia" de certa forma osescravos, tornando-se uma das sutilezas da dominao escravista. precisoadmitir que existiam essas e outras sutilezas na poltica de domnio detrabalhadores escravos, pois sem a introjeo pelo menos parcial de certossmbolos de poder seria impossvel imaginar que uma determinada forma deorganizao das relaes de trabalho pudesse se reproduzir por tantossculos. A "pessoalizao" e privatizao do controle social eram marcas daescravido que tinham na concentrao do poder de alforriar exclusivamentenas mos dos senhores um de seus smbolos mximos. Tanto senhores quantoescravos conheciam perfeitamente esse aspecto crucial do imaginrio socialna escravido."88

    Ao longo do sculo XIX, em especial na segunda metade, houve uma crescente

    85 CHALHOUB, op. cit. 1990. p. 137.

    86 CHALHOUB, op. cit. 1990. p. 144.

    87 CHALHOUB, op. cit. 1990. p. 149-150.

    88 CHALHOUB, op. cit. 1990. p. 150.

    25

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    interveno do Estado nas relaes entre escravos e senhores, principalmente aps a Lei

    do Ventre Livre, em 1871, que instituiu o peclio e se fosse suficiente o escravo teria

    direito a um acordo ou a um arbitramento judicial. Essa realidade provocou mudanas

    nas relaes de fora entre escravos e senhores, reforando a atuao do PoderJudicirio.89

    Aladrn afirma que com o final do trfico transatlntico e o processo de

    concentrao social e regional da posse de escravos resultante do movimento gerado

    pelo trfico interno, a escravido progressivamente perde sua legitimidade e esse

    processo teve forte impacto nas relaes de dominao vigente. A poltica de domnio

    senhorial calcada no paternalismo comea a ruir uma vez que passa a acontecer uma

    maior presso por parte da comunidade escrava pela liberdade.90A alforria continuava

    sendo uma concesso administrada pelo senhor, mas agora muito mais como resultado

    de uma vontade cada vez maior de liberdade seja atravs de aes dos escravos, novas

    estratgias de luta e tambm de negociao.

    2.2 Designao e classificao

    Quanto designao e a classificao destes negros forros, tentaremos discutir

    alguns estudos j realizados que possam servir para definir sua provvel insero na

    sociedade do perodo estudado. Evidentemente, uma discusso que possa nos dar uma

    idia de como poderiam ser vistos e representados dentro do tecido social da cidade na

    poca pelas elites da sociedade escravocrata.

    comum classificar em dois grandes grupos os africanos desembarcados na

    provncia: os bantos e os sudaneses. Os bantos chegaram primeiro, a partir ainda do

    sculo XVI. Os sudaneses comearam a chegar do incio do sculo XVIII em diante.

    Paradoxalmente, destes ltimos a supremacia cultural no que se refere manifestao

    religiosa, talvez por possuir uma estrutura mais rica e mais forte.91

    89 MOREIRA. op. cit. 1996. p. 57-59.

    90 ALADRN. op. cit. p. 21.

    91

    BRAGA, Reginaldo Gil.Batuque Jje-Ijex em Porto Alegre: A msica no culto dos Orixs.Porto Alegre: FUMPROARTE/SMC-PMPA, 1998. p. 27.

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    A origem do negro sulino muito difcil de identificar. O africano chegava ao

    Brasil j rebatizado com um nome portugus seguido do lugar de onde foi embarcado,

    geralmente. Esse "segundo nome" nos permite vislumbrar quais as regies da frica

    que privilegiadamente serviram de embarque dos escravos, no propriamente a origemou a procedncia africana. Portanto, o porto pode ser uma falsa pista sobre a sua

    origem.92 A partir da, a grande maioria destes negros passariam a adotar essa

    designao como a sua origem na frica, os chamados negros de nao.

