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    GT 23 Novos modelos comparativos: investigaes sobre coletivos afro-indgenas

    Ttulo do trabalho: O batuque e a linha cruzada: variaes sobre ossistemas etnolitrgicos afro- brasileiros

    Autor: Edgar Rodrigues Barbosa Neto

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    O batuque e a linha cruzada: variaes sobre os sistemas etnolitrgicos afro-brasileiros

    Edgar Rodrigues Barbosa Neto

    SOA/FAFICH/UFMG

    Nota introdutria:

    Este trabalho corresponde ao primeiro captulo de minha tese de doutorado, defendidaem fevereiro de 2012, no PPGAS do Museu Nacional (Barbosa Neto, 2012). O material

    etnogrfico provm da pesquisa de campo que conduzi, no decorrer dos ltimos cincoanos, junto a trs casas de religio afro-brasileira situadas na cidade de Pelotas, no suldo Rio Grande do Sul. Seria impossvel apresent-las aqui de modo detalhado, e, por isso, fornecerei, no decorrer do texto, apenas aquelas informaes que me parecem maisnecessrias sua compreenso. Todos os termos grifados em itlico so conceitosnativos, os quais sero devidamente explicitados no decorrer do texto.

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    A etnografia sugere que aquilo que se chama, na cidade de Porto Alegre, delinha cruzadaseja a forma atualmente predominante assumida pelas religies de matriz-africana no Rio Grande do Sul (Anjos, 2006; vila, 2011; Bem, 2007; Braga, 2003;Corra, 2006; Kosby, 2009; Oro, 2008; Rodolpho, 1994). Embora a expresso nodisponha, ao que parece, da mesma generalidade que o termobatuque, o estilo ritualque ela descreve encontra-se presente nos mais diferentes contextos etnogrficos. Emminhas anotaes de campo no consta sequer uma nica referncia a ela, mas medeparei com uma expresso rigorosamente anloga.

    O pai-de-santo de uma casa denao cabindaque visitei algumas vezes, filhodo mesmo pai-de-santo de Pai Mano, mencionou, em uma de nossas conversas, aexistncia de umaquimbanda cruzada, a qual, pelo que entendi, seria tambm umalinha cultuada na sua prpria casa1. A quimbanda cruzada, diz ele, quando j se corta

    1Pai Mano de Oxal o pai-de-santo da Sociedade Africana Divino Esprito Santo, filho-de-santo de PaiSandro do Bar, e neto-de-santo de Pai Joo Carlos de Oxal, em cuja casa aprendeu o principal sobre os

    fundamentos da religio . A sua casa, pelolado da nao, cabinda, mas tambm cultua, com nfase

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    realizao. Essa funo de defesa assumida por exu, e que tambm uma posio,reaparece em vrias outras casas, ligando-se, contudo, a outras aes rituais, tal como, por exemplo, feitiaria.

    O exu da umbanda torto , se arrasta , come e bebe diretamente no cho, sema mediao de nenhum suporte culinrio entre ele e a terra. Trata-se de um exu que, por no ter sidoquebrado, mantm o corpo da pessoa, por ocasio da possesso ritual, emuma posio horizontal, muito baixa, um corpo que, pelo seu intervalo mnimo com aterra, suscita a impresso de no ser humano, o que talvez seja corroborado por aquelesque (mais prximos aolado kardecistado espiritismo) dizem ter o exu a forma de umcachorro. Como quer que seja, esse exu da umbanda no um exuerguido, para

    falarmos como Me Rita. Levantar o esprito, torn-lo mais vertical, dar-lhe uma formainteira, quebr-lo, usando para isso o corpo que ele possui.

    O mesmo gesto adotado quando a pessoa ocupada (possuda) pelo seu orix.Imediatamente aps a sua chegada, ele a deixa em uma posio curvada, e ento umasegunda pessoa dirige-se at ela e usa as suas mos para bater vagarosamente nasarticulaes dos braos, eventualmente tambm das pernas, fazendo com que o orixassuma uma postura corporal mais reta. Perguntei a Pai Mano a razo desse gesto, e ele

    me explicou que o seu propsito tirar do santo um pouco da sua fora, pois, como elechega cru, o corpo no agentaria a aproximao . Em outras casas, acrescentou ele, aoinvs de quebrar, as pessoas quando possudas so fortemente amarradas com uma faixaem volta da cintura, o objetivo sendo tambm o de melhor encaixar o orix em cadauma delas.

    O pai-de-santocabinda observa que todas ascasas de nao que conhececultuam aquimbanda de exu. De fato, conheci casas, como a de Me Rita e algumasoutras, onde os orixs no so cultuados, mas no conheci nenhuma casa da qual osexus estivessem ausentes. Contudo, essa sua predominncia, por si s, nada nos dizsobre a natureza da sua prtica ritual, pois aquimbanda de exuno necessariamente amesma quimbanda em cada uma das casas na qual est presente. Esselado de exu, que o caso da maioria dascasas de nao, tem tambm os seus prprioslados. Assim, paravoltarmos ao exemplo anterior, se todo exu, para ser assentado na pedra, deve ser alimentado com sangue, nem todo exu, feito com sangue, , por sua vez,assentadona pedra. Para os exus, a continuidade entre a pedra e o sangue parece menos necessria do

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    que no caso dos orixs, muito embora, mesmo entre esses ltimos, existamsignificativas excees. H orixs que Pai Mano no assenta em pedras, e sim emvultos, os mesmos que Pai Luis, a seu modo, assenta simultaneamente em pedras e emvultos4.

