Antropologia Visual - Casa de Batuque

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    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 1, n. 2, p. 129-140, jul./set. 1995

    Experincia de antropologia visual em uma casa de batuqueem Porto Alegre

    A EXPERINCIA DE ANTROPOLOGIA VISUAL

    EM UMA CASA DE BATUQUE EM PORTO ALEGRE*

    Jacqueline Britto Plvora

    Pontifcia Uni versidade Catl ica do Rio Grande do Sul Brasi l

    Resumo:Este estudo examina a vivncia cotidiana de um grupo de batuqueiros

    pessoas ligadas a uma das modalidades de Religio Afro-Brasileira de Porto Alegre

    tendo como ponto de partida a casa da me-de-santo, a experincia de pertencimento

    a uma Famlia de Santo e, posteriormente, os deslocamentos deste grupo na cidade,

    principalmente em seus espaos de lazer. Tais vivncias cotidianas revelam-se

    intermediadas pelas concepes e valores religiosos, mostrando os batuqueiros

    enquanto sujeitos inseridos numa ordem cosmolgica tradicional de mundo. A

    utilizao de fotografias neste trabalho se d em nveis distintos. Inicialmente,

    enquanto imagens que subsidiaram a construo da escritura. Num segundo momento,

    enquanto material de troca e inter-relao com o grupo, onde se revelou a persistncia

    da viso sagrada de mundo totalizando as experincias cotidianas batuqueiras.Finalmente, as fotos complementam a escritura, enquanto imagens que revelam a

    sensibilidade religiosa do grupo, requisito que o texto escrito, por si s, no preenche.

    Palavras-chave:afro-brasileiros, antropologia visual, batuque, religio e cosmologia.

    Abstract:This study examines the daily life of a group of batuqueiros people linked

    to a certain modality of Afro-Brazilian religion in Porto Alegre. It focuses on the

    house of a Mae-de Santo, the experience of belonging to a Family-of-Saints and, later,

    the moving about of this group in the city, principally in its leisure spaces. Such daily

    experiences are permeated by religious cenceptions and values, showing the

    batuqueiros as subjects inserted into a traditional cosmological order of the world.

    The use of photographs in this work takes place in distinct levels. Initially, as the

    images which supplied material for the written text. Second, as a means of exchange

    and interaction with the group in which the sacred world vision persists, totalizing

    * Agradeo Maria Henriqueta Satt que, atravs de seus escritos, estimulou-me a refletir e escreversobre essa experincia fotoetnogrfica.

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    the daily experiences of the batuqueiros. Finally, the photos serve as a supplement to

    the written text, as images which reveal the religious sensitivities of the group, a

    quality which the written text alone cannot fulfill.

    Keywords:Afro-Brazilian, batuque, religion and cosmology, visual anthropology.

    A proposta deste estudo fazer alguma coisa que eu mesma no haviadedicado muito tempo para tal tarefa. Pensar a utilizao que fiz das fotosobtidas em meu trabalho de campo de alguma forma quase como repensar oprprio trabalho de campo, j que ambos, as fotos juntamente ao trabalho de

    campo, foram sendo feitos num ritmo mais de experimentao do que de formapr-estipulada.

    Refiro-me ao fato de que tanto o trabalho de campo como as fotos aliobtidas foram sendo feitos junto ao ritmo do grupo pesquisado, sob a sua dispo-sio e aval. A experincia que trago para relatar aqui est registrada em mi-nha dissertao de mestrado,1 trabalho que intitulei A Sagrao do Cotidiano eque um estudo de sociabilidade vivenciada em um grupo de batuqueiros pessoas ligadas entre si pela prtica e crena no batuque, uma das modalidades

    de religio afro-brasileira de Porto Alegre. As fotos que vou lhes mostrar aquiso algumas das que compem o texto visual deste trabalho e considero que seencontram inseridas como complemento do texto escrito, j que apenas esteno revelaria todas as imagens batuqueiras que me foram expressas e que eugostaria de mostrar.