    Em seu estudo Aladrn, considerou africanos todos "de nao", "da Costa da

    frica" ou mesmo s "da Costa". Brasileiros foram considerados todos os crioulos,

    pardos, mulatos e cabras. Entretanto, embora fossem raros os crioulos nascidos na

    frica, acredita que possvel encontrar algumas designaes, o que torna o termo"crioulo" utilizado para escravos brasileiros um pouco temerrio. No entanto, este o

    termo utilizado pela grande maioria da historiografia. Aladrn, em sua pesquisa

    encontrou dois documentos onde foi possvel identificar essa designao para africanos

    nascidos em Cabo Verde e Angola. Em uma tabela de naturalidade de forros entre 1800

    e 1835, em Porto Alegre, Aldeia dos Anjos e Viamo, em um total de 662, 224 eram de

    origem africana, ou seja, 1/3 dos forros deste perodo. Isto sugere que os "crioulos"

    teriam maior facilidade de conquistar suas alforrias aqui no sul.93

    Os africanos no constituam um corpo homogneo e a escravizao e o trfico

    foram processos fundamentais para uma re-elaborao das suas sidentidades no Brasil.

    Essa re-elaborao j se iniciava na travessia at durante a experincia da vida em

    cativeiro. Como vimos, a sua designao indicava o porto de embarque e muito

    eventualmente algum reino ou grupo tnico especfico. Os nomes de nao faziam parte

    de um sistema de classificao e no derivavam, necessariamente, de componentes

    culturais prprios e especficos de grupos tnicos africanos94.

    Entretanto, no podemos interpretar apenas como uma imposio do sistema

    escravista, pois essas classificaes e designaes tambm foram apropriadas pelos

    prprios africanos e assumidos como verdadeiros etnnimos no processo de

    92 MAESTRI, op. cit. 1993. p. 30-35.

    93 ALADRN, op. cit. p. 41.

    94 ALADRN, op. cit. p. 60-65.

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    organizao de suas comunidades no Brasil, segundo Maria Ins de Oliveira. Ainda

    segundo ela, as designaes tnicas que se referiam a grupos africanos representativos

    acabaram se transmutando em formas auto-adscritivas a partir das quais eram

    elaboradas as alianas grupais, as estratgias matrimoniais e a vida religiosa.

    95

    Especificamente sobre a identificao, Aladrn chama a ateno para as

    diferenciaes que ocorrem, pois elas se operam segundo diferentes momentos e

    espaos histricos. Com a Independncia e a Constituio de 1824, todos livres e

    libertos passaram a ser reconhecidos como cidados brasileiros. No entanto, mesmo

    aqui, nos direitos civis e polticos constitucionais, a diferenciao se operava no campo

    da adoo do voto censitrio. As vises da elite e das classes populares sobre a nao

    estavam carregadas de tenses entre a necessidade de igualdade e de hierarquizao

    social e racial. O processo de racializao que acompanhou a formao da nao

    brasileira no implicou a justificativa racializada da escravido, no entanto, na prtica

    cotidiana, as hierarquias raciais do perodo colonial foram mantidas, embora sob novos

    formatos. As cartas de alforria deste perodo, segundo Aladrn, registram alguns

    designativos de cor que esto relacionados no apenas com o fentipo, mas tambm

    com a condio social do liberto. Observava-se no somente aspectos fisionmicos, mas

    para determinar a posio de uma pessoa era preciso levar em conta fatores como

    riqueza, posio social e o comportamento. Mesmo isso, ainda a designao racial

    estava condicionada ao observador que nomeava, bem como da poca e da regio. 96As

    designaes de "negro", "pardo" "preto" e at "crioulo", indicam a existncia de outros

    nveis e maneiras de diferenciao social, do que apenas as distines entre livres,

    forros e cativos.97

    Hebe Maria Mattos de Castro coloca que as expresses "negro" e "preto" fazia-

    se diretamente a condio escrava atual ou passada:

    "... as designaes de "pardo" e "preto" continuam a ser utilizadas

    95 OLIVEIRA, Maria Ins Crtes de, "Viver e morrer no meio dos seus. Naes e comunidadesafricanas na Bahia do sculo XIX". In:Revista USP.So Paulo: n. 28, dez. 1995/jan. 1996, p. 175 apudALADRN, op. cit. p. 62.

