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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO MARCOS JOSÉ MARTINS ARAUJO O BATUQUE E O MARABAIXO PROTESTANTE. PANORAMA MUSICAL DO QUILOMBO DO MEL DA PEDREIRA SÃO PAULO 2016

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

MARCOS JOSÉ MARTINS ARAUJO

O BATUQUE E O MARABAIXO PROTESTANTE. PANORAMA MUSICAL DO

QUILOMBO DO MEL DA PEDREIRA

SÃO PAULO

2016

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MARCOS JOSÉ MARTINS ARAUJO

O BATUQUE E O MARABAIXO PROTESTANTE. PANORAMA MUSICAL DO

QUILOMBO DO MEL DA PEDREIRA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Ciências da Religião da

Universidade Presbiteriana Mackenzie como

requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre

em Ciências da Religião

Orientador: Prof. Dr. João Baptista Borges Pereira

SÃO PAULO

2016

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A663b Araújo, Marcos José Martins O batuque e o marabaixo protestante: panorama musical do

Quilombo do Mel da Pedreira / Marcos José Martins Araújo – 2016.

148 f.: il ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2016. Orientador: Prof. Dr. João Baptista Borges Pereira Bibliografia: f. 146-148

1. Religião 2. Quilombo 3. Música 4. Etnicidade 5. Identidade I. Título II. Quilombo do Mel da Pedreira LC BX9042.B66

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Dedico esta pesquisa primeiramente a Deus a

quem reputo ser a fonte de toda inspiração, toda

sabedoria e todo conhecimento. “Ó

profundidade das riquezas, tanto da

sabedoria, como da ciência de Deus! Quão

insondáveis são os seus juízos, e quão

inescrutáveis os seus caminhos! Por que

quem compreendeu a mente do Senhor? Ou

quem foi seu conselheiro? Ou quem lhe deu

primeiro a ele, para que lhe seja

recompensado? Porque dele e por ele, e para

ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele

eternamente. Amém. ” Romanos 11:33-36

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Agradecimentos

Agradeço primeiramente a Deus provedor desta oportunidade ímpar, ao excelente

Corpo Docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da

Universidade Presbiteriana Mackenzie, aos coordenadores Prof. Dr. Rodrigo Franklin

de Sousa e Prof. Dr. Ricardo Bitun e, especialmente meu orientador Prof. Dr. João

Batista Borges Pereira pelos imensuráveis ensinamentos, por ser um grande mestre

que faz com que seus orientandos não se enfastiem do saber e do querer aprender,

e por ser acima de tudo um ser humano muito generoso.

Ao amigo e reverendo Prof. Dr. Antonio Maspoli de Araujo Gomes por me apresentar

o Quilombo do Mel da Pedreira, por ser o meu primeiro incentivador para a pesquisa

e um grande companheiro de visitas e investigações. Muito obrigado também por seus

ensinamentos, por sua amizade e por ter aberto a porta desse lindo caminho para

mim. Que Deus o recompense sobre medida.

Ao amigo-irmão César Vallim Toledo por todo apoio e por sonhar juntamente comigo

com esta pesquisa. Por todo apoio e incentivo, pelas orações, pelo ombro amigo,

pelos conselhos e pela presença sempre marcante em todos os momentos

importantes, principalmente os mais difíceis.

A minha família, aos meus pais Ieda e Alcides pelo irrestrito encorajamento, a minha

querida esposa Denise por toda dedicação, compreensão, por me alentar e

entusiasmar em todo tempo, mesmo nos momentos em que a fadiga da pesquisa e

todos os afazeres profissionais exauriam minha energia. Aos meus lindos filhos Lucas

e Matheus por todo carinho e amor que manifestaram sobretudo nas minhas

ausências por conta das visitas de campo.

Meu especial agradecimento a toda a comunidade do quilombo do Mel da Pedreira

por me receber tão abertamente e me fazer sentir parte do grupo em todos os

inenarráveis dias que compartilhamos experiências e, dedico também este trabalho a

vocês. Agradeço o Sr. Alexandre, o Sr. Benedito, todos os líderes da comunidade,

músicos, cantores, compositores, Pr. Osvaldino e família pela acolhida tão carinhosa

em sua casa e ao grande amigo Zé Miguel. Todos vocês contribuíram

desmedidamente sobre este trabalho!

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“Concentrando-nos apenas nesses três: ritmo,

melodia e harmonia, é fato, hoje indiscutível e

cientificamente experimentado, que cada um desses

elementos tem ação (ou influência) preponderante

sobre parte específica do organismo humano: o

ritmo sobre os músculos; a melodia sobre as

emoções e a harmonia sobre o intelecto”

Parcival Modolo

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Resumo

Este trabalho analisa a influência da música no contexto social e no culto da

comunidade étnica presbiteriana do Mel da Pedreira. Compara a música do culto

quilombola com a música das festas tradicionais africanas dos quilombos da região, o

Batuque e o Marabaixo, analisando no repertório litúrgico por meio de pesquisas de

observação, audição e entrevistas, as origens culturais presentes nas músicas

executadas na comunidade através dos quatro pilares da música: melodia, harmonia,

ritmo e hinódia, no intuito de contribuir com o registro da identidade quilombola. O que

se encontrou é a música produto da convergência de culturas amalgamadas entre o

ritmo afro-brasileiro, o canto sertanejo oriundo do Brasil rural e a construção

harmônica popular brasileira que induzem efetivamente o comportamento da

comunidade no culto, em todas as suas manifestações culturais e artísticas e que

refletem na rotina da comunidade.

Palavras-chave: Quilombo. Música. Etnicidade. Religião. Identidade.

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Abstract

This work analyzes the influence of music in the social context and in the worship of

the Presbyterian ethnic community Mel da Pedreira. Compares the quilombo worship

music with music of African traditional festivals of quilombos in the region, Batuque

and Marabaixo, analyzing the liturgical repertoire through research observation,

listening and interviews, cultural gifts origins in running community music through four

pillars of music: melody, harmony, rhythm and hymnody, in order to contribute to the

record of the quilombo identity. What we found is the music product convergence

amalgamated cultures between the african - brazilian rhythm, the sertaneja music from

the building harmonious rural Brazil and Brazilian popular that effectively induce

community behavior in worship, in all its cultural and artistic events and reflecting on

community routine.

Key-words: Quilombo. Music. Ethnicity. Religion. Identity.

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SUMÁRIO

Introdução 11

1. A Comunidade do Mel da Pedreira 20

1.1 Localização 20

1.2 Os primórdios 28

1.3 Manutenção Financeira 35

1.4 A Rotina Diária 37

1.5 O Protestantismo no Quilombo do Mel 41

1.6 O reconhecimento como Quilombolas e a Titulação das Terras 51

2. O Batuque e o Marabaixo 54

2.1.1 O Marabaixo 57

2.1.2 Os Símbolos do Marabaixo 61

2.1.3 Os Instrumentos 63

2.1.4 Tocadores e Cantores 66

2.1.5 A Estrutura Poética dos versos e o “Ladrão” de Marabaixo 67

2.1.6 A Estrutura Rítmica do Marabaixo 69

2.1.7 Outras Características Musicais 69

2.2.1 O Batuque 71

2.2.2 O Rito Religioso do Batuque 73

2.2.3 A Comida 74

2.2.4 O Batuque Festivo 74

2.2.5 A Música Vocal do Batuque Amapaense 75

2.2.6 Características Rítmicas do Batuque 77

2.3 Diferenças entre Batuque e Marabaixo 78

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3. A História Musical do Quilombo do Mel da Pedreira 80

3.1 Breve Contextualização da Música Evangélica Brasileira 80

3.2 A Primeira Fase Musical: Festas de Batuque, Marabaixo, Rituais de Pajelança e

Influência do Rádio 85

3.3 A Segunda Fase: A Música do Quilombo do Mel após a Conversão ao

Protestantismo 91

3.3.1 A Música Gospel no Quilombo 104

3.4 A fase musical atual: A Reinserção do Batuque e do Marabaixo no Quilombo do

Mel da Pedreira 105

3.5 O Batuque e o Marabaixo do Mel da Pedreira 108

3.5.1 Conteúdo Poético das Canções de Batuque e Marabaixo do Quilombo do Mel

da Pedreira 108

3.5.2 Estrutura Melódica das Canções de Marabaixo e Batuque do Quilombo do Mel

da Pedreira 109

3.5.3 Constituição Harmônica das Canções de Marabaixo e Batuque do Mel da

Pedreira 130

3.5.4 Instrumentos Utilizados no Batuque e no Marabaixo do Quilombo do Mel da

Pedreira 131

3.6 O Departamento de Música da Congregação Presbiteriana do Quilombo do Mel

da Pedreira 131

3.7 A Organização Cúltica do Mel da Pedreira 134

3.8 A Identidade Protestante do Quilombo do Mel da Pedreira 136

Conclusão 143

Bibliografia 146

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INTRODUÇÃO

A comunidade do Mel da Pedreira é um lugar encantador. Está situada no

estado do Amapá, aproximadamente a 30 km de distância da capital do estado,

Macapá. Entre as 138 comunidades de quilombolas identificadas no estado, apenas

04 delas tem a titulação outorgada pelo Governo Federal do Brasil, entre elas a

comunidade do Mel da Pedreira, recebida em 2007. Com paisagens e natureza

exuberantes, ocupa uma área de 2.199,4570 ha.

O ritmo de vida deste grupo é muito diferente das práxis metropolitanas. Ir ao

Mel é como voltar no tempo e deixar-se libertar da alucinada organização social das

grandes cidades com seu ritmo frenético e quase autodestrutivo de viver. Um lugar

cujo hino emblemático que traduz um conceito de vida e faz com que a comunidade

se sinta orgulhosa de sua forma de ser é “Vida boa”, música diuturnamente

cantarolada pelas pessoas que vivem na comunidade e também por todas aquelas

pessoas que já viveram por lá ou que são descendentes de outros que lá viveram. A

música poeticamente retrata de forma saudosa a rotina dos quilombolas, já que Zé

Miguel, músico e compositor desta canção já não vive na comunidade, trocou o Mel

pela capital Macapá “... a vida aqui é assim bem devagar... precisa mais nada não

“pra” atrapalhar... nós não tem nem que fazer planos... e assim vão passando os

anos... Eita! Que vida boa!”.

Não debalde, usamos a música como maneira de expressar a maneira como

vivem as pessoas da comunidade, também e principalmente, que uma comunidade

tão musical (por todos os lados é possível encontrar gente desde a mais tenra idade

aos mais velhos cantando, batucando e dançando) quanto essa deveria ser estudada

a partir do prisma da música, buscando a compreensão da identidade étnica de um

grupo formado por remanescentes quilombolas com suas manifestações artísticas e

culturais de matrizes africanas sendo perpetuadas pelas gerações ainda que com um

elemento novo que pode ter adicionado novas matizes na maneira de ser, de pensar

e de agir: o protestantismo.

Os quilombolas do Mel são presbiterianos. E este, seguramente, é o aspecto

mais instigante da comunidade que após muitos anos de vedação no presbiterianismo

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tradicional e expressão do ser protestante no tocante a não mais usar os ritmos

africanos Marabaixo e Batuque, não só voltaram a manifestar-se voluntariamente e

informalmente com estes ritmos extraídos de festas e rituais das religiões africanas,

bem como os inseriram na liturgia dos cultos dessa comunidade. Esta forma diferente

de ser protestante exprime a necessidade de estudos que possam elucidar o ser

quilombola e protestante, como Souza (2014) menciona em sua tese de mestrado

“Mel da Pedreira: Um quilombo Protestante na Amazônia Brasileira”:

"Esse diferencial observado no Quilombo do Mel da Pedreira

aponta para a necessidade de uma pesquisa que desmembre

em pormenores tal fenômeno cultural religioso. Se a tradição da

religiosidade negra no Brasil se define pela identificação com os

cultos afro-brasileiros e com o catolicismo popular, um grupo que

se autodenomina quilombola e presbiteriano apresenta uma

curiosidade acadêmica que permeia discussões sobre a

identidade ideológica-política e cultural e religiosa do grupo." (P.

09)

Evidentemente, tais ritmos tomarem parte das reuniões na igreja (há uma igreja

presbiteriana construída na comunidade) quer trazer um sentido por assim dizer de

que uma nova identidade étnica “quilombola protestante” quer ser manifesta como

entendimento do ser pessoal e individual de cada um bem como no coletivo, no intuito

de explicitar um novo pensamento, a escolha de uma nova ideologia, uma nova

maneira de ser, um novo valor da identidade étnica, como elucida Cardoso de Oliveira

(1976, p. 22):

“ (...). Se a identidade étnica é um valor, enquanto categoria

ideologicamente valorizada, ela é passível de uma certa escolha

ou opção em situações determinadas, (...) por meio do qual nos

habilita a trabalhar com a dimensão “transacional” da identidade

no sentido em que, numa relação entre A e B, ambos os termos

tentam assegurar que o valor ganho seja sempre maior (ou pelo

menos igual) ao valor perdido. Trata-se, portanto, de modelos

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estratégicos (escolhas estratégicas), cuja utilização pode nos

levar a descobrir as constrições estruturais que uma situação

totalizadora impõe à escolha que, na teoria dos jogos, são

expressas como “regras” definidoras do “jogo”.

A comunidade do Mel tem uma congregação ligada à Igreja Presbiteriana do

Brasil (IPB) através da Igreja Peniel da capital Macapá. Obviamente que algumas

questões concernentes a identidade do grupo se manifestam ao pensarmos numa

comunidade de remanescentes de escravizados vivendo quase que integralmente no

contexto religioso por esta instituição constituída. Tais questões são construídas em

torno da dicotomia ideológica que pode haver entre esta comunidade negra e a igreja.

O que notamos é que dois conceitos totalmente dissemelhantes – presbiterianismo

como identidade religiosa e o ser quilombola como identidade étnica – convivem em

plena harmonia há quase 50 anos. No diálogo entre a identidade étnica e a identidade

religiosa ambos os lados foram ajustados a fim de promover uma identidade que

contrastaria com ambas ainda que essa nova identidade fosse extraída delas

mesmas, como vemos abaixo (Cardoso de Oliveira, 1976, p. 36):

“Esse jogo dialético (...), exprime noção de “identidade

Contrastiva” e com referência a um tipo particular de identidade

social, a saber a identidade étnica (...) tomando-a como a

essência da identidade étnica: a saber, quando uma pessoa ou

grupo se afirmam como tais, o fazem como meio de

diferenciação em relação a alguma outra pessoa ou grupo com

que se defrontam; é uma identidade que surge por oposição,

implicando a afirmação do nós diante dos outros, jamais se

afirmando isoladamente. ”

Portanto, é notória a busca por uma diferenciação bilateral – no meio religioso

e no meio étnico – que afirma a identidade dessa comunidade e, os meios pelos quais

esta identidade de contraste se articulou, se organizou e formou seu próprio ethos.

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Essas, portanto, são as respostas que este trabalho busca trazer utilizando como

cerne das pesquisas realizadas a música produzida pelo quilombo do Mel da Pedreira.

A música é um dos mais elevados elementos que contribuem para o

entendimento de quaisquer culturas. Ela traz consigo em sua forma de expressão

sonora toda a identidade do povo que se manifesta por meio dela. A música é o canal

pelo qual compositores, instrumentistas, cantores, artistas da dança e da

representação podem trazer à tona tudo o que se tem preservado em suas histórias

pessoais, suas emoções, lembranças e vida em grupo. A música produzida por um

indivíduo é carregada de todas as influências de seu meio social, das recebidas de

um mestre ou professor (no caso dos que tiveram orientação de outra pessoa) e das

que são captadas dentro e fora de sua comunidade, independentemente do meio que

intermediou o acesso a tal influência. Analisá-la, pode sim trazer um entendimento

profundo sobre um povo, uma comunidade, principalmente pelo fato da música

manifestar claramente sobre cada indivíduo um rastro proveniente do ethos de um

grupo, formando, por conseguinte, o ethos1 da música do próprio grupo.

Sobre os estudos acadêmicos referente o negro brasileiro, há um amplo

material de pesquisa distinguido em quatro importantes fases teóricas. Estas fases se

deram inicialmente entre o fim do século 19 e o início do 20 até atualmente. A primeira

delas, é a fase que identifica o negro como fora dos padrões dos brancos, ou seja, o

negro enquanto raça. A segunda, cuida de caracterizar o negro como expressão de

cultura. Na terceira fase, o negro é um ator social numa sociedade desfavorável para

si em função da conformação de classe. A quarta e atual fase marca um engajamento

entre a produção acadêmica e a militância negra com seus discursos e práticas. Entre

os autores destas quatro diferentes fases encontramos nomes de elevada importância

por tão valiosa colaboração acadêmica: Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Roger

Bastide, Florestan Fernandes, Oracy Nogueira, Fernando Henrique Cardoso e Octávio

Ianni.

Vale frisar que a quarta fase (que vislumbra o negro como desenvolvedor de

sua identidade étnica a partir de referências encontradas em sua própria cultura,

história, características e meio de vida), nos idos da década de 1970, surgem

1 Ethos. Conjunto dos costumes e hábitos fundamentais, no âmbito do comportamento (instituições, afazeres etc.)

e da cultura (valores, ideias ou crenças), característicos de uma determinada coletividade, época ou região.

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organizações de militância negra, das quais destaco o Movimento Negro Unificado

(MNU). Esta organização passa a trazer o conceito de valorização das características

físicas do negro e demandava esforços para maior visibilidade dos quilombos num

sermão de exaltação de sua etnicidade. Esta fase, inaugurada pelo Prof. Dr. João

Batista Borges Pereira, da qual trinta e sete estudos sobre etnicidade e identidade

religiosa foram produzidos sob sua orientação e coordenação, também é recheada

de pesquisas de destaque que convergem com aspectos das reivindicações negras:

sobre os negros do Cedro, de Baiocchi (1983); os negros do Vale do Ribeira, de

Queiroz (2006); sobre os negros de Vila Bela, de Bandeira (1988); e sobre negros em

um bairro rural de Pernambuco, a comunidade de Castainho, de Monteiro (1985), este

especificamente desenvolve com algum detalhe as questões religiosas. Outra

pesquisa que enfoca um pouco mais a religiosidade do negro, é o trabalho de Melo

(2011). Neste, o estudo sobre a comunidade Arnesto Penna Carneiro, no capítulo

dois, fala das mutações identitárias de negros e de alguns que se converteram

evangélicos neopentecostais.

Os aspectos religiosos pesquisados nos estudos sobre o negro brasileiro até o

momento destacam que o negro desenvolve sua religiosidade entre as culturas de

origem africana e o catolicismo popular, produzindo assim um hibridismo de credo.

Isso se deve, ao meu ver, muito mais em função dos estudos serem direcionados a

temas relacionados aos processos de territorialidade, narrativas históricas, militância,

organização de trabalho e economia e da falta de evidências claras de uma

religiosidade que fuja ao padrão encontrado na maioria, o catolicismo popular. Isso,

faz com que a comunidade do Mel seja considerada como um novo fenômeno religioso

e cultural, por amalgamar o presbiterianismo e a cultura africana ancestral ao

cotidiano, utilizando-se das doutrinas protestantes tradicionais como meio de crivo

social ainda que boa parte das manifestações doutrinárias são externadas através do

Marabaixo e do Batuque. E aqui reside uma grande controvérsia, no sentido de que a

música produzida nos cultos presbiterianos deve ser solene, formal, no intuito de ser

apenas o instrumento pelo qual os ensinamentos bíblicos sejam fortalecidos sem que

haja um chamamento de atenção aos aspectos musicais em si como arranjo enquanto

que o Marabaixo, vem de uma comemoração religiosa que mescla o ritmo africano

(música também a base de improviso), as ladainhas, danças as doutrinas católicas,

sendo totalmente antagônicas e atualmente usadas nos cultos da comunidade. Por

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esta razão, faz-se necessário compreender a religiosidade presbiteriana da

comunidade do Mel bem como as questões de identidade, ideologia, cultura e credo.

Além disso, mais que compreende-los enquanto quilombolas protestantes, há que

aprofundar no entendimento de como está comunidade se enxerga tão somente como

quilombolas, descendentes de remanescentes de escravos.

Todavia, existe uma pequena produção de pesquisas publicadas sobre o

quilombo do Mel da Pedreira. As pesquisas por lá ainda são recentes, ainda nem

foram publicados alguns artigos ou trabalhos de pesquisa, o que demonstra o quão

rico e vasto é o campo de pesquisa nesta área. O que se tem notícia é que serão

concluídos estudos dos professores Dr. Antônio Maspoli de Araújo Gomes e Dra.

Suzana Ramos Coutinho, que têm intensificado estudos na comunidade. O que há

atualmente são dissertações de mestrado em sua maioria tratando de assuntos

relacionados a posse de terra, ao reconhecimento do grupo como comunidade de

remanescente de escravizados, das quais citamos Soares (2008), Colares (2010). O

primeiro trabalho voltado a identidade étnica do quilombo do Mel é o de Souza (2014).

Voltando a falar de música, o que os quilombolas do Mel da Pedreira produzem

é mais um diferencial desta comunidade. Trata-se de uma música inédita fruto dessa

nova forma de se enxergarem e de como querem ser vistos. A música do Mel ganhou

muitos novos elementos que se organizaram sob a Marabaixo e o Batuque. A música

sintetiza muito bem todos os componentes do ser quilombola protestante. Por detrás

do ritmo e da melodia africana, se identifica um sistema bem articulado que promove

perfeita interação entre vozes organizadas em forma coral, soprano, contralto, tenor e

as vezes baixo; bem como a inserção de novos instrumentos e uma estrutura

composicional em forma de canção, banindo os improvisos presentes no Marabaixo e

no Batuque. Aqui na música, as identidades de contraste se concatenam. Além disso,

as músicas são apresentadas com forte apelo coreográfico dos executantes e do

público. Essas danças, são as que historicamente foram transmitidas pelas gerações

e que fazem parte das festas de Marabaixo. Todos esses elementos traduzem a

identidade de contraste bilateral, como citei acima, que o grupo quer externar, ou seja,

é a forma como o grupo se vê e constrói sua identidade, partindo do como são vistos

pelos de fora da comunidade. A música é o instrumento utilizado por esta pesquisa

para entender como se dá a formação da identidade dos quilombolas do Mel.

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Este estudo distingue-se dos demais por seu ineditismo. Trata-se da única

pesquisa que investiga a identidade étnica do quilombo do Mel da Pedreira através da

música. Saliento que não muitas pesquisas sobre o negro brasileiro se desenvolveram

pelo viés da música, o que pode acrescentar ainda maior relevância a este trabalho.

Para a realização deste primeiro trabalho de pesquisa identitária via música,

realizei uma vista ao quilombo do Mel em dezembro de 2014, onde permaneci durante

uma semana mergulhado na rotina diária dos quilombolas, entre seus afazeres da

subsistência (caça, o preparo da farinha, a pesca, a colheita de frutas, entre outras

várias atividades). Ademais, participei de vários encontros na igreja (cultos, reuniões

diversas porque a igreja funciona também como um local onde a comunidade discute

assuntos pertinentes à vida comum, ensaios) a fim de compreender a dinâmica da

organização social do quilombo do Mel.

Nas entrevistas com músicos instrumentistas ou cantores, compositores, e os

mais antigos moradores que mantém a história do quilombo acesa através da

oralidade, tive a ilustre companhia do Dr. Antônio Maspoli de Araujo Gomes, que

apesar de não ser meu orientador neste trabalho, contribuiu muito para minha

pesquisa.

Assisti a várias apresentações do grupo musical do quilombo do Mel da

Pedreira na própria comunidade, nos cultos locais e numa apresentação que o grupo

fez no primeiro seminário de música na Igreja Presbiteriana Peniel em Macapá - que

fui convidado para ministrar -, que abrilhantou e enriqueceu muito o evento.

Durante uma semana, diariamente, participei dos ensaios do grupo musical do

quilombo. Foi de suma importância acompanhar in loco como o grupo organiza sua

própria música. Acompanhei processos importantes para entender a música

quilombola: os composicionais (que vão da construção poética à metrificação do texto

na música), o desenvolvimento dos arranjos (os ajustes vocais que abarcam a divisão

de cantores por tessitura2, a inserção dos instrumentos de percussão, e os demais

instrumentos: guitarra, contrabaixo, violão, teclado e bateria), a dinâmica dos ensaios

que resultam na congregação dos elementos anteriores para o resultado musical final.

2 Tessitura (música). Disposição das notas para se acomodarem a uma determinada voz ou a um dado instrumento,

de forma confortável, dentro da capacidade de extensão do instrumento e/ou da voz.

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Todo esse material foi registrado em vídeos e áudios que totalizam mais de 30

horas de material estudado e analisado. Além do material coletado em campo - que

não se concentrou somente nas entrevistas e gravações de ensaios -, mas em

conversas informais, no recolhimento de histórias curiosas, estudamos a bibliografia

sugerida por meu orientador, voltada aos negros brasileiros.

A base teórica deste trabalho é firmada sobre as propostas de análise,

caracterização e interpretação de identidade e etnia de um grupo étnico que

compartilha através de seus valores culturais, arquitetando sua forma de comunicação

e relação, uma maneira de ser visto pelo outro como uma categoria diferente de outras

da mesma ordem ou origem. Para tanto, o autor que guarnece a estrutura que

corrobora as minhas observações é Roberto Cardoso de Oliveira, que trabalha com

conceitos de identidade étnica partindo da manifestação ideológica em duas

identidades que se aditam e que se desenvolvem de maneira contrastiva:

“(...) Goodenough abre as melhores pistas para o

desenvolvimento de um modelo mais explicativo desse

fenômeno (...) “relações de identidade”. Tal noção, (...) supõe a

existência não de uma, mas de pelo menos duas identidades,

denominadas “identidades complementares” ou “combinadas”.

(...). Ora, tomando o sistema inter étnico como um sistema

cultural inclusivo, ou, em outras palavras, tomando a “cultura do

contato” que lhe é subjacente, a gramaticalidade das relações

de identidade estaria em função das etnias em contato num

sistema inter étnico (...) são perfeitamente gramaticais (e

complementares). Isso significa que as identidades (...)

enquanto tais, só são inteligíveis quando relacionadas entre si,

contrastivamente, como identidades complementares. O caráter

contrastivo destas identidades (...) constitui assim um atributo

essencial da identidade étnica. Por outro lado, a especificidade

da identidade étnica, particularmente em suas manifestações

mais “primitivas” está no conteúdo etnocêntrico inerente à

negação da “outra” identidade em contraste. ” (Oliveira, 1976, p.

45).

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O foco central de minha pesquisa é como a música representa todas as fases

pelas quais o quilombo passou desde o momento em que se formou como

comunidade, concernente à sua religiosidade, conversão e nova ideologia identitária.

Também identificar quais as influências musicais não africanas (e investigar de qual

origem são as influências) se incorporaram a cultura dos quilombolas do Mel como

“identidades complementares”.

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1. A Comunidade do Mel da Pedreira

1.1 Localização

O quilombo do Mel da Pedreira nasceu em 11 de maio de 1954 com o patriarca

Sr. Antonio Bráulio, conforme nos relata “Seu Alexandre”, um de seus filhos, que

exerce uma grande liderança na comunidade, um relator por natureza que mantém de

memória todas as histórias dessa comunidade dantes verbalizadas por “Seu Bráulio”

e outras tantas que ele mesmo vivenciou. Ele nos contou que seu pai, Antonio Bráulio,

comprou de seu primo um trecho de terra onde foi formada a comunidade.

O acesso à comunidade é possível pela BR-210, aproximadamente no km 30,

área denominada Ramal do Ambé. No percurso, muitas (antes da chegada ao Ramal

do Ambé) plantações de pinho de uma grande empresa de celulose. A área é cercada

por cerrado, muitos campos de várzea e pelo rio Pedreira. Também há plantações de

milho, mandioca e caju no caminho que leva à entrada principal do quilombo A

comunidade do Mel é fronteiriça às comunidades (também de remanescentes

quilombolas) São Pedro dos Bois e Alegre e margeada por um lago que forma o rio

Pedreira.

O lugar em meio à floresta amazônica, pertencente ao estado do Amapá,

transmite bastante tranquilidade que embala o ritmo adagio3 de vida da comunidade.

O que se pode notar de imediato é que as pessoas que lá vivem ignoram quase por

completo o modo de vida do centro urbano de Macapá.