    Para que eu introduzisse a cmera fotogrfica junto famlia-de-santofez-se necessrio algum tempo para que uma relativa intimidade pudesse serconstruda. Tratava-se tambm de uma timidez minha na utilizao do equipa-mento, j que eu mesma achava intromissora a minha presena, quanto mais a

    do equipamento fotogrfico.A estratgia de pesquisa que eu traara para o campo era a de tentar

    interferir o menos possvel nos ritmos e rumos dos acontecimentos. Mesmoestando ciente da complexidade que envolve tal tarefa, tudo o que eu no que-

    1 Essa dissertao foi apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Univer-sidade Federal do Rio Grande do Sul, em setembro de 1994.

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    ria era criar uma situao artificial de pesquisa, situao em que meus cola-boradores talvez fizessem menos rudos do que habitualmente. Minha inteno

    era no s conhecer um pouco da tradio religiosa batuqueira, mas tambmv-la articulada, entrelaada na vida cotidiana dessas pessoas. E, surpreenden-temente para mim, a religio encontrava-se consagrando o cotidiano daquelaspessoas e, na mesma proporo, o cotidiano encontrava-se permanentementesacralizado. As situaes de encontros, o comportamento comum, maneiras decomer, de conversar, de posicionar-se diante da me-de-santo e dos irmos-de-santo, todas as atitudes assim como os valores expressos cotidianamente en-contravam-se fundados na tradio religiosa.

    Assim, a obteno das fotos foi guiada tambm por essa percepo que dos batuqueiros. Se registrar algumas situaes corriqueiras era para o grupobem aceito e inclusive incentivado, outras situaes rituais no me era acess-vel fotograf-las. Em algumas casas de batuque de Porto Alegre, o materialritual, assim como os filhos-de-santo que so possudos por seus orixs,2 nopodem ser fotografados ou filmados. um interdito justificado pelas tradiesreligiosas. Em outras palavras, a noo de sagrado do grupo entrelaou-setambm na minha utilizao da cmera fotogrfica, orientando a lente, o tempoe as ocasies indicadas para a sua utilizao.

    Minha primeira tentativa se deu na ocasio de uma festa ritual, um batu-que. A euforia e ao mesmo tempo preocupao da me-de-santo para que tudodesse certo e ficasse bonito, formava para mim o momento ideal de intro-duzir a cmera. A autorizao da me-de-santo para que eu fotografasse oevento imps-me a condio: eu poderia registrar o evento at a chegada doprimeiro orix no mundo. E assim o fiz, integrando a mquina ao ritual, j queeu participava deste, ajudando a receber e servir os convidados para a festa,complementando ambas as funes no ritual.

    Nessa festa, enquadrei as cenas que mais me sensibilizavam daquele gru-po, numa espcie de livre registro daquilo que meus sentidos acusavam comosendo importante naquele momento. Trata-se da mesma estratgia utilizada emcampo at ento, que fora a de convvio e conseqente recusa da situaoartificial de pesquisa e o posterior registro no dirio de campo das situaesque experimentava entre batuqueiros. Para essa forma de insero mediada

    2 No batuque, se diz que algum /est possudo (ou ocupado) por seu orix (divindades afro-brasileiras) quando vivencia corporalmente a experincia ritual da possesso.

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    pelo equipamento tcnico, Satt3 denominou de plano/limite, e eu a cito aqui,considerando esta metodologia sendo estruturada intuitivamente, tecida nas

    malhas do acaso (Satt, 1995, f. 8).Naquele ritual, alguns

    filhos-de-santo fugiam dacmera, no queriam (outalvez queriam) ser fotogra-fados. Parecia-me, s ve-zes, que precisavam de ummomento mais importante

    do que aquele, preparatriodo ritual, ou ento no pre-cisavam ser fotografados,eu que queria t-losregistrados.