    96 ALADRN, op. cit. p. 108-112.

    97 LARA, op. cit. p. 350.

    28

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    como marca do recm-liberto, ( ... ) O crescimento demogrfico de negros emestios livres e tambm de brancos empobrecidos, ( ... ) tendeu a esvaziaros significados da cor "branca" como designador isolado de status social ( ... )a noo de "cor", herdada do perodo colonial, no designava,preferencialmente, matizes de pigmentao ou nveis diferentes demestiagem, mas buscava definir lugares sociais, nos quais etnia e condio

    estavam indissociavelmente ligados."98

    As expresses que indicavam cor seguida da condio social foi uma categoria

    lingstica utilizada, durante quase todo o sculo XIX, para expressar uma outra

    realidade, isto , atualizar uma condio atual vinculando-a a marca de seu passado

    escravo. "Preto" ou "crioulo" designava o cativo ou ex-cativo, mas o "pardo livre"

    atualizava sua condio com sua origem. Ainda que a cor no tenha sido a base para a

    justificativa da escravido, ao longo dos sculos XVII e XVIII foi reforada a

    associao dos designativos pretos e negros com a experincia do cativeiro. Por

    oposio, o designativo "branco" tornou-se, cada vez mais, um termo que pressupunha a

    condio de livre.99A designao "pretos" e "pardos" foi a maneira de discriminar os

    negros sejam cativos ou libertos, por que estavam classificados num sistema, segundo o

    qual, eles no poderiam ser livres, somente escravos ou forros.

    Aladrn argumenta ainda quanto a uma divergncia entre os dados de populao

    e de alforrias entre pretos e pardos, e que estas designaes nos recenseamentos

    poderiam mudar quando das alforrias e mesmo quando dos registros delas. Em um casopor ele estudado a expresso "preto agora forro", segundo ele, poderia indicar que os

    tabelies poderiam mudar a cor que antes designava "cativeiro" para outra designativa

    de liberdade.100

    Em quase todos os requerimentos de licena para a realizao de seus

    "batuques", as designaes dos personagens so quase todas elas de "pretos", "forros" e

    "de nao". Sem querer absolutizar e utilizando essa argumentao possvel imaginar

    que essas designaes poderiam mesmo inferir no somente a ascendncia africanadestes indivduos de que me ocupo para meu estudo, mas tambm a sua prpria origem

    98 CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das Cores do Silncio: Os significados da Liberdade doSudeste Escravista - Brasil Sculo XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995 p. 104-109.

    99 ALADRN, op. cit. 112-116.

    100 ALADRN, op. Cit. 119-122.

    29

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    africana.

    Sherer em seu trabalho "frica no Sul do Rio Grande negro" coloca que at

    1850 a populao cativa africana era a maioria enquanto que depois, em razo do final

    do trfico, esta populao comea a decrescer enquanto que a de "crioulos" comea acrescer. Ainda assim os africanos eram superiores aos negros nacionais durante toda

    esta dcada.101

    2.3 Batuques, candombes e danas de negros

    A estruturao do batuque no Rio Grande do Sul constitui um tema que guarda

    um aprofundamento investigativo, mas tudo indica que os primeiros "terreiros" foram

    fundados na regio de Pelotas e Rio Grande, de grande concentrao de escravos. Em

    Porto Alegre, as notcias relativas ao batuque so da segunda metade do sculo XIX,

    demonstrando que, muito provavelmente, o seu incremento ou visibilidade data deste

    perodo.102 Como j vimos, Porto Alegre caracterizava-se por uma grande presena de

    populao negra e a mesma costumava realizar suas prticas culturais religiosas para as

    quais havia o costume de se expedir permisses, pelo menos at final de 1850, mas com

    limites bem precisos.103 Joo Jos Reis discute que os negros conseguiam romper a

    dominao cotidiana por pequenos atos de desobedincia, manipulao pessoal e

    autonomia cultural, ainda que tambm se utilizassem do paternalismo senhorial. Afirma

    ainda, que os negros inventaram e levaram a quase perfeio uma singular astcia

    pessoal na explorao das brechas do poder escravocrata. Atravs de peties que

    faziam chegar s autoridades - como foi o caso do candombl de Accu - para

    solicitarem o que por fora da norma estavam impedidos, demonstravam exercer um

    101 SCHERER, Jovani de Souza. frica no sul do Rio Grande negro. In: V Mostra de Pesquisa doAPERS. Porto Alegre. 2007. p. 146.