Vale ressaltar, segundo a Fundação Cultural Palmares, que em todo o território

brasileiro há mais de 2.600 comunidades de remanescentes quilombolas. Somente

no estado do Amapá, foram identificadas 138 comunidades. Deste número listamos

as 33 comunidades que já foram certificadas pela fundação: Cunani, Igarapé do Palha,

São Miguel do Macacoari, Ambé, Campina Grande, Carmo do Maruanum, Conceição

3 Adagio termo italiano para designar uma música cujo andamento é lento. Este andamento gira entre 66 e 76

tempos / batidas por minuto, se usarmos para aferir o andamento um metrônomo convencional. No original italiano,

a tradução livre do termo significa “comodidade”

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do Macacoari, Curiaú, Curralinho, Ilha Redonda, Lagoa dos Índios, Mel da Pedreira,

Porto do Abacate, Ressaca da Pedreira, Santa Luzia do Maruanum I, Santa Luzia do

Maruanum II, Santo Antonio do Matapi, São José, São José do Mata Fome, São José

do Matapi do Porto do Céu, São Pedro dos Bois, Torrão do Matapi, São Raimundo do

Pirativa, Lagoa do Maracá, Kulumbú do Patuazinho, Alto Pirativa, Cinco Chagas,

Engenho do Matapí, Igarapé do Lago, Nossa Senhora do Desterro dos Dois Irmãos,

São Tomé do Aporema e Taperera. Destas, apenas 04 comunidades receberam sua

titulação: mais recentemente São Raimundo do Pirativa (2013), Curiarú (1999),

Conceição do Macacoari (2006) e Mel da Pedreira (2007), que mais adiante

detalharemos o processo de conquista do título.

A área do quilombo do Mel é bastante extensa, com 2.199,4570 ha, dá

impressão de ser quase desabitada, haja vista apenas encontrar vinte e cinco casas

de madeira, quase sem padrão ou beleza estética, construídas bem distantes uma

das outras construídas próximas ao igarapé, com exceção de algumas poucas casas

que foram erguidas muito próximas umas das outras, ao lado do lago do rio Pedreira,

aparentando ser as casas mais antigas da comunidade. Nas casas, há energia elétrica

e água encanada não tratada extraída do poço amazonas.

Observemos a disposição geográfica do quilombo do Mel da Pedreira e

comunidades vizinhas nos mapas4 a seguir:

4 Dados retirados da “Revista Franco-Brasileira de Geografia” do artigo “Comunidades Quilombolas da Amazônia:

construção histórico-geográfica, características socioeconômicas e patrimônio cultural no estado do Amapá.

https://confins.revues.org/10021?lang=pt

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Atualmente a comunidade quilombola do Mel da Pedreira em seus domínios

tem 112 habitantes5, divididos por faixa etária, a saber:

Homens Mulheres Faixa Etária Total

21 15 Até 12 anos 36

05 07 13 a 20 anos 13

30 24 21 a 59 anos 54

05 04 Acima de 60 anos 09

Algumas novas construções estão aos poucos mudando o cenário na

comunidade do Mel, não somente do ponto de vista arquitetônico, mas principalmente

na organização social do quilombo: a casa de farinha e uma vila com novas casas de

alvenaria.

Na companhia do Dr. Maspoli, visitei a casa de farinha. Encontramos um casal

trabalhando. Foi possível acompanhar cada passo no processo de produção da

farinha. A construção em formato galpão abriga todos os equipamentos mecânicos

necessários para a produção de farinha: triturador (ralador), prensa, peneira e por fim

a farinha é torrada em grandes recipientes de ferro sobre uma fogueira de lenha. A

casa de farinha mecanizada, agiliza o trabalho dos produtores, bem como eleva a

capacidade de produção deste alimento para consumo próprio e venda em larga

escala. Desde o dia 07 de novembro de 2013, data em que a casa foi inaugurada,

está em pleno funcionamento.

Muito próximo à casa de farinha, em fase final de acabamento, estão 42 casas

construídas através de um convênio firmado entre a associação dos moradores do

quilombo do Mel da Pedreira e o Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR). Este

programa é uma ramificação do “Minha Casa, Minha vida” com intuito específico de

subsidiar a produção de residências para agricultores familiares (pescadores

artesanais, extrativistas, silvícolas, agricultores, arvicultores, piscicultores ribeirinhos),

trabalhadores rurais, comunidades quilombolas, povos indígenas e demais

5 Dados coletados em abril de 2016 por Natália Picanço da Associação dos Moradores Remanescentes

Quilombolas do Mel da Pedreira (Amorquimp).

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comunidades tradicionais. Esta vila de casas produzirá uma mudança significativa na

paisagem do local e na dinâmica da comunidade, inclusive por aglomerar numa área

muito próxima todas as casas, característica antagônica ao compararmos com as

moradias antigas que margeiam o rio e que respeitam uma grande distância de uma

para as outras. Muitas pessoas da comunidade relatam que outras tantas que vivem

fora das cercanias do Mel compraram sua casa do programa e retornarão a viver no

quilombo. Muitos dos que saíram para buscar uma vida melhor, atrás de

oportunidades e de estudos para os filhos, acabam retornando. Segundo os relatos,

não “veem a hora” de poder voltar a vida pacata no Mel da Pedreira. É o que nos disse

Dona Minervina, também filha do patriarca “Seu Bráulio” e uma das compositoras da

comunidade. Adiante, trataremos especificamente de música tecendo mais detalhes

sobre esta compositora e sua produção musical:

Fiquei aqui (no quilombo do Mel) até meus 15 anos. Antigamente

as mocinhas do interior casavam mais nova, e então eu me casei

e fui pra cidade. Aí de retorno, eu estou há dois anos, aqui nessa

casa, já indo para os 03 anos. Final de abril completa 03 anos

que eu retornei da cidade. Esperei a moçada crescer para depois

vir. A vontade de vir eu já tinha a muito tempo. Aí tinha filho

estudando e tudo, e mãe tem que cuidar. Então deixei todo

mundo ficar ʺde maiorʺ.

Artur Monteiro de Souza, 37 anos, estudante de arquitetura, gerente de vendas

e projetos de móveis na capital Macapá, neto de “Seu Bráulio” também conta seu

desejo de viver no quilombo. Ele é filho do Souza que também nos mostrou a

construção de sua bela casa na comunidade afim de brevemente poder retornar e

viver no quilombo:

Meu sonho é construir um centro cultural do quilombo do Mel da

Pedreira para preservar a nossa história. Quero recolher as fotos

antigas, e tudo que eu encontrar de documentos, objetos para

isso. Também quero preservar a casa mais antiga da

comunidade, não sei se toda ou pelo menos uma parte, e

guardar dentro do centro cultural que desejo construir. É uma

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maneira de manter a nossa história e, um dia venho com minha

família “pra” cá.

A comunidade tem uma escola, digamos própria. As crianças que vivem no Mel,

na primeira fase da carreira escolar (estudantes do fundamental I) não precisam se

deslocar para outros lugares para aprender. A diretora dessa unidade escolar, cujo

nome é Escola Estadual Antonio Bráulio de Souza, é Cristina, neta de “Seu Bráulio” o

patriarca. Ela me apresentou os professores e de imediato me levou para conhecer

as crianças. As crianças me receberam de forma muito calorosa, fazendo aquilo que

artisticamente “pulsa” muito forte em seus corações: música! Cantaram 03 canções

ao som do Marabaixo. As crianças demonstram grande aptidão rítmica e musical.

Depois cada uma das crianças queria mostrar suas habilidades enquanto

instrumentistas percussivos. Perguntei a elas onde tinham estudado música e elas

prontamente disseram que não estudaram e que faziam música tão bem de ver e ouvir

os pais. Outras relataram que seus pais as ensinaram.

A escola está na comunidade desde 1977. Mas dona Minervina nos conta que

nem sempre foi assim:

A gente estudou muito pouco porque, “pra” você ter uma ideia a

gente morava aqui e estudava em São Pedro dos Bois (outro

quilombo). A gente saía 5 horas da manhã “pra” chegar 8 horas

na escola. Então, a gente enfrentava um lago imenso até lá no

Limão. De lá a gente largava a canoa e ia a pé. A gente ia pelo

atalho que dava mais uns 04 quilômetros a pé. A gente fazia 08

quilômetros “de pés” ida e volta todos os dias. E depois, meu pai

me tirou da escola cedo e fiquei trabalhando na roça. Meus

irmãos iam caçar por aqui e eu fugia para ir com eles. Às vezes

eu escutava os cachorros “latir” e então eu já fugia “pro” mato

pra caçar porco, porco do mato. Era uma festa.

A igreja é uma construção que deve ser destacada. Não somente por também

ser arquitetonicamente diferente, contrastando e muito com as casas erguidas pelos

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quilombolas, mas por ter seu funcionamento que vai além da esfera religiosa. Fora

erguida numa das mais belas áreas do quilombo, às margens do lago do Rio Pedreira.

Em época de cheia, a paisagem se torna ainda mais bela. Por lá acontecem todos os

eventos da comunidade. É uma unidade central de relacionamentos do povo do Mel.

Se juntam para os cultos, assim como também para festas onde ocorrem almoços

comunitários (cada família contribui com um prato) e compartilham tudo o que tem,

para os ensaios e para muitas reuniões da Associação dos Moradores

Remanescentes Quilombolas do Mel da Pedreira (Amorquimp). Além da área

dedicada ao templo, existe um amplo salão que abriga as festas e almoços da

comunidade e outras salas multiuso. Inclusive, numa dessas salas, funciona o projeto

de Inclusão Digital em parceria com a OSCIP Yaver. Na igreja, pude acompanhar e

participar de uma semana intensa de ensaios com o grupo musical do quilombo, que

se preparava para algumas apresentações, assunto que será abordado mais tarde.

1.2 Os primórdios

Alguns materiais de pesquisa recentemente têm sido elaborados e registrados

para esclarecer as origens do quilombo do Mel da Pedreira. São artigos acadêmicos

que tratam da territorialidade desta comunidade, teses que versam sobre a identidade

étnica do grupo, biografia do patriarca “Seu Bráulio” e estudos comportamentais

voltados para questões psicológicas. Esse material é boa base para se conhecer a

gênese do grupo. Porém, muitos outros detalhes são narrados por “Seu Alexandre”

filho do patriarca que ostenta de memória toda a história do quilombo desde a vinda

de seus pais para o Mel até o que se passa na atualidade.

No início, em nossa conversa, “Seu Alexandre” deixa claro sua posição de

convertido ao protestantismo, frisando a todo momento que não concorda com as

“práticas anteriores” se referindo aos rituais de pajelança e o hibridismo com o

catolicismo.

“Seu Bráulio” é filho de Benedito Bráulio de Souza e Ana Regina de Souza. Seu

pai era francês e antes de se mudarem para o quilombo do Ambé viveram em Caiena

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na Guiana Francesa. Casou-se com Auta Augusta Ramos de Souza, negra, do

quilombo Pedra dos Bois, mas originária de Campineiro da Pedra.

A religiosidade sempre esteve presente entre os quilombolas do Mel. Desde o

princípio da formação da comunidade, muitos fatos reputados à religião são narrados.

“Seu Bráulio” foi filho único, fruto da décima gestação. Sua mãe perdeu todos os bebes

anteriores. Porém, “Seu Bráulio” no ventre de sua mãe foi tratado como uma criança

que detinha uma vocação especial para a pajelança. A história conta que ainda na

gestação, aproximadamente no sétimo mês da gravidez, sua mãe sentia que ele se

movia muito em seu ventre, de forma diferente foi quando ela disse que o bebê tinha

um dom especial. Imediatamente ao dizer isso, conta “Seu Alexandre” que no ventre

a criança chorou, o que de acordo com o credo da família atestava sua vocação

religiosa. Segundo esses relatos, ele sofria muito “na mão” dos espíritos durante a

infância, sentindo uma “presença” (reputada a um espírito) que lhe conferia força

descomunal que somente poderia ser contido por dez homens. Isso se passou com

frequência, até que estivesse formado para o exercício vocacional.

A partir de então, homem formado, “Seu Bráulio” começou a atuar como pajé,

como relata “Seu Alexandre”:

Ele fazia sessão. Ele benzia. Ele curava, na verdade usando

ervas medicinais.

Estes rituais eram fortemente marcados por música. Cada mensageiro (ou cada

espírito recebido por “Seu Bráulio”) tinha sua cantoria (música) própria. As cantorias

eram em sua maioria acappella6, e deveriam ser cantadas no momento da visitação

dos espíritos. Algumas cantorias que eles entoavam não eram no idioma português,

sendo repetidas por eles em conjunto com o espírito sem entender se quer uma só

palavra do que estava cantando. Os espíritos também eram conhecidos como

“encantados” e, acreditava-se que eram oriundos do fundo do mar. Eduardo Galvão

em seu artigo “Vida Religiosa do Caboclo da Amazônia” publicado em 29 de abril de

6 Acappella. Música vocal sem acompanhamento instrumental algum.

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1953 Boletim do Museu Nacional, Rio de Janeiro, detalha como o caboclo

amazonense desenvolve suas crenças e práticas que constituem sua religião,

trazendo alguns aspectos importantes para o nosso entendimento do “encantado” no

contexto da comunidade do quilombo do Mel da Pedreira:

“ Os santos são entidades domésticas benevolentes que

protegem o indivíduo ou a comunidade, assegurando-lhe bem-

estar. Existem, contudo, outras forças e seres que povoam a

natureza ou o mundo sobrenatural, contra os quais a ação dos

santos é importante. Neste caso, estão os seres que habitam o

fundo dos rios ou a floresta. Derivam a maior parte das vezes de

crenças provenientes do habitante primitivo, o indígena, e, em

geral, são expressos por denominações de procedência tupi-

guarani, dada a difusão que esse falar teve durante o período

colonial. (...). O conceito de encantado, por exemplo, que domina

na descrição desses seres, deve sua provável origem a crenças

populares que o colono português ou europeu fundiu às do

habitante indígena ou mestiço. Ao mesmo tempo, adaptaram-se

à cultura contemporânea, desligando-se do corpo de ideias

religiosas a que pertenciam primitivamente. Acredita o caboclo

amazônico que o fundo dos rios, igarapés ou lagos seja habitado

pelos companheiros do fundo, criaturas “muito alvas e louras” de

um “reino encantado”. Tem toda a semelhança com seres

humanos e possuem cidades idênticas às dos vivos, com a

diferença que ali tudo reluz como se fosse de ouro. Esses

companheiros têm poderes especiais e podem ser controlados

pelos pajés que os transformam em seus auxiliares na

realização de curas ou na prática de feitiçaria ou atos mágicos. ”

Nesses rituais, havia as manifestações religiosas sincréticas com o catolicismo

e se cantava também as ladainhas, preces extraídas da liturgia católica, estruturadas

em pequenos versos recitadas ou cantadas por um celebrante religioso,

alternadamente repetida pelos presentes na sessão. Geralmente, as ladainhas são

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baseadas em textos de exaltação a Deus, a Jesus Cristo, a virgem Maria e aos outros

santos:

Outra coisa que meu pai aprendeu, e aprendeu facilmente, foi

cantar ladainha para as imagens de escultura. Incrível, né? Ele

cantava ladainha para as imagens de escultura e era procurando

tanto para cura, como curandeiro e procurado com rezador.

Nessa área da cantoria, “pra” ladainha, eu fiquei com uma parte

que agora depois de evangélico eu fui analisar... que é uma parte

que dizia na ladainha: “Ora pro nobis santa unigenitus...” Repare

bem: “Oramos ao nosso Senhor Jesus Cristo, oramos por sua

fundíssima graça e vos suplicamos pela embaixada do anjo, pela

encarnação do seu filho Jesus Cristo, pelos merecimentos de

sua paixão e morte. Chegamos à cruz da glória e da ressureição

pelo mesmo Cristo, o Senhor nosso. Amém.” Então depois,

vinha o oferecimento que é o estrago: “Ladainha que rezamos

ao Senhor São Francisco...” ou a Santo Antonio, que no caso era

o padroeiro do quilombo.

As tradições da religião africana se misturavam fortemente ao catolicismo,

como podemos identificar no testemunho acima. Além disso, cada quilombo tem seu

próprio padroeiro, como podemos citar alguns: no quilombo São Pedro dos Bois, São

Pedro; no quilombo do Ambé, São Roque; no quilombo do Curiaú, São Joaquim;

quilombo do Macacoari, Santa Conceição; no quilombo Ressaca da Pedreira, menino

Deus.

Em 1954, “Seu Bráulio” compra de seu primo algumas propriedades, local esse

que é o quilombo do Mel da Pedreira hoje. Vale ressaltar que a compra das terras

neste momento, antecede e muito, qualquer compreensão ou militância por direitos

das comunidades quilombolas no que se refere ao direito à terra. Tratava-se tão

somente da busca pela posse da terra para produzir e sobreviver. Por encontrarem

muitas árvores ocas com grandes volumes de mel, primeiramente batizaram o local

com o nome de Ressaca do Mel. Posteriormente, o local teve seu nome mudado para

Mel da Pedreira em alusão ao rio Pedreira, cuja comunidade tem uma relação de

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respeito e até de certa dependência de sobrevivência, haja vista que boa parte da

alimentação das famílias que lá vivem são supridas pela pesca. Juntamente com sua

família passa a morar no local. Viviam da caça, da pesca, da agricultura e do mel.

Nesta época, a família passou a viver isolada, mantendo apenas contato com

os outros quilombos vizinhos. Todavia, não haviam estradas para se conectar com as

cidades vizinhas. Em meio a tanta dificuldade de estrutura, a produção de mandioca

cresceu muito e já havia a necessidade transportar todo o produzido através de algum

veículo. Em 1956, começaram a abrir estrada para escoar a produção que tinham por

outros produtos através da troca. Foi um árduo trabalho, nos diz “Seu Alexandre”.

Muitas foram as árvores que tiveram de ser arrancadas ou cortadas para abrir os

ramais para escoar a produção. Ao concluírem a primeira estrada, alugavam

caminhões para carregar tudo o que a terra dava. Não geriam seus recursos em

moeda corrente e, curiosamente, somente em 1962 conheceram dinheiro, moeda e

cédula impressa.

Depois de abertos alguns desses ramais, ou estradas, foram vistos como

comunidade e a população das cidades teve acesso a eles. Foi na ocasião que

receberam a primeira ajuda do governo através da SUCAM. Segundo o site do

ministério de saúde, este órgão resulta da junção do Departamento Nacional de

Endemias Rurais (DENEru), da Campanha de Erradicação da Malária (CEM) e da

Campanha de Erradicação da Varíola (CEV). Este órgão visitava periodicamente em

todo território nacional as comunidades rurais, inclusive as mais remotas, no intuito de

controlar e sanar enfermidades como malária e varíola. As estradas abertas também

foram as portas abertas para que marreteiros (vendedores) pudessem oferecer suas

mercadorias à comunidade do Mel. E apesar de as negociações com os marreteiros

nem sempre terem sido justas sob perspectiva da comunidade, esse contato

comercial ajudou muito ao grupo a vender e distribuir seus produtos na cidade.

O contato com os marreteiros, que favoreceu o comércio para a comunidade,

deu acesso a alguns programas de saúde do governo, também veio para mudar a

forma de vida. Foi então que algumas atividades de rotina, como cortar lenha para

cozinhar, foi substituída pelo fogão. Na mesma época, meados do ano de 1963

conheceram o rádio - que também traria uma grande influência para a música

produzida no quilombo -, a panela de pressão, a passos muito lentos.

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O quilombo do Mel sempre manifestou formas sincréticas de religiosidade.

Evidentemente que esse hibridismo religioso fora herdado antes da formação dessa

comunidade no quilombo Pedra dos Bois. Devotos de Santo Antonio, dedicavam

festas ao padroeiro e mantinham as práticas das tradições africanas e da pajelança

(Souza, 2014, p. 14):

“Desde de seu início, o quilombo do Mel da Pedreira apresentou

características sincréticas quanto às tradições religiosas. Eram

católicos, devotos de Santo Antonio, e, concomitantemente,

participavam de cerimoniais de pajelança cabocla, com

elementos comuns a outras partes da Amazônia, como a

incorporação de encantados, entidades espirituais que falavam

e interagiam com a comunidade e que se manifestavam através

do patriarca do quilombo. ”

Em época de festa, todos deixavam seus afazeres para somente usufruir da festa. A

comida e a bebida eram fartas. Matavam um boi para os festejos, que poderiam durar

três dias ininterruptos ou mais. Todos da comunidade se envolviam totalmente na

organização do evento. O quilombo do Mel era muito movimentado culturalmente. As

festas eram recorrentes e marcadas por danças, as músicas populares conhecidas

através do rádio, marabaixo, batuque, ritmos a que dedicamos um capítulo para

compreendermos suas estruturas, instrumentos, execução e a sincronização desses

ritmos com as músicas das celebrações da comunidade do Mel. Numa dessas festas,

é introduzido um novo elemento para a música produzida pelo quilombo: a viola. Não

demorou muito e outros instrumentos de cordas foram acrescentados à música do

quilombo. Entre eles, o violão e o cavaquinho. Dá-se então o prelúdio das fusões

musicais que desenvolveria uma nova modalidade de marabaixo, ou um novo gênero

musical quilombola. Podemos entender que os músicos da época, a maioria filhos de

“Seu Bráulio” já nos primórdios, militavam o desejo de produzir uma música marcada

por uma nova identidade, e que diferenciam o marabaixo e o batuque como gêneros

musicais distintos, como nos explanou “Seu Alexandre”:

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Na área do batuque, tem os tambores grossos, alguns finos e o

pandeiro. Na área do marabaixo, são umas “caixas” pequenas e

grossas e são tocadas com baquetas. (...). A música popular na

época – quando eu me converti eu tinha 22 anos -, da minha

infância até os 22 anos começamos com: meu pai tocava viola,

e cada um de nós “sabia” umas notinhas na viola. Aí depois

surgiu o violão. Meu irmão que é antes de mim, o Zé Ramos –

que é outro pretinho, né – ele aprendeu tão bem o violão que ele

não precisava da letra, ele precisava da melodia. Ele ponteava7

todinho o violão. Eu tocava cavaquinho e a gente fazia serenatas

a noite toda. (...) a gente mescla várias modalidades de música

e o povo gosta.

Em outro trecho da conversa, quando verificamos que a música do quilombo nesse

momento da história começa a fugir das características puras e autenticas do

marabaixo e do batuque, ou seja, a se amalgamar com outros gêneros musicais, ele

fala da forte influência do rádio na música que começaram a desenvolver:

Ela foge um pouquinho. Vem o rádio, a moda caipira, de sorte

que a gente mescla e hoje a gente também está fazendo um

mesclado e o povo está gostando.

O quilombo do Mel mudou sua religiosidade, como veremos logo mais adiante.

Passou a adotar o presbiterianismo como meio de fé e prática. Esta conversão,

posteriormente, trouxe novos elementos estilísticos e de gênero à música da

comunidade que já havia passado por uma primeira fusão estética. Estas mudanças

na maneira de se expressar artisticamente, transpassam o despertar de uma nova

ideologia religiosa para o grupo que refletiria na forma de viver de cada pessoa e na

nova configuração da comunidade a partir da decisão patriarcal de um novo ethos

7 Ponteava. Fazendo alusão ao dedilhado. Técnica musical do instrumentista de cordas que tange seu instrumento

com os dedos.

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religioso que buscaria romper totalmente quaisquer ligações com as práticas

religiosas anteriores. Nos próximos capítulos analiticamente trabalharemos os

aspectos musicais que representam todas as fases de mudança ideológica do

quilombo, partindo do estudo do marabaixo e batuque com suas respectivas festas

religiosas, seus significados, formas e música.

1.3 Manutenção Financeira

Cada vez mais os quilombolas do Mel da Pedreira têm buscado novas formas

de trabalho e geração de renda. Significativamente, entre as novas gerações

aumentou o número de membros da comunidade que alcançaram melhores

oportunidades de estudo e consequentemente novas possibilidades profissionais.

Claro que a busca por novas oportunidades de estudo e trabalho muitas vezes foi

sinônimo de um apartamento da vida no quilombo. Muitos tiveram que sair, e entre

todos que saíram que pude conhecer e conversar deixam claro seu desejo de voltar a

morar nas terras da comunidade, já que o ser quilombola passa muito pela relação

que mantém com a terra. A terra, a natureza por muitos e muitos anos foi o único meio

de sustento e de permanência da comunidade. Esta relação com a terra, vai além do

que ela pode dar ao grupo para a sobrevivência, mas é parte direta da concepção de

identidade individual e da identidade do quilombo. Porém, alguns que buscaram

galgar maiores passos rumo à formação profissional não deixaram de viver na

comunidade. Diariamente, saem cedo para a capital Macapá (que não é distante

aproximadamente 30 km em estrada de boas condições de tráfego) e retornam ao

final do dia. Muito comum, após um dia de trabalho, os homens se reunirem para um

café e uma boa conversa no pequeno armazém que fica muito próximo a igreja. Lá,

são vendidos poucos produtos, mais para uma reposição rápida de algo que falte nas

casas como: limpeza, alimentação, refrigerantes, pães, algumas guloseimas e outros

poucos artigos. Entre esses profissionais há transportadores escolares (duas vans),

professores e funcionários públicos, profissionais de informática, proprietários de

pequenos negócios como o armazém e comerciantes de alimentos que vendem os

produtos que cultivam na terra, ou a carne das criações que mantêm geralmente porco

e galinha. Alguns, fornecem galinha já pronta para o consumo nos quilombos da

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região, o que gera uma margem de lucro um pouco maior, já que o abate do animal,

a limpeza, podem ser incluídos no preço final.

A apicultura sempre fez parte da história do quilombo desde sua formação

como já dissemos anteriormente. E por um longo período foi também um dos meios

de geração de recursos e renda para o grupo. Não se tratava de valores considerados

grandes pelo baixo volume de mel que conseguiam produzir para venda em função

de algumas dificuldades com a produção, razão pela qual foi uma atividade

empreendida que não alcançou sucesso. Em 2005 houve uma primeira tentativa de

resgatar a produção de mel através de um programa gerenciado pelo Ministério da

Agricultura sob a orientação técnica de especialistas da área oriundos da

Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). Em 2012, foi a vez da OSCIP Yaver dar

novo impulso à atividade apícola na comunidade pela instrumentalidade do

especialista em apicultura César Valim um dos diretores da Yaver. A atividade, apesar

do alto custo com matéria prima – o açúcar é usado para alimentar as abelhas e ajuda

na produção do mel-, continua sendo desenvolvida ainda em baixa escala (SOUZA,

2014, p.19). Em minha visita ao quilombo em dezembro passado (2014), a produção

do mel estava momentaneamente parada. Em conversa com o apicultor César Valim,

ele esclareceu que retomarão a produção do mel partindo de um trabalho de

treinamento e capacitação mais elaborado para os quilombolas da comunidade.

Por outro lado, a Casa de Farinha vem trazendo resultados mais rápidos e

expressivos para a comunidade. O processo de produção da farinha de mandioca é

muito mais simples e sempre foi uma das principais rendas para as famílias do Mel

além do que, a mecanização do procedimento permite a produção de mandioca em

larga escala e está desenvolvendo um importante trabalho de produção cooperada

para todos as famílias do quilombo com o repartir dos lucros.

Há também os que trabalham com os produtos do caju. Torram castanhas, e

produzem cajuína8. A produção é pequena, mas especialmente as castanhas de caju

agregam maior valor econômico, gerando um lucro que pode ser considerado bom,

ainda que o volume vendido não seja grande. Pude acompanhar a produção de

castanhas de umas das famílias do Mel. Todo o processo é manual, desde a secagem

8 Cajuína. Bebida sem álcool clarificada e esterilizada preparada a partir do suco de caju, preparada de maneira

artesanal.

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das sementes (de onde se extrai a castanha) até a torra que é feita ao ar livre. As

mãos dos produtores acabam sendo castigadas pelo processo da torra e ficam pretas

por causa do contato com a lenha e o fogo. Enquanto trabalhavam, um fiel

companheiro quebrava o silêncio da atividade desempenhada em alto nível de

concentração: o rádio, sintonizado numa emissora evangélica. Muito comum entre os

quilombolas do mel é ouvir canções de origem pentecostal, que sempre foram

bastante presentes na rotina do grupo, que influenciaram o resultado musical da

comunidade e que até os dias de hoje toma parte importante na liturgia do culto

presbiteriano quilombola que veremos no capítulo três. Outro sucesso de audiência

entre os quilombolas é o programa do Reverendo Romilson Leite, pastor da

Presbiteriana Peniel de Macapá, igreja que dá cobertura à congregação do Mel. Nesse

programa, a comunidade se conecta socialmente com a igreja da capital e de outras

congregações no interior do estado. É comum trocas de informações, atividades

eclesiásticas, agenda geral, pedidos de orações e felicitações para os aniversariantes.