    Esses dois pais-de-santo alimentam com sangue os seus exus, mas nenhum delesfaz uso da pedra em seusassentamentos, os quais, ainda que parecidos por compartilharem dessa ausncia, tornam-se, no entanto, diferentes quanto a uma parte doresto. Os exus de ambos soassentadosem ferramentas e imagens, mas Pai Manodecidiu deixar os seus na mesma casinha em que se encontramassentados, esses sim em pedra, os orixs da rua (o Bar Lod e o Ogum Avag). Pai Luis prefere separ-los em

    casas diferentes, ambas, contudo, situadas na rua, mas com uma boa distncia entre elas.Quando lhe perguntei sobre a razo que o levava a separ-los, ele me disse: e como eu poderia juntar o orix com a cachaa?

    Alm disso, o exu mais importante de Pai Mano, o Tranca-Fr, assentado diretamente na terra, em um buraco ao lado dobal, que o assentamentodos eguns.Ele come na terra, mas diferentemente do exu da umbanda mencionado antes, esse nose limita limpeza ritual, ainda que seja, como diz orgulhosamente Me Michele, um

    exu cru, no-doutrinado, detentor de um caminhar assimtrico e claudicante, um poucotorto, e que sempre, ao ir embora depois de incorporar-se em Pai Mano, deixa o seucorpo deitado sobre o cho. Um espritono-doutrinadono tem sempre a mesmaforma de existncia, e mant-locru pode ser, em certos casos, sinal de grande fora e prestgio. Oexu crude Pai Mano, diz ainda a sua mulher Me Michele, provavelmenteum exu coroado, estabelecendo, com isso, uma relao de equivalncia que pareceinteressantemente destoar daquilo que, em geral, encontramos na literatura, onde esse

    ltimo seria o mais distante possvel daquela sua outra forma como esprito cru. QuandoTranca-Fr se faz visvel para uma pessoa, seja em viglia ou ento em um sonho, a suaaparncia, na maioria das vezes, a de um boi, podendo tambm ser a de um cachorro.Pai Luis talvez entendesse que o seuassentamentofosse umburaco de exu, parecido, porm no idntico, aobal, e que ele prprio teve em uma das casas que morou,desfazendo-o, para nunca mais voltar a faz-lo, assim que se mudou. Mas esse

    4 Pai Luis da Oy o pai-de-santo do Reino de Oy, casa denao que segue, por estelado, o jeje e oijex, mas que tambm dispe, no seu espectro ritual, doslados da umbandae daquimbanda.

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    descrio, no exatamente para refut-la e sim para multiplic-la, observando ainda quea adio, pelo menos aqui, tambm um modo de subtrair, da forma geral, uma parcelada sua identidade. Assim como aquela coexistncia delados no leva necessariamenteum chefe a definir a sua casa como sendo delinha cruzada, ou termo que corresponda auma forma anloga, tambm alinha cruzada, como vimos pela anlise anterior, nocruza sempre, e exatamente da mesma maneira, as diferenteslinhasou lados. Mesmo alinha cruzadatem, portanto, as suas vrias linhas cruzadas7.

    Braga (2003: 9) observa que alinha cruzada, diferentemente da umbanda e do batuque, no dispe de uma estrutura unificada , cada casa podendo apresentar caractersticas prprias e acrescentar elementos simblicos orientais e ciganos ou

    mesmo do Candombl baiano, por exemplo . O autor sugere que esse fato pode estar relacionado com a concepo, j demonstrada por Rodolpho (1994: 36), de que alinhacruzada no seria considerada, pelo menos por alguns chefes, como uma modalidaderitual independente , sendo antes, acrescento eu, uma espcie de estilo plural deconectar, e tambm de separar, os diferenteslados. Posto nesses termos, toda casa seriade linha cruzada, j que, pelo menos naquelas que conheci, sempre havia mais de umlado, ainda que nem todos eles tivessem um peso igual na identificao da casa.

    Pai Mano, por exemplo, define a sua casa pela nfase nanao cabinda, emboraela tambm possua alguns outroslados, os quais, ritualizados separadamente dacabinda, podem, no entanto, se aproximar um pouco dela, seja porque oassentamento do Tranca-Fr encontra-se ao lado daquele dos eguns, sendo ele prprio, desse ponto devista, como um egum, ambos situados na parte dos fundos da casa, seja porque osdemais exus dividem o mesmo espao com os orixs da rua , todosassentadosdentro dacasinha que fica do lado de fora da casa, igualmente situada na sua parte de trs. O

    intervalo entre olado de cabindae o lado de exuparece maior quando estamos nointerior da casa, mais especificamente no pegi, lugar onde estoassentadosos demaisorixs, do que quando estamos na rua, ainda que a rua, nos termos do exemplo acima,tambm tenha as suas prprias separaes. Na casa de Pai Mano, os exus so os seres

    7 A etnografia da umbanda registra o aspecto inumervel dessas linhas. Arthur Ramos, que j havia sedeparado com a expressolinha cruzada, escreveu: So inmeras as linhas. H a linha da Costa, linha deumbanda e de quimbanda (termos estes j de significao translata), linha de Mina, de Cabinda, doCongo, linha de Angola, linha de Omoloc [sic], linha mauruman ou maurumin (novas corrutelas de

    muulmi), linha de Reblo, de Cassange, de Monjolo, de Moambique, linha do Mar, linha das almas,linha cruzada (unio de duas ou mais linhas) etc. (Ramos, 2005: 370). As religies de matriz africana soreligies para as quais h sempre um etc.: uma das tradues grficas do seu estilo politesta.

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    que, sempre localizados do lado de fora da casa, encontram-se, no entanto,simultaneamente prximos dos eguns (dos mortos) e dos orixs (dos deuses), mas node qualquer orix e sim daqueles que, dentre eles, so os mais distantes do parentescode santo, cuja fabricao um dos objetos do ritual de iniciao. Em parte, talvez, por sua ntima associao com os exus, os quais, no por acaso, so tambm chamados deo povo da rua, a rua mostra uma tendncia a encurtar as distncias. A rua cromtica,mas o cromatismo tambm tem mais de umlado, dispondo, pelo menos, de dois deles: odo parentesco e o da feitiaria.