    102 ORO, op. cit. 2002. p. 349-350.

    103 MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Os cativos e os homens de bem: Prticas e representaes

    sobre cativeiro e liberdade em Porto Alegre na segunda metade do sculo XIX (1858-1888). PortoAlegre: UFRGS, 2001 ( Tese de Doutorado PPGH/UFRGS ) p. 153.

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    certo conhecimento do funcionamento da burocracia do poder.104Justamente por essas

    licenas que aqui em Porto Alegre eram dadas, a partir de requerimentos de negros e

    concesses da polcia, que analiso provvel relaes de negociao. Reis me antecipa a

    afirmao de que os negros desenvolveram uma fina malcia pessoal, umadesconcertante ousadia cultural na relao com a dominao escravocrata.105Uma das

    licenas que utilizarei trata de um pedido para festejo que anualmente era concedido

    pelas autoridades policiais e que, naquele ano de 1850, houve certa dificuldade para

    liberao:

    Concedo a licena requerida, sendo o lugar marcado na Vrzeadesta cidade, tendo muito cuidado em que no haja desordens.

    Porto Alegre, 15 de dezembro de 1849.

    Tristo Jeremias de Moraiz.Inspetor de Quarteiro N. 11 106

    Este um despacho concedendo licena Maria Jos, uma preta forra, queanualmente realiza seus "brinquedos" na cidade, pelo qual foram pagos "doze patacesde direitos municipais" em 24 de dezembro de 1849.107 Direitos municipais era aexpresso oficial utilizada para pagamento de taxa em geral, ou imposto comochamavam no perodo, nesses casos, para licenas. O requerimento em questo, noentanto, fora cassado para o ano solicitado com o que a mesma requerente o re-enviadireta e simultaneamente para o Chefe de Polcia e para o Subdelegado da regio:

    Ilmo. Sr. Dr. Chefe de Polcia

    Diz Maria Jos, preta forra, moradora na rua do Arvoredo, casan. 64, que tendo obtido licena do respectivo Sr. Subdelegado de Polcia,como mostra com o incluso documento, para que os pretos de naoAngola e os das outras naes pudessem brincar nos Domingos e DiasSantos de Guarda, como tem sido sempre de estilo, resultando dessesinocentes passatempos, a vantagem de recolherem esmolas para as suasfestas, enterros e socorros mtuosem casos de enfermidades, e que tudo muito pblico e notrio; acontece que neste corrente ano de 1850 aindano podero brincar, por esse motivo que a suplicante por si e pelas maispessoas que concorrem e tomam parte nesses brinquedos, vem pedir V. Sr.se sirva conceder-lhes licena para que nos Domingos e Dias de SantaGuarda possam brincar na Rua de Santa Catharina, na casa n. 32,

    104 REIS, op. cit. 1989, p. 32-48.

    30

    105 REIS, op. cit. 1989, p. 33.

    106 AHRS. Fundo Requerimento. Grupo Polcia. Mao 90 1850. Para melhor leitura, a grafia dasfontes foi atualizada e as ortografia corrigida, mas manteve-se a forma original da redao e da colocaoda letra maiscula. Os grifos em negrito so todos meus.

    107 Pataca era uma moeda da poca de prata e que valia 320 ris. MLLER, op. cit. p. 96.

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    precedendo conhecimento das respectivas autoridades policiais doDistrito, assegurando a suplicante a V. Sr. serem tais brinquedos inocentesao modo por que o fazem cada uma das Naes e de no haverem desordens.Portanto,

    Pede a V. Sr. se sirva assim deferir.

    Porto Alegre, 19 de fevereiro de 1850.108

    Ilmo. Sr. Subdelegado de Polcia do 2 Distrito.