O Reverendo Romilson busca desenvolver um repertório bastante eclético dentro das

cercanias da música cristã e os quilombolas do Mel apreciam a programação. Estive

como entrevistado num dos programas falando sobre música cristã e liturgia, já que a

audiência é praticamente em sua totalidade formada por evangélicos.

Com a chegada do projeto de habitação populares do programa do governo

federal, “Minha Casa, Minha vida” vem uma nova oportunidade de trabalho: a

produção de tijolos para construção. Apesar de ser um trabalho sazonal, alguns

quilombolas do Mel estão trabalhando nesta empreitada concomitantemente às suas

outras atividades laborais. O trabalho, apesar de simples, é pesado, ainda mais para

os que estão nessa atividade profissional, acabam em dupla jornada de trabalho

pesado.

1.4 A rotina diária

A comunidade do Mel da Pedreira tem bastante organizada sua forma de

interação entre as famílias residentes e deixam um traçado bastante claro entre as

atividades que são pertinentes a homens e mulheres. Homens, de forma alguma,

executam tarefas delegadas às mulheres, ficando bastante claro na organização

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social do quilombo o papel que cada um deve exercer. Pudemos notar que não há

conflitos na gestão das atividades que cada gênero tem de desenvolver. De sorte que

ao findar o dia todos cumpriram seus deveres e já estão aptos para o descanso ou

para algum evento comunitário, geralmente na igreja. Essa distinção de

responsabilidades e participação no contexto geral para homens e mulheres, ao que

me pareceu, também é refletido na organização musical do quilombo. Não foi possível

notar nenhuma mulher empunhando um tambor para fazer música. As mulheres

geralmente cantam e dançam e os homens trabalham com os instrumentos rítmicos

de modo geral. A única exceção que ficou muito clara é que a Néia, uma das filhas de

“Seu Benedito”, conhecido como Biló Abençoado, exerce uma liderança musical por

ser mais preparada e tocar alguns instrumentos, dirige os ensaios do grupo. Porém,

ela, hierarquicamente, está sob as orientações do irmão João, líder do ministério de

música da igreja.

As tarefas diárias começam muito cedo para os que moram e trabalham na

própria comunidade. Por volta das 05:00 da manhã, se despertam e se dividem

homem e mulher entre as atribuições que cada um tem. O homem sai para caçar ou

pescar, enquanto a mulher colhe frutos, verduras e se responsabiliza pela casa. A

caça tem tempo imprevisível. Às vezes, muito tempo é perdido até que se encontre

um bom animal para abater. Osvaldino, líder da congregação do Mel, nos hospedou

em sua casa e me dizia que sempre buscam abater um animal já em fase adulta a fim

de se respeitar toda a cadeia natural, porque se preocupam em sempre ter nas terras

do Mel animais para caçar e se alimentar. Caçam e abatem quase todo tipo de animal

encontrado por aquela vegetação. Entre os mais caçados, talvez por serem mais

encontrados estão o tatu, o porco do mato e até a cobra. Ao voltar da caça,

dependendo do horário, ou o homem já chega para o almoço ou se dirige para suas

incumbências com a criação de porco, pesca e outras atividades que exercem, seja a

manutenção da casa, a comercialização da produção de farinha de mandioca, entre

outras correlatas.

Em seguida, já chega a hora do almoço que geralmente é em torno de 11:00

da manhã. O almoço é acompanhado, quase que obrigatoriamente por um descanso,

um sono após a refeição. Isso se dá por se despertarem muito cedo e desde então

desenvolver atribuições bastante desgastantes e porque desde que o dia nasce o sol

castiga a região sem misericórdia. O estado do Amapá é muito quente. Isso em função

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da baixa latitude, a cidade de Macapá é dividida pela linha do Equador, o que promove

uma insolação elevada; da baixa altitude, esta região está em média quinze metros

acima do nível do mar o que propicia altas temperaturas; e a proximidade do mar que

traz as correntes marítimas da Guiana Francesa. Logo após o meio dia, até o fim da

tarde, a região se torna um caldeirão de tão quente. Por essa razão os quilombolas

descansam para repor as energias e para esperar por condições climáticas mais

favoráveis ao trabalho. Quando o sol alivia a intensidade da temperatura, homens e

mulheres retomam suas tarefas, que praticamente são iguais ou muito semelhantes

as desempenhadas pela manhã.

Apesar de outros hábitos sociais e de trabalho irrigarem a comunidade

atualmente, fruto do franco contato com a sociedade comum, a tranquilidade e a falta

de urgência ou pressa para execução das tarefas permanecem praticamente intactas.

Ao que parece, o quilombola faz questão de se manter distante de uma maneira de

ser que contrasta com o que sempre foram no que se refere a rotina. Vivem e se

mantêm com o que precisam para o momento e tão pouco transparecem estarem

focados em acumular coisas, sejam bens ou até alimentos. Ainda que todas as casas,

ou quase todas, têm fogão, geladeira, utensílios domésticos em geral, televisão, no

que se refere à caça e à pesca não me pareceu que buscam alimento para mais de

duas ou três refeições como poderiam fazer por exemplo usando a geladeira para

conservar os alimentos. A relação que os quilombolas têm com a terra, com a natureza

parecem dar a convicção à comunidade de que para a subsistência diária não

precisam se desassossegar.

As gerações mais novas sim, manifestam um senso mais emergencial ainda

que não tão latente como entre os jovens das metrópoles. São mais sonhadores, têm

planos maiores que uma vida limitada de recursos financeiros, e alguns até comentam

planos de acumular bens ou ter uma vida financeira equilibrada, tranquila.

Demonstram uma ambição moderada e se organizam empreendendo esforços para o

desenvolvimento financeiro da comunidade.

Por isso, parte da rotina do quilombola é ser solidário entre os membros do

grupo. São muito engajados nas causas de interesse comum, na articulação e no

trabalho duro daquilo que poderá trazer algum benefício para o quilombo. As

lideranças da comunidade, tanto a geração mais velha, quanto a nova que se

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desponta, tem um poder retórico muito grande no grupo. Facilmente se articulam e se

organizam e direcionam o grupo rumo aos objetivos comunitários. Há também um

respeito de ordem patriarcal ao que é orientado pelos mais velhos, não ocorrendo

quase desentendimentos entre os distintos anseios, quando aparecem. Me lembro

que quando conheci o grupo de música, e por identificar rapidamente tão diferenciada

e rica culturalmente as canções do Mel, em conversas com alguns líderes da

comunidade, sugeri começarmos a organizar as músicas, fazer ensaios programados

com o intuito de gerar uma preparação técnica instrumental e vocal que fosse

suficiente para gravar um CD somente com músicas compostas e arranjadas por eles.

Os líderes receberam a ideia com muita euforia. Então, particularmente cremos que

se tratava de uma decisão tomada e que posteriormente os membros do grupo seriam

comunicados. Para surpresa nossa, o assunto foi encaminhado para as lideranças do

quilombo, - não os líderes de música, os líderes da comunidade no geral-. Em seguida,

convocaram uma reunião com todos os membros do grupo de música, líderes da igreja

e líderes do quilombo para que expuséssemos a ideia para todos, assim poderiam

decidir se abraçariam o projeto ou não. Decidiram por iniciar o projeto e demonstraram

que com muita agilidade se organizam e se articulam em função dos objetivos em

comum e que tais medidas fazem parte da rotina da comunidade.

Também, são muito cooperadores entre si quando algum membro do grupo ou

família necessitam de ajuda inclusive para conclusão de algum trabalho ligado a terra.

Muito rapidamente a ajuda começa a aparecer sempre delineado pelas diferenças

estipuladas pela organização social do quilombo: homens ajudando outros homens, e

mulheres ajudando mulheres.

No dia de nossa despedida, um domingo, logo após o culto promoveram um

almoço. Foi uma grande confraternização. No sábado, pude acompanhar de perto

como se estruturam para a festa, homens e mulheres. Alguns homens mataram um

porco, outros trouxeram caça. As carnes foram divididas entre as mulheres para que

cada uma delas ficassem responsável pela elaboração dos pratos. Prepararam

também vários acompanhamentos, e logo após o culto dominical matutino estava tudo

pronto e organizado. O salão que fica atrás do templo estava com as mesas e bancos

organizados, com talheres e copos. Todos se serviram fartamente, compartilharam,

conversavam e claro, teve canto, dança e batucada. Num evento tão singelo como

este, podemos verificar o quão cristalino era a sensação de pertencimento à

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comunidade entre todos os membros do quilombo que faz do Mel da Pedreira um

quilombo dos mais organizados e mais avançados em termos de logros para o grupo.

1.5 O protestantismo no Quilombo do Mel

A conversão de todo o quilombo do Mel em protestantes, dantes católicos

devotos de Santo Antonio e mantenedores de práticas religiosas africanas e de

pajelança é a medula para compreensão da identidade étnica do grupo bem como

suas manifestações artísticas e culturais. Negros que viveram sua diáspora ao

imigrarem forçadamente rumo ao Brasil, para serem escravos e violentamente

arrancados de suas origens, familiares e país, construíram um fenômeno cultural

ritualístico afim de fincar estacas em terras estranhas que pudessem servir de alento

para despontar de uma nova identidade, evidentemente, na tentativa de trazer do

passado significação para um presente de solidão e de sofrimento já que foram

tolhidos do curso natural de vida, rituais tais que obscura e secretamente foram

surgindo em meio as senzalas que os prendiam após um dia completo de trabalho

escravo.

Estes rituais que ocorriam nas senzalas, eram também e principalmente de

dança do marabaixo e batuque, especificamente nos quilombos do Amapá e do baixo

Amazonas. Era também um meio pelo qual os negros se comunicavam entre si porque

também lhes fora sacado o direito de conversar entre si, com o objetivo de evitar fugas,

rebeliões e toda sorte de prejuízo aos senhores de escravos. Nesse talvez único meio

de comunicação, surge a figura do ladrão9 que no marabaixo tem uma função crucial,

por mudar os versos das canções, esta função tem uma importância histórica muito

grande. No tempo da escravatura, o ladrão era uma espécie de moderador entre os

assuntos que a comunidade negra queria discutir entre eles, e a única forma era usar

a música com recurso porque não podiam conversar entre si. Então, todos cantavam

marabaixo e em meio a um verso e outro, o ladrão trazia à tona tal assunto e assim

discutiam e conversavam. Tratava-se de uma estratégia por parte dos negros para

9 É um líder poético, ou um orador. Aquele que tem a habilidade de pegar a metade de um verso da música e criar

outra rima poética para finalizar, ou responder ao que fora cantado anteriormente e conduzir a comunicação entre

o grupo.

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poderem resolver seus assuntos de forma ʺlivreʺ ou sem a intervenção de seus

ʺdonosʺ. O ladrão também trazia os temas de entretenimento e descontração da roda,

assunto que será desenvolvido no próximo capítulo deste estudo.

Como podemos notar, a tradição da oralidade entre os negros quilombolas do

baixo Amazonas é iniciada nessas ocasiões. Por este intermédio as histórias eram

difundidas e todos os negros tomavam ciência de tudo que se passava. As gerações

se passaram, e a tradição da oralidade foi preservada. Quase tudo o que se sabe do

quilombo do Mel é através da “contação” das histórias. Existem poucos documentos,

cartas e até fotos. O maior volume de informações sobre a comunidade é por

intermédio da oralidade. Assim como na tradição das senzalas havia o orador

responsável por conduzir todas as informações durante a roda de marabaixo, a

comunidade do Mel tem seu orador, “Seu Alexandre”. Dono de uma memória

prodigiosa, ele compartilha as histórias com grande alegria e emoção, fazendo suas

atuais ponderações principalmente quando os fatos vão contrariamente ao credo do

quilombo. As conversas com ele são ricas em detalhes, em fatos curiosos e em datas.

Entrevistei também o “Seu Benedito” ou Seu Biló, protagonista da conversão do

quilombo ao protestantismo. Nesse caso, fez-se necessário construir uma espécie de

cânone10 entre ambos os relatos para conferir ao presente estudo maior riqueza de

detalhes.

“Seu Biló” nos disse que a história de sua conversão começa quando tinha entre

32 e 33 anos de idade. Era o ano de 1968. Está por completar 80 anos e ostenta com

alegria seus 47 anos de conversão religiosa. Mas, antes de efetivamente acontecer o

fato que mudaria a história de toda a comunidade do Mel da Pedreira, ele nos conta

que já sentia uma necessidade de buscar a Deus. Porém, não sabia como fazer tão

pouco onde encontra-lo. Sempre teve suas inquietações e indagações sobre a religião

católica, chegando a questionar a festa dedicada aos santos. “Seu Biló” tem um irmão

chamado Gurgel, que hoje tem perto de 90 anos de idade e que havia se convertido

evangélico antes dele. Quando Gurgel falava de Jesus para ele, nos descreve que

10 Música. Cânone é uma composição a duas ou mais vozes entoando uma mesma melodia, que se caracteriza

por essas vozes serem entoadas desfasadas no tempo, porém complementares. São vozes distintas que buscam

afirmação harmônica umas nas outras, feito um diálogo que ao final se concatena em uma só melodia, ou motivo

musical.

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sentia alguma coisa diferente que não podia ser explicada. Seguiu solitariamente

buscando respostas quanto à existência de Deus.

Um dia, entre amigos e parentes jogavam uma partida de dominó. Estava

nervoso porque estava perdendo e percebeu que uma pedra que falta no jogo e que

ele precisava, seu filho mais velho que era ainda pequeno havia a extraído para

brincar. Isso o enfureceu ainda mais e “Seu Biló” bateu em seu filho. Tal situação

amargurou seu coração e desde este fato nunca mais jogou dominó e se sentiu como

se estivesse totalmente sem rumo, fora do caminho certo. Abandonou a partida com

seus amigos e se retirou para um canto da mata com algumas mangas para merendar

antes de começar a caçar veados. Foi quando, de acordo com o relato abaixo, mais

um fato marcante, reputado como sobrenatural ocorre:

Não demorou muito veio uma nuvem preta.... Estava eu e uma

ponta de mato. Mas aquela nuvem bem escura, e para mim dava

a impressão que vinha há dois metros só do chão, sem chover.

Era grande assim e passou longe como daqui naquela mata. Aí

eu fiquei... disse: Oh Deus, tu “faz” essa nuvem passar aí desse

jeito e eu aqui querendo conhecer de ti. Será que é só padre que

pode fazer isso? Mas eu não tinha nenhuma ligação com pastor

e não tinha conhecimento nenhum.

No dia seguinte, foi à casa de sua irmã e viu uma Bíblia. Imediatamente se

interessou pelo livro e o folheou. (Três anos antes, em 1965, já havia despertado

interesse em ler a Bíblia e havia encontrado uma em Belém, capital do Pará, na casa

de um amigo, mas era escrita em latim e conta que chegaram à conclusão que

precisariam de um padre que pudesse lê-la para eles. Por isso, acabou desistindo de

ler). Começou a ler a Bíblia, mas não conseguia entender nada do que lia. Ficou muito

agoniado e ainda sem respostas as inquietudes que tinha. Nesta época, em Macapá,

conheceram uma mulher chamada Estefânia (que “Seu Alexandre” a chama de

matriarca da fé e a homenageou dando o mesmo nome para uma de suas filhas), que

segundo o que as pessoas comentavam era crente e vivia pela região andando com

a bíblia nas mãos e falando sobre ela.

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Então, “Seu Biló” e seu irmão Gurgel, acharam por bem procurar a Estefânia

para que ela pudesse explicar o conteúdo da bíblia para eles, como explica “Seu

Alexandre”:

Há possibilidade “da” senhora trazer aqui na nossa casa o pastor

lá da sua igreja? Ela disse: sim. Prometo para vocês. Eu vou

amanhã “pro” culto quando eu voltar já digo o dia que dá para

ele vir. E assim foi. O pastor disse que poderia ir amanhã. (...).

Começaram a convidar os vizinhos de próximo lá da casa que

vinha um pastor lá “pra” fazer um culto. E foi assim. Quando o

pastor chega, na simplicidade, sem gravata. Diz: vocês querem

ouvir uma palavra? Todos disseram que sim. Primeiro cantou os

hinos e depois abriu a bíblia e começou a explanar, né? Com

muita calma, com muita cautela (...).

Todos ficaram muito felizes com tudo o que ouviram e de imediato se

converteram. No dia seguinte, bem cedo, “Seu Biló” pedala aproximadamente 30

quilômetros de Macapá até o quilombo para contar ao sogro “Seu Bráulio” sobre sua

conversão. (Alguns quilombolas tinham bicicletas para se locomover entre o Mel da

Pedreira e a capital Macapá para compras emergenciais ou outras necessidades que

surgiam). Nesse fato, é importante frisar a audácia e coragem de “Seu Biló” para

confrontar religiosamente “Seu Bráulio” o sogro, pajé e patriarca do quilombo do Mel

da Pedreira. O confronto foi muito forte e direto. “Seu Biló”, apesar de todo o respeito

pelo sogro e pela figura de “Seu Bráulio” perante a comunidade não poupou palavras

e foi direto no que ele entendia que estavam fazendo de errado religiosamente,

segundo as orientações do próprio sogro. Vejamos o que fora dito segundo o que “Seu

Alexandre” narrou:

É que nós estamos errados! Esse santo que a gente adora aqui

não presta! (Meu irmão o negócio foi pesado, foi puxado. Meu

pai não dormiu a noite toda). Esses santos são mortos! (Falando

a verdade, né? Mas foi pesado. Primeira evangelização. Hoje eu

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não faço isso de jeito nenhum. Já tenho 46 anos de “carreira”

então a gente sabe como entrar). Então, eu vou fazer um desafio

para o senhor, velho Caiana: nós vamos pegar uma galinha é

vamos amarrar no pé dela um fio fraco, colocar ali no capim seco

e vamos colocar o santo padroeiro todo poderoso ali do lado.

Vamos tocar fogo e vamos ver quem vai sair de lá. (...). O santo

ou a galinha. Então meu pai disse para ele: é lógico Biló que

quem vai sair primeiro é a galinha. E o Biló disse: ele está morto.

A estratégia usada por “Seu Biló” foi vista, posteriormente, como uma estratégia sábia

para poder contra argumentar com o sogro que mantinha firmes outras convicções

religiosas e era o líder espiritual da comunidade.

A noite foi praticamente em clara para o “Seu Bráulio” após o confronto que

o genro propôs. Não pela situação em si – porque apesar do forte embate ideológico

da nova religião que fora trazida, o genro foi muito respeitoso e era muito querido por

ele – mas porque os argumentos usados despertaram no pajé do quilombo vontade

de saber mais a respeito dessa nova religião. No dia seguinte, logo pela manhã, um

outro filho de “Seu Bráulio” que também havia se convertido na Assembleia de Deus,

confirmou para o pai a mesma compreensão sobre a fé em santos. Por esta razão,

“Seu Bráulio” toma a decisão de querer saber mais detalhes desta nova fé e pediu

para que o pastor do genro viesse explicar o porquê de genro e filho terem mudado

de religião e estarem fervorosamente envolvidos nela.

Em onze de maio de 1968, a pedido de “Seu Bráulio” uma equipe de

pastores da Igreja Presbiteriana Central da capital Macapá chega ao quilombo do Mel

da Pedreira com a missão de acalmar e responder as dúvidas do aflito pajé da

comunidade. A equipe liderada pelo pastor José Auro de Araújo foi composta também

por: Manuel José dos Passos e Damião Lima, presbíteros da igreja. Com eles, estava

o tio do Reverendo Romilson Bastos Leite – atual pastor da Igreja Presbiteriana Peniel

– o senhor José Rubens Bastos. Realizaram um culto e “Seu Bráulio” e esposa mais

dez pessoas se converteram protestantismo naquele dia. O próprio pastor José Auro

ficou sensibilizado com a conversão coletiva, porque em toda sua carreira pastoral

não havia presenciado tal feito. “Seu Alexandre” ainda resistiu por algum tempo,

chegando a sair do quilombo e viver na comunidade do Galo, para não ter que ver e

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ouvir a mudança de credo das pessoas do quilombo. Passando algum tempo,

enviaram um bíblia para “Seu Alexandre”. Assim o fizeram porque muitos novos

convertidos religiosos do quilombo do Mel também queriam que ele se convertesse,

mas “Seu Alexandre” queria buscar uma certeza ou uma segurança para a mudança

de fé. Ele nos relata que sua resistência passa pela imagem que havia sido criada dos

evangélicos, segundo o que ele ouvia dizer uma imagem negativa, pejorativa. Ao ler

a bíblia por algum tempo, meses depois, se converte ao protestantismo em de julho

de 1968.

Como anteriormente pontuamos, a vida de “Seu Bráulio” sempre foi

marcada por muitas ocorrências reputadas ao sobrenatural desde de sua gestação.

Essa sensibilidade se desenvolveu até que fosse o pajé da comunidade. De acordo

com os relatos, ele recebia os espíritos – conhecidos também como encantados – e

tinha um guardião espiritual, um mensageiro da família, que se apresentou a eles

como Esmeraldo. Certa vez alguns poucos anos antes da conversão, Esmeraldo

prediz o rompimento de “Seu Bráulio” e, por conseguinte de toda a comunidade a fé

através da pajelança. Vejamos a fala de “Seu Alexandre” confirmada por “Seu Biló”:

Alguns anos, poucos anos antes da nossa conversão, o

mensageiro da família baixava no meu pai é dizia: “Vocês vão

nos abandonar”. E minha mãe só faltava chorar porque ele era

tudo para ela. (...). Minha mãe dizia: “Não pode acontecer isso! ”

E o mensageiro disse: “Vocês estão caminhando numa ponte

velha, quebrada e vocês estão chegando no final dessa ponte e

vocês vão “tá” entrando numa pista linda. ” Ninguém

compreendia. A gente não tinha noção. Quando a gente se

converteu a gente entendeu a mensagem. Meu pai abandonou

o “pajelismo”, meu pai abandou a idolatria, abandonou tudo. A

gente vivia assim monitorado por essas coisas e abandonamos

tudo. E a pista linda é o caminho de Deus.

Em 1968 ainda, no local que hoje é a igreja, havia uma casa de “Seu Bráulio”

onde os novos convertidos se reuniam para os cultos protestantes. Mensalmente, a

igreja presbiteriana enviava um pastor para realizar um culto com eles. Pouco tempo

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depois, iniciaram a Escola Bíblica Dominical, após terem a conhecido na igreja em

Macapá. Acharam importante para se firmarem ainda mais no novo credo e adotaram

também no quilombo do Mel.

O confronto cultural foi inevitável. Os quilombolas do Mel orientados pela

igreja não podiam mais participar ou organizar as antigas festas regadas a marabaixo

e batuque. Apesar da comunidade protestante ter crescido muito e rapidamente entre

os quilombolas do Mel, alguns não suportaram as proibições da igreja quanto a cultura

e abandonaram a nova fé. Porém, a congregação do Mel foi se organizando desde o

início já a sua própria maneira. Não somente por causa da forte personalidade de sua

identidade étnica, mas ao meu entender por dois outros fatos. O primeiro deles, devido

à ausência diária, ou ao menos semanal, de um pastor na comunidade, certos

costumes doutrinários da igreja presbiteriana tradicional, não foram introduzidos. Por

outro lado, os quilombolas buscaram uma maneira mais confortável – ou mais próxima

da cultura étnica – de celebrar os cultos com muita festa e música. Tais atos culturais

tão pouco seriam retirados depois de instaurados, ainda que fossem totalmente

contrários aos costumes tradicionais, e foram tolerados pela igreja presbiteriana para

que não houvesse um abandono coletivo da nova fé. O outro fato é que havia um

contato muito grande entre a comunidade presbiteriana quilombola e a Igreja

Assembleia de Deus. Alguns quilombolas do Mel haviam se convertido lá, inclusive

um dos filhos de “Seu Bráulio”. Por se tratar de uma igreja pentecostal, os cultos não

são solenes e comumente extravasam suas emoções e espiritualidade em voz alta e

com música alegre. Em suas igrejas eram muito presentes, naquela época, o violão,

o pandeiro, o cavaquinho e o acordeom. As músicas por eles entoadas mesclavam

gêneros nordestinos e moda sertaneja. Esses hábitos musicais foram introduzidos no

culto presbiteriano do Mel. “Seu Alexandre” nos conta que desde o começo dos cultos

na comunidade, “Seu Biló” adotou o violão para os cânticos congregacionais. Usavam

o hinário “Salmos e Hinos” e adaptavam para as modas sertanejas que de certa forma

eram toleradas pela igreja presbiteriana de Macapá que tinha cultos bem solenes e

somente adotavam o piano ou o órgão como instrumentos apropriados para

acompanhar o canto congregacional.

Um dos hinos mais cantados pela comunidade do Mel no início de sua

formação protestante foi o número 304 do “Salmos e Hinos”. “Seu Alexandre” com

bastante saudosismo, recita a letra do cântico e nos relata que na companhia

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inseparável do violão cantavam à moda do quilombo, o que segundo ele foi um dos

ensinamentos mais importantes e mais marcantes para sua conversão:

A voz do Evangelho

Já se fez ouvir aqui,

Publicando, em som alegre,

O que Deus já fez por ti.

Pois tanto ao mundo amou

E ao perdido pecador,

Que do céu lhe deu seu Filho

Para ser seu Redentor.

Santa paz e perdão,

É a nova lá dos céus!

Santa paz e perdão,

Bendito o nosso Deus!

A voz do Evangelho

Segurança, vida e paz,

E o amor de Jesus Cristo

Que o perdão de Deus nos traz.

As novas se nos dão

De haver um Salvador,

Poderoso e mui bondoso

Que perdoa o pecador.

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A voz do Evangelho

Vem a todos avisar

Do perigo, grande e grave,

Para quem se descuidar.

Salvai-vos desde já,

Não vos detenhais no mal,

Cobiçando os seus prazeres,

Pois vos pode ser fatal.

Alguns hinários como “Salmos e Hinos” foram utilizados por diversas igrejas

ainda que com contextos teológicos diferentes. Como boa parte deste cancioneiro se

dedica a temas relacionados a salvação, perdão de pecados e a morte de Cristo na

cruz para remissão da humanidade, ponto comum entre as igrejas sejam tradicionais

ou pentecostais, por muitas décadas foi utilizado. (Mendonça, 1995, p.190).

Posteriormente outras denominações evangélicas acabaram por criar seus próprios

hinários. A maioria deles têm praticamente as mesmas músicas com letras alteradas.

Já algumas canções, foram integralmente mantidas e publicadas novamente.

Atualmente, somente as igrejas tradicionais fazem uso recorrente dos hinários. Muitas

outras instituições evangélicas praticamente aboliram o uso dos hinários e adotaram

músicas avulsas de diversos intérpretes para o canto congregacional que mudou de

nome para momento de “Louvor e Adoração”. Mais adiante, no capítulo três,

analisaremos o repertório utilizado nos cultos do quilombo do Mel da Pedreira, onde

poderemos notar um grande congraçamento entre canções tradicionais, pentecostais,

escatológicas e do movimento gospel atual.

A ruptura da cultura de marabaixo e batuque foi imediata. Os quilombolas

foram ensinados a abandonar completamente essas práticas que no entender da

igreja presbiteriana estavam totalmente ligadas as oferendas praticadas nas festas

dos santos. Por longos anos, até o reconhecimento da comunidade como

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remanescentes de escravizados, próximo aspecto que queremos abordar, não se

manifestavam pelos ritmos musicais da tradição africana nas reuniões e eventos

familiares do quilombo, tão pouco nos cultos. É que nesse caso, segundo a tradição

presbiteriana, a música não deve ser para “impressão” e sim para “expressão” como

aborda em sua tese de mestrado (Modolo, 2006, p.43):

“O papel de “impressão” da música certamente é o que causou,

e ainda causa maiores dificuldades quando visto da perspectiva

do culto. (...) Trata-se do poder que a música tem de atuar sobre

nosso corpo e nossas emoções, alterando-as. Nesse caso ela

pode nos acalmar ou excitar, ainda que sem palavras, e criar

diferentes atmosferas. (...). Longas melodias, repetição

exaustiva de frases musicais, extrema ênfase melódica com

grandes saltos intercalados de cromatismos, são recursos

musicais que geram, em essência, música emotiva e de efeito

contagiante que, embora possa vir acompanhada de texto, dele

não depende, nem com ele se preocupa. Sua finalidade é

alcançar os presentes emocionalmente, criando “ambiente”

preparatório, suposta ou verdadeiramente litúrgico. (...), os

cânticos entoados pela congregação ou grupo especial, em

diferentes momentos de culto, cujos textos tenham sido

elaborados e escolhidos para que a mensagem neles contida

seja compreendida, absorvida e fixada pelos participantes, (...)

cujo sentido é reforçado pela música, esses podem ser

classificados como “música de expressão”. A música, nesse

caso, será veículo para o texto e será tão mais eficiente quanto

melhor for seu “casamento” com as palavras, isto é, quanto

melhor a música puder expressar, por si só, as ideias contidas

no texto. ” (...) O que parece ter despertado tanta antipatia em

alguns dos reformadores e, antes deles, nos Pais da Igreja,

quanto ao uso da música instrumental ou de um tipo de música

“ricamente ornamentada” no culto, foi a consciência de que os

sons podiam exercer poder sobre as emoções humanas. Eles

declararam seus temores de que a música pudesse chamar

tanto a atenção para si, desviar tanto os fiéis da Palavra, inebriá-

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los tanto pela sua beleza, que poderia levá-los a perder o eixo

central do culto. Seria a “música pela música”, no máximo para

criar ambientes atraentes, isto é, apenas em sua função de

“impressão”. ”

Todos esses conflitos ideológicos que circundam o tema música apropriada para o

culto desta comunidade, serão abordados no capítulo três desta pesquisa.