    Depois dessa primei-ra vez, os filhos-de-santodaquela casa j sabiam quepoderiam eventualmente

    ver-me com a mquina fo-togrfica. E nas situaesseguintes, eu j ia sendo aospoucos solicitada para foto-grafar dois que se encon-travam, outra pessoa como presente que ofertava

    para o orix, algum junto a um objeto ou a um amigo mais caro, etc. Algumaspessoas foram num crescente ficando vontade com o equipamento.

    Nessa primeira etapa, as fotos que obtive so um resultado do encontroda pesquisadora, da mquina e do grupo, j que este dirigia as fotos que eudeveria registrar.

    Quando voltei ao grupo com as fotos prontas, foi como se estivesseretornando com algo muito indito para eles. Eu mesma no contemplava a

    3 O trabalho dessa pesquisadora versa sobre as imagens do batuque em Porto Alegre e integrainterdisciplinarmente tcnicas de pesquisa antropolgica e recursos de comunicao visual.

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    idia de que eles pouco se viam em fotografias, e elas acabaram sendo um demeus contradons ao grupo. Ao ver tanta satisfao com que se viam nas fotos,

    e ao mesmo tempo a frustrao dos que no apareciam, fui envolvida em com-promissos e obrigaes para as prximas situaes, em que deveria fotograf-los novamente.

    Uma segunda etapa deste trabalho coincidiu tambm com o ritmo e oandamento do trabalho de campo. Depois de alguns meses junto ao grupo,encontrava-me com as questes de trabalho mais definidas, inclusive as obser-vaes em campo gradualmente deixavam de ser to livres, e j se encontra-vam numa fase mais elaborada e, portanto, mais dirigida. Agora, j me sentia

    relativamente tranqila com relao tradio religiosa, j conhecia um poucomelhor os fundamentos batuqueiros e, nessa etapa, usufrua de relativa intimi-dade com aquela famlia-de-santo, fato este que me colocou mais vontadepara inserir o equipamento tambm nos momentos corriqueiros e ordinrios dosbatuqueiros.

    De qualquer formaaqui, muitas vezes, o uso dacmera parecia sem senti-do para o grupo. No enten-

    diam o porqu de meu de-sejo de lhes fotografar se-parando guarnies rituaispara os orixs, preparandocomidas ao redor do fogo,ou mesmo sentados numamesa tomando caf da tar-de. E, de minha parte, nosabia muito bem lhes expli-car que estes eram os meusdados e por que eram im-portantes para mim.

    Havia ainda um outroponto: essas situaes,quando registradas, mostra-riam o que h de comum emsuas vidas.

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    Tratava-se aqui de secomparar com as outras fotos:

    as que registravam os momen-tos de festas, em que tudo etodos brilham, em que estoarrumados, bonitos e ajei-tados, perfumados emaquiados e com os cabelospenteados diferentemente. Nasfestas, os batuqueiros acentu-

    am e reforam os valores es-tticos que comungam entre si,ou seja, importante o exage-ro nas jias e adereos doura-dos, mostrando exuberncia eluxria, estarem bem vestidos,as mulheres fortemente perfu-madas e maquiadas, exibindoseus modelos preparados espe-

    cialmente para aquela ocasio.Alm disso, nas festas o mo-mento de comungarem a far-

    tura que os orixs lhes dispem; momento de desperdcio desperdcio mate-rial e corporal. As relaes so intensificadas tanto pelos encontros dos que hmuito no se vem quanto pelos dilogos e acordos que trocam nessas ocasies.