    Diz Maria Jos, preta forra,na qualidade de = Rainha Ginga = deNao Angola com predomnio sobre as mais Naes de pretos da CostadAfrica, que tendo obtido licena do Ilmo. Chefe de Policia, parabrincarem ao modo de suas Naes, em algumas casas da Rua doRosrio, foi-lhes esta licena cassada por V. Sr. que verbalmente declarouque s a concederia por que os brinquedos fossem na Vrzea desta Cidade, e

    porque estes divertimentos so inteiramente inocentes e servem de distrao ealm disso resulta em benefcio de todos por que deles se obtm esmolas queso aplicadas para socorros mtuos em casos de enfermidades e paraenterros: por isso e como tem sido de estilo, a suplicantepor si e por todasdemais Naes vem pedir a V. Sr. se sirva conceder licena para que aosDomingos possam brincar ou na Vrzea ou naquele lugar que for por V. Sr.designado, portanto,

    Pede que assim lhe defira

    Porto Alegre, 19 de fevereiro de 1850. 109

    Notemos que, para diferentes autoridades a referida preta forra Maria Jos,

    embora mantenha uma mesma linha de argumentao, se qualifica diferentemente.

    Para o Chefe de Polcia ela se declara moradora da Rua do Arvoredo, portanto,

    com endereo fixo, demonstrando-se publicamente. Nesta petio ela no coloca que

    sua licena tinha sido cassada, mas que, por algum motivo no explcito, "ainda no

    podiam brincar". Afirma que a licena havia sido concedida pelo Sr. Subdelegado, mas

    o referido "documento incluso", que a concesso datada de dezembro de 1849, fora

    assinada pelo Inspetor de Quarteiro, pagos os devidos "direitos municipais" e que no

    houvesse desordens. Ao afirmar que "tudo muito pblico e notrio", tenta tranqilizaras autoridades uma vez que se trata de "brinquedos inocentes" com objetivo de recolher

    doaes "para suas festas, enterros e socorros mtuos". Ainda, coloca-se como porta-

    voz dos pretos de outras "naes", alm da sua, de Angola, demonstrando que fala na

    108 AHRS. Fundo Requerimento. Grupo Polcia. Mao 90 1850.

    31

    109 AHRS. Fundo Requerimento. Grupo Polcia. Mao 90 1850.

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    posio de uma autoridade comunitria e de liderana. Finaliza colocando, sutilmente, o

    local pretendido para tal festejo, a Rua de Santa Catharina,110n. 32, provavelmente uma

    residncia, e com a devida comunicao das autoridades daquele Distrito, para que

    possam "brincar nos domingos e dias de santa guarda".Para o Subdelegado, o tom da "splica" me parece bem outro. Apresenta-se

    como "Rainha Ginga, de Nao Angola com predomnio sobre as mais Naes de pretos

    da Costa d'frica". Embora mantenha o termo "brincarem" "ao modo de suas Naes",

    fica subentendido que se trata de um rito recorrente da religiosidade africana. 111 A

    licena cassada referia-se ao endereo rua do Rosrio e a autoridade referida somente a

    aprovaria se o local fosse na Vrzea. A tonalidade da petio, embora, finalize na

    condio de "suplicante", ao reafirmar os objetivos e as condies de tal evento, "comotem sido de estilo", soa como uma reclamao.

    Na condio de Rainha Ginga, Maria Jos, personificava a rainha quimbundo do

    reino de Ndongo que resistiu ao avano portugus e com isso conseguiu montar um

    grande aliana com povos antes seus frreos inimigos. Uma liderana feminina entre

    negros de diversas naes predominando a tradio de luta de uma Rainha que resistiu

    ao invasor branco.112

    Ambas as peties so assinadas a rogo por um senhor chamado Jos Bernardo

    da Rocha, que presumimos no seja preto o que nos remete ao que Joo Jos Reis

    110 Atual Rua Doutor Flores. MLLER, op. cit. p. 209.

    32

    111 Conta a histria da Rainha Ginga, de Angola, que ela, no incio do sculo XVII, mandou