Por toda a trajetória da congregação do Mel, a igreja de Macapá, a Peniel,

sempre enviou mensalmente os pastores para a celebração de cultos. Foram muitos

pastores de 1968 para cá. Os pastores também dedicam tempo em atender as famílias

e as necessidades do quilombo. Até o presente momento, a congregação

presbiteriana do quilombo do Mel não tem um pastor ordenado dedicado

integralmente para atender a igreja e toda a comunidade. Na própria localidade do

quilombo, Seu Alexandre e Seu Osvaldino lideram e conduzem os cultos e

“funcionam” como pastores da congregação do quilombo.

1.6 O reconhecimento como quilombolas e a titulação das terras

Desde 1954, os quilombolas do Mel vivem nas terras compradas por Seu

Bráulio de seu primo. Esta área, sempre foi vista por toda a comunidade como de

pertencimento, ou seja, ela é herança para todos eles desde que o patriarca iniciou o

grupo a partir de sua família. Ao longo dos anos viveram a certeza da posse da terra,

ainda que em algumas situações tiveram que enfrentar invasões de posseiros11 até

que o governo interveio e desapropriou do local os invasores. (Souza, 2014, p.21).

Em março de 2004, o governo federal lança o Programa Brasil Quilombola

(PQB) com uma política estatal para as áreas onde vivem remanescentes de

escravizados e determinou que o INCRA, Instituto Nacional de Colonização e Reforma

Agrária fosse o gestor das políticas de reconhecimento e regularização das terras

11 Posseiro. Os posseiros são lavradores (agricultores) que juntamente com a família ocupam pequenas áreas de

terras devolutas ou improdutivas, isto é, terras que não estão sendo utilizadas e que pertencem ao governo.

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ocupadas pelas comunidades, tarefa antes atribuída ao ministério da cultura. Todo o

processo que regulamenta a identificação, o reconhecimento, a delimitação, a

demarcação e a titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades

dos quilombos consta no decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003. Por sua vez, o

INCRA, como órgão competente para gestão das regularizações dessas terras, cria a

Coordenação Geral de Regularização de Territórios Quilombolas (DFQ) vinculado à

Diretoria de Ordenamento da Estrutura Fundiária. O artigo 2 do decreto diz:

“consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste

Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto atribuição, com trajetória

histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de

ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”.

Porém, para iniciar o processo junto ao INCRA, a comunidade precisa se

auto reconhecer como remanescentes de quilombo, e encaminhar uma declaração

deste reconhecimento à Fundação Cultural Palmares, órgão competente para expedir

a Certidão de Auto Reconhecimento do grupo solicitante.

O processo não é simples. São diversas as etapas até a titulação das terras.

Para que o INCRA de início ao processo de reconhecimento, após a declaração de

auto reconhecimento e da certificação emitida pela Fundação Cultural Palmares,

como primeira parte de todo o procedimento desenvolve um estudo da área, para

emissão do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) do território em

questão. A segunda parte envolve a recepção, análise e julgamento de eventuais

contestações. Após a aprovação definitiva do relatório (RTID), o INCRA pública uma

portaria de reconhecimento e delimitação do território quilombola. A terceira e

derradeira parte envolve o processo administrativo da regularização fundiária, a

retirada de invasores não quilombolas através de desapropriação das terras ou

pagamento de indenizações. Ao final, o INCRA emite a concessão do título de

propriedade à comunidade, que é coletivo, pró-indiviso e em nome da associação dos

moradores da área, registrado no cartório de imóveis, sem qualquer ônus financeiro

para a comunidade beneficiada.

Seu Alexandre nos conta quando recebeu a visita dos antropólogos do

INCRA, houve um conflito em função da fé cristã reformada do grupo, ou seja, um

quilombo, remanescentes de escravizados não podem expressar outra religião porque

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tal feito seria uma negação das raízes e a perda da identidade étnica de acordos com

os antropólogos que se reuniram com ele:

Aqui no relatório está dizendo que vocês aderiram a fé cristã

evangélica. A partir desse momento, vocês perderam a

identidade das raízes, das matrizes africanas. Eu só pedi a Deus

ajuda e sabedoria. (...). Naquele momento, (...), eu disse: Olha

eu não conheço nada, sou leigo, analfabeto perto de vocês, que

são letradas e tudo, mas vocês sabem mais do que eu que nosso

país brasileiro é um país democrático. A democracia nesse país

“é” direito iguais, é direito de ir e vir é direito de escolha.

Liberdade de expressão. Então eu disse: O que vocês acham de

eu escolher a religião que eu quero?

Depois, acrescenta que a escolha de uma nova fé, não altera suas raízes tão pouco

sua história, a cor da pele e seus traços.

Após essa visita e entrevista, em abril de 2007 o quilombo do Mel recebeu

a titulação da terra, a tão esperada garantia de posse para a comunidade presente e

as futuras gerações.

No capítulo três, analisaremos a história da música do quilombo do Mel da

Pedreira, como a cultura ancestral africana foi introduzida no culto bem como o

entendimento de identidade étnica e como a música transmite a ideologia quilombola

do Mel. Antes, porém, no capítulo dois, estudaremos o marabaixo e o batuque, ritmos

advindos das festas e da cultura dos negros do baixo amazonas.

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2. O Batuque e o Marabaixo

Para compreendermos as origens da cultura do quilombo do Mel e

consequentemente a música que produzem atualmente, precisamos nos volver a

história do Batuque e do Marabaixo. Sabemos (ao ouvir a música executada pelo

quilombo atualmente) que ao apreciá-la, não poderíamos incluí-la numa única

categoria estética e analítica, que pudesse abarcar todas as diferenças por ela

manifestadas no que se refere a execução de um modo geral. Nesta arte encontramos

o ritmo africano tão fortemente desvelado, a música sertaneja do homem do campo,

a música religiosa tradicional vinda dos hinários a música religiosa mais popular que

engloba diversos gêneros da música gospel12 atual e antiga e, a música do rádio nos

idos da década de 1960 e 1970.

Evidentemente, o que mais chama atenção nesta miscelânea de gêneros é o

marabaixo e o batuque. É o “ingrediente” mais usado para esta “massa” sonora. As

porções generosas destes ritmos musicais, colocados em primazia sobre os outros

gêneros que formam esta “receita”, transmitem um anseio de desabafamento

ideológico e identitário sob a etnia negra que nunca é negada, mas sim ostentada com

orgulho por esta comunidade, como nos disse Seu Alexandre ao afirmar que o fato de

serem protestantes não muda a cor de sua pele, sua ancestralidade e seu apego a

cultura africana.

A música sempre foi um meio eficiente de promover a fácil fusão entre os

ensinamentos religiosos e a memorização de tais ensinanças pelo indivíduo religioso,

a fim de que ele possa ter consolidado o que aprendeu do que lhe fora transmitido.

Isto forma uma maneira de ser para todos os que são submetidos à música,

independentemente do estilo. Ela interfere, e muito, ditando por vezes o

comportamento de seus apreciadores, não tanto quanto interfere no comportamento

dos executores. E nesse sentido, marabaixo e batuque são gêneros musicais

completamente antagônicos ao ethos religioso protestante, principalmente o

12 Gospel. A música gospel em seu país de origem é a música negra estadunidense. No Brasil, o termo gospel

serve para identificar toda música evangélica sem distinção de gênero ou estilo. A música gospel pode transitar

em quaisquer estilos e características, desde que sua hinódia seja voltada a temas bíblicos ou doutrinários de cada

vertente evangélica.

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tradicional assim como o é o presbiterianismo. Acrescento que nos meandros

evangélicos como um todo, esses ritmos não são considerados adequados para o

culto. Algumas poucas igrejas aceitariam o uso desses gêneros como meio de

comunicação e atração para as comunidades negras no objetivo de conversão, assim

como fazem com o rock, o rap e outros para distintos grupos, porém, imediatamente

após convertidos, seriam motivados a deixar de apreciá-los ou praticá-los. Sem contar

que tambores, de uma forma geral, são vistos no contexto da religião como sempre

alusivos ao candomblé, umbanda e outros e, no caso do batuque e marabaixo são

ritmos pertencentes, ou dedicados as festas de santos. Os próprios quilombolas do

Mel já disseram que com certa frequência provam da reprovação dos protestantes no

que se refere a música que produzem.

A música ideal para os cultos é um tema de discordâncias históricas. Sempre

foi um assunto recorrente, e que até os dias de hoje não se chega a uma conclusão

definitiva sobre quais estilos ou gêneros são apropriados. Desde os tempos primórdios

da igreja cristã, sempre houve uma busca por produzir música litúrgica que se

diferenciasse das outras classes musicais, no sentido de promover uma música pura,

apropriada para o sagrado. Por isso ao longo dos séculos da história da música

ocidental vemos o desenvolvimento de muitas liturgias e todas com a sua forma

específica musical. O interessante é observar que o objetivo das liturgias – e aqui me

refiro especificamente aos aspectos musicais – sempre foi de desenvolver uma

música diferente do contexto social geral como meio fundamental de manifestar uma

ideologia religiosa contrastante como foi com a liturgia de Bizâncio que se opunha as

tradições judaicas, como os hinos compostos por Martinho Lutero e outros nas línguas

de origem (não mais em latim) na reforma protestante e no caso desta comunidade,

com a inserção do marabaixo e do batuque no culto quilombola protestante

presbiteriano (GROUT, D. J.; PALISCA, C. V., 2007).

Assim como é difícil definir exatamente de qual país vieram os escravos que

formaram as comunidades quilombolas no Amapá, tão complexo quanto definir as

origens do Marabaixo e do Batuque. O negro e sua cultura afro descendente é parte

dessa região desde o século XVIII. Os negros que foram enviados a Belém e

distribuídos por toda a região do baixo amazonas vieram de diversos países,

provenientes dos portos de Luanda (Guiné-Bissau), Cabinda, Benguela (Angola) e

Moçambique. Alguns outros, vieram da Guiné Portuguesa para trabalhar na

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agricultura, mas a maioria de negros eram foragidos de Belém na época do governo

do grão Pará (SANTOS, 1998). Em 1751, os negros trabalhavam fortemente não só

nas lavouras de arroz e cana de açúcar, mas também nas construções urbanas e

principalmente na edificação da Fortaleza São José por razões de proteção do

território ameaçado pelos franceses. Esta construção é considerada a maior fortaleza

erguida na américa latina no período colonial. A construção é imponente, cercada de

beleza e possível pelo trabalho escravo de negros e índios.

O Marabaixo e o Batuque se apresentam como os mais importantes

representantes da cultura dos remanescentes negros escravizados no estado do

Amapá. Igualmente são danças e músicas executadas com caixas, tambores,

pandeiros e outros instrumentos membranofones13 de construção primitiva. Os ritmos

fazem parte de festas em sua maioria dedicada aos santos católicos. São presentes

no Marabaixo e no Batuque diversos rituais de matriz africana e de pajelança. Como

protagonistas da cultura do estado, atualmente, vem recebendo aportes financeiros

dos governos municipais e estaduais, especificamente para o “Ciclo do Marabaixo”

período festivo do estado onde grupos de quilombolas se apresentam publicamente.

Em função desse investimento e do incentivo publicitário da cultura local pelo governo,

têm ganhado muitos outros admiradores e praticantes que não são oriundos das

comunidades de quilombolas. Em 2015, a Secretaria de Estado de Cultura (Secult),

disponibilizou cento e noventa mil reais para as apresentações dos diversos grupos

de quilombolas. Esses valores foram divididos de forma igualitária entre todas as

comunidades que mantêm grupos para a festividade. Os recursos apoiam as

comunidades no custo das indumentárias, instrumentos, comida entre outros custos.

Em 13 de julho de 2004, o governador Antonio Waldez Góes da Silva sanciona

a lei 0845 que cria e insere o “Ciclo do Marabaixo e Batuque” no Amapá. A lei, projeto

do deputado Alexandre Barcellos, descreve que os festejos se estendem a todas as

comunidades, independendo do período que cada uma delas dedica a festa em louvor

ao padroeiro e define que o ciclo se inicia no sábado de aleluia (semana santa do

13 Membranofone. A Organologia, disciplina que trata da descrição e da classificação de qualquer instrumento

musical, tendo em conta o material empregue, a forma, a qualidade do som produzido, o timbre, o modo de

execução; define que são instrumentos de percussão, que produzem som através da vibração de membranas

distendidas. As membranas distendidas podem ser peles de animais, ou películas sintéticas produzidas pela

indústria de instrumentos musicais.

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calendário cristão) e se estende até a primeira quinzena do mês de junho, período

dedicado ao Divino Espírito Santo e Santíssima Trindade. Outro evento importante é

o chamado “Encontro dos Tambores”, promovido pela Secult e pela Seafro (Secretaria

de Políticas para Afro descendentes). Ocorre na semana da conscientização negra.

O grupo musical do quilombo do Mel da Pedreira participa há três anos ativamente

desta programação. Também são desenvolvidas palestras, oficinas e seminários com

temas voltados às questões da negritude no estado, para difusão de uma gama de

informações mais completa para o público geral.

Como se pode notar, os governos regionais estão valorizando a cultura local e

investindo recursos para que essas festas cada vez mais sejam conhecidas na

localidade e consequentemente em todo o Brasil.

O Batuque e o Marabaixo são danças cuja forte caracterização é o arrastar dos

pés no ritmo imposto pelos tambores, no sentido circular e anti-horário. A música se

caracteriza por alegria e espontaneidade e, é o meio pelo qual agradecem aos santos

padroeiros intercessores pelas graças alcançadas. Também, celebram a sofrimento

dos negros antepassados. A poética de ambos é muito simples e reflete o cotidiano

das comunidades e mais recentemente suas afirmações étnicas e identitárias, como

detalharemos a seguir.

2.1.1 O Marabaixo

Nas conversas com os quilombolas, quando perguntamos o que significa, ou

qual a origem do Marabaixo, ouvimos algumas versões diferentes. Entre elas, existem

duas mais recorrentes: a primeira conta que eventualmente os senhores

“proprietários” dos negros nas grandes festas os permitiam fazer a sua “mar-a-baixo”.

A outra versão, e a mais popular e difundida pelos remanescentes de escravizados

em função de um apelo mais emocional, conta que o ritmo das batidas dos remos nas

caravelas trazia os negros mar a baixo, saindo da África para o Brasil. Tais batidas,

teriam sido a sugestão para as batidas das caixas do ritmo construído, ou seja, do

Marabaixo. Ao certo, ninguém sabe afirmar com total segurança a origem do

marabaixo. Talvez esse significado tenha sido construído pelos antigos quilombolas

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com o objetivo de se referir às dores diásporas de uma forma saudosista, melancólica

ao continente de origem, a África.

Sobre a origem do Marabaixo, Zé Miguel, músico, cantor e compositor, ex-

secretário de cultura do estado Amapá, filho de Seu Biló e neto de Seu Bráulio – os

dois protagonistas da conversão ao protestantismo do quilombo do Mel, conforme

descrito no capítulo anterior -, reforça a tese de que o Marabaixo tenha surgido entre

as comunidades negras de escravizados no Brasil, no estado do Amapá:

Eu creio que os elementos [rítmicos do Marabaixo e Batuque]

vieram de lá. Mas eles tomaram uma nova forma aqui [Amapá].

Porque a incidência de Batuque e Marabaixo só ocorre aqui. Se

você vai aqui no estado vizinho, do Pará, você não tem

Marabaixo. Você tem outros [ritmos]. E o Amapá, foi província

do Pará, antes de ser estado era província do Pará. Então, essa

é uma coisa interessante, porque nós sendo província do Pará,

o Marabaixo só ocorre aqui e não tem no Pará? Entendeu? Diz-

se aqui que o Marabaixo veio com os negros que foram trazidos

para a construção do forte (...).

Se os rituais religiosos das comunidades de remanescentes escravizados têm

elementos fortes da pajelança, como os atos dos curandeiros xamânicos, não seria

surpreendente conjecturar que o Marabaixo tenha absorvido elementos musicais,

rítmicos ou coreográficos dos indígenas, o que reforçaria o depoimento de Zé Miguel.

O convívio era, geograficamente falando, bastante próximo entre quilombolas e índios.

Tiago de Oliveira Pinto, musicólogo da Universidade de São Paulo, professor da

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, em seu ensaio “Música dos

Quilombos” em pesquisa realizada no estado do Amapá nas comunidades do

Maruanum, Favela, Mazagão, Laguinho, concorda que o marabaixo passou por

adaptações ou mudanças no Brasil, e que provavelmente incorporou ao menos na

dança elementos indígenas (Pinto, 2000, extraído do site:

http://sonsdobrasil.blogspot.com.br/2005/09/msica-dos-quilombos.html ):

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No contexto tradicional afro brasileiro é raro, talvez até mesmo

único do marabaixo, o desempenho do agente musical

simultaneamente como percussionista, cantor e dançarino,

conforme observado com os puxadores desse gênero

genuinamente amapaense. Diferente do batuque, parece que o

marabaixo absorveu elementos indígenas da região amazônica

que se fazem presentes na maneira como o grupo dança em

torno dos percussionistas. Não obstante a produção sonora ser

de nítido cunho afro brasileiro, a dança coletiva do marabaixo

lembra os movimentos compassados de um grande grupo coeso

que percorre ciclos infinitos, redesenhando o próprio espaço

mítico dos torés14 indígenas e caboclos da região norte e

nordeste do Brasil.

Porém, a história do marabaixo transmitida ao longo dos séculos através da

oralidade dos líderes das comunidades de remanescentes escravizados, trata a dança

como elemento coreográfico genuinamente negro, desenvolvido nas senzalas quando

presos e obrigados a trabalhar na construção da Fortaleza São José, como comenta

Zé Miguel:

O marabaixo era proibido de tocar. Mas quando eles eram

reunidos nas senzalas, eles tocavam e era uma forma de

comunicação. No meio das músicas eles falavam o que

acontecia durante as atividades. Eles lamentavam, contavam as

fofocas da mulher do fulano que estava pulando a cerca com não

sei quem... Era o processo de comunicação deles. (...). A dança

diferente do carimbó15, o pé não sai do chão. (...) O pé era no

14 Toré. É uma dança que inclui práticas religiosas secretas a que somente os índios têm acesso. A dança é

realizada por homens e mulheres, que formam um grande círculo que gira em torno do centro. É acompanhado

por maracas e pelas vozes dos dançarinos. 15 Carimbó é uma sonoridade de procedência indígena, aos poucos mesclada à cultura africana, com a assimilação

das percussões dos negros; e a elementos de Portugal, como o estalar dos dedos e as palmas, que intervêm em

alguns momentos da coreografia. Originalmente, em tupi, esta expressão significa tambor, ou seja, curimbó, como

inicialmente era conhecido este ritmo. Gradualmente o termo foi evoluindo para carimbó.

Esta dança teve sua origem no território de Belém, mais precisamente na área do Salgado, composta por

Marapanim, Curuçá e Algodoal; e também se disseminou pela Ilha de Marajó, onde era cultivada pelos pescadores.

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chão. Dançavam em roda em forma de mandala. Os dos

tambores ficam no meio da roda e a comunidade vai em volta

rodando em todo o tempo.

Os relatos acima ao meu ver não se contradizem. É possível que de fato a

dança do marabaixo surja exclusivamente das reuniões nas senzalas, e que com o

passar dos anos, a liberdade das comunidades quilombolas e indígenas já que

também os índios foram obrigados a trabalhar na construção da fortaleza, tenha

produzido depois alguma convergência coreográfica. Fato é que ambas as etnias

mantêm a dança como elemento crucial de suas manifestações culturais e

ritualísticas. Outro aspecto importante, é que a dança, segundo os historiadores era

estimulada pelos colonizadores dentro dos navios negreiros com o objetivo de ao

menos minimizar o chamado banzo que é o sentimento de nostalgia, de saudades da

terra natal e a tristeza produzida pela privação da liberdade. Então, de certo modo, a

cultura negra era usada em próprio benefício dos colonizadores e de seus objetivos

que somente poderiam ser alcançados mediante o trabalho escravo. Por este aspecto,

podemos pensar que os escravos desenvolveram o marabaixo antes da chegada ao

Brasil, mas este fato, como dissemos antes, não impediria algum tipo de hibridismo

cultural, fruto da convivência das duas etnias.

Outro fator que aponta para o hibridismo do marabaixo é o festejo dedicado aos

santos católicos. Como veremos mais adiante, ainda neste capítulo, o marabaixo e o

batuque são os gêneros musicais africanos usados para louvor aos santos por parte

dos quilombolas. Provavelmente, o contato dos negros com o catolicismo deu-se

somente no Brasil por causa das famílias portuguesas e dos brasileiros colonizadores,

o que acena para a comprovação das influências não africanas.

O que fica bastante delineado é que há dois tipos de marabaixo. Um ritualista,

religioso. O outro, cultural, de entretenimento que apesar das dificuldades impostas

pelo tolhimento da liberdade aos negros, sobreviveu como estética identitária dos

Acredita-se que o Carimbó navegou pela baía de Guajará, pelas mãos dos marajoaras, desembarcando nas areias

do Pará, justamente nas praias do Salgado. Não se sabe exatamente em que ponto desta região ele tomou forma

e se consolidou, embora Marapanim clame pela paternidade desta coreografia, editando anualmente o famoso

Festival de Carimbó de Marapanim.

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quilombolas do Amapá. Tanto a música quanto a dança são recheadas de

sentimentos e ideias do passado que é muito distante, místico e que foi reorganizado

em função da cultural local, especialmente do catolicismo popular. (Gomes, 2012).

2.1.2 Os Símbolos do Marabaixo

O marabaixo tem diversos símbolos. Eles em sua grande maioria fazem

menção ao catolicismo popular. São de homenagem aos santos e gratidão e louvor

por boas colheitas. Os significados de tais objetos são descritos de maneira que

podemos compreender como a igreja católica conseguiu reforçar a fé dos quilombolas

em seus símbolos e santos, em perfeita e híbrida convivência com os rituais religiosos

afro-brasileiros. A coroa, a bandeira, o mastro, as fitas, a murta são todos elementos

católicos, como vemos abaixo:

As coroas são peças de prata em formato de globo com uma pomba em cima

simbolizando o Espírito Santo e a Santíssima Trindade. Nas hastes das coroas são

amarradas fitas coloridas que representam as promessas dos posseiros.

No marabaixo existem duas bandeiras. Uma, de coloração vermelha e branca

com uma pomba impressa representando o Espírito Santo. A outra bandeira, tem as

cores azul e branca. Nela está impressa a imagem da Coroa do Divino Espírito Santo.

Tanto nas rodas de marabaixo, quanto nos desfiles públicos as bandeiras são

agitadas pelos festeiros.

A murta, planta extraída das matas e com um perfume agradável, é utilizada

para trazer boas energias ao Ciclo do Marabaixo. São utilizadas para enfeitar os

mastros da Santíssima Trindade e do Divino Espírito Santo. Os músicos, enfeitam

seus instrumentos com a planta e quando o fazem, cantam e dançam com os ramos

da planta em suas mãos.

Os mastros são madeiras, geralmente troncos esguios de árvores que foram

esculpidos e pintados com as cores dos santos. Eles representam a própria entidade

divina. Para cada santo, são feitos dois mastros. Um para receber as cores do santo

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e o outro para ser adornado com as folhas de murta. No extremo alto de cada mastro,

são colocadas as bandeiras dos santos.

Para os festejos de marabaixo, homens e mulheres devem se vestir com as

indumentárias específicas. Há trajes específicos para homens e outros para as

mulheres. Anteriormente, as mulheres se vestiam com camisa de renda, saia

estampada com rendas, anágua, sandálias de couro e arranjos florais na cabeça. Por

sua vez, os homens se vestiam com camisa branca com bordados, calça branca e

chapéu de palha enfeitados com flores e fitas coloridas. Usavam também sandálias

de couro. Com o passar do tempo, os trajes também sofreram algumas mudanças e

as mulheres passam a vestir saias floridas e rodadas, blusa de renda, anágua, flores

no cabelo e uma tolha que foi adicionada a indumentária e posta nos ombros para

secar o suor do rosto. Já os homens, passaram a vestir calça branca, camisa florida

e chapéu de palha enfeitado com murta. Zé Miguel nos contando sobre sua primeira

memória musical no quilombo do Mel ainda criança especifica também os trajes

femininos:

Minha primeira memória musical é das festas de marabaixo que

meu avô dava na casa dele. Ele tinha uma casa grande, com um

grande salão e a cozinha. E nesse salão meu pai recebia as

pessoas para as festas. A maioria das festas já eram de

marabaixo e batuque. (...). As mocinhas da época usavam flor

no cabelo e vestido rodado de algodão que são elementos do

marabaixo. A mulher põe a flor no cabelo, um lenço, a saia

rodada e dança. A minha primeira memória é vinculada a isso,

as festas tradicionais na casa do meu avô, Seu Antonio Caiana

[Seu Bráulio patriarca do quilombo do Mel da Pedreira].

Outros símbolos importantes das festas de marabaixo são a bebida e a comida.

A bebida é a tradicional gengibirra feita de cachaça, gengibre, cravo, água e açúcar.

Segundo os relatos, a gengibirra traz energia aos festeiros para dançar até o

amanhecer e o momento em que os mastros serão erguidos e sustentados por eles.

A comida é farta e distribuída gratuitamente em todas as festas de marabaixo.

Basicamente são servidos caldo de carne e verdura e mamão verde. Há também as

festas onde se distribui bolo de mandioca, tapioca e outros alimentos. O objetivo da

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comilança é manter os festeiros com energia suficiente para disfrutar da festa desde

seu início até o fim. Tanto comida como a bebida, além de seus valores energéticos

ao físico, são considerados elementos que trazem bons fluídos para as festas assim

como as folhas de murta.

2.1.3 Os Instrumentos

No marabaixo os instrumentos utilizados são os membranofones. A

organologia, - disciplina que trata da descrição e da classificação de qualquer

instrumento musical, tendo em conta o material empregue, a forma, a qualidade do

som produzido, o timbre, o modo de execução, entre outros aspectos -, tipifica os

instrumentos em três grandes famílias, os instrumentos de cordas, de sopro e de

percussão. Os membranofones são os instrumentos que residem nessa última

categoria como instrumentos que produzem som através de uma membrana esticada

sobre uma estrutura de madeira ou metal. As membranas podem ser sintéticas ou de

peles de animais.

O membranofone utilizado no marabaixo é o que se assemelha bastante ao

conhecido no Brasil como Surdo. Este instrumento é um tambor cilíndrico de tamanho

médio e som grave, porém, não tão grave quanto o Bombo. No samba, o surdo é

utilizado como instrumento que marca o tempo das batidas para que outros

instrumentos percussivos possam desempenhar um papel musical mais elaborado.

Ao contrário, no marabaixo o surdo é o protagonista e não se encarrega

exclusivamente do tempo, mas sim de toda a dinâmica rítmica. Este instrumento na

cultura quilombola do Amapá é chamado, na maior parte das regiões do estado como

Caixa de Marabaixo. Este nome, pode variar de acordo com cada comunidade.

A caixa de marabaixo por sua vez é tocada por um par de baquetas de

espessura média o que permite produzir um som ligeiramente mais agudo que o

tradicional surdo que é tocado por uma baqueta espessa, pesada e com feltro na

ponta, como as que são utilizadas para tocar bombo. Existem variações no tamanho

e na largura das caixas de marabaixo. E a medida que os instrumentos não têm

dimensões padronizadas, o timbre especifico de caixa de marabaixo varia um pouco.

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E num conjunto, formado por três ou quatro tambores destes que são executadas as

músicas deste gênero musical quilombola amapaense. Assim como o surdo, a caixa

de marabaixo é presa junto ao corpo do percussionista por uma correia de couro

transpassada pelo pescoço para que haja total mobilidade dos braços para o tocar do

instrumento sem a preocupação de sustentação do tambor.