    Poderamos assim tomar a noo delinha cruzada no apenas como umacategoria etnolitrgica , que ela igualmente , mas tambm como um modelo ou uma

    matriz , e aqui sigo a hiptese que Ordep Serra (1995: 43) avanou para o que chamou,no contexto do candombl baiano, de modelo jeje-nag , inseparvel, por sua vez, doque ele, no ttulo jocoso de seu ensaio, denominou de companhia8. Esse autor sugereque preciso distinguir com clareza entre modelo, rito e denominao litrgica , etalvez por isso, por no ter feito essa distino, a etnografia afro-brasileira, acrescentoeu, registra a existncia de casos curiosos, como, por exemplo, quando dson Carneiro,frente aos sessenta e sete terreiros de candombl recenseados em sua pesquisa,

    possivelmente na dcada de 40 do sculo passado, e aos quais se associavam dezessetenaes, prope, por uma expressiva operao de subtrao etnogrfica, reduzi-las aquatro grandes grupos, acrescentando, mais ainda, que aquele dos sudaneses, o que possuiria o maior nmero de casas, se subdividiria, por um lado, em vrias naes(kto, ijx, alakto, muurimim, etc.) e, por outro, no que ele chamou de designaesvazias de sentido (nag, africano, yorub, il-ijx, etc) (1991/1948: 52). O caso que

    8 O ensaio se chama jeje, nag e companhia , e os dois primeiros termos so to importantes quanto oterceiro, que no se refere ao resto, como uma leitura apressada poderia sugerir, mas quilo que faz do

    jeje-nag um modelo rigorosamente indissocivel da variao etnogrfica. bastante curioso que aetnografia afro-brasileira, com excees que, no entanto, fazem juz profunda genialidade de suashipteses (ver, por exemplo, Banaggia, 2008 e Goldman, 2009) dedique a esse texto um eloqentesilncio, eventualmente rompido em uma nota de rodap, escrita naquela pequenssima distncia entre aingenuidade e a m conscincia, na qual Serra apresentado como sendo hoje um dos porta-vozes datradio nag (Capone, 2004: 15). No h o que acrescentar a esse comentrio, exceto as palavras atravsdas quais o prprio Serra explica, de maneira bastante criativa, o sentido que d ao conceito de modelo nocontexto jeje-nag. Neste contexto, modelodesigna uma abstrao que se reporta a correspondnciasinferidas comparativamente entre formas institucionais, procedimentos e esquemas simblicos. Ao falar de modelo, no se postula a invarincia dos processos ou das formas, aponta-se a existncia de um sentidoque interliga as variaes encontradas, um padro que as correlaciona e que permite referi-las a umamatriz comum. Dita matriz no se acha localizada entre os objetos que lhe correspondem, nem constituiseu arqutipo, mas realiza-se neles, na continuidade de sua transao histrica [...] (1995: 40). Jeje e

    nag, acrescenta Serra, so os etnnimos que identificam, por razes de natureza variada e que remetem,em parte, prpria histria, os principais protagonistas da transao , no esquecendo,acrescentemosns, que sempre tem o companhia .

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    o modelo no apenas no se confunde com a denominao litrgica como essa ltimatambm no permite, por si s, qualquer operao de deduo do sistema ritual ecosmolgico de uma casa. Em outras palavras, de um casa no se deduz uma outraapenas pelo fato de ambas praticarem o mesmolado, a saber, por compartilharem de ummesmo etnnimo oucategoria etnolitrgica , expresso que tomo igualmenteemprestada do ensaio de Serra.

    O que varia, entre as casas, a prpria maneira de cruzar e de descruzar oslados, variao presente at mesmo quando um nicolado for o caso de duas casas.Precisamente por isso, parece bastante duvidosa aquela afirmao, feita acima, segundoa qual o batuque e a umbanda disporiam de uma estrutura unificada , pois, pergunto,

    no seria possvel usar para eles o mesmo raciocnio usado para alinha cruzada? Pareceevidente que sim9. As casas de Pai Luis e de Pai Mano seguem o batuque, tendo nele oseu lado provavelmente mais importante, mas da no se segue nenhum tipo deunificao entre elas, o mesmo sendo vlido, alis, para a maioria das casas com asquais tive algum contato. Insisto, portanto, que no se trata de negar que elas faam parte de um mesmo conjunto, ou coletivo, mas sim de encontrar o melhor modo dedescrev-lo por dentro da sua prpria heterogeneidade10.

    Nem todas as casas, do ponto de vista da categoria etnolitrgica , so delinhacruzada, mas possvel que em todas elas, agora na per spectiva da matriz , haja maisde umalinha. O conceito de matriz capta melhor a variao etnogrfica do que, por exemplo, a noo de tipo-ideal utilizada por Corra (2006) naquela que, por outro lado, ainda hoje a melhor e mais completa monografia escrita sobre as religies de matrizafricana no Rio Grande do Sul, e que passo agora a comentar.

    Seguindo a classificao nativa, Corra (2006: 57) distingue trs formas rituaisdentro dessas religies: a Umbanda pura, a Linha-Cruzada e o Batuque puro,

    9 Corra (2006: 31) observava que mesmo na forma chamada Batuque, podem-se encontrar graus demanifestao diversos, desta herana [africana], em templos diversos; ou at tipos de filiados portandobatuqueiridade, diramos, diversa na mesma casa de culto .10 Empresto ao termo coletivo o mesmo sentido dado por Latour, o qual, no presente caso, supe umacomplexa distribuio da agncia entre espritos, humanos, animais e objetos, mas entendo tambm, agorana acepo de Deleuze e Guattari, que um coletivo se define por uma transversalidade, a saber, por ummodo, ou vrios, de fazer a relao entre heterogneos enquanto heterogneos. Leia-se sobre isso o queescreve Anjos (2008: 82): [...] a lgicarizomtica da religiosidade afro-brasileira em lugar de dissolver

    as diferenas conecta o diferente ao diferente deixando as diferenas subsistirem enquanto tal. Umcaboclo permanece diferenciado de um orix mesmo se cultuados no mesmo terreiro e sob o mesmonome prprio (como por exemplo, Ogum) .