    Assim, registrar pela lente as ocasies que no eram festas no s apare-cia como sendo sem sentido para os batuqueiros como tambm mostraria arealidade sem tanto enfeite, sem o vigor e a intensidade que tanto comun-

    gam. Foi assim que um pai-de-santo dirigiu-se pesquisadora citada anterior-mente, e que registrara em vdeo algumas imagens de sua casa de batuque,perguntando-lhe cruamente: s isso?, como se estivesse decepcionado por-que naquela gravao no havia nada artificialmente criado nem mesmoiluminao no ambiente alm do episdio tal como havia acontecido. Talvezisso justifique o fato de que, sempre que intentei fotograf-los em seus afazerescomuns, inquiriam-me: Mas tu vai me tirar retrato assim, com esta roupa?Vo pensar que a gente aqui pobre. Ou ento, pediam que eu esperasse um

    pouco, para que se ajeitassem: Pra a que eu vou passar um batonzinho,

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    no vou aparecer com a caralavada. Em situaes de fes-

    tas, para os batuqueiros, h ummotivo de comemorao, umporqu de um registro. As ima-gens de uma festa serofornecidas como um resgate deum momento importante e sig-nificativo na sociabilidadebatuqueira.

    Nesse segundo momentoda pesquisa, o registro das ima-gens batuqueiras em fotos toma-va uma dimenso mais importan-te, medida que constatava, emcampo, a importncia do sentidovisual para aquele grupo.

    A viso entre batuqueirosser um dos primeiros

    identificadores sobre o orixprotetor de cada sujeito. O de-senho do corpo, e especifica-mente da cabea, dir qual orix protege e zela por algum. Ento os batuqueirosidentificaro visualmente essa sagrao dos sujeitos. Ningum, entre batuqueiros, apenas algum, mas sempre se de um orix. Da mesma forma, ser a partirdo sentido visual que os batuqueiros tecero seus comentrios sobre os eventosdos quais participam, sempre cunhando expresses que adjetivam as situaes:a festa estava bonita, o salo estava bem enfeitado, a roupa do pai-de-santo era muito linda, o quarto-de-santo estava farto e assim por diante.

    Na mesma proporo, ser a viso que determinar se um batuqueiro bom batuqueiro ou no, porque se diz no batuque que algum tem boa vi-so quando consegue ler com preciso e clareza as mensagens expressasatravs do jogo de bzios.4

    4 O jogo de bzios o orculo batuqueiro, atravs do qual os orixs se manifestam, predizendo ouorientando a vida dos filhos-de-santo.

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    Uma vez constatada por mim a especificidade desse cdigo sensorial en-tre batuqueiros, o passo seguinte foi considerar a importncia do comporta-

    mento gestual e das posturas corporais expressas naquele grupo. No batuque,comunica-se o tempo todo atravs dos gestos, sendo muitas vezes imposta anecessidade de compreender um olhar lanado por um orix ou mesmo pai-de-santo. Eu adentrava ento, mais uma vez, numa rea em que se fazia necess-ria a incluso de outros mtodos de observao e registro. Surpreendia-mecom a interpenetrao das esferas do sagrado e do cotidiano.

    A expresso da corporalidade nos momentos cotidianos carregada designificados religiosos: o caminho que se percorre ao se entrar numa casa de

    religio, passando pelos espaos hierarquicamente dispostos, a obrigatoriedadede bater cabea (com o corpo estendido no cho) aos orixs, aos pais-de-santo, de beijar as costas das mos, de se curvar diante de algum religiosa ehierarquicamente superior; a adoo de posturas singulares para fazer refei-es; o tremor do corpo e a tomada de postura diferenciada quando possudopor um orix; a dana diferente para cada divindade; o caminhar no salo comps descalos e o andar curvado por entre as divindades. H, enfim, entre os

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    batuqueiros um cdigo corporal que lhes imprime certa especificidade em rela-o a outros grupos religiosos.

    Essa especificidade corporal passei ento a buscar com o olhar da lente.Aqui, como vemos, entro numa busca especfica de registros. Minha intenoera registrar tudo aquilo que no era da ordem do verbal, todos os outros cdi-gos que s o registro visual poderia obter. O batuque, e os momentos entrebatuqueiros, fornecem imagens cuja plasticidade define na cena mesma algunsdos valores do grupo, alguns itens de sua viso (religiosa) de mundo.