Os membranofones antigos eram tradicionalmente construídos pelos próprios

quilombolas com os recursos que a natureza disponibilizava para as comunidades.

Troncos de árvores ocas são a base de madeira utilizada para a colocação da

membrana (pele de animal). Há uma variação muito grande quando se trata da pele

dos animais que eram caçados também para essa finalidade. Mas, a maior incidência

é de caixas de marabaixo com pele de cobra, carneiro ou bovino. Aí está mais uma

razão da produção de timbres16 diferentes por cada caixa de marabaixo, em função

da resistência, elasticidade e espessura das peles de cada animal caçado.

Atualmente, ainda se encontram tambores construídos como descrevemos aqui, mas

também já se utiliza, em larga escala, verdadeiros surdos industrializados utilizados

como a tradicional caixa de marabaixo. Evidentemente, também ocorre mais uma

variação timbrística em função das membranas sintéticas utilizadas na fabricação

destes instrumentos. Vejamos algumas fotos dos instrumentos:

16 Timbre. Característica sonora específica de cada instrumento ou voz que nos permite identificar e distinguir as

diferentes origens de cada som.

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Geralmente, as comunidades tinham seus artesãos responsáveis pela

confecção dos tambores. Esses conhecimentos eram transmitidos de pai para filho,

assim, até os dias de hoje existem [poucos] artesãos com habilidades para fornecer

esses instrumentos. O processo, completamente artesanal é bastante simples e em

poucos estágios. Após encontrado o tronco e a pele de animal a serem utilizadas, com

o auxílio de ferramentas improvisadas ou manuais, se extrai um pouco mais a madeira

interna do tronco oco. O material é lixado, preparado então para receber a pele do

animal. Na comunidade do Mel da Pedreira, encontramos tambores artesanalmente

produzidos, também o surdo fabricado pela indústria utilizado como caixa de

marabaixo como verificaremos no próximo capítulo onde descreveremos o marabaixo

e o batuque encontrado atualmente neste quilombo.

2.1.4 Tocadores e Cantores

A função de tocador ou tocadora – como são chamados os percussionistas – e

a de cantor ou cantadeira, são pessoas dotadas de algumas características

primordiais que as diferenciam das demais pessoas da comunidade. Primeiramente,

é necessário que esses indivíduos exerçam uma liderança musical sobre os demais.

Para isso o bom conhecimento de todo o repertório, das melodias e dos refrãos são

condições sine qua non para assumir este posto. Segundo, e não menos importante,

é ter bom desempenho musical. Não podem ser pessoas com dificuldades rítmicas ou

de afinação, ainda que as melodias entoadas no marabaixo sejam extremamente

simples.

Esses líderes musicais precisam transmitir alegria e contagiar a comunidade

que está dançando e cantando o marabaixo. Sem contar que necessitam ter uma

memória privilegiada para cantar a sequência de todas as estrofes durante toda a

festa. O posto pode ser ocupado tanto por homens quanto por mulheres, apesar de

que no quilombo do Mel não identificamos nenhuma mulher tocadora. Os tocadores

se posicionam no centro. Enquanto tocam, a comunidade festeja em círculo no em

torno dos percussionistas.

A seguir, vamos analisar a estrutura poética das canções de marabaixo.

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2.1.5 A Estrutura Poética dos Versos e o “Ladrão” de Marabaixo

Ao analisarmos a estrutura musical do marabaixo pelo viés acadêmico, vemos

que são organizadas de forma bastante simples. Estão estruturadas em duas partes,

que predominantemente são: A – estrofes, B – refrão. Neste caso, não podemos

inserir o marabaixo numa única forma de análise, por ter características de dois grupos

distintos: a Forma Canção e a Forma Estrófica. As canções estróficas mantêm a

mesma melodia que são repetidas sobre todos os versos. Já na forma canção, as

músicas têm dois episódios melódicos diferentes que se repetem, sob uma variação

poética ou não. As cantigas de marabaixo têm as diferentes estrofes que se repetem

melodicamente com o texto modificado e também têm refrãos, que podem ser

considerados como segundo episódio melódico. Acrescenta-se a esta pequena

diferença estrutural um fato que é o “ladrão” de marabaixo.

Define-se como ladrão de marabaixo as estrofes que são cantadas no

improviso, assim como caracteristicamente fazem os repentistas17 do norte e nordeste

do Brasil. Historicamente, são melodias que retratam a rotina das comunidades

quilombolas. São cantadas críticas, histórias pessoais, narrativas de fofocas,

agradecimentos, lamentações e todos os temas pertinentes ao grupo. Os ladrões,

eram no início, no marabaixo da senzala o único meio de comunicação entre os negros

que eram tolhidos muitas vezes de até se comunicarem. Essa era uma estratégia de

poderem conversar, combinar coisas, entender e decidir em conjunto algumas ações

que poderiam beneficiar o grupo. Como os colonizadores não entendiam a cantoria

de ladrões e refrãos, os escravos podiam se atualizar de todas as notícias importantes

enquanto seus “donos” pensavam que estavam apenas festejando, dançando e

cantando.

O termo “ladrão” também pode ser aplicado àquele indivíduo que tomou a vez

de improvisação de seu companheiro anterior. Ou seja, o indivíduo “roubava” a vez

para improvisar e cantar algo novo que era trazido a roda.

17 Repentista. O que executa o repente, ou seja, o improviso. Música, verso ou poema composto a partir do

improviso, sem preparação ou reflexão, feito impensadamente.

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Todo improviso novo inserido pelos “ladrões”, eram intercalados pelos refrãos,

cujas letras, conhecidas, eram cantados por todos os negros da senzala, daí a

explicação para que os colonizadores pensassem que se tratava de música comum.

Esta estrutura simples A – B, como explicamos acima, atualmente é mantida.

Muitos dos versos anteriormente considerados ladrões, versos improvisados,

acabaram assumindo o papel de versos oficiais de várias canções de marabaixo.

Mesmo assim, não tendo mais características de improviso ou repente, continuam

sendo consideradas e identificadas como ladrões de marabaixo, sempre intercalados

por refrãos onde toda a comunidade entoa juntamente com os líderes musicais. Por

outro lado, ainda muitos “ladrões” são produzidos nas festas. Mantendo a tradição de

criação e interatividade na comunidade, narrando os fatos cotidianos.

Um dos ladrões mais conhecidos em Macapá é o “Aonde tu vais, rapaz? ”. Este,

fala de uma ocorrência política que transferiria as comunidades negras pobres que

viviam no centro da antiga Macapá e os deslocou para áreas afastadas como o

Laguinho e a Favela. Foi uma decisão tomada pelo governo que tinha por objetivo

construir casas, prédios públicos, hospitais, residência governamental, entre outras

construções para estruturar a cidade que viria a ser Macapá. Na ocasião, e como não

poderia ser diferente, isto não agradou o grupo de negros que foram afastados, e uma

das formas de protesto foi a canção de marabaixo:

Aonde tu vais, rapaz?

Aonde tu vais rapaz

Neste caminho sozinho (BIS)

Eu vou fazer minha morada

Lá nos campos do Laguinho (BIS)

O que é que houve com o Bruno

Que anda falando só. (BIS)

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Será possível meu Deus,

Que ele não tenha dó? (BIS)

2.1.6 A Estrutura Rítmica do Marabaixo

A organização melódica do marabaixo é de fato simples. Os elementos mais

elaborados estão na estrutura rítmica. Como já descrevemos, apesar de se utilizar

apenas a caixa de marabaixo, são utilizadas três ou quatro caixas simultaneamente.

Esses tocadores não executam a mesma função rítmica. Cada percussionista tem

uma responsabilidade nesta estrutura, utilizando do conjunto percussivo de

instrumentos com variação de tamanhos (variação de afinação). Estes fatores fazem

do marabaixo um ritmo mais sofisticado, variado e que exige uma organização musical

maior. Ou seja, existem funções rítmicas e de liderança musical diferentes. A saber:

Repelão: são os que conduzem ritmicamente o marabaixo. Tocam uniformemente

para dar base às improvisações rítmicas que são colocadas na música pelo repelão

chefe.

Repelão chefe: é o que demanda as mudanças de levada rítmica e improvisação do

grupo percussivo. Enquanto ele repeli 18, todos os demais têm que amassar e, no

caso do marabaixo, são vários amaciados e o repelão chefe repenicando. Portanto,

pode se notar a liderança exercida pelo repelão chefe. É ele quem cadencia e varia o

ritmo enquanto os demais mantêm o grupo percussivo num ritmo uniformizado que da

base à improvisação do chefe.

2.1.7 Outras Características Musicais

18 As palavras grifadas são variações linguísticas, lembranças de dialetos ou hibridações. Não serão por mim

traduzidas, pois dentro do contexto podem ser compreendidas e também por ser necessário um estudo linguístico

aprofundado que não é objetivo nesta pesquisa.

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Por fim, e brevemente, algumas outras características musicais do marabaixo.

São aspectos, ao meu ver secundários porque todas as descrições anteriores são

mais emblemáticas para explicar o marabaixo, mas que complementam as

informações supracitadas.

O marabaixo não emprega o uso de nenhum outro tipo de instrumento de

quaisquer classes de instrumentos. Não são utilizados membranofones de outras

categorias de tambores, sejam ele de dimensões maiores ou menores, tocados a mão

ou por intermédio de baquetas. Tão pouco tem acréscimo de instrumentos melódicos

e de sopro, como flautas, trompetes, trombones e outros e nenhum outro da categoria

de cordas como violinos, ou instrumentos harmônicos – que produzem acordes para

acompanhamento – como violão, viola caipira e outros.

As melodias que dão forma musical aos versos são muito simples e compostas

por poucas notas de uma escala musical. Na maior parte das canções, não são

utilizadas mais que cinco notas. Também não são encontrados cromatismos19 nas

canções. As músicas são basicamente diatônicas20.

Todas as canções do marabaixo são entoadas em uníssono21. Não se

encontram divisões vocais, onde se estabelecem melodias paralelas, como por

exemplo, a segunda voz, tão presente na música caipira e na música sertaneja.

Em todos os ensaios, apresentações, gravações de minhas pesquisas, e nas

entrevistas, e demais meios pelos quais busquei informações sobre o marabaixo, não

foram encontrados registros de apresentações unicamente instrumentais ou

exclusivamente vocais. Nos dados que tive acesso, o gênero musical foi desenvolvido

canto e o ritmo em conjunto, assim como não é desassociado das danças.

19 Cromatismo é a utilização das notas da escala cromática composta de 12 semitons no contexto de uma

composição tonal. São geralmente estruturados como frases musicais compostas de notas cromáticas, com a

intenção de gerar tensão melódica ou harmônica, prolongando o desenvolvimento tonal e adiando a resolução

melódica. 20 Escala diatônica é uma escala de oito notas, com cinco intervalos de tons e dois intervalos de semitons entre as

notas. As escalas modernas maior e menor são diatônicas, assim como todos os sete modos tonais utilizados

atualmente. 21 Uníssono é um adjetivo que faz referência a um conjunto de sons que tem a mesma altura ou a mesma

frequência. É o que possui harmonia, que é unissonante, uniforme.

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2.2.1 O Batuque

O batuque, assim como o marabaixo, é uma festa dedicada aos santos

concatenadas com rituais africanos. Trata-se também de um dos gêneros musicais

africanos mais conhecidos no Brasil. Por todo nosso território existem comunidades

negras que se manifestam cultural e religiosamente através do batuque. No Brasil é

expressado de diversas formas e teve sua origem nos cultos aos orixás.

Originalmente, o termo “batuque” não era utilizado pelos negros. Este era o termo que

os brancos usavam para identificar os negros nesses rituais religiosos. O termo “Pará”

que significa a junção de todos os países africanos era de fato o usado pelas

comunidades de remanescentes de escravizados.

No Amapá, o batuque ao lado do marabaixo são consideradas as mais

importantes culturas populares do estado. Por lá, nos idos do século XVIII, se iniciou

com o povoamento das regiões chamadas Nova Mazagão e São José de Macapá.

Para o aumento da densidade demográfica no estado do Amapá, de várias regiões do

Brasil e até de outros países vieram pessoas para morarem nessa região. Muito

comum na época, muitas famílias tinham seus próprios escravos que junto com seus

pertences e outras propriedades foram levados a essa região. A maior parte desses

negros escravizados não tinham mais sua herança étnica e identitária e já tinham

absorvido de negros oriundos de outras partes novos hábitos culturais. Muitos deles,

sequer sabiam de que lugar da África teriam vindo. Esta mescla cultural propiciou a

propagação do batuque na comunidade negra.

O batuque que tão logo instaurou em praticamente todas as comunidades

negras do Amapá vem de uma origem, digamos negro sincrética como já abordamos,

sofreu maior hibridismo ao ser influenciado pelas crenças. Os brancos, eram católicos

conforme vemos no caderno “Tambores no Meio do Mundo – O rufar da cidadania”

sob coordenação de Carlos do Rosário Souza, 2012:

Esses povoadores ao chegarem às respectivas vilas, os que

tinham afinidade com a agricultura, procuraram se instalar em

áreas distantes dos povoamentos e constituírem suas fazendas.

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No período da colheita, faziam promessas aos seus santos de

devoção. Quando se obtinha resultado e um bom volume de

produtividade agrícola ou de criação de animais, era de costume

se fazer uma celebração, uma festa em louvor ao santo

prometido pelo resultado obtido e o pagamento da promessa, as

Festas do Criador como assim era chamada. (...), o senhor da

fazenda ofertava um dia inteiro para os negros escravos se

divertirem, cultuarem seus santos, onde eram oferecidas

bebidas e comida para esses negros escravos festejarem.

Desta maneira, o batuque em meio às senzalas foi se desenvolvendo nos campos e

fazendas do Amapá. A igreja católica considerava que estas manifestações religiosas

eram ofensivas a seus praticantes e proibiu que estes rituais negros fossem realizados

onde se concentrava a maior parte da população.

Como toda cultura popular, à medida que os anos passam é possível encontrar

variações da mesma manifestação em áreas geograficamente distintas. Novos

elementos da crendice são adicionados bem como o meio pelo qual os rituais são

organizados ganham mudanças. É muito comum, quando falamos de culturas e rituais

expressados pela música, nos depararmos com a inserção ou exclusão de

instrumentos, novas melodias vocais, novos padrões harmônicos, em alguns casos, o

hibridismo com outros gêneros é tão denso que pode até descaracterizar as formas

originais, ou até criar novos estilos como resultado dessas fusões. Um exemplo

bastante conhecido, fruto desse fenômeno de fusão de estilos musicais na região do

baixo amazonas é o chamado Calipso do Pará, efusivamente popular no estado e que

carrega desde seu nascedouro junções com a lambada e o carimbó. O batuque no

estado do Amapá já apresenta variações como essas anteriormente relacionadas em

diferentes comunidades quilombolas. Todavia, essas variações se restringiram aos

instrumentos musicais empregados, na maioria dos casos, ao acolhimento de novos

grupos instrumentais. Nas comunidades de Curiaú e São Pedro dos Bois, são usados

dois tambores, conhecidos como “macaco”, repenique ou amassador e pandeiros. Em

Mazagão, Mazagão Novo, Carvão e Igarapé do Lago são utilizados os tambores

macaco e o Cheque-cheque, provavelmente um chocalho. No quilombo do Mel da

Pedreira, o batuque é executado somente com um tambor.

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Nas comunidades do Cria-ú, cujo batuque e oferendado ao padroeiro Glorioso

São Joaquim, encontramos as maiores diferenças. Foram inseridos diversos outros

instrumentos musicais, não somente novos membranofones como alguns

instrumentos de cordas. Entre esses instrumentos estão a viola caipira, o reco-reco.

Outro ponto diferenciado do batuque produzido pelas outras comunidades é que são

utilizados vários instrumentos iguais e que desempenham papéis distintos na música,

assim como uma orquestra. Se organizam em primeira e segunda violas, de primeiro

à quarto pandeiro, e de primeiro a oitavo reco-reco (Videira, 2010).

2.2.2 O Rito Religioso do Batuque

Diferentemente do marabaixo, ao que me parece, o batuque preserva um apelo

religioso maior e é totalmente estruturado em distintos momentos litúrgicos. Para mim,

uma clara evidência do fator religioso mais contundente é a pouca presença do

batuque no quilombo do Mel da Pedreira, ainda que segundo a nova ideologia étnico

identitária desenvolvida pela comunidade através do protestantismo, “liberá-los” para

que se manifestem com sua cultura ancestral. Os quilombolas do Mel consideram o

marabaixo mais cultural enquanto o batuque com seu apelo ritualístico mais evidente,

extremamente religioso, consagrado aos santos, como nos relatou Seu Alexandre

algumas vezes. Outrossim, em virtude da própria falta de depoimentos que

descrevessem com riqueza de detalhes os rituais do batuque, fez-se necessário

acrescentar bibliografia que pudesse trazer descrições sistematizadas, como citado

anteriormente no introito desta pesquisa e, de gravações de vídeos dos eventos rituais

complementando o material coletado em meu trabalho de campo.

No ritual do batuque a participação dos homens é predominante. As mulheres

são responsáveis pelo trabalho na cozinha, do preparo e da distribuição dos

alimentos. Neste aspecto, a organização social dos cultos afro religiosos se

assemelham muito com a organização sacerdotal de diversas igrejas, como a católica,

as protestantes tradicionais e as pentecostais. Na cúpula do ritual, somente uma

mulher pode participar ocupando o papel de “madrinha da bandeira”. O rito mistura

rezas, ladainhas, testemunhos de graças alcançadas através do santo homenageado.

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Tambores são utilizados para anunciar os novos eventos do ritual, assim encerrando

um momento e iniciando um novo na cerimônia.

2.2.3 A Comida

Como na maioria das festas religiosas populares, sejam elas católicas, de

matriz africana ou indígenas, a comida é símbolo fundamental da consagração dos

alimentos aos santos ou a quem foi dedicado, bem como símbolo do comungar da

comunidade que se senta à mesa para comer. Muito semelhante aos alimentos

preparados nas festas de marabaixo sempre há preparados à base de carne bovina,

legumes e farinha de mandioca. As carnes são dos animais sacrificados que foram

doados pelos devotos ao santo e consequentemente a toda comunidade. Este é um

fato muito parecido com o que vivenciei no quilombo do Mel da Pedreira após o culto

de Santa Ceia. Foi organizado um almoço de confraternização com carne de animais

caçados e doados para a esta festa. O compartilhar do alimento, assim como em

outras culturas, para o quilombola é sagrado e o momento é tão importante que remete

à espiritualidade. Toda a comida é distribuída entre todos gratuitamente.

2.2.4 O Batuque Festivo

Após os atos rituais dá-se início aos festejos. Neste, todos participam sem

distinção diferentemente do ritual que designa funções específicas para homens e

mulheres, como os responsáveis pelo ritual, os tocadores, os responsáveis pelos

mastros, como no marabaixo. A festa se estende por toda a madrugada é somente é

interrompida com o nascer do sol, a chegada do novo dia. O intuito neste momento é

se divertir. Logo pela manhã, todos os participantes da festa se posicionam à frente

do local que mantém a imagem do padroeiro e ainda em caráter festivo saúdam o

santo.

Alguns batuques festivos são organizados até com um baile que ocorre

geralmente no segundo dia de festa. Nos bailes, são introduzidos outros estilos

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musicais e alguns novos instrumentos, como a clarineta, o banjo e a viola. Atualmente,

são inseridos instrumentos eletrônicos como o teclado e o contrabaixo.

2.2.5 A Música Vocal do Batuque Amapaense

Um dos pontos diferentes que retém a nossa atenção ao analisarmos a

estrutura musical do batuque do Amapá é a melodia. Mais elaborada que as melodias

do marabaixo, se aproximam de certa forma as melodias dos cantos da música

sertaneja. É possível que tal semelhança ocorra porque este e outros gêneros

geograficamente circundam o batuque. Estes estilos musicais são diuturnamente

praticados pelas comunidades de etnias não negras muito próximas dos quilombos e

afetam diretamente as populações de negros inclusive dado o presente momento de

plena comunicação e interação com diversas culturas através do acesso a

informações dantes intangíveis ou possível em parte através do rádio. Me refiro ao

contato cada vez mais estreito entre as novas gerações de quilombolas e o mundo

globalizado. Estas informações alteram o comportamento geral dos indivíduos

especialmente no campo da música, ou seja, somos musicalmente aquilo que

praticamos e apreciamos. Este fato justifica a utilização de instrumentos eletrônicos

encontrados no batuque festivo.

Por outro lado, existem semelhanças com o cancioneiro do catolicismo popular

que une a música regional, a música africana com costumes e melodias das liturgias

católicas. O significado religioso de adoração e louvor aos santos padroeiros nos

rituais, é um dos portadores dos elementos que propiciaram mudanças na estrutura

melódica do batuque assimilando uma nova forma canção.

É comum encontrar nas cantigas do batuque, música responsorial22 que pode

ser considerada uma influência dos atos litúrgicos católicos que na realidade só

22 Canto responsorial é um tipo de canto coletivo onde uma voz interpretada por um indivíduo a resposta das outras

vozes em coro. Ou seja, uma voz entra com o tema inicial e é seguida pouco tempo depois por uma resposta das

outras vozes, geralmente em imitação com pequenas variações. Na liturgia, considera-se que o canto responsorial

tenha origem na tradição das sinagogas judias e que seja a forma mais antiga de canto da Igreja Católica. Nestes

casos, trata-se geralmente de um salmo, cuja parte principal é cantada por um solista ou por um coro, seguida

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tornaram ainda mais confortável essa modalidade de canto entre as comunidades de

quilombolas afirmando suas matrizes negras, porque também é uma forma canção

muito presente na cultura africana. Este cantar no formato “perguntas e respostas”

também são encontrados em outras regiões do Brasil como Pará, Maranhão e outros

estados do nordeste e em outros países como Venezuela, no Suriname e Guiana

Francesa, onde há forte presença de negros. Observando holisticamente, as frases

musicais curtas, apontam para a continuidade no Amapá do que se iniciou na África

(Pinto, 2000, http://sonsdobrasil.blogspot.com.br/2005/09/msica-dos-quilombos.html):

No repertório do Curiaú ocorre a predominância de uma

configuração melódica pentatônica23, além das melodias

compostas por poucos graus24. As escalas pentatônicas e as

incursões em escalas, com redução de graus, distancia essa

música da funcionalidade harmônica25 de tradição europeia. O

estilo de execução vocal, com sua sobreposição do início da

frase do puxador sobreo final da frase do coro, é outro critério

que remete a África. É curioso observar que estilos mais

populares da Amazônia, como o carimbó, já aderiram à

funcionalidade harmônica europeia na sua construção melódica,

embora preservem outros elementos de origem africana, como

a mencionada sobreposição do final com o início da frase

cantada, entre outros.

Um terceiro aspecto presente nas melodias são pequenos duetos26 que

delicadamente são inseridos ainda de forma rudimentar. A melodia principal das

após cada versículo ou grupo de versículos por uma resposta iterativa da assembleia. Na tradição católica, o canto

responsorial surge ligado ao canto gregoriano, mas sua influência musical estendeu-se a outras manifestações do

canto coral como cantatas e oratórios da música de concerto do período barroco e posteriores. 23 Pentatônica. Qualquer escala formada a partir de cinco notas. 24 Graus. Nesse caso é o nome dado para cada nota sistematizada numa escala. 25 Harmonia Tradicional. Estudo que organiza e classifica a emissão simultânea de diferentes notas, sobrepostas

através de intervalos que formam acordes. 26 Dueto. Música arranjada para cantar à duas vozes com notas diferentes que formam uma espécie de paralelismo

sonoro.

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cantigas de batuque por serem muito simples e construídas com cinco notas em

média, não suportariam melodias mais elaboradas para uma segunda voz. Com a

provável expansão das notas do canto principal do batuque, por consequência das

constantes mudanças melódicas que se dão através do contato inter étnico, a

tendência é que esta segunda voz se desenvolva ao ponto de ser mais utilizada como

já ocorre no batuque produzido pelos quilombolas do Mel da Pedreira.

Finalmente, no batuque não existem os “ladrões” ou letras improvisadas pelos

repentistas como frequentemente ocorre no marabaixo. O batuque é estruturado em

forma estrófica e responsorial.

2.2.6 Características Rítmicas do Batuque

Quando se fala em música afro brasileira o ritmo é visto como primordial para

assegurar se de fato estamos tratando de um gênero musical africano. Para tanto, é

importante definir primeiramente o que é ritmo. Trata-se de um evento sonoro

melódico ou não que mantém regularidade de tempo, ou a organização dos sons

conforme padrões musicais estabelecidos. O que os diversos estilos fazem do ritmo

pode ter muitas variações. No caso da maioria das músicas ocidentais o ritmo tem

padrões simples estabelecidos, ao passo que no oriente o ritmo é mais complexo,

composto por alternâncias pulso, ou seja, de tempo. A música africana faz uso intenso

da polirritmia27. Por esta razão é facilmente identificada e rotulada.

O batuque do Amapá ao ser analisado em linhas gerais preserva a polirritmia

presente na música africana através dos tambores de várias classes que são

utilizados e que são facilmente relacionados com a construção coletiva do ritmo, suas

relações com os movimentos corporais e a dança. Isto pode ser observado em toda a

música produzida pelos quilombolas do Mel. De fato, há um pulso primordial

caracterizado pela marcação dos tambores que dá estrutura para que os outros

instrumentos percussivos possam desempenhar funções rítmicas diferentes em torno

de um padrão rítmico de estrutura assimétrica. Isso foi muito mais observado nas

27 Polirritmia. Execução simultânea de duas ou mais estruturas rítmicas diferentes.

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apresentações de marabaixo que nas poucas apresentações de batuque que este

quilombo preparou. Também, como já dissemos antes, me pareceu que o grupo

musical do Mel estaria mais disposto a tocar suas canções no ritmo do marabaixo. Em

observação ao batuque produzido por outras comunidades através dos registros das

festas do “Ciclo do Marabaixo” e do “Encontro de Tambores” podem ser constatados

os elementos que Tiago Pinto elencou em seu artigo “Música dos Quilombos:

(...) uma primeira lista de itens para a investigação musicológica

dos elementos musicais deste batuque, podem ser enumerados:

(...) clara noção de acentuação polirritmia e polimetria28 entre as

diferentes linhas sonoras; relação estrutural de fala e ritmo;

instrumentos com técnicas específicas de execução para o

gênero estudado; integração de som e movimento; (...); polifonia

parcial nas partes cantadas; estilos vocais especiais.

2.3 Diferenças entre Batuque e Marabaixo

São muitas as semelhanças entre batuque e marabaixo, sobretudo as de ordem

religiosa, simbólica, ritualística e festiva. As maiores diferenças, de fato se concentram

na música especialmente, como comenta João Ataíde:

O batuque é um ritmo envolvente que transmite alegria, celebra

a liberdade e a vitória nas batalhas. Mostra-nos um toque

aguerrido, esse ritmo vem dos instrumentos chamados de

amassador (mais grave) e o macaquito (mais agudo), estes sons

somam-se aos do pandeiro ou pau de chuva, esses tambores

são feitos de madeira. Nos festejos são posicionados no centro

da roda formada por homens e mulheres, que dançam e catam

28 Polimetria. Execução simultânea de duas ou mais variantes métricas relacionada ao ritmo da poesia no canto.

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as badaias musicais do batuque que retratam o dia, as lendas e

os causos.

O marabaixo é um ritmo de lamento que retratava a escravidão,

saudade e representa o ritual da despedida, simbolizado pelo

momento em que os negros passam pela árvore do

esquecimento, o último contato com a mãe África. Possui um

toque mais lento vindo das “caixas”, que hoje são produzidas

com latão, coberta com couro de animais e seu fundo é

composto por miçangas e linha de nylon para dar um timbre

sonoro diferente, nos festejos. Os tocadores e cantadores são

posicionados no centro da roda composta por pessoas de ambos

os sexos, que dançam com um compasso mais miudinho,

representando os pés acorrentados na época da escravidão

onde seus passos eram limitados. Suas cantigas são chamadas

de “ladrão”, porque retratam o cotidiano das pessoas que lhes

roubaram suas privacidades.

Após analisarmos com minúcia o batuque e o marabaixo, temos maiores

subsídios para a compreensão da música do quilombo protestante do Mel da Pedreira

com todas as suas mutações e inserções de novos gêneros musicais bem como, toda

a influência da música protestante. A harmoniosa convivência entre todos estes estilos

musicais dispares nas canções do Mel, construídos sobre a base dos ritmos africanos,

produz uma música única, que diferencia esta comunidade de todas as demais

formadas por remanescentes de escravizados no estado do Amapá e possivelmente em

todo o Brasil.