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    dedicando, a esse ltimo, a sua obra11. De um modo geral, argumenta ele, as pessoassabem identificar as diferenas entre essas formas, sendo capazes de distinguir quandoesto dentro e quando esto fora de cada uma das trs. Acontece, no entanto, que nodiscurso de algum que se declare pertencer a uma delas podem aparecer expressescaractersticas das outras (2006: 57). Assim, por exemplo,

    se perguntarmos a um batuqueiro sobre Ex, provvel que ele diga que pertence Linha-Cruzada. Entretanto, no s o nome dessa entidade aparececlaramente em certos cnticos para o Bar (orix do Batuque, ambos donosdas encruzilhadas) como s vezes a mesma pessoa denomina certos Bars oracomo Exu ora como Bar: Exu Lan, Bar Lan (2006: 57).

    Mas Corra no retira dessa sua observao o resultado que ela permite, e, nas pginas seguintes, acaba por reduzir essa classificao tripartite a uma tipologia,limitando-se a oferecer uma listagem daqueles itens rituais que parecem ser particularidades de cada uma dessas formas. pouco provvel, como j vimos, que essaclassificao seja a nica disponvel, e, de resto, no seria muito difcil demonstrar queesses itens podem circular entre os vrios tipos , ora conectando-se, ora separando-se, emesmo, eventualmente, desdobrando-se em outros, ao invs de serem privativos a cadaum12 . Este coletivo torna particularmente difcil, e arriscada, a transposio damorfologia para uma tipologia, precisamente porque o aspecto discreto das formas

    derivado de uma ao sobre foras que tanto podem aproximar o que est separado11 Das quatro casas em que Corra (2006: 151) concentra mais a sua pesquisa de campo, duas introduzemalgumas das primeiras complicaes internas a essa classificao. Me Moa da Oxum e Me Ester daIemanj praticavam o chamado Batuque puro, embora a primeira tivesse em sua casa um cong daUmbanda, religio em que atuara quando mais jovem, abandonando-a depois. Entretanto, algumas dasintegrantes do templo faziam ocasionalmente sesses de Umbanda. Por estes motivos, a viso dosacontecimentos [o autor se refere aqui ao ritual fnebre chamado dearissum], por parte da Me Moa,mostra, bem mais do que a outra, influncia esprita-kardecista. No templo da segunda, tambm, haviamuitas pessoas que freqentavam ou eram proprietrias de terreiros de Linha-Cruzada (o que inclui aUmbanda), cuja interpretao dos acontecimentos influenciava os outros, inclusive a chefe. A influnciada Umbanda e sua viso kardecista, alis, em grau maior ou menor, no incomum nos praticantes do

    Batuque [...] . importante notar que Me Moa da Oxum teria se afastado da umbanda por conta de umaexigncia feita pela prpria Oxum, que, segundo consta, avisou que se a Indaia [cabocla que Me Moarecebia pelolado da umbanda] baixasse novamente, ela levaria o cavalo (mataria Me Moa) (Corra,2002: 246). Foi ento que esta me-de-santo entregou a chefia da parte umbandista para uma filha-de-santo (2002: 246). Marlia Kosby, em sua etnografia sobre religies de matriz africana em Pelotas,tambm se deparou com um caso (o nico nesses termos) em que a terreira de Umbanda foi fechada porque o orix do pai-de-santo, que Bar, trancava as incorporaes dos exus. Os filhos-de-santodesta casa [...], com a permisso do pai-de-santo, passaram a freqentar terreiras de Umbanda em outrascasas (Kosby, 2009: 77).12 Variaes internas aos sistemas nativos de classificao j foram observadas em diversos contextos.Para o caso da umbanda, por exemplo, Birman (1985) descreve o quadro no qual consta a conhecidadiviso dessa religio em sete linhas, a cada uma das quais se segue uma nova diviso em mais sete,apenas para, posteriormente, comentar: Mas, de fato, as classificaes variam. O exemplo acima (refere-

    se a esse quadro) no apresenta o exu como um orix da umbanda. E vrias das entidades que a seencontram vinculadas a uma determinada linha vo aparecer ligadas a outras na concepo e na prtica demdiuns diversos (1985: 33).

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    quanto afastar o que est junto. O prprio exemplo da relao entre o Exu e o Bar parece representativo desse movimento simultneo de aproximao e afastamento, evimos que a localizao doassentamentodesses dois seres sobrenaturais, na casa de PaiMano, como uma verso, no plano da arquitetura ritual, do encaixe que Corradistingue no plano dos cantos litrgicos e da estrutura onomstica.

    significativo que Corra, como se antecipasse os limites de sua hiptesetipolgica, proceda multiplicao de cada um dos nomes que designam as trs formas.Assim, a umbanda pode ser chamada tambm de Magia branca, Linha branca,Linha do caboclo ou Caboclo, j o batuque de Nao, Linha-negra ou Magia-negra e a Linha-Cruzada, por fim, de Quimbanda, Linha-negra ou Magia-negra

    (2006: 58, 60, 61). Corra toma esses diferentes nomes como sinnimos de cada umadas trs formas basilares, mas no se pode descartar que, em certos contextos e deacordo com certas posies, que, no entanto, no conseguimos exatamente identificar,eles funcionem como designativos de prticas convergentes. Note-se, por exemplo, quedeve existir pelo menos uma perspectiva a partir da qual o batuque e alinha cruzada sejam tomados como equivalentes, j que, pelo que se pode notar acima, um ou doistermos (Linha-negra ou Magia-negra) podem ser usados para designar a ambos.