    Por outro lado, masainda nesta etapa do traba-

    lho, ao retornar com as fo-tos, observava a confu-so das esferas sagradase cotidianas, expressa naleitura dos batuqueiros so-bre estas. Ao examinar, porexemplo, uma imagem queregistrei de um filho-de-santo cumprimentando ajo-

    elhado e muito reverente-mente sua me-de-santo,um batuqueiro disse-me:este aqui t bem ocupado(possudo), n?, referindo-se postura corporal deseu irmo-de-santo, quepoderia de fato estar ocu-pado, s que eu no tinha

    autorizao para registraros batuqueiros quando pos-sudos por seus orixs, e,

    portanto, o filho-de-santo no fora registrado quando de sua possesso. Elesmesmos no conseguiam definir que momento era aquele que estava registra-do. E da mesma forma, como a possibilidade da possesso entre eles algocorriqueiro, fica-lhes difcil a distino dos momentos.

    Outra situao envolveu um erro no registro fotogrfico e que foi tambm

    interpretado pelos batuqueiros como uma interferncia sagrada.

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    Eu registrara a me-de-santo dentro do quarto-de-santo (o lugar ondemoram os orixs) e portanto numa situao estratgica e perigosamente sa-

    grada. A pouca luminosidade, somada ao fato de que o flash no disparou,resultou numa imagem turvada, em que a figura da me-de-santo apareciadeslocando-se no espao, e a foto registrou o movimento seqencial de vriasfiguras da me-de-santo. A esse erro no registro, os filhos-de-santo no pesta-nejaram. Alguns me advertiram do perigo da situao: os orixs no haviamgostado e haviam interferido na foto. Outros a leram como a prpria obra sa-grada: os orixs haviam dado aquele efeito, como prova de sua existncia.

    A situao que fora, para mim, limitada pelos recursos tcnicos, para os

    batuqueiros no possua outro sentido que no a interferncia sagrada: os orixs,agentes divinos responsveis pelas vidas dos batuqueiros, manifestam suasacralidade mesmo nas mais inesperadas situaes, como nos registros foto-grficos.

    O terceiro momento de meu trabalho consistiu na escritura definitiva dotexto final. Para tal intento, utilizei as fotos intencionalmente, desta vez maisarticuladas e integrando-as aos resultados que comeava a sistematizar pelosescritos.

    As fotos foram, de certa forma, os motivos que me impulsionaram na

    escritura. No sabia como ou por onde comear e minha estratgia foi ento ade suavizar esse esforo de racionalizao e elaborao do trabalho final. Ali-ando ento minha prpria necessidade de visualizar o grupo, antes desubstancializ-lo pela escrita, montei em meu painel uma espcie de exposiodessas fotos, cujo roteiro foi traado em funo dos captulos que planejaraescrever. Assim, compus em blocos de fotografias, as imagens que comporiama escritura de cada captulo. Essas imagens demonstravam, sem dvida algu-ma, muito mais do que eu conseguia explorar. E por isso mesmo sempre foramfonte inspiradora na escritura. Nesse terceiro momento, elas foram para mim a

    forma que encontrei para integrar texto e imagens, j que muito do que estavasendo escrito eram tambm imagens que eu tinha na mente.

    Havia, ainda, muito mais fotos que poderia explorar enquanto estratgiade prolongar o olhar sobre o grupo pela fotografia. Aos poucos fui incorporan-do-as no texto. Outras ficaram guardadas, esperando o momento para entra-rem em cena. O ltimo momento em que trabalhei com as imagens batuqueirasfoi quando da finalizao do texto. Uma vez a escritura findada, era a hora derever todas as fotos e ver onde se adequavam no todo do trabalho. Boa parte

    foi aproveitada, mas mesmo assim muitas ficaram de fora.

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    O resultado foi uma razovel contextualizao visual da esttica social dogrupo, dos seus momentos de estar-juntos, de trajarem suas roupas, de esco-

    lherem seus ornamentos, de comemorarem nos batuques, de cochicharem noouvido, de sorrir e danar quando esto nas festas carnavalescas, enfim, de semostrarem batuqueiros.