O próximo e derradeiro capítulo deste estudo, explora está música diferenciada

no contexto dos cultos religiosos presbiterianos e nas manifestações culturais do

cotidiano artístico da comunidade.

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3. A HISTÓRIA MUSICAL DO QUILOMBO DO MEL DA PEDREIRA

3.1. Breve contextualização da música evangélica brasileira

Para melhor compreensão da história musical do quilombo do Mel da Pedreira,

faz-se necessário contextualizar-nos com a história da música evangélica no Brasil de

uma forma geral, principalmente no que tange ao encontro desta música protestante

com a comunidade do Mel. É importante avaliarmos em quais aspectos, em que

período e com qual repertório este grupo étnico foi confrontado em suas

manifestações artísticas e culturais, principalmente musicais, e quais foram os

resultados desse enfrentamento.

A igreja protestante é uma igreja cantante, altamente musical. Este é um traço

da igreja extremamente potencializado a partir e através da reforma. O objetivo claro

disso era a aproximação do leigo à uma nova doutrina que privilegiaria a Bíblia, que

até aquele momento da pré-reforma, o contato dos fiéis com o livro sagrado era

praticamente nulo. A reforma aconteceu para produzir diversas correções doutrinárias

contrastantes ao pensamento católico romano. Como a doutrina católica na época era

fortemente difundida e vivida (talvez ainda mais consolidada que nos dias atuais) as

pessoas, a sociedade de uma maneira geral, o contexto cultural, eram conformados a

ideologia católica. Portanto, com este cenário, uma mudança doutrinária intermediada

tão somente por uma hábil retórica, ou por bravos e destemidos reformadores não

seriam capazes de gerar efetiva mudança religiosa em todos esses âmbitos. Havia a

necessidade de se utilizar um meio condutor que fosse competente para disseminar

todas as mudanças que a reforma tinha como objetivo, e este perfeito conduíte foi a

música. Vale lembrar que a música já era parte da missa católica e tinha um papel

muito importante como ainda hoje é, porém, assim como o conteúdo bíblico, litúrgico

e doutrinário, a música era ritualística, é altamente elitizada. As missas em latim,

impediam que os católicos tivessem contato com os ensinamentos na língua nativa.

O mesmo se passava com a música. Eram cantados motetos29 a quatro vozes

29 Moteto. É um gênero musical polifônico surgido no século XIII, onde, inicialmente, usavam-se textos distintos

para cada voz. Dessa característica vem a origem do termo, derivado de mot, palavra, em francês. Composição

polifônica sacra.

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geralmente em latim, e quando não, poderiam ser entoados em mais de um idioma

simultaneamente.

Por todas essas razões, a música desempenhou papel de inegável importância

na reforma. As músicas litúrgicas com arranjos muito densos, com melodias

exageradamente melismáticas30 e cantadas em diversos idiomas que não os nativos

ou locais, foram substituídas por músicas com o idioma local, com melodias simples,

mais óbvias (com o objetivo de facilitar a memorização melódica e consequentemente

as mensagens contidas no discurso musical) e carregadas da doutrina da reforma

protestante. A igreja reformada passou a cantar os hinos que eram verdadeiras aulas

teológicas. Boa parte dos hinos eram soteriológicos, doxologias, à trindade e, a nova

doutrina assim foi difundida, como comenta Sérgio Freddi Junior:

“ No século XVI, quando aconteceram as reformas protestantes,

ocorreu a evolução da música sacra. Diante do contexto musical

da Igreja Romana, cujas práticas polifônicas31 eram exageradas,

os reformadores, ao repensarem o culto, transformaram o uso e

a produção musical para o culto das novas igrejas protestantes.

Uma das preocupações dos reformadores era viabilizar a música

como prática pública. Este seria o aspecto referencial mais

importante para o desenvolvimento da música protestantes. A

partir desse momento, a música seria cantada e compreendida

pelos cristãos. ” (Freddi Junior, 2002, p. 22).

O objetivo era que as pessoas pudessem ter acesso irrestrito e límpido às

escrituras sagradas. A grande massa social deste período era não alfabetizada, tão

pouco havia Bíblia traduzida nos idiomas europeus, somente em latim, como

dissemos antes, o que trouxe sobre a música o peso de ser um dos principais meios

de propagação das doutrinas bíblicas da reforma. Para que a música cumprisse seu

30 Melisma. Trecho melódico com várias notas para uma mesma sílaba no cantochão. Ornamento.

31 Polifonia. Multiplicidade de sons; conjunto harmonioso de sons. Em música, é a combinação simultânea de várias

melodias.

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papel de intermédio competente entre as doutrinas da nova igreja e a comunidade

geral, era necessário que a música fosse popular, que estivesse - como se expressa

em linguagem comum – na “boca do povo”. E as primeiras tentativas de promoção

desta aproximação entre igreja e sociedade leiga através da música,

“ (...) foi buscar nas melodias populares alemãs a base para a

música que seria desenvolvida na sua igreja. Inspirado nessas

práticas cujos temas populares eram tratados polifonicamente,

Lutero sistematizou o coral luterano a quatro vozes mistas

(Soprano32, Alto33, Tenor34, Baixo35) que se caracterizava pela

estrutura polifônica, nota contra nota, e tinha as melodias

localizadas na voz do soprano, adotando também assim, as

práticas musicais francesas e italianas da época. A criação do

coral luterano gerou uma coesão na música alemã e resultou na

sua projeção no cenário musical do ocidente, favorecendo a

evolução das estruturas da música ocidental. ” (Freddi Junior,

2002, p. 23).

Na contramão das ações de Lutero no que se refere a utilização de músicas

folclóricas alemãs conhecidas para a popularização dos ensinamentos da nova igreja,

Calvino contratou compositores e poetas para musicalizar e metrificar36 os salmos de

acordo com essa estrutura musical mais popular e acessível. Apesar de verificarmos

significantes diferenças entre as propostas de popularização da doutrina da igreja

reformada de Lutero e Calvino, ambos lograram êxito, pois permitiram que as canções

se desenvolvessem em estilo menos conservador que o praticado pela igreja católica

e, que pode absorver elementos culturais da comunidade onde suas igrejas estavam

32 Soprano. Classificação vocal. Voz feminina mais aguda. 33 Alto ou Contralto. Classificação vocal. Voz feminina mais grave. Transita entre o soprano e o tenor. 34 Tenor. Classificação Vocal. Voz masculina mais aguda. 35 Baixo. Classificação Vocal. Voz masculina mais grave. 36 Métrica. O conjunto das regras que presidem a medida, o ritmo e a organização do verso, da estrofe e do poema

como um todo; metrificação, versificação. Modo de versejar próprio de um poeta.

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inseridas, de tal maneira, que a música da igreja se fundiu com a música do povo e

com o pensamento musical popular da época.

Entre o episódio da reforma protestante no século XVI e a chegada dos

primeiros missionários evangélicos no Brasil no século XIX, é bem verdade que temos

um hiato muito grande. Foi um período em que o catolicismo no Brasil se desenvolveu

muito e que a música barroca brasileira também aprofundou suas estacas.

Compositores muito importantes como José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, o

padre José Maurício Nunes Garcia, o maior nome da música brasileira colonial e o

responsável pela regência da primeira audição do Réquiem de Wolfgang Amadeus

Mozart no continente americano, entre outros nomes, mantiveram firme, inabalável a

estrutura religiosa do catolicismo bem como a formalidade e a inacessibilidade popular

as missas.

Pois bem, o cenário encontrado pelos missionários no Brasil fora bastante

similar ao da Reforma Protestante quando chegaram para as primeiras ações

evangelísticas. Evidentemente, no tocante à música, o modelo trazido era justamente

o que fora aplicado em todos os países do continente europeu e na América do Norte,

as canções e a liturgia dos países de origem dos missionários, muitas melodias

extraídas de cantos populares e folclóricos dessas localidades, ou das composições

exclusivamente realizadas para os hinos europeus que em nada se aproximavam da

cultura musical brasileira.

A forma musical que se desenvolveu nas igrejas protestantes do Brasil, de

maneira a pormenorizar este impacto de culturas entre brasileiros e europeus, foi o

hino. Gostaria de me apropriar da definição de hino de Edmund Keith, que está em

seu livro Hinódia Cristã. Ele define os hinos evangélicos como os cânticos citados por

Paulo em Efésios 5:19: “Falando entre vós em salmos, e hinos, e cânticos espirituais;

cantando e salmodiando ao Senhor no vosso coração”. Para esse especialista o termo

“cântico espiritual” corresponde a uma hinódia folclórica. Como a hinódia brasileira se

projeta como desdobramento exato do pensamento e execuções musicais praticadas

nas igrejas protestantes, inicialmente na Europa e posteriormente nos Estados

Unidos, constata-se dois aspectos relevantes e fundamentais para a abordagem da

hinódia desenvolvida nas igrejas protestantes brasileiras: o primeiro, da hinódia

evangélica europeia ligada aos cânticos populares, desenvolvida de forma mais

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expressiva nas igrejas dos Estados Unidos e o segundo, da hinódia evangélica

europeia e norte-americana que foi o modelo inserido integralmente na cultura musical

das igrejas tradicionais reformadas no Brasil.

Portanto, a hinódia evangélica brasileira tem as suas raízes nos movimentos

avivalistas do século XVIII e XIX. São movimentos não preocupados com uma

identidade das igrejas, mas sim, apresentavam um ímpeto grandioso para o

crescimento das igrejas e tratavam de desenvolver um culto extremamente

sentimental e isso foi visto como reflexo em toda a produção musical das igrejas de

tradição reformada. A música servia de apoio para um texto apelativo, com o objetivo

de ser conquistador, de modo que se concluir que as formas tradicionais de música

não foram excluídas, mas sim desenvolvido outro tipo de música com esta finalidade.

Havia nesta época material musical neste contexto protestante. Porém, ainda que

houvesse o desejo de criar a coletânea de salmos e hinos brasileiros, optou-se por

traduzir para o português e adaptar as músicas dos hinários europeus e americanos

para uso no Brasil. Não houve preocupações com a originalidade musical ou com a

contextualização cultural brasileira, isso porque quando o protestantismo foi instalado

no Brasil, a maioria da população era de católicos, e os hinos no formato que estavam

já eram demasiadamente diferentes dos utilizados nas missas da igreja romana.

É de fato importante traçar esse paralelo entre a hinódia brasileira e os hinos

tradicionais porque a conversão ao protestantismo do quilombo do Mel da Pedreira,

ocorreu e se estruturou sobre esses dois tão distintos platôs. Aliás, como ainda

veremos mais detalhadamente no decorrer deste capítulo, a identidade musical

quilombola do Mel absorveu e permitiu conviver perfeitamente a música protestante

histórica com a pentecostal acrescentadas de toda herança ancestral africana.

A partir da década de 1900, gradativamente as ações evangelísticas foram

ganhando força, digamos de ordem tecnológica, com as primeiras gravações de

discos com hinos evangélicos e programas de rádio. Salvador de Sousa, em seu livro

História da Música Evangélica no Brasil, nos conta (Sousa, 2011, p.26):

“ A primeira gravação de uma música evangélica ocorreu no ano

de 1901, em São Paulo. Um irmão chamado José Celestino de

Aguiar reuniu seus familiares e os do reverendo Bellarmino

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Ferraz e formou um coral a quatro vozes que gravou o hino “Se

nos cega o sol ardente”, do Salmos e Hinos, primeiro hinário

evangélico brasileiro, cuja primeira edição surgiu em 1861. Outro

irmão chamado José D´Araújo Coutinho Junior, morador de São

Paulo dos Agudos – SP, que possuía um fonógrafo, raspou a

cera de um cilindro usado e gravou a música do coral. Não ficou

um som perfeito, mas deu para ouvir. Vale ressaltar que, no meio

secular, a primeira gravação brasileira ocorreu no ano de 1902,

feita em cilindro também. (...) Dia 26 de maio de 1929 ocorreu a

primeira transmissão de um programa evangélico, através da

Rádio Club do Brasil, Rio de Janeiro. O reverendo Rodolfo

Hasse, da Igreja Luterana, conseguiu meia hora por semana

para pregar o evangelho. Entretanto, foi só a partir de 1931 que

houve um grande crescimento dos programas de rádio

evangélicos. Neles tanto se transmitiam pregações quanto se

tocava hinos, sejam cantados ao vivo ou tocados em discos de

78 rotações. ”

Zé Miguel, neto do patriarca do quilombo do Mel da Pedreira, já citado anteriormente

– mais precisamente no capítulo um -, também narra o quanto foram influenciados

pelo rádio, não somente pelos programas evangélicos, mas por toda a programação

convencional, como mais adiante vamos verificar.

3.2. A Primeira Fase Musical: Festas de Batuque, Marabaixo, Rituais de Pajelança e

Influência do Rádio

Era muito comum e bastante frequente no quilombo do Mel da Pedreira

as festas de Batuque e Marabaixo que ocorriam na casa do Seu Bráulio, patriarca

dessa comunidade. Estamos no início da década 1960. As festas eram promovidas

num grande salão anexo à cozinha da casa do patriarca e seguiam rigorosamente as

tradições africanas descritas no capítulo dois deste trabalho, desde as indumentárias

para homens e mulheres, a comida, os símbolos, a dança e claro, a música. Tais

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festas ocorriam não somente nos domínios do quilombo do Mel da Pedreira, mas em

conjunto com as demais comunidades de remanescentes de negros escravizados,

principalmente oriundos do quilombo São Pedro dos Bois e do Ambé.

Até este momento, no quilombo do Mel da Pedreira, não havia sido

inserido nenhum outro instrumento harmônico nessas festas. Somente os

membrafones típicos do batuque e marabaixo eram utilizados. Mas ainda que as

festas mantivessem restritamente a tradição ancestral e no quilombo do Mel, todavia

não haviam sido aportados outros instrumentos que não os convencionais para esta

finalidade, alguns membros do quilombo já se aventuravam a provar de outros

instrumentos e com grande sucesso, haja vista a musicalidade exuberante introjetada

na comunidade. Em reuniões familiares de final do dia, após a labuta cotidiana,

cercando uma fogueira, se reuniam para ouvir os violonistas da família como nos faz

saber Zé Miguel, ao narrar suas memórias de infância. Neste depoimento, podemos

confirmar a influência de dois gêneros musicais genuinamente brasileiros que já

faziam parte do cotidiano dos quilombolas do Mel e que seguramente adentraram a

comunidade via rádio: a Bossa Nova e o Chorinho:

O violão entrou na comunidade pelo meu tio Zé, que já era

evangélico. Engraçado! Dos outros tios, eu tenho uma referência

anterior. Eu me lembro do [Tio] Souza, construindo os carros, os

caminhões (...). Eu era muito ligado a ele. Eu tenho essa

memória dele. E tem o mais novo, que era peralta e dava muita

dor de cabeça para minha vó, e o tio Zé eu já lembro dele adulto,

tocando violão... ele canhoto, né? E ele tocava aquele violão que

meu pai chamava de ponteado, solado, com baixaria

[características do chorinho] e eu ficava impressionado com

aquilo e dizia: isso aí que eu quero ser quando crescer! Mas ele

já era evangélico. (...). Havia dois violonistas na família. Havia o

tio Zé, que era filho do meu avô, e havia o outro (...) que era

irmão da minha avó (...) tio Feliciano. (...) O tio Zé era mais essa

coisa do violão de choro, aí quando eu fui ver o Tatá [tio

Feliciano] tocar violão, aí eu vi ele aplicando uns acordes

diferentes, dissonantes, e eu não sabia nada, mas achei a

sonoridade do violão do Tatá mais legal, já era uma coisa mais

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minha mesmo. (...). Isso aí é década de 1960. O Tatá já tinha um

violão, um jeito de tocar diferente, que já era influência da Bossa

Nova. (...). Meu avô ouvia muito uma rádio que se chamava

Trans Mundial [Rádio Evangélica] (...). Eu tenho recordações

frescas do meu avô tentando sintonizar a rádio, ouço aquele

chiado. (...). Ela não era uma rádio fácil de sintonizar. Meu avô

dizia que era uma rádio muito boa que ele gostava de ouvir. Por

essa rádio vinha tudo. Era a única ferramenta que a gente tinha

de comunicação, de ligação.

Neste depoimento também fica claro como a música evangélica já nos

primórdios do quilombo fazia parte ao menos do repertório apreciado pelo patriarca e

sua família através do rádio, fato que pode ter contribuído consideravelmente para

sua conversão ao protestantismo. Na década de 1960, a produção fonográfica

evangélica brasileira cresceu muito e, consequentemente muitas emissoras de rádio

passaram a transmitir programas desta categoria. Naturalmente, a comunidade do Mel

desfrutou desta diversidade fonográfica produzida que era bastante eclética, de

duplas sertanejas como Curió & Canarinho, Irmãs Andrade, a Feliciano Amaral e Luiz

de Carvalho que cantavam um repertório mais próximo as canções americanas

semelhantes ao estilo de Frank Sinatra, além de outros cantores como Carlos René

Egg, Antonio Bicudo, Otoniel o Oziel, e de gravações corais como o da Igreja

Evangélica Fluminense, Caravana Evangélica Musical (CEM), Primeira Igreja

Presbiteriana do Rio. (Salvador de Sousa, 2011).

Neste período, que antecedeu a conversão ao protestantismo, e que o

rádio abriu os portais de uma influência musical dantes não experimentada pela

comunidade, evidentemente por não fazer parte da cultura de raiz desses

remanescentes de negros escravizados, com exceção das reuniões familiares

anteriormente citadas em torno da fogueira e do violão, a comunidade do Mel não

produzia nenhum outro tipo de música que não fosse estritamente concatenada a

algum ato religioso, como veremos mais uma modalidade desta prática a seguir.

Antes, porém, ainda sobre a influência do rádio na música do quilombo do Mel,

identificamos tanto na fala do Seu Alexandre, quanto na do Seu Benedito, uma

elevada apreciação pela música caipira [assim por eles rotulada]. O crescimento dos

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programas de rádio, e o acesso a essas informações musicais também influenciou a

musicalidade do quilombo do Mel da Pedreira, como nos diz, Seu Alexandre:

(...). Vem o rádio, a moda caipira, de sorte que a gente mescla e

até hoje a gente também está fazendo um mesclado e o povo

está gostando.

E muitos também foram os artistas seculares que inspiraram uma memória vocal e

estética (no que tange à distribuição harmônica das vozes), que estavam em alta nas

audiências da época, bastante presente na música atual do quilombo, a saber: Tonico

e Tinoco, Tião Carreiro e Pardinho, Cascatinha e Inhana, entre outros.

Outra prática musical anterior à conversão, mas que nem sempre era

para todos como executantes, mas sim como apreciadores e/ou praticantes da fé,

estava vinculada aos rituais de pajelança em função da vocação sensitiva de Seu

Bráulio, o patriarca da família. O interessante da música produzida nesses rituais, no

caso da comunidade do Mel, é que eram totalmente estruturadas de forma diferente

da música de origem africana Batuque e Marabaixo. Eram entoadas, sem nenhum

instrumento rítmico ou harmônico, totalmente acappella. Os rituais de pajelança

partiam do princípio da evocação de espíritos (encantados), denominados pelos

quilombolas como mensageiros. Segundo os relatos de Seu Alexandre, havia vários

mensageiros e que a família de Seu Bráulio tinha um exclusivo, considerado guardião

familiar:

Era diretamente assim acappella. Ele [pajé] cantava, a gente

ajudava. Não tinha nada [instrumentos, marcação rítmica ou

palmas] era tudo ali sereno. (...). Mas existia as músicas sim. (...)

Era assim, quando eles baixavam, cada um tinha a sua cantoria.

(...). Tinha “uns” [em outro idioma ou dialeto] que a gente não

sabia nada. (...). Tinha um mensageiro que era indígena.

Cantava e ninguém compreendia coisa nenhuma! Tinha

manifestação de espírito, e os encantados vinham do fundo do

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mar, cada um com sua música. Eles cantavam e quando eles

baixavam de novo, a gente já podia ajudar a cantar.

Uma marca sempre constante na música do quilombo é sua ligação

quase que por completa à manifestação religiosa. A exceção são as supracitadas

reuniões familiares com o violão, e algumas tentativas de aulas de violão para os

garotos da época, entre eles o Zé Miguel. Algo que, nesta última fase, inaugurada nos

últimos anos e vamos discorrer sobre mais à frente, se transformou, é a grande

preocupação artística no quilombo atual. Muitas ações de promoção da arte musical

do Mel da Pedreira nos meandros da cultura negra no estado do Amapá e do

protestantismo têm constantemente ocorrido, o que nos sugere que a nova identidade

étnica não somente necessita de afirmação, mas também de difusão. Talvez, a própria

difusão seja uma das manifestações de autoafirmação dessa identidade quilombola

protestante perante as demais comunidades de negros escravizados que constituem

as cercanias da localidade. Este entendimento sobre a necessidade de propagação

da nova identidade quilombola protestante, - nova porque até pouco tempo atrás,

apesar das raízes negras inegáveis não se manifestavam culturalmente como

quilombolas em função do tolhimento artístico imposto pelo protestantismo tradicional

-, é primordial nesta nova fase desta comunidade, - algo que vamos analisar ainda

mais adiante -, porque ao longo de décadas no protestantismo tradicional, os

quilombolas do Mel da Pedreira deixaram de se manifestar com sua própria cultura.

Outras marcas musicais do quilombo pré-protestantismo estão

atreladas às ladainhas. As ladainhas são parte de reuniões cúlticas distintas. É comum

no catolicismo popular, também presente no Batuque amapaense, na capoeira. Trata-

se de uma oração estruturada de forma responsorial37.

37 Canto Responsorial é um tipo de canto coletivo onde uma voz (muitas vezes, um solista) introduz uma melodia

e aguarda a resposta das outras vozes. Ou seja, uma voz entra com o tema inicial e é seguida pouco tempo depois

por uma resposta das outras vozes, geralmente com uma melodia com imitação variada. Na sua acepção litúrgica,

considera-se que o canto responsorial tenha origem na tradição das sinagogas e que seja a forma mais antiga de

canto da Igreja Católica. Nestes casos, trata-se geralmente de um salmo, cuja parte principal é cantada por um

solista ou por um coro, seguida após cada versículo ou grupo de versículos por uma resposta iterativa da

assembleia. Na tradição católica, o canto responsorial surge ligado ao canto gregoriano, mas sua influência musical

estendeu-se a outras manifestações do canto coral como cantatas e oratórios da música de concerto do período

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Geralmente trata-se de canções musicalmente muito simples, de frases

bastante curtas, com poucas notas e poucos intervalos tonais (utilizando-se mais de

tons vizinhos, escalas diatônicas, ou de escalas pentatônicas). Também,

originalmente são cantadas acappella. Mas há variações de ladainhas acompanhadas

por diversos instrumentos ou introduzidas em outras formas religiosas como no

Batuque. A ladainha se inicia aproximadamente no século IV na Antioquia. Mas esta

estrutura responsorial é muito mais antiga e, bastante presente desde os salmos

bíblicos. Seu Alexandre, nosso orador mais detalhista, enfatiza a habilidade de Seu

Bráulio como dirigente cantador de ladainha:

Meu pai era muito procurado como curandeiro [pajé] e como

rezador. (...), nessa área de cantoria para ladainha.

Por fim como última modalidade de música ou de performance musical

no quilombo do Mel da Pedreira anterior a conversão ao protestantismo, Seu

Alexandre confirma o depoimento do sobrinho Zé Miguel quanto as memórias

musicais da infância de outros tios tocando violão em serenatas. Faz-se importante

esclarecer que as serenatas têm um caráter musical mais voltado ao chorinho,

bastante aproximado ao samba canção, e então notamos a inserção de mais alguns

instrumentos atípicos a cultura quilombola, mas que encontraram guarida na

comunidade do Mel, como por exemplo o cavaquinho:

A música popular na época, quando eu me entendi por gente -,

porque quando eu me converti eu estava com 22 anos, desde a

minha infância até os 22 anos estava fora (...). Começamos com:

meu pai tocava violão, - por isso que “tá” na veia da família a

música, os instrumentos -, meu pai também tocava viola e cada

um de nós, eu e meus irmãos cada um aprendeu umas notinhas

na viola. Aí depois surgiu o violão. O meu irmão que é antes de

barroco e posteriores. Mais tarde passou a ser utilizado em óperas e em diversos estilos da música de concerto

dos séculos XX e XXI.

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mim, que é o Zé Ramos – o outro pretinho-, ele aprendeu tão

bem o violão que ele não precisava da letra. Ele precisava da

melodia. Ele escutava a melodia e já sabia tocar. Ele ponteava

todinho [o violão]. E eu tocava num cavaquinho. E a gente fazia

as serenatas a noite toda.

Seu Alexandre nos explica que a serenata executada por eles, não era

para dedicação especial de alguém, ou debaixo de uma janela em função de uma

homenagem como nos sugere de imediato ao pensarmos sobre as serenatas. Mas na

realidade, as serenatas do quilombo do Mel da Pedreira se enquadravam mais no

significado do tocar durante toda a noite ao ar livre, como uma das poucas, ou talvez

única forma desfrutar do período de ócio.

3.3. A Segunda Fase: A música do quilombo do Mel após a conversão ao

protestantismo

1968. O ano que revolucionaria o quilombo do Mel da Pedreira. A partir

da conversão coletiva narrada no capítulo um deste trabalho, inicia-se reuniões

sistemáticas de culto. Gradativamente, a comunidade se enxerga como protestante

presbiteriana, vendo surgir uma igreja ou congregação que provocaria mudanças na

forma de pensar, ou se não diretamente na forma de pensar, mas consistentemente

na maneira de agir e se expressar como povo, como etnia. A dinâmica religiosa que

outrora transitava entre os rituais de pajelança com curandeiro, rezas e cantoria de

ladainha, festas de batuque e marabaixo dedicada a padroeiros e santos, cujas

direções místicas advinham dos vários encantados que baixavam no pajé ao virem do

fundo do mar e do Esmeraldo, guardião específico da família do patriarca Seu Bráulio

– que segundo relatos do Seu Alexandre e Seu Biló, chegou a prever esta ruptura

espiritual -, a partir de então passa a ser construída de forma totalmente diferente,

com ausência total dos diversos rituais anteriores, das oferendas. Já não há mais o

pajé e/ou o curandeiro para as consultas, tão pouco os encantados. A forma cúltica

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havia se transformado. As manifestações místicas haviam cessado e as reuniões

religiosas circundavam apenas a leitura da bíblia, reflexões sobre os textos lidos e

algumas canções.

Sim! As canções! Que anteriormente continham diversas variações

estilísticas, que poderiam ser desde acappella (em sistema responsorial nas

ladainhas, que dependendo do encantado que baixasse poderia ocorrer em outros

dialetos) até serem entoadas sob o ritmo forte e marcante dos tambores do marabaixo

e do batuque, regadas a muita dança e coreografia, fora totalmente substituída por

canções de origem europeia traduzidas para o português. Configurava-se um grande

confronto cultural.

Como o quilombo havia se convertido ao protestantismo tradicional, da

Igreja Presbiteriana, naturalmente o pastor que mensalmente vinha de Macapá adotou

e ensinou um sistema de culto muito semelhante a liturgia convencional das igrejas

desta denominação, que salvo mui pequenas variações era organizado da seguinte

forma: iniciado por uma oração de petição da presença de Deus; entoação de uma

canção (Salmos e Hinos); leitura bíblica oficial; oração de intercessão e súplica; outra

canção (Salmos e Hinos); pregação; outra oração e canção – geralmente referentes

à pregação (Salmos e Hinos) e benção final. No tocante às canções especificamente,

outro aspecto que acentuou o confronto cultural foi que, de imediato nenhum

instrumento harmônico foi adotado para os cultos. Me refiro aos harmônicos (violão

ou viola) porque os tambores usados para as festas de batuque e marabaixo foram

proibidos de serem utilizados nos cultos, como conta Seu Alexandre:

É assim: a igreja [Presbiteriana] achava que aquilo era oferta

para idolatria, e o foco era só por causa disso. Não considerava

a cultura, né? E a gente se afastou.

Considero que não foram utilizados por duas razões: primeiramente em razão da

igreja presbiteriana não permitir a utilização nos cultos de acordo com o que nos fora

informado e, em segundo lugar, porque não havia ainda familiaridade com o repertório

– e como os músicos do Mel não tem formação ou leitura de partituras – dependeriam

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de um tempo maior de convivência para acostumarem os ouvidos com todas as

cadências harmônicas por mais simples que fossem de serem tocadas. Outro ponto

importante neste âmbito a ser destacado é que nas igrejas presbiterianas nesta época

somente eram utilizados piano ou órgão para acompanhamento do canto

congregacional. Vejamos o que nos disse Seu Alexandre:

Foi um choque cultural. A maioria pela graça de Deus

perseverou. Como diz lá Atos, né? Na doutrina, na comunhão,

no partir do pão, nas orações.... Alguns, se afastaram. Não

resistiram aquele desejo de voltar. Alguns né? Bem poucos. Mas

a maioria permaneceu.