    Aquilo que na perspectiva de umlado est separado, reunido quando passamos para a perspectiva de um outro. provvel que essa rotao de perspectiva esteja relacionadacom a presena, em si prpria muito diferente, do sacrifcio e, portanto, do sangue ritualnos lados do batuque e dalinha cruzada, ausente da Magia branca ou da Linha branca .

    Mesmo nesse ltimo caso, contudo, a separao, absoluta em um momento,torna-se relativa em outro. Recordo-me de um relato que me foi feito a respeito de uma

    casa na qual no se praticava o sacrifcio de animais, e onde os exus, embora sem a presena do sangue, eram cultuados em cerimnias fechadas para a maioria das pessoasque participavam apenas na condio de assistentes. Ocaciquedessa terreira, na qualat ento somente se praticava olado de umbanda, deparou-se com uma grave doenaentre um de seus familiares mais prximos, e entendeu que deveriamatar para um dosexus, provavelmente o seu, como uma maneira de tentar salvar essa pessoa. Esse ritual,em outroslados, talvez ganhe o nome detroca de sade, que tanto pode ser seca,

    dependendo do estgio em que se encontra a doena, quanto sacrificial. Nesse ltimocaso, o ritual chamado de troca porque, como se diz, o animal vai para que a pessoa

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    fique . Alguns, contudo, preferem no derramar sangue quando a doena est muitoavanada, pois o seu efeito, tendo em vista a fragilidade em que se encontra o doente, pode ser o contrrio daquele que se quer obter. O esprito poderia, por exemplo, seaproximar demasiadamente da pessoa. A adoo do sacrifcio, ainda que circunstancial,foi, no entanto, o suficiente para que uma grande briga se estabelecesse naquela terreira,e cujo resultado foi a sada de muitos filhos que at ento erammdiunsassduos dacorrente. A aproximao, necessria, no plano ritual, para que se tente a cura, emboracontendo os seus prprios riscos, torna-se, em outro, motivo poderoso para umaseparao.

    Alm disso, e atendo-nos, ainda aqui, apenas descrio que Corra nos

    fornece, a prprialinha cruzada(que rene na mesma casa, embora separadamente,diversoslados) conteria em seu interior alguns templos, raros, que s trabalham comexus e pombagiras, sem caboclos, pretos-velhos e orixs (2006: 61). Me Rita, cujacasa talvez corresponda a um desses templos raros , teria, no entanto, algumadificuldade para situar a sua prtica no interior dalinha cruzada, pois a ausncia dosorixs em seu culto faz dele algo diferente, ainda que a sua casa disponha, a seu modo,de pelo menos trslados, a saber, o dos exus, o da suavirada para a bruxariae o dos

    eguns (sobre esse tema davirada para a bruxaria, ver Barbosa Neto, 2012, cap. 5).Recorde-se que Me Rita continua, por sua vez, alimentando os orixs na casa de suatia, que, embora seja sua filha pelo seulado de exu, o qual inclui o sacrifcio de animais,mantm a especificidade de sua prpria casa, servindo os orixs pelolado da umbanda,isto , oferecendo-lhes apenascomidas secas, elidindo, nesse caso, a mediao dosangue.

    Aquilo que para Corra seria provavelmente umlado da linha cruzada, para

    Me Rita olado de outras formas, como, segundo vimos, a quimbanda e a magia decatimb. Acrescente-se novamente que o fato de duas ou mais casas compartilharem domesmo panteo no assegura que os seus respectivos chefes as vejam como iguais.Tudo depende do modo como, em cada casa, os humanos e os deuses se fazemmutuamente e no apenas da ubiqidade desse seres e/ou de sua coexistncia, at porque, mesmo entre aqueles que so cticos quanto umbanda, como o casode PaiMano, h um espacinho para ela.

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    Um depoimento colhido por Corra fornece uma verso bastante expressiva paraesse ceticismo em relao umbanda. Terreira de Umbanda, na verdade, faz aressum(culto aos mortos) porque ningum me convence que caboclo no egum (2006: 64).Assim, o ritual que uns talvez faam pelolado da Magia branca ou da Linha branca ,e que vem como distante da Magia-negra ou da Linha-negra , precisamente o ritualno qual, pelolado desses outros, so cultuados os eguns, um ritual que, de resto, bastante pesadoe cheio de perigos, constituindo-se, por isso, em um espao propcio prtica da feitiaria.

    Uma interpretao reversa desse comentrio ctico permite outra rotao. Se ocaboclo de uns o egum de outros porque olado de umbanda dos primeiros seria

    apenas uma parte dolado dos segundos, isto , do batuque e dalinha cruzada. Odepoimento anterior parece importante no somente por sua explicao a respeito doafastamento em relao umbanda, mas tambm por demonstrar que esse afastamentono absoluto, tendo em vista que a umbanda, desde que transformada em culto aosmortos, teria um lugar dentro do prprio batuque e dalinha cruzada.

    A no-coincidncia presente na observao acima uma das muitas com asquais pode se deparar o pesquisador em sua experincia com esse coletivo. A questo,

    como sempre, saber qual o tratamento etnogrfico mais adequado que se deve conferir a ela. Corra entendeu que se poderia resolver o problema pela adoo do conceito detipo-ideal, e, orientado pelo modo de raciocnio indutivo implicado nele, atribuiu asdivergncias entre uma parte das informaes dadas por chefes de casas diferentes existncia de contradies [nas] definies internas do grupo , fato que lhe permitiuabstra-las em favor daquilo que lhe pareceu ser um ncleo comum de conhecimentos,dominado por todos e em torno do qual a identidade batuqueira construda (2006:

    28). claro, como venho insistindo, que um ncleo comum (que eu, quanto a mim, preferi definir por meio do conceito menos unitrio de matriz) deve existir, mas poderemos abstrair, em nome de uma generalidade ideal, as tais contradies [nas]definies internas do grupo ?