    Para finalizar, gostaria ainda de explorar uma situao que foi por mimpensada enquanto limite na obteno das fotografias entre os batuqueiros. Tra-ta-se da proibio religiosa ao registro dos filhos-de-santo possudos por seusorixs. Sempre me via bastante desapontada com o fato de ter que interrompero registro fotogrfico justo num momento, para mim e para os batuqueiros,

    crucial dos batuques: o momento da possesso. Essa proibio religiosa, comoj falei, est alicerada na crena batuqueira de que um filho-de-santo nosabe que possudo por seu orix. Tomar conscincia desta possesso do su-jeito batuqueiro pelo divino , para os batuqueiros, perigoso: no so poucos osrelatos de filhos-de-santo que enlouqueceram, de famlias-de-santo que se de-sagregaram e de um ou outro que morreu, depois que teve esta situao reve-lada. Tomar fotos de um orix ocupando seu filho-de-santo seria um desafiopara o sujeito e sua famlia-de-santo que no poderia ser estabelecido.

    E por muito tempo pensei, com pesar, nessa proibio. Olhava para os

    batuques se desenrolando e lamentava no poder registrar algumas cenas que,julgava, eram importantes e significativas daquele universo religioso.

    Dessa forma, a ausncia dessas cenas, assim como a presena de outrasem meus registros fotogrficos do grupo, me fez pensar melhor sobre estaproibio. Tratava-se, acima de tudo, de um interdito religioso que, se ultrapassa-do, consistiria no registro justamente daquilo que h de mais sagrado para osbatuqueiros: a presena, via possesso, de uma divindade no mundo dos homens.

    Ora, o af de um pesquisador o de ter tudo, ou o mximo de elementospossveis registrados, seja em seu dirio de campo, seja no equipamento que

    carrega consigo. A nsia para que nenhum dado lhe escape das mos esbarrou,em minha situao especfica de pesquisa, com o registro daquilo que era deuma ordem mais do que sociolgica, ou antropolgica: Era da ordem do divino.E no havia discurso, nem racional nem visual, que pudesse captar e registrar,alm do momento aquele que eu atestaria, nico, de experimentao e vivncia,intransfervel e intransmissvel, junto a um orix.

    O sentido desse paradoxo s se esclareceu quando parei para pensarnessa experincia visual junto aos batuqueiros. Dessa forma, acredito ser este

    mais um dos caminhos que experimento intuitivamente.

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    Se o cotidiano batuqueiro encontra-se visivelmente permeado de suasconcepes sagradas, a ponto de que eu mesma pude registr-las fotografica-

    mente nos gestos, nas posturas, nas aglomeraes rituais e ainda, na vivnciabatuqueira festiva e ldica que so por si s sagradas, ento o pice destaexperincia que a presena concreta e materializada do orix via possessode seu filho , apesar da concretude da situao, no cabe na lente fotogrfica,porque todo o resto j coube. Tratava-se, acima de tudo, de esforos e tentati-vas minhas em registrar uma experincia nica e singular dos batuqueiros.Estar na presena dos orixs a forma transcendental dessas religies e aautorizao deste registro significa interromper, bloquear ou mesmo revelar tal

    transcendncia.Estes apontamentos, na medida em que so leituras minhas sobre o grupo,so, sobretudo, experimentaes as quais me permito realizar, uma vez queestou refletindo e tentando dar lgica a uma experincia onde meus prprioscolaboradores-batuqueiros no vem sentido no exerccio racional. A experin-cia com o sagrado batuqueiro e sempre o foram as religies tradicionais da ordem do vivido, e no do pensado. Cabe a ns, antroplogos, atentarmostambm a essas outras linguagens nem sempre expressas verbalmente, comoimportantes pistas para a compreenso de nossos universos de pesquisas.

    Referncia

    SATT, Maria Henriqueta. Circularidades e superfcies: uma leitura das imagensbatuqueiras. Dissertao (Mestrado)Departamento de Multimeios, Institutode Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1995.