Este cenário de confronto cultural, promoveu uma certa dissidência no grupo

protestante do Mel da Pedreira. As questões que envolvem esta divergência não têm

relação alguma com a nova fé em si, mas tão somente com o quadro cultural. Alguns

por não se sentirem confortáveis com o total tolhimento de suas manifestações

artísticas e culturais abandonaram a nova fé, já outros, extremamente envolvidos na

nova crença, mas buscando encontrar maneiras de se extravasarem religiosamente

de forma mais aproximada do que eram identitariamente, foram encontrando meios

de cultuar mais condizentes com a etnicidade quilombola. Nesta busca, dois

elementos foram decisivos para que a congregação presbiteriana do Mel da Pedreira

encontrasse um meio mais próximo de cultuar: as rádios evangélicas e o grande

crescimento da diversidade musical – como apontei anteriormente -, e uma relação

bastante estreita com fiéis da igreja Assembleia de Deus38. Leiamos Seu Alexandre:

Esse negócio de mesclar [está se referindo a utilização de

gêneros musicais e de canções que não são do Salmos e Hinos]

a gente começou lá do início. Porque meu irmão, tinha se

38 Assembleia de Deus no Brasil inicia-se com a chegada dos missionários suecos Daniel Berg e Gunnar Vingren

no dia 19 de novembro de 1910 na cidade do Pará. Igreja pentecostal oriunda dos movimentos avivalistas

presentes na Europa e especialmente nos Estados Unidos da América entre o final do século XIX e início do século

XX.

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convertido na Assembleia [de Deus] e ele aprendeu a tocar

violão e tocava muito! A gente fazia as serenatas, festas, não é?

E ele trouxe o violão para dentro da igreja e que na nossa Igreja

Presbiteriana de Macapá na época não tinha, era só piano e

órgão. Não tinha. Aí foi um “impactozinho” lá, mas também eles

não proibiram. Mas aí a gente já tinha deixado tudo [Marabaixo

e Batuque].

Esta igreja pentecostal – oriunda dos movimentos avivalistas americanos -, tem uma

liturgia de culto menos rígida e permite que seus fiéis extravasem suas emoções em

voz alta e mantém em seu repertório música festiva. Nesta época essencialmente, os

estilos regionais permeavam o cancioneiro desta igreja, e eram acompanhados por

instrumentos como pandeiro, acordeom, violão, viola, cavaquinho, rabeca entre

outros. Também na esfera litúrgica, a Assembleia de Deus permite que membros

tenham oportunidades avulsas públicas com o poder da palavra no palanque principal

da igreja, para contarem experiências de milagres ocorridos, fazerem pedidos de

oração e cantarem hinos. Geralmente esses hinos não pertencem a quaisquer

hinários. São músicas compostas espontaneamente por membros da igreja, não

necessariamente músicos formados ou teólogos ou que detenham domínio sobre as

histórias bíblicas, mas que de acordo com um prisma pessoal desenvolvem temas e

compartilham com a igreja. Estes temas musicais costumam ser altamente populares

e exaustivamente cantados e repetidos.

Foi então que os membros da congregação presbiteriana do Mel da Pedreira,

ainda adotando somente o Salmos e Hinos para os momentos de louvor, introduziram

o uso do violão no culto. Adaptaram essas canções para o estilo de música sertaneja

e assim voltaram a sentirem uma liberdade maior, já que estavam tão acostumados a

consumir tal estilo musical via rádio. Os hinos mais cantados nos cultos iniciais no

quilombo do Mel da Pedreira foram, “Pendão Real39” e “Quem Ouvir as Novas”:

39 Hino Oficial. A Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, adotou como hino oficial: “Um Pendão Real” cuja

letra nos inspira ao cumprimento da missão que o Senhor Jesus nos confiou. E como lema a expressão: “Pela

Coroa Real do Salvador”, revelando fidelidade a Jesus nosso Deus Salvador, Senhor e Rei.

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Com o passar do tempo, já provavelmente na década de 1980, – os

entrevistados não souberam precisar exatamente a partir de qual data -, as canções

avulsas similares as da Assembleia de Deus cuja referência fiz há pouco, também

foram introduzidas nos cultos da comunidade. É neste momento que a liturgia passa

por algumas adaptações, permitindo as participações de fiéis cantando, ou contando

seus testemunhos. Aliás, o culto se manteve com um ambiente caseiro por longo

tempo e, eram comuns algumas interrupções, confirmações, perguntas entre outras

manifestações evidentemente de maneira respeitosa, solene e reverente. Este foi o

período em que o rádio teve a maior influência no repertório musical dos cultos do

quilombo do Mel da Pedreira. As canções do Salmos e Hinos permaneceram como

assim o é até os dias de hoje – e veremos no decorrer deste capítulo -, porém dividindo

espaço com outros tipos de música.

Com a tradição musical bastante presente na comunidade desde o patriarca,

as habilidades artísticas estão por todos os lados no quilombo do Mel. É muito comum

encontrar instrumentistas e compositores das mais variadas idades. Como sabemos,

a paixão da família de Seu Bráulio pela música, pelos instrumentos, pelo violão

perdurou-se e multiplicou-se nas gerações seguintes. Ainda que com o tolhimento do

direito de se expressarem artisticamente enquanto quilombolas, remanescentes de

negros escravizados, a música é tão parte desta comunidade, que em nome da nova

religião, eles se reinventaram e continuaram produzindo arte. Em todos os oradores

que tive oportunidade de conversar se pode notar um misto de sentimentos que

envolve uma certa tristeza, e uma grande alegria quando comentam o período que

tiveram que ficar sem tocar Batuque e Marabaixo. A tristeza refere-se ao tempo em

que estiveram afastados de sua cultura por conta da religião. E a alegria por terem

entendido que detêm o direito de se manifestar artisticamente com esta ancestralidade

africana sem que firam sua nova fé. Mas é nesse período de obscuridade, por estarem

tão afastados de sua própria identidade, que como disse, se renovam, se adaptam e

se lançam novamente a música por outros caminhos. Nesses intentos, o

protestantismo permitiu que adentrassem e que pudessem se expressar nos cultos a

fé através da música, a moda sertaneja, os violões, canções em dupla nortearam a

comunidade.

Neste novo tempo de adaptações culturais, surge a compositora Dona

Minervina, 66 anos, filha do patriarca Seu Bráulio. Apesar de ter se mudado para

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Macapá ainda muito jovem, com aproximadamente 15 anos, nunca perdeu seu vínculo

com o quilombo do Mel e foi presença garantida nos cultos durante muitos anos. Sua

ida para a capital se deu somente por conta da busca por condições melhores de

estudo para os filhos, mas sempre teve o desejo de retornar a viver na comunidade,

o que já faz há quatro anos. Dona Minervina, é uma compositora de “mão cheia”. Suas

melodias não são simplórias e em alguns casos chegam a ser consideravelmente

ornamentadas, o que é um fator interessante se levarmos em conta que não toca

nenhum tipo de instrumento.

Em sua obra, as canções são essencialmente modas sertanejas. É claro que

se nota um fundo ritmado, de veras percussivo em seu repertório, de sua inegável

herança afrodescendente e de sua infância totalmente envolvida nas festas de

Marabaixo e Batuque, porém com melodias sertanejas, o que mais uma vez confirma

a influência do rádio sobre o repertório. Encontra-se também em seu repertório obras

batucadas. Com a fé protestante bastante consolidada, esta artista expressa em suas

músicas uma mescla dos episódios bíblicos com convites a conversão e sua própria

perspectiva ou experiência espiritual pessoal. Tais canções, abraçadas pela

comunidade, foram utilizadas nos cultos e ainda são populares entre a geração de

pessoas mais maduras.

Em seu cancioneiro existem inúmeras composições. Infelizmente, por não

utilizar de recursos eletrônicos para registro de suas obras, boa parte se perdeu, em

anotações de caderninhos que não foram mais localizados. Ainda assim, nos mostrou

um caderno com várias canções escritas e das tais compartilho:

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Embora as canções de Dona Minerva mencionar histórias bíblicas, observa-se

em todo o conteúdo de suas obras um enredo de convite para conversão religiosa. A

forma apresentada nessas composições utiliza-se da primeira parte da música

contando a história bíblica e a segunda parte incitando ao ouvinte uma reflexão da

aplicabilidade da história em sua própria vida pessoal e como desfecho sempre havia

algum verso dedicado àqueles que não haviam sido convertidos.

É bem provável que o rádio tenha também influenciado Dona Minervina em

suas composições para estruturar suas canções, como descrevemos anteriormente.

Vejamos o que ela declarou:

Não me espelhei em ninguém “pra” compor. São ideias minhas

mesmo e a bíblia. Escutava as músicas no rádio e isso me

ajudou.

Considerando este relato, e de outras pessoas com quem pude conversar no

quilombo sobre esse tema, podemos verificar que os programas evangélicos de rádio

foram ao menos mais um fator que contribuiu notoriamente para que além dessas

composições, outras canções típicas das igrejas pentecostais tivessem penetração na

congregação presbiteriana do Mel, haja vista, que diuturnamente os programas

evangélicos eram ouvidos pela comunidade, inclusive pelo desejo de seguirem

ouvindo sermões e de não terem um pastor em todos os cultos. O pastor os visitava

apenas uma vez por mês, quando ministrava a Santa Ceia para o quilombo do Mel.

Encontramos na canção de Otoniel e Oziel, - gravada em 1971 e grande sucesso nas

rádios evangélicas da época -, muitas semelhanças com a música “Quem me tocou”

de Dona Minervina, não somente no texto bíblico central utilizado, mas também na

estrutura do discurso musical (história bíblica + aplicabilidade do texto a vida pessoal

+ convite a conversão). Vejamos as semelhanças constantes na letra a seguir:

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Casa de Jairo

Para casa de Jairo ia Jesus

Uma grande multidão ia atrás dele.

Uma pobre mulher cheia de fé

Se esqueceu da multidão, e o tocou.

Refrão

Faz tu qual a mulher que foi tocou

Na orla do vestido de Jesus.

Virtude logo saiu e a curou

Se nele tocas tu saras também.

O Senhor perguntou quem me tocou?

Pois de mim saiu virtude eu o senti.

A mulher se levantou e confessou

Fui eu Senhor quem te tocou perdoa-me.

Se quiseres acercar-te ao Salvador

Com tuas cargas de pecados como estás.

Faze hoje qual a mulher que foi tocou

De seus vestidos para ti sairá virtude.

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Este repertório poderia ser inserido com tranquilidade nos cultos da

comunidade do Mel. Eram músicas bastante simples, que para serem executadas

como ouviam no rádio, ou ao menos bem próximo disso, os recursos necessários, a

comunidade tinha à disposição: violão, cavaquinho, viola e pandeiro. Apesar disso, os

próprios membros da congregação não as utilizavam diretamente nos cultos. As

cantavam nas reuniões familiares, nas serenatas, nos encontros informais. Nos cultos,

por longo tempo, somente foi adotado o hinário. Posteriormente – e infelizmente não

há precisão de a partir de quando – a congregação presbiteriana do Mel foi aderente

as canções avulsas nos cultos o que também possibilitou a utilização de outros

instrumentos: guitarra, teclado, contrabaixo e bateria.

3.3.1 A música gospel no quilombo

O grande tsunami musical que produziu muitas mudanças na adoração coletiva

das igrejas através da música também é um agente influenciador da produção sonora

do quilombo do Mel da Pedreira. A música gospel – rótulo inserido para identificar a

abertura das igrejas neopentecostais para movimentos musicais de rock´n´roll, blues,

pop rock, hard rock, white metal, entre outros foi o meio utilizado para aproximar a

música da igreja a música produzida secularmente. O intuito principal era que através

da agregação desses gêneros musicais ao ambiente da igreja, o evangelho se tornaria

mais popular, visto com menos preconceitos e os rebanhos dessas comunidades

cresceriam (Freddi Junior, 2002, p. 56). Gradativamente a música gospel foi

abarcando muitos outros gêneros musicais até que alcançou o ponto atual de

significar música produzida por evangélicos independente do estilo.

Musicais atuais do repertório gospel é parte recorrente dos cultos da

comunidade presbiteriana do Mel. Nos cultos que participei, pude ouvir músicas de

cantores conhecidos: Fernandinho, Eyshila, André Valadão, Matos Nascimento,

Kleber Lucas, Fernanda Brum, Davi Sacer, Aline Barros. Em algumas ocasiões,

principalmente quando as canções são entoadas pelo grupo de crianças essas

músicas sofrem severas adaptações. Em muitas delas são feitos arranjos para o

acompanhamento dos tambores do marabaixo e do batuque.

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A música gospel é tão popular entre os quilombolas do Mel, que em alguns

cultos de família, em lares, que tive a oportunidade de estar presente para pesquisas,

não foram utilizados os hinos do Salmos e Hinos, somente músicas gospel. Outro fato

importante, um outro registro sobre a presença da música gospel na comunidade foi

em minha visita à escola. Na apresentação que os alunos fizeram para mim, cantaram

música gospel da Fernanda Brum, acompanhado pelo ritmo do marabaixo.

3.4 A fase musical atual: A reinserção do Batuque e do Marabaixo no quilombo do Mel

da Pedreira

Com o reconhecimento da comunidade como remanescentes de negros

escravizados, com a titulação das terras para o quilombo do Mel da Pedreira no ano

de 2007, reacende o sentido de etnicidade e identidade que por algumas décadas

permaneceu adormecido em função do protestantismo. O processo de

reconhecimento da comunidade como vimos no capítulo primeiro não foi nada fácil.

Em vários momentos, muitos senões eram argumentados pelos antropólogos do

INCRA acenando para o não reconhecimento como quilombolas, principalmente por

causa da opção religiosa da comunidade. Seguramente, tais adversidades

fortaleceram o senso comunitário do grupo e despertou o paulatino reintegrar das

manifestações culturais de matriz africanas no grupo.

Curiosamente, o primeiro local que passou a experimentar dos elementos

rítmicos africanos na música foi a própria igreja, os próprios cultos. No começo, por

ainda certos de que não deveriam tocar o Marabaixo e o Batuque nos cultos – haviam

aprendido que se tratavam de oferendas aos espíritos e que não deveriam mais usar

esses gêneros musicais -, inseriram tambores de diversas qualidades, alguns mais

presentes nas rodas de samba, e arranjaram todas as canções para um tipo de

batucada genérica. A música na congregação presbiteriana do Mel começa a trazer

de volta suas origens artísticas, o que fez com a comunidade ganhasse um novo

ânimo de fé e de expressão religiosa. Nessa articulação de retomada, alguns

personagens foram bastante importantes, porque lideram musicalmente este

movimento: Néia - a filha de Seu Biló, Seu Alexandre, Dionatan Souza, Elizeu e irmão

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João – líder do louvor. Como líderes da comunidade na área de música envolveram

todos os instrumentistas e cantores nesse novo projeto e todo o quilombo de imediato

aprovou tal medida. A princípio, continuaram usando os hinos, as canções

evangélicas de modo geral, especialmente as de origem pentecostal, e além da

guitarra, contrabaixo, guitarra e bateria, foram adicionados os tambores.

Durante os longos anos sem participar das festas de Marabaixo e Batuque, sem

sequer tocar os ritmos ou promoverem tais festas com outra finalidade que não de

idolatria aos santos e aos espíritos, o contato indireto com as festas e a música foi

uma constante. Apenas o lago separa o quilombo do Mel do quilombo de São Pedro

dos Bois. A distância de três quilômetros, - apesar de não ser tão pequena -, permite

ouvir claramente o som dos tambores das festas do quilombo vizinho. Néia disse que

sempre ouviam as festas e a música. E paravam para ouvir e gostavam de ouvir. Mas

que estavam conscientes de que não poderiam mais tocar, apesar de ter nascido no

período pós conversão ao protestantismo:

A gente tinha assim um pouco de barreira pelo fato de “ser”

evangélicos. (...). Mas, a gente tinha medo de ser discriminado

pelos irmãos se “fosse” tocar esses ritmos. (...). Eu achava

interessante o ritmo.

Nesta declaração percebemos que a ruptura com a cultura ocorreu no âmbito

prático – a conversão ao presbiterianismo os fez pensar que a sua cultura ancestral

não poderia ser um meio de manifestação da nova fé, haja vista a absoluta convicção

de que tudo que envolvia as festas de Batuque e Marabaixo eram oferendas aos

santos -, mas não se deu no aspecto étnico e identitário. A ligação com a cultura dos

remanescentes de negros escravizados não havia sido rompida e, de fato, é algo

pertencente a forma de ser dos quilombolas ainda que queiram professar uma fé

contraditória as crendices de matrizes africanas. O indivíduo da comunidade do Mel

da Pedreira se apresenta como quilombola protestante, por crer absolutamente na

possibilidade de transitar entre sua cultura de origem afro-brasileira e sua crença

evangélica protestante. E, no intuito de manifestar sua fé, sentem-se plenamente

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confortáveis ao fazerem através do ritmo alegre, contagiante, dançante do Batuque e

do Marabaixo. Como comenta seu Alexandre:

Antes eu fazia [dançava e cantava] para os santos, hoje não

posso fazer para Deus? Eu sempre fui “chegado” numa festa!

Mas agora, quando eu danço eu faço assim, ó [olhe – apontando

o dedo para cima como quem diz: é para Deus].

Com a titulação das terras oficializada, os líderes do quilombo do Mel, se veem

inseridos no contexto das lideranças do movimento negro no estado do Amapá.

Passam a participar de reuniões com as demais comunidades que ainda pleiteiam

suas respectivas titulações de terra e reconhecimento como quilombolas, e o que

sempre esteve vivo – a identidade étnica – começa a ganhar mais força e com grande

ímpeto permeia a comunidade despertando o desejo de voltar as raízes musicais sem

detrimento a fé. A participação ativa da liderança do quilombo do Mel na União dos

Negros do Amapá – (UNA), órgão promotor de um dos eventos mais populares do

estado e o mais popular de cultura negra do baixo amazonas, o Encontro dos

Tambores, amplia o contato com o Batuque e o Marabaixo ao ponto da comunidade

do Mel ventilar a possibilidade participar do evento. Porém, aí residia a dura dicotomia

apresentada e vivida por décadas: Batuque e Marabaixo versus Protestantismo. Dois

lados totalmente opostos no âmbito da religiosidade. Como não sabiam como lidar

com esta situação – tão pouco a quem recorrer para tomarem uma decisão -, acabam

refutando tal participação, ainda que fossem formalmente convidados para participar

como de fato aconteceu.

No ano de 2012, com a chegada do Prof. Dr. Antonio Maspoli de Araújo Gomes

ao quilombo do Mel da Pedreira, para dar início as suas pesquisas, as lideranças da

comunidade se sentem amparadas no sentido de buscarem uma orientação do que

deveriam fazer no tocante a participar ou não do Encontro de Tambores e se deveriam

ou não tocar Marabaixo e Batuque também os inserindo no contexto cúltico da

congregação presbiteriana do Mel. Seu Alexandre nos conta que a conversa com o

Dr. Maspoli na realidade foi um convite a reflexão. E que após esta reflexão toda a

liderança do Mel se reuniu e decidiu que deveriam sim voltar a viver as raízes culturais

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ancestrais e usá-las com um meio autêntico de manifestação da fé protestante do

quilombo.

Desde então, os cultos no Mel, - que descreveremos com mais detalhes a

seguir -, têm sido organizados musicalmente falando, em torno do Batuque e do

Marabaixo. Integralmente, as canções entoadas nas reuniões estão adaptadas ao

ritmo dos tambores, sejam músicas compostas por eles, dos hinários ou avulsas do

cancioneiro evangélico.

3.5 O Batuque e o Marabaixo do Mel da Pedreira

Conforme vimos no capítulo anterior, Marabaixo e Batuque têm suas

características musicais e rituais específicas. Em função do protestantismo, tais

características rituais foram totalmente desfeitas. As festas não são promovidas pelo

quilombo do Mel. Todas as manifestações desses ritmos ocorrem nos domínios da

igreja – ou de outras igrejas que são convidados para se apresentar -, ou em locais

públicos culturais para demonstração da arte negra quilombola como no anual

Encontro dos Tambores. Os quilombolas do Mel recebem os convites de

apresentações culturais como excelentes oportunidades de expressão de fé e de

evangelismo. O rádio, a música sertaneja, a música evangélica, os hinários

influenciaram na arte quilombola do Mel de tal modo que hoje está comunidade

apresenta um tipo exclusivo de Batuque e Marabaixo. Se faz extremamente

necessário elencar as cruciais diferenças que são fruto da convergência de estilos e

ritmos das influências já citadas, bem como a propagação da doutrina da fé

protestante. Vejamos as diferenças:

3.5.1 Conteúdo Poético das Canções de Batuque e Quilombo do Mel da Pedreira

Tanto o batuque quanto o marabaixo neste quesito sofreram mudanças

consideráveis. Todos os textos poéticos das canções que nas festas tradicionais de

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outros quilombos são dedicados aos padroeiros, aos santos, a virgem, no Mel são

dedicados a Jesus e a Deus exclusivamente.

Também são utilizados textos bíblicos e contação de histórias bíblicas para

construção poética das canções. Como num padrão estrutural das canções

evangélicas, sempre existem versos de convite a reflexão, a conversão e a proposta

por experimentar de uma relação sobrenatural com Deus relacionada à cura e a

milagres.

Existem muitas músicas cujas poesias foram compostas para propagação de

remissão de pecados e transformação de vida em Jesus sob uma perspectiva pessoal

do compositor, assim como muitas delas são abordagens pessoais sobre

Soteriologia40.

Algumas músicas são reproduções dos Salmos bíblicos, principalmente os que

exaltam a grandeza de Deus através da criação.

3.5.2 Estrutura Melódica das Canções de Marabaixo e Batuque do Quilombo do Mel

do Pedreira

As melodias passaram por mudanças consideráveis. As canções de marabaixo

e batuque tradicionais têm suas melodias confeccionadas em escalas pentatônicas,

escalas diatônicas utilizando-se de graus vizinhos e com poucos “saltos” melódicos.

Ou seja, são melodias muito simplórias muito semelhantes às usadas nas ladainhas

para que possam ser repetidas de acordo com a estrutura responsorial de canto. Já

as melodias do quilombo do Mel são compostas com uma gama maior de notas das

escalas, são consideravelmente ornamentadas e com frequência fazem uso de

apogiatura41.

40 Soteriologia. Parte da teologia que aborda a salvação do homem. 41 Appoggiatura ou apogiatura, (do italiano appogiare, apoiar) é uma nota característica de um intervalo melódico,

escrita um grau acima ou abaixo da nota que a sucede (nota principal), retirando parte do valor desta (normalmente

metade do valor, embora no tempo ternário retire apenas a terça parte). A appoggiatura é representada na pauta

como uma nota menor anexada à nota principal.

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Frequentemente o uso estrutural responsorial nas canções são substituídos por

construções harmônicas até três vozes. Isso se dá pela influência das músicas dos

hinários, mas também porque alguns cantores do quilombo do Mel da Pedreira

participaram de corais nas Igrejas Presbiterianas da capital Macapá, principalmente

na igreja central. Também são feitos arranjos vocais que podemos chamar de

responsoriais a três vozes, quando o ladrão de marabaixo atua, porém, as respostas

vocais não são construídas em uníssono. O ladrão de marabaixo no Mel foi

preservado, porém, sem a característica de improvisação. Atua como um solista,

intermedia a participação dos demais cantores na música. Os arranjos construídos em

até três vozes distintas não são simples. Passam pelas respostas responsoriais de

frases completas, de fragmentos das frases e também são utilizadas técnicas de

acompanhamento vocal como Bocca Chiusa42. Vejamos dois exemplos de poesias de

canções:

42 Bocca chiusa é um termo em italiano, que significa cantar com a boca fechada. É uma técnica usada em

vocalizes para o "aquecimento vocal". Caracteriza-se por cantar com a boca fechada transferindo a ressonância

para a região nasal.

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Estas canções foram compostas especialmente para a primeira participação do

quilombo do Mel da Pedreira no Encontro dos Tambores promovido pela União de

Negros do Amapá – (UNA), evento em homenagem a Zumbi dos Palmares, evento

que ocorreu no Centro de Cultura Negra do Amapá – CCNA. Atualmente, o quilombo

do Mel é presença garantida nos eventos da cultura negra do estado do Amapá,

sempre representando a arte do Marabaixo e do Batuque contextualizada aos

princípios doutrinários do protestantismo presbiteriano a qual pertencem.

Ainda que militantes de uma fé diferente dos demais grupos de quilombolas

presentes no Encontro de Tambores, toda a comunidade conta que a experiência que

vivenciaram neste episódio foi inesquecível. Foram muito bem recebidos, não houve

nenhuma ocorrência de retaliação ao grupo por questões de divergências religiosas

e, mais que isso, foram muito respeitados e elogiado por tão brilhante apresentação

que fizeram. Todos os anos, a liderança musical do quilombo se organiza para

participar deste conclave de quilombos, produzindo novas canções, novos arranjos e

promovendo interação com a comunidade negra do estado do Amapá.

3.5.3 Constituição Harmônica das Canções de Marabaixo e Batuque do Mel da

Pedreira

A harmonia43 musical presente no marabaixo do Mel da Pedreira é bastante

sofisticada em relação ao convencional marabaixo. Isso ocorre em função do uso da

melodia mais ornamentada e com mais notas das escalas musicais. São usados

diversos tipos de cadências44 presentes na música sertaneja e na música gospel.

43 Harmonia é o campo que estuda as relações de encadeamento dos sons simultâneos (acordes).

Tradicionalmente, obedece a uma série de normas que se originam nos processos composicionais efetivamente

praticados pelos compositores da tradição europeia, entre o período do fim da Renascença ao fim do século XIX. 44 Cadência, na teoria musical ocidental, é uma série particular de intervalos, ou acordes (progressão de acordes

ou intervalos) que finalizam uma frase, seção ou obra musical. Cadências dão às frases um final próprio, que pode,

por exemplo, sugerir ao ouvinte se a peça continuará ou se concluiu. Uma analogia pode ser feita em relação à

pontuação, com algumas cadências mais fracas funcionando como vírgulas, indicando uma pausa ou descanso

momentâneo, enquanto que uma cadência mais forte irá atuar como o ponto, indicando o final de uma frase ou

sentença musical.

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Nas canções de marabaixo que pude ouvir e presenciar de outros quilombos,

são utilizados geralmente três acordes, os básicos para formação mínima de um

acompanhamento harmônico. O marabaixo do Mel utiliza-se de quase todos os

acordes do campo harmônico45 do tom utilizado, como dito anteriormente em função

da melodia amplificada.

No caso do batuque do Mel, não se utiliza nenhum instrumento a não ser a

própria caixa de batuque. Ao compararmos com o batuque dos outros quilombos, é

feito uso de toda a gama de membrafones assim como de alguns instrumentos

harmônicos como violões e violas.

3.5.4 Instrumentos utilizados no Batuque e no Marabaixo do Mel da Pedreira

Como mencionamos anteriormente, no batuque do Mel da Pedreira, utilizam

apenas a caixa de batuque para acompanhamento.

Quanto ao marabaixo, são utilizados todos os membrafones convencionais,

artesanalmente construídos pelas comunidades, além dos tambores industrializados.

No Mel, utilizam: pandeiros de várias medidas, surdos, tam-tam, bongos, e a bateria

convencional completa com pratos. Além desses instrumentos, são utilizados: violão,

guitarra, contrabaixo e teclado. Violões e violas, são bastante presentes na categoria

instrumentos harmônicos nos grupos de marabaixo do Amapá. Teclado é pouco

usado. O quilombo do Mel é também um dos grupos precursores a utilizar este

instrumento.

3.6 O Departamento de Música da Congregação Presbiteriana do Quilombo do Mel

da Pedreira

A congregação do Mel se organiza como uma igreja presbiteriana

convencional. Todavia, militam o desejo de se tornarem uma igreja por terem um bom

45 Campo Harmônico é a sequência de acordes compatíveis dentro de uma tonalidade.

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número de membros fieis, mas ainda tal situação perpassa pela nomeação de um

pastor que possa se dedicar integralmente à comunidade. A igreja tem seus

conselheiros, liderança reconhecida pelo grupo de religiosos e dois presbíteros

titulados pela igreja presbiteriana, Sr. Alexandre e Sr. Osvaldino.