    O problema com esse conceito de tipo-ideal, pelo menos no modo como Corraenuncia o seu uso, que para ele dar conta das semelhanas precisa totaliz-las pelo pertencimento a uma mesma categoria, como, por exemplo, comunidade batuqueira ,identidade batuqueira , etc., as quais, em certo plano da anlise, esto cor retas, mas, em

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    outro, parecem gerar a inconveniente impresso de estarmos diante de um coletivo cujasrelaes internas parecem mais unitrias do que de fato so. Corra, no entanto,reconhece e descreve a diversidade existente dentro dobatuque, mas, ao mesmo tempo,recorre a um modelo tpico-ideal propositalmente maniquesta, para depois, a partir dele, voltar concretude , s que essa volta, por sua vez, parece contida pelo fato deque, nessa construo, o enfoque termina por recair sobre aquilo que ele define como o batuqueiro mais ortodoxo (2006: 31). Quem quer que tenha tido algum tipo deexperincia com esse coletivo sabe muito bem que dificilmente algum chefe considerara sua casa como menos ortodoxa (o termo, de qualquer modo, no bom) doqueoutras. Quais seriam osbatuqueiros menos ortodoxos que ficariam de fora do modelotpico-ideal ? V-se, portanto, a natureza da dificuldade. No h uma posio a partir daqual se possa deduzir o conjunto. O que estou querendo dizer, enfim, que o tipo-idealtende a se encarnar em um tipo-real, o qual, por no existir como um tipo, s podemesmo ser idealizado, deixando de fora o menos ortodoxo , isto , o prprio real.

    Motta (2006) tambm recorreu a essa noo de tipo-ideal para organizar osistema de classificao das religies afro-recifenses , e o que se observa a ocorrnciade uma dificuldade anloga quela de Corra, que ambos tentam resolver insistindo,

    com certa freqncia, na idia de que, palavras de Motta, no existe a Umbanda, pormmuitas umbandas, com grande diversidade de crenas e rituais (2006: 25)13. Diantedisso, devemos perguntar: por que ento a opo recai sobre uma unidade abstrata e nosobre essa diversidade real, isto , como seria esse sistema de classificao se, aocontrrio de idealizar tipos, realizssemos terica e etnograficamente a variedade com aqual nos deparamos? Mas devemos, sobretudo, fazer a seguinte pergunta: por que aUmbanda para existir no poderia ser internamente atravessada por umbandas comletras minsculas? A umbanda s pode existir se for sempre a mesma, com maiscula eno singular? Esse talvez seja um problema recorrente em umlado, que tambm tem assuas variaes, da antropologia das religies de matriz africana, a saber, o uso de uma

    13 Uma idia em tudo parecida com essa, formulada por Joclio Santos (apud Serra, 1995: 40), foiinteressantemente questionada por Ordep Serra nesse seu ensaio j citado. Em sua crtica de uma crtica ,ele se pergunta: o candombl da Bahia existe? . E ilustra a natureza de sua divergncia comumhipottico e eloqente exemplo. Imagine-se um estudioso a dizer: H muitas igrejas crists, e elas noso, de modo nenhum idnticas; portanto, no h cristianismo. Haver, talvez, cristianismos; mas por causa da pluralidade dessas igrejas e da dinmica sociocultural em que todas se inserem, cada uma delas um verdadeiro cristianismo [...] Mas continuo a crer que o candombl da Bahia existe. Alis, foi com

    esta convico que me decidi a pesquis-lo, embora seja mais ctico do que o colega: no acredito de jeitonenhum que haja uma uniformidade nas crenas, prticas rituais, etc., nos terreiros de origem banto, jeje,nag ou ijex [...] (Serra, 1995: 41).

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    aqui15. O que no fica claro na argumentao de Corra como essa auto-excluso(duplo simblico de uma excluso bastante real, embora, ao que tudo indica, cada vezmais eficazmente combatida pelosbatuqueiros) se relaciona com o fato de o Batuqueestar inserido profundamente no espao scio-cultural da sociedade riograndense comoum todo (2006: 35), segundo se pode ver, por exemplo, pelo compartilhamento de umcalendrio ritual com a religio catlica, etc. Me Ester, com quem Corra conviveudurante muitos anos, dizia-se, fenmeno comum entre as religies de matriz africana,que era batuqueira, mas catlica tambm. Pois eu no fui batizada? E no fuicrismada? E no vou missa? Sou catlica, sim! E Corra notava, em uma observaoespecialmente profunda, que Me Ester considerava o ritual catlico como umalinha a linha catlica, definindo a sua relao com o catolicismo pela concepo prpria dasreligies afro- brasileiras, em que modalidades rituais diversas tm tal denominao(2006: 72)16. A linha cruzadatransforma emlinha, para poder cruz-la, at mesmoaquelas que, vistas por certo ngulo, parecem separadas pelo intervalo entrebatuqueiro e no-batuqueiro17 . V-se novamente aonde quero chegar.