A congregação está organizada em departamentos. É dada uma grande ênfase

a Escola Bíblica Dominical que segue criteriosamente as normas estabelecidas para

as igrejas presbiterianas, bem como as demais áreas de atuação estão bem

constituídas: para crianças, adolescentes, jovens, mulheres e homens (Sousa, 2014,

p.45).

O departamento de música é liderado pelo irmão João. Como mencionamos no

capítulo um deste trabalho, Seu Bráulio, o patriarca, adquiriu as terras de seu primo,

avô do irmão João. Nascido nessas terras, após a venda para o patriarca deste

quilombo, seguiu com sua família para outra comunidade chamada “Os cavalos” que

teve o nome alterado para “Santana” posteriormente. Irmão João é de origem

protestante pentecostal. Junto com seus pais frequentava a Assembleia de Deus.

Sempre esteve ligado à música desde sua igreja anterior. Participou de diversos

grupos musicais, como de jovens, coral e se apresentava também como cantor. O tipo

de música que esses grupos faziam era essencialmente pentecostal, com gêneros

musicais que variavam entre o forró, o baião e o carimbó. Apesar de sua experiência

como cantor e participante de vários grupos vocais durante toda a vida religiosa, João

não toca instrumentos e não tem formação ou base de estudos musicais, mas, ocupa

a liderança geral deste departamento.

A liderança técnica musical fica a cargo de Néia, a filha caçula de Seu Benedito,

personagem decisivo e persuasivo na conversão de seu sogro o patriarca Seu Bráulio.

Néia estudou música na Igreja Presbiteriana Central. Estudou violão, canto e

participou do coral desta igreja por alguns anos. Néia faz parte do grupo de

compositores emergentes que tem trabalhado o marabaixo e o batuque para os cultos

da comunidade. Também, desenvolve todos os arranjos e adaptações vocais,

instrumentais, e rítmicas para adequar canções convencionais à “pegada46” dos

tambores do Mel. Apesar de deter mais conhecimentos musicais que João, Néia se

46 Pegada. Termo popular empregado para definir o sentido de pertencimento a um estilo musical.

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submete sem maiores problemas à liderança de João e juntos articulam projetos de

música para a congregação e para toda comunidade. O departamento de música se

estrutura a saber:

Grupo Vocal e Instrumental Infantil – Além dos ensaios para execução das músicas

no culto, são dadas aulas de canto – como cantar afinado, divisão de vozes -, até as

aulas práticas nos instrumentos (violão, teclado, bateria, contrabaixo, guitarra e

tambores). Não são utilizados os meios convencionais de ensino de música como

teoria e leitura de partitura. Todo o trabalho é desenvolvido nos campos da percepção,

estimulação e repetição. A aptidão rítmica é notória no trabalho que Néia realiza com

as crianças, como por ela mesma é enfatizado:

As crianças querem aprender a tocar tudo. Mas elas têm muito

mais facilidade com os tambores porque está no sangue.

Ministério de Louvor – Este grupo abarca todos os jovens e adultos músicos e cantores

da congregação. Não existe separação de grupos por faixa etária nesse caso, em

função da dificuldade estrutural e de liderança porque são poucos os líderes

habilitados para fazer um trabalho com a parte com os jovens. Então, como são

muitos, é confeccionada uma escala de participação de músicos e cantores por culto

de domingo. Este grupo é responsável pela música de todos os cultos, celebrações e

datas festivas. Os ensaios acontecem semanalmente, aos sábados.

Coral – Grupo vocal tradicional divido em três vozes para apresentações específicas,

como Natal e datas festivas. No repertório do coral, estão canções tradicionais,

canções do hinário e músicas gospel em geral. Não são usados os tambores, e o coral

não tem ligação alguma com as manifestações de marabaixo e batuque. O coral

também se apresenta acappella e acompanhado por teclado.

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Grupo de Coreografia – Claramente, se trata de um grupo de performances em dança.

Provavelmente não é chamado como grupo de dança em função das tradições da

igreja presbiteriana e também da igreja pentecostal de não permitir a dança na liturgia

do culto. Os grupos de coreografia surgiram nas Assembleias de Deus no final dos

anos de 1990. Tocava-se as gravações dos cânticos, enquanto um grupo de meninas

e jovens desenvolviam movimentos alusivos ao enredo musical. Evidentemente, tais

movimentos ficam mais preservados na esfera da expressão gestual que

propriamente dito dos movimentos corpóreos completos. O grupo de coreografia do

Mel, chama atenção para dois aspectos específicos: o primeiro deles, e obviamente

como não poderia deixar de ser, são os elementos das danças do marabaixo e

batuque muito presentes na montagem das coreografias e por serem acompanhados

por música ao vivo produzida pelo ministério de louvor. Todas as coreografias são

direcionadas para o ritmo dos tambores e o contágio da comunidade com a música e

a dança é imediato. Alguns chegam a ficar em pé durante a apresentação e

acompanham com a música com leves movimentos corpóreos. Assim como o coral, o

grupo de coreografia não se apresenta regularmente. Mas em todas as datas

importantes da congregação há uma coreografia nova a ser representada.

3.7 A Organização Cúltica da Congregação Presbiteriana do Mel da Pedreira

Meus estudos sobre o culto quilombola, satisfatoriamente, ocorreram após a

total integração dos elementos culturais ancestrais do batuque e do marabaixo ao

quilombo do Mel da Pedreira. Literalmente, podemos considerar que são cultos ao

som dos tambores, do início ao final. Organizacionalmente, o culto segue uma liturgia

convencional. Inicia-se com a leitura de um texto bíblico e uma oração. Os avisos e a

saudação aos visitantes ocorrem em seguida. A partir daí, começa o período chamado

de louvor e adoração. Todos se colocam de pé, e numa espécie de canto

congregacional são dirigidos pelo grupo musical que está no palanque da igreja neste

momento. Neste local de destaque estão muitos músicos e cantores: seis

percussionistas, baterista, contrabaixista, tecladista, violonista, guitarrista, cantor

principal e três vozes de fundo. São tocadas músicas diversas, que não são dos

hinários e que foram adaptadas ao ritmo do batuque e do marabaixo. O som dos

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tambores fica em plano de destaque, ainda assim se pode ouvir agradavelmente todas

as vozes, demais instrumentos, e vozes unidas da congregação no canto. Este tempo

de adoração e louvor tem duração média de trinta minutos.

As canções estão mais voltadas para o estilo pentecostal que tradicional, não

somente pela introdução dos tambores à gama de instrumentos utilizados, mas

também por causa do conteúdo poético de cada uma delas. Além das músicas

compostas pelos quilombolas, das quais já citamos algumas, existem outras diversas

com o mesmo apelo. Após o momento de louvor, fui convidado para dar uma

saudação à congregação. Assim o fiz em poucos minutos.

Adentram ao momento das contribuições, chamado de ofertas. Enquanto os

fiéis entregam suas contribuições, é entoado uma canção do hinário totalmente

adaptada ao som dos tambores mais tocada de maneira um pouco mais contida e, na

sequência, o sermão. Após o sermão deu-se início ao ritual de comunhão, a Santa

Ceia. E durante o preparo deste momento do culto, mais uma música fora executada.

Desta vez uma canção, lenta, mais apropriada para a reflexão. Porém, alguns dos

percussionistas do ministério de louvor, seguiram tocando seus tambores numa

espécie de batuque adaptado. Ao concluir o período de Santa Ceia, o grupo de

coreografia apresentou duas músicas com o grupo de louvor. Uma delas, havia sido

composto recentemente pelo grupo. Um autêntico marabaixo do Mel! Muita dança,

coreografia, tambores e toda a comunidade em festa. O pastor impetrou a benção final

e conclusão do culto.

Toda Santa Ceia, a comunidade da congregação se organiza para um grande

almoço de comunhão. As mulheres combinam o que cozinhar, os homens saem a

caça, compram refrigerantes e sucos e promovem um banquete. Neste culto, além

dos tradicionais: arroz, feijão, macarrão, farinha, açaí, mandioca, carne de porco,

carne de boi; havia também carne de tatú. Tudo em muita fartura e compartilhado

entre todos com muita alegria. Porém, enquanto organizavam o salão social da igreja,

anexo ao templo para receber as pessoas para comer e enquanto os alimentos eram

preparados, um fato me chamou bastante atenção. Os músicos se mantiveram

tocando e cantando. Marabaixo e batuque quilombola do Mel, com poesia protestante.

E pude assistir a uma das manifestações mais espontâneas de marabaixo e batuque

em todos esses dias de pesquisa. Enquanto havia música, toda a comunidade

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dançava. Homens, mulheres, crianças, sem exceção. Fizeram a dança do acorrentado

(dança tradicional do negro aprisionado), reconstituindo as rodas das senzalas. Era

explicito que todos envolvidos demonstravam um sentimento de profundo orgulho e

pertencimento à cultura, mas de total envolvimento com a fé protestante e tudo que

faziam dedicavam ao Deus desta fé, olhando para cima, apontando com os dedos e

mencionando palavras de exaltação e elogio para ele.

3.8 A Identidade Protestante do Quilombo do Mel da Pedreira

Ao ter vivido dias intensos com a comunidade do Mel, conhecendo a história

de constituição deste grupo, pude verificar o quanto são ligados à religiosidade

protestante. Esse período de convivência com os quilombolas, foi uma imersão nas

doutrinas protestantes, baseadas em frequentes citações bíblicas e, diversas

narrativas de experiências pessoais – milagres alcançados -, algo bastante usual entre

evangélicos. Algo que poderia soar completamente fora de esquadro, afinal estamos

numa comunidade de remanescentes de negros escravizados e supostamente a

religiosidade deste grupo deveria estar conforme suas raízes ancestrais. Esta é uma

realidade que naturalmente a maioria das pessoas pensam, quando no imaginário

formamos a imagem do que seria um quilombo. Como exposto no capítulo um deste

trabalho, este também havia sido o pensamento dos antropólogos do INCRA quando

visitaram a comunidade em meio ao processo de reconhecimento deste grupo como

remanescentes de negros escravizados e de titulação das terras. Porém, ao meu ver,

um dos fatores que dão a esta comunidade um status altamente instigante é

justamente a opção pela fé protestante, fato este que é o cerne das investigações

etnomusicológicas desta pesquisa.

O quilombo do Mel da Pedreira sempre cultivou boas relações e pleno convívio

com as demais comunidades quilombolas da circunvizinhança. Tal relação, fora

mantida ainda após a conversão ao protestantismo, especialmente com o quilombo

de São Pedro dos Bois pela proximidade geográfica e por diversas relações de

parentesco. Há muitos casamentos entre membros desses dois grupos. Ainda assim,

esta conexão não enfraqueceu a fé protestante dos quilombolas do Mel, ao contrário,

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bastante consolidada e deveras repercutida, está fé acabou por borrifar seus

ensinamentos em São Pedro dos Bois culminando na conversão protestante de

algumas pessoas por lá (Sousa, 2014, p. 50). Este fato demonstra o quanto a

religiosidade para os quilombolas do Mel está posta inclusive acima das questões

culturais. A necessidade de respostas no âmbito religioso, de acordo com todos os

relatos, sempre foi uma busca constante tanto de Seu Bráulio quanto de Seu Benedito,

protagonistas do episódio conversão protestante. Seu Benedito em nossas conversas,

por diversas vezes mencionou a sua ávida busca por Deus, e que tentou encontrá-lo

de algumas formas. Também nos disse, que seu primeiro contato com a bíblia ocorreu

na casa de um amigo padre, quando pode pegar pela primeira vez num exemplar e

folheá-lo por poucos instantes buscando compreensão e encontrar respostas para

suas indagações pessoais. Mais tarde, novos encontros com a bíblia culminariam em

sua conversão ao protestantismo. Seu Bráulio, antes da conversão também era uma

sôfrega alma em busca de respostas para seus requerimentos. Ouvia frequentemente

programas de rádio evangélicos ainda na condição de pajé e rezador de ladainha.

Estas informações podem apontar para um cenário onde a religiosidade que melhor

completaria os hiatos da alma dos quilombolas sob a perspectiva deles, poderia

ocupar papel principal na dinâmica de vida de ambos e, pela liderança exercida sobre

os demais, as respostas encontradas por eles persuadiriam a comunidade. Como

exposto anteriormente, num quadro de persuasão, Seu Benedito convenceu o sogro

Seu Bráulio a refletir sobre a fé protestante o que se tornaria pouco tempo depois na

conversão coletiva ao protestantismo do quilombo do Mel através da decisão do

patriarca.

O ambiente no quilombo do Mel da Pedreira, por vezes se torna

inebriantemente místico. Muitos são os relatos de ocorrências sobrenaturais ocorridas

no passado, anterior à conversão, e que eventualmente são trazidos à tona, não

somente como narrativas históricas de contação de casos ocorridos com

antepassados, mas eventualmente, quilombolas de gerações mais recentes

comentam ter vivido ou saber de alguém que experimentou algo sobrenatural. Um dos

eventos sobrenaturais mais populares é a "Mulher da cabeça de fogo". De acordo com

os relatos, uma mulher quilombola estava dormindo, quando inexplicavelmente sua

cabeça se separou de seu corpo sem qualquer intervenção de outra pessoa ou

incidente. Em seguida, a cabeça apartada do corpo se transforma em uma grande

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bola de fogo que inclusive ao se apresentar, gira e pode mudar de tamanho. A bola

de fogo retornou ao corpo da mulher, e tão misteriosamente quanto seu apartamento

do corpo, se reconectou, porém, virada para trás. Esta ocorrência fora narrada

diversas vezes para mim através de pessoas diferentes da comunidade, como

primeira ocorrência. Interessante frisar que pude ouvir relatos dos mais velhos e dos

mais jovens sobre este mesmo fenômeno, o qual é visto e transmitido como real e que

eventualmente alguns ainda veem tal fenômeno ocorrer.

Ao analisarmos tais relatos, e o comportamento em torno dessas histórias,

notamos que não somente as questões geográficas, de proximidade com as demais

comunidades quilombolas da região, mas também a tendência à credulidade religiosa,

fazem com que a comunidade do Mel permaneça vinculada as raízes ancestrais.

Neste contexto, vinculados ao local, a terra, a praticamente a mesma dinâmica de

vida, difícil seria se desconectarem totalmente deste nexo cultural.

O protestantismo que se arraigou desde muito próximo do início da comunidade

do Mel, friccionou e confrontou as práticas híbridas religiosas presentes no quilombo.

A plena conformação às doutrinas desta nova fé eliminou quaisquer práticas

relacionadas às religiões tanto de origem africana – marabaixo e batuque –, quanto à

do catolicismo popular – ladainha – e pajelança. Os quilombolas de Mel, em coro, têm

uma visão de discordância às práticas religiosas de outrora afirmando terem hoje a

liberdade de se expressarem espiritualmente à divindade sem que seja por intermédio

de rituais e oferendas.

Por outro lado, em primeira instancia, não houve adaptações do protestantismo

à cultura do quilombo do Mel, que produziu o tolhimento das práticas artísticas meio

pelo qual poderiam se expressar autenticamente no âmbito religioso, mas, o efeito

produzido fora contrário, induzindo à mortificação ainda que temporária da cultura

africana no contexto protestante.

Com o passar do tempo, a comunidade se adequou ao culto protestante

pentecostal. A configuração cúltica mais informal, as interjeições de euforia, êxtase e

alegria, as músicas executadas de acordo com os ritmos regionais, deram ao

quilombo do Mel um sentimento de pertencimento maior se comparado com a igreja

tradicional. As determinações doutrinárias calvinistas estão muito presentes na

comunidade do Mel e não sofreram nenhum efeito de incredulidade por parte dos

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membros desse grupo. Porém, a convivência com o pentecostalismo contribuiu em

larga escala para que o quilombo do Mel pudesse configurar sua nova identidade

étnica. O pentecostalismo, de certa forma, fora a ilação, entre os resquícios das raízes

africanas - que se mantiveram presentes no inconsciente da comunidade e que cedo

ou mais tarde, tomaria grande vulto e proporção voltando à tona, já que bradava

constantemente entre os quilombolas -, e o protestantismo ideal quilombola, a nova

identidade étnica. O que fica bastante delineado, é que do movimento pentecostal, os

quilombolas querem somente a forma mais livre de culto, as canções com apelo ao

fogo do Espírito Santo e a liberdade do êxtase espiritual. Ao analisarmos estas

questões da emotividade religiosa, vemos o quão cerca podem estar alguns

movimentos pentecostais e o batuque e marabaixo. Como já dissemos anteriormente

neste capítulo, desde o início das reuniões cúlticas da congregação do Mel, a liturgia

presbiteriana fora questionada e delicadamente adaptada e atualmente, o culto é

estruturado bem diferente do tradicional. Seu Alexandre, diz que a maioria das

pessoas ainda não os compreendem bem, e são contrárias as suas manifestações

culturais nos cultos e menos formais ou mais pentecostais:

O pessoal [referindo-se à igreja presbiteriana, especialmente

aos líderes] tem preconceito. Somos vítimas de preconceito do

povo da igreja que não entende nosso jeito de adorar a Deus

com nossa cultura.

Apesar de um grande apego e respeito as doutrinas da igreja presbiteriana, a

necessidade de uma espiritualidade fenomenal marca a história dos quilombolas do

Mel da Pedreira. É provável – importante que haja maiores estudos específicos nesta

área –, que a espiritualidade com adventos sobrenaturais esteja vinculada às

emoções e a psique do quilombola, haja vista, sua condição religiosa anterior. Vale

lembrar, que a própria conversão ao protestantismo é narrada como evento fenomenal

quando da revelação de Esmeraldo, o guardião da família de Seu Bráulio, do

abandono que ele sofreria por outra opção de fé por parte desta comunidade, fato que

é narrado com grande respeito por todos e como uma resposta coerente do mundo

espiritual para a nova escolha religiosa.

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Com o passar do tempo, a comunidade do Mel da Pedreira foi mudando a

maneira de se enxergar enquanto grupo étnico, dentro de outros demais grupos

étnicos. Também, sua visão de comunidade protestante sofreu mudanças no âmbito

das demais comunidades protestantes. Ou seja, nas comparações que o quilombola

do Mel fez de si mesmo nas duas referências ou modelos de origens formadores de

uma identidade própria para si, aparta elementos significativos para a construção de

uma nova e exclusiva identidade. Vamos analisar a canção composta para o Encontro

de Tambores:

Música: Quilombo do Mel

ʺ Somos do quilombo do Mel, do Mel da Pedreira ʺ. Se trata da autoafirmação de

sua etnicidade negra. Afirmando ser negro, tomam posse de um conjunto de

concepções que formam sua cultura. Desde sua diáspora, a escravidão, os diversos

sofrimentos dos antepassados até o presente de luta por direitos igualitários, ou a luta

pela possessão da terra.

ʺ Estamos hoje aqui para Louvar o Deus guerreiro. É nossa missão falar do amor

de Cristo. Com muita alegria louvamos ao nosso Rei! ʺ. Nestas três seguintes

frases da canção, observamos as mudanças que ocorreram no entendimento do ser

quilombola, e que ocorrem internamente, mas, precisam ser externadas para

encontrar um ponto de contraste ou confronto, com a identidade anterior, como vemos

no conceito de identidade de contraste (Oliveira, 1976, p.112):

" A identidade contrastiva parece se constituir na essência da

identidade étnica, i.e, à base da qual esta se define. Implica a

afirmação do nós diante dos outros. Quando uma pessoa ou

grupo se afirmam como tais, o fazem como meio de

diferenciação em relação a alguma pessoa ou grupo com que se

defrontam. É uma identidade que surge por oposição. Ela não

se afirma isoladamente. No caso da identidade étnica ela se

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afirma "negando" a outra identidade, etnocentricamente por ela

visualizada. É uma identidade, que surge por oposição.ʺ

As frases acima são afirmações de negação das práticas religiosas anteriores

dedicadas aos santos, aos padroeiros e aos espíritos, que doravante são dedicados

somente ao Deus Guerreiro e a Cristo, reconhecido e chamado de Rei. As frases

seguintes, "Ele nos pôs nos lábios uma canção" e ʺCanção de gratidão que nos

livrou da escravidão! Ê Ô Ô! ʺ, tratam das práticas religiosas anteriores como

escravizadoras, pontos altos do contraste identitário.

As adaptações do protestantismo assumido como prática de fé no quilombo do

Mel da Pedreira desde o ano de 1968 são o ʺoutro lado da moedaʺ na configuração

da identidade desta comunidade e que também passou por confrontos contrastivos

através da inserção dos elementos do batuque, do marabaixo e do pentecostalismo.

Essas mudanças contribuíram para um novo entendimento identitário individual e

consequentemente de grupo. Vejamos (Oliveira, 1976, p. 119):

ʺ A identidade social surge como a atualização do processo de

identificação e envolve a noção de grupo, particularmente a de

grupo social. Porém, a identidade social não se descarta da

identidade pessoal, pois esta também de algum modo é um

reflexo daquela. ʺ

As atualizações do processo de identificação, que se refere Cardoso Oliveira,

se transformaram no novo sustentáculo da fé protestante na comunidade do quilombo

do Mel da Pedreira. A subsistência da religião, se resistisse totalmente a inserção da

cultura de matriz africana ao convívio, poderia esvaziar o sentido religioso do

protestantismo. Considero que as mudanças promovidas pela comunidade no âmbito

da identidade, desenvolveu uma espécie de identidade contrastiva bilateral, onde o

quilombola protestante se opõe simultaneamente a romper com as práticas religiosas

africanas e com o rito religioso protestante tradicional buscando um espaço autentico

de manifestação de sua identidade étnica exclusiva, e que a música pela comunidade

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produzida traduz claramente o pensamento coletivo da comunidade: somos

quilombolas remanescentes de escravizados, cuja vida e pratica de fé não

corresponde a tradição ancestral, somos protestantes com o mesmo apego a terra, a

mesma sofreguidão negra, a mesma celebração à vida, a mesma gratidão a liberdade

e o respeito a história dos ancestrais. Tão pouco, a fé corresponde totalmente ao

protestantismo tradicional: somos quilombolas protestantes. Somos do quilombo do

Mel da Pedreira.

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CONCLUSÃO

A história dos negros no Brasil é a narrativa de uma minoria renegada e

usurpada. O Direito à liberdade, ao trabalho para o próprio sustento, direito de pensar

e escolher o próprio futuro foram arrancados dos negros ao longo dos séculos desde

que, aprisionados foram subtraídos do continente de origem para servirem aos

interesses de outrem. Uma luta desleal que começa nos navios negreiros onde a

escassez de condições humanas ceifou a vida de muitos deles. Esta mesma luta

desleal que atravessou o oceano e chegou a diversos pontos do Brasil, alcançou

também o Amapá que traz em suas raízes marcas profundas do sofrimento dos negros

no estado. Tiveram que construir um forte, tiveram que trabalhar em troca da

sobrevivência, tiveram que se reinventar enquanto seres humanos tolhidos de todos

os direitos. Não pode haver pleno conhecimento das causas em que os negros

militam, enquanto as perspectivas residirem por si só nos âmbitos culturais e

religiosos. Mas, se, esses elementos, culturais e religiosos, forem a catapulta que nos

arremesse em pesquisas mais aprofundadas sobre a identidade, a etnicidade do

negro, nos acercaríamos da compreensão do ser negro no Brasil, em cada contexto

cultural, social, econômico com suas respectivas variantes de acordo com as diversas

regiões do país.

Este trabalho se propôs a elucidar os aspectos da identidade étnica do

quilombo protestante do Mel da Pedreira. Procuramos compreender através do

elemento música, os fundamentos principais desta identidade protestante quilombola.

Por que a música? Historicamente foi o intermédio pelo qual os negros podiam se

comunicar. Voltando a questão dos direitos tolhidos, o simples direito a comunicação

em família e/ou em comunidade fora arrancado dos negros escravizados também no

Amapá. Uma das primeiras formas que se apropriaram os negros no intuito de se

reinventar e que deu sobrevida as comunidades foi utilizar os “ladrões” de improviso

das canções de marabaixo para terem contato com a vida comum, a vida cotidiana. A

música também, veículo pelo qual os negros extravasavam o sentido devastador de

solidão, tristeza e de suas diásporas: a saudade da mãe África. A música porque

precisavam dar um sentido comunitário a vida. Precisavam tomar decisões,

precisavam se organizar. E como fazê-lo sem se comunicar? Música por causa dos

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raríssimos momentos de descontração e alegria que o negro aprisionado precisava

produzir. E qual elemento mais propício para propor a transformação de um ambiente

deprimente, opressor e caótico em ao menos pequenos flashes prazerosos? Sim! A

música que pode suscitar subsídios claros para o entendimento de quaisquer culturas.

A música é um dos mais elevados elementos que contribuem para o entendimento de

quaisquer culturas. Ela traz consigo em sua forma de expressão sonora toda a

identidade do povo que se manifesta por meio dela. A música é o canal pelo qual

compositores, músicos e artistas da dança e da representação podem trazer à tona

tudo o que se tem preservado em suas histórias pessoais, suas emoções e

lembranças. Analisá-la, pode sim trazer um entendimento profundo sobre um povo,

uma comunidade principalmente pelo fato da música deixar sobre o indivíduo um

rastro proveniente do conceito de ethos, o ethos da música.

Para que houvesse uma compreensão plena do indivíduo quilombola do Mel

da Pedreira, fez-se necessário estudar elementos complementares à música, nos

quais encontraríamos as demais características cotidianas da comunidade que

versam desde a localização geográfica, a circunvizinhança, a constituição da

comunidade, sua organização social, manutenção financeira, ócio e lazer, o hibridismo

religioso entre o catolicismo popular, a pajelança os rituais e festas de marabaixo e

batuque, a conversão ao protestantismo e o total tolhimento da cultura africana até o

reconhecimento como quilombolas e a titulação das terras. Todos esses aspectos

foram cruciais para a constituição da identidade étnica dos quilombolas do Mel que

fora encontrada na pesquisa. Além desses aspectos citados, o capítulo primeiro deste

trabalho analisou o comportamento do quilombola em sua rotina diária, a relação com

à terra que extrapola a sensação de pertencimento ao local mais de gratidão e

conexão com suas histórias de vida e acima de tudo as relações religiosas e de fé.

O marabaixo, o batuque suas danças, música, rituais, religiosidade, contextos

históricos, construção musical e de estilo, seus símbolos, padroeiros, santos e mitos

foram analisados categoricamente no capítulo dois, para que elencadas, mais adiante,

prováveis respostas a questões como: Por que o protestantismo proibiu os

quilombolas do Mel a se envolverem nas festas ou ao menos continuarem se

expressando artística e culturalmente através do marabaixo e do batuque? Por que a

nova fé sobreviveu, cresceu e se fortaleceu ao longo das décadas exigindo que os

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quilombolas não vivessem sua cultura ancestral? E por qual razão voltariam as

práticas culturais de matriz africana depois de convertidos ao protestantismo?

No terceiro capítulo abordamos a história da música do quilombo antes e pós

conversão. As influências musicais de fora do contexto da comunidade, das emissoras

de rádio secular, das rádios evangélicas, das canções do Salmos e Hinos, a

convergência com a música gospel, a retomada do marabaixo e do batuque na

comunidade e nos cultos e a organização do departamento de música do quilombo do

Mel da Pedreira.

Concluo o terceiro capítulo abordando a identidade étnica dos quilombolas do

Mel, me apropriando da música que atualmente é uma espécie de Ode da

comunidade. As teorias e conceitos apresentados para construção de minha

abordagem, foram desenvolvidas por Cardoso de Oliveira e João Batista Borges

Pereira. Discorro sobre uma dupla identidade quilombola, cuja a primeira, está ligada

as raízes ancestrais, a cultura, a maneira de vida, com a cor da pele, a etnia e o ser

negro, e a sensação de pertencimento ao local e àquelas terras. A outra identidade, a

protestante. Que desenvolveu uma fé antagônica a que criam anteriormente, que os

fez mais ligados as questões espirituais que outrora, de acordo com os depoimentos

de todos os entrevistados. Explico que os quilombolas desenvolveram uma identidade

contrastiva bilateral, onde absorvem alguns aspectos da cada identidade elencada,

formando uma nova identidade: quilombola protestante.

As agruras resultantes das batalhas dos negros estão longe do fim. Afinal, as

próprias lutas estão em pleno desenvolvimento. Os próprios quilombolas do Mel

relatam serem vítimas do preconceito religioso, inclusive protestante porque, ainda

muitos evangélicos não os enxergam como parte do mesmo universo de fé.

Desejo que este trabalho contribua significativamente no entendimento da

identidade étnica desta comunidade, bem como para outros trabalhos

etnomusicológicos em ciências da religião.

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