    Uma oposio to grande como essa entrebatuqueiro e no-batuqueiro,necessria sua hiptese de uma comunidade batuqueira , e seguramente acionada

    pelas prprias pessoas em contextos polticos e jurdicos onde a religio alvo dealguma perseguio, corre o risco, em outros contextos, de deixar de lado a variao quefaz com que umbatuqueirono seja idntico a outrobatuqueiro. Por outro lado, o fatode que osbatuqueirospossam se identificar, em muitas circunstncias, como praticantesde uma mesma religio no impede que, entre eles, existam aqueles que, na opinio dealguns, estariam um pouco mais distantes do que prximos. Lembro que Pai Luiscostumava dizer que as pessoas que no tm um vnculo inicitico com oafricanismo so, muitas vezes, mais assduas aos rituais do que aquelas que o possuem. claro que,num certo sentido, todos esto dentro, mas h vrias maneiras pelas quais algum pode

    15 Ver sobre isso os trabalhos de Anjos (2006, 2008, 2009), vila (2011) e Leistner (2009).16 Bastide, em seu estudo sobre o sincretismo catlico-fetichista , conheceu a me-pequena de umantigo santurio gege, atualmente desaparecido, e que havia entrado para um terreiro angola , que lhedisse que o esprito de Ians e o de Santa Brbara so absolutamente o mesmo esprito , mas com nomesdiferentes conforme as seitas . E ele ento comenta: Aqui, isso importante, o Catolicismo considerado no como uma religio totalmente diversa das outras religies africanas mas, de certo modo,como uma nao, um tipo de cultura tribal, tnica (Bastide, 1983: 178).17 Lembro aqui do que escreveu Mott (1976: 1) a partir de sua etnografia sobre a umbanda na cidade deMarlia. Na poca [entre 1966 e 1967], era a nica japonesa que freqentava terreiros comcerta

    assiduidade e no raras vezes, recebi convites de chefes de terreiros para que desenvolvesse amediunidade, para o terreiro poder receber a linha dos japoneses ou a linha de Buda, queasseguravam ser a minha linha .

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    estar mais dentro do que outros. O problema novamente o mesmo: como incluir nadescrio das semelhanas a proliferao das diferenas, as quais, por sua vez, impedema primeira de se transformar em uma totalidade (ou unidade) acima das casas. isso quefornece no-coincidncia das informaes um aspecto etnograficamente positivo. No se trata, portanto, de uma simples contradio nas definies internas ao grupo ,mas da dificuldade de usar a noo de grupo para descrever a relao entre as diferentescasas de religio, que sempre, foi o que sustentei desde o incio, como uma relaoque cada casa mantm com o virtual que, contido nela, igualmente a contm,atualizando-se, contudo, na variao de que cada outra casa seria uma expresso. Emminha casa, me dizia um pai-de-santo, os exus s comem carne cozida , precisamente porque, era o implcito do comentrio, eles podem com-la crua ou mesmo podre,sendo, nesse ltimo caso, ainda um exu, mas de umoutro lado. Ele come tudo, mas nemsempre ao mesmo tempo e num nico lugar.

    No h o que dizer quanto quela herana tradicional africana exceto quedevemos incorporar teoricamente a ela, como um fato que a constitui em suacomplexidade, a prpria multiplicidade para a qual venho insistentemente chamando aateno, ao invs de, por exemplo, diante de uma no-coincidncia a respeito do que se

    entende, em dois lugares diferentes, comonag, concluir, como fez Dantas (1988), queestaramos diante de uma tradio inventada e no, segundo o que penso, de umatradio inventiva. O politesmo tambm a forma, e a fora, dessa herana18.

    Corra sugere que s diferentes formas estaria associada uma distribuiodesigual da fora ritual ou doax. Assim, por exemplo, os praticantes de todas asmodalidades consideram as outras como legtimas, embora entendam que o Batuque mais forte (eficaz) ritualmente do que a Linha-Cruzada e esta mais do que a Umbanda

    pura (2006: 30). Ocorre que mais forte ou menos forte , como era de se esperar,varia muito conforme olado em que se est, da mesma maneira, conforme veremos aseguir, que a maior ou menor pureza(termo que Pai Mano s vezes utiliza), ou a maior ou menor mistura, em si mesmas, no do garantias a ningum. na experincia que sedescobre a fora da qual dispem um chefe e a sua casa.

    18 Desconcertar -se pela descoberta de um flagrante desacordo quanto composio dessa herana [a

    nag] africana [...] em dois Estados nordestinos vizinhos (Dantas, 1988: 25, 26) novamente uma precipitao metafsica resultante de uma confuso entre duas ontologias que operam com base em procedimentos bem diferentes em seus modos de composio de mundos.

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    O batuque no mais forte do que alinha cruzadaporque o batuque, e, deresto, pouco provvel que algum dalinha cruzadapossa pensar que, apenas pelo fatode ser dalinha cruzada, seja mais fraco do que uma pessoa do batuque. Se fosse assim,e no creio que seja, seria como estabelecer, de antemo, quem tem mais e quem temmenos, consolidando em classes fixas a distribuio doax. isso precisamente o queno acontece. Me Rita achava que os orixs eram uma bobagem , e no passava pelasua cabea imaginar que os seus exus e os seus eguns pudessem ser mais fracos do queeles, exus que, no entanto, ela muitas vezes chamava de orixs19.

    fcil notar o que se perde ao traduzir a morfologia dessas religies para umatipologia. As formas no so tipos porque so composies de foras e, como tais,

    podem sempre deslizar, de maneiras muito variadas e s vezes quase imperceptveis, para umlado e para o outro. Cada casa, e mais amplamente cadalado ao qual ela seencontra genealogicamente conectada, seria como um ponto de condensao de foras,e as suas relaes de diferena e de identidade com outras casas e seus respectivoslados seriam como relaes de aproximao e afastamento com essas foras. Oax e osespritos que o distribuem, e que s vezes tambm o capturam, tm implicados em siuma importante chave de descrio da sociocosmologia afro-brasileira.

    Mas Corra, por ser um brilhante etngrafo e pela sua prolongada convivnciade vinte anos com o povo de religio, oferece-nos a oportunidade de encontrar, na suaetnografia, os melhores desmentidos ao uso por ele sugerido do modelo tpico-idealcomo empiricamente fundado sobreo batuqueiro mais ortodoxo . Ele observa aocorrncia de uma diferenciao interna aobatuque quando constata, pela aquisio denovos elementos , uma reelaborao constante, porm lenta, do ritual (2006: 69).

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    Em situaes especficas, essa diferenciao entre o forte e o fraco pode conter a explicao para a passagem de umladoa outro, sem, contudo, supor a sua excluso, o que sugere a presena de um aspectogradativo e potencialmente reversvel para essa relao. o caso, por exemplo, da j referida casa deYatemin na qual Opipari (2009) conduziu uma parte da sua pesquisa. Marcelo, og suspenso na casa deYatemin, explica como essas duas modalidades de culto integram-se na Casa: verdade, esta Casa veioda umbanda, por razes que, como eu poderia dizer... Estruturas da Casa ligadas s condies deexecuo dos trabalhos... Enfim, ela precisava de mais fora, mais apoio, mais estrutura e foi que foi preciso criar o candombl. Ela nasceu na umbanda e continua hoje no candombl e na umbanda. Ocandombl d uma fora, uma estrutura Casa, para desenvolver os trabalhos, esta a verdade. Todos ossantos assentados, todos os assentamentos da Casa, toda a segurana da Casa, toda sua fora est fundadano candombl. A umbanda tem seus fundamentos, mas a gente chega num ponto em que isso se tornafrgil e fraco, no ? (2009: 173). Em minha pesquisa de campo, conheci uma mdium que me disseacreditar mais nos trabalhos de umbanda do que naqueles que se fazem pelolado da nao: estes, dizia

    ela, so caros, levam diversos objetos, um monte de comida, e os orixs gostam de coisas mais simples,no gostam do luxo . Mas isso nunca a impediu de fazer trabalhos pela nao, quando, claro, entendia queeram necessrios.

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    porque seria muito mais complicado e difcil aprender os fundamentosdos doislados,oque, como vimos, acaba, com medidas diferentes, tambm acontecendo. Parece aindamuito relativo o menor tempo dedicado iniciao, pois a pessoa, de qualquer modo, precisar se iniciar pelolado do batuquee, ao menos de acordo com os meus materiais,o seu aprontamentoritual (a concluso de seus vrios ritos iniciticos) no maisrpido do que se fosse numa casa debatuque puro, que, alis, nunca conheci.

    Detalhes quase imperceptveis para um observador menos atento, como olascado na boca daquartinha do orix Bar, a mudana em algum ingrediente naculinria dos deuses, etc., no raro acontecendo que o mesmo [detalhe] seja atribudo por pessoas diferentes [...] a lados diferentes , leva Corra a graduar o contedo

    etnogrfico da identidade batuqueira , exigindo-lhe a introduo da noo maismatizada de semi-homogeneidade (2006: 51). Todas essas pequenas diferenas, quepara uma viso de fora [...] podem parecer insignificantes (2006: 51), fazem, noentanto, grandes diferenas, pois, como costuma dizer o povo da religio, tudo est nodetalhe , a saber, tanto aquilo que aproxima quanto o que afasta oslados. Corra parecesupor que essa semi-homogeneidade seja o resultado de fenmenos recentes, em simesmos bastante significativos, como o crescimento acelerado do nmero de tem plos e

    de filiados e a progressiva perda de autoridade dos chefes sobre estes (2006: 51). Umaobservao feita pelo falecidotamboreiro(o responsvel pela percusso dos tamboresrituais) Donga da Iemanj serve de apoio para essa sua hiptese.

    Naquele tempo, ningum se visitava: quem era de oi era de oi; quem era de jex era de jex. Ai que algum se atrevesse a ir em outra casa sem pedir licena para a me (de santo)! Ah, entrava na vara! (refere-se ao ax-de-varas , surraritual que o filiado pode sofrer). Depois que os lados foram se entreverando edeu nessa porcaria que est a. Ningum mais tem fundamento (conhecimento),misturam uma coisa com a outra [...] (2006: 52).

    O que o tamboreiro est dizendo no que antigamente a homogeneidadefosse maior e sim que a mistura entre oslados era menor, e isso porque ningum sevisitava sem a permisso da me-de-santo, sob pena de, na hiptese contrria, ser ritualmente punido por ela. Pai Luis costuma dizer um pouco o contrrio, e lamenta profundamente que hoje ningum mais esteja interessado em aprender com os outros,quando antes era comum que os pais-de-santo trocassem entre si os seus saberes rituais,ainda que ele tambm no goste que seus filhos-de-santo fiquem andando de uma casa

    para a outra sem a sua permisso. Como quer que seja, tanto Donga da Iemanj quantoPai Luis tm, obviamente, razo. Misturas indevidas e separaes excessivas so, hoje

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    como antes, motivos para muitas reclamaes e acusaes. O povo de religio muitodesunido , ouve-se de um lado, ou ento, grita-se de outro, aquele chefe no tem raiz,mistura tudo . Quando se reclama do afastamento, pode-se sempre acrescentar que antesa troca era maior, e vice-versa, como se essa diferena temporal invertida demonstrasseque a relao entre a distncia e a proximidade, questo quecruza esse coletivo emvrios nveis, no dispusesse de um padro unitrio de medio intervalar. Nodevemos, contudo, subestimar possveis modificaes ocorridas mais recentementenessas religies, dentre as quais, como destaca Corra, a mais importante talvez seja oaumento exponencial do nmero de casas, cujo resultado seria, de um lado, a ampliaodo espao ritual de circulao das pessoas, e, de outro, uma facilidade para trocar dechefe com maior freqncia , dois fenmenos que levam esse autor a dizer que estasvisitas e trocas permitem a [...] adoo de inovaes pelos filiados mais jovens , osquais as introduzem em suas prprias casas quando chegam a chefes (2006: 51). Acompreenso das razes que explicariam essas provveis mudanas histricas permanece em aberto.

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