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AQUELA VEZ De Samuel Beckett Tradução Rubens Rusche (a partir dos originais em inglês. That time, e francês, Cette fois)

BECKETT, Samuel - Aquela Vez

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Page 1: BECKETT, Samuel - Aquela Vez

AQUELA VEZ

De Samuel Beckett Tradução Rubens Rusche

(a partir dos originais em

inglês. That time, e

francês, Cette fois)

Page 2: BECKETT, Samuel - Aquela Vez

Cortina. Palco na escuridão. Ir subindo com a luz até iluminar o rosto do

Ouvinte, a uns três metros acima do nível do palco e um pouco descentrado.

Velho rosto branco, ligeiramente inclinado para trás, longos cabelos brancos

esparramados, como se, vistos do alto, contra um travesseiro.

As vozes A, B e C são uma única e mesma voz, a dele, que lhe chegam vindas

das duas laterais e de cima. Elas se encadeiam sem nenhuma interrupção,

exceto nos lugares indicados. Ver nota.

Silêncio. 7 segundos. Os olhos do Ouvinte estão abertos. Respiração audível,

lenta e regular.

A aquela vez que você retornou aquela última vez ver se estava ainda ali a

ruína onde criança você se escondia quando foi (os olhos se fecham, ligeira

queda da luz) dia cinzento com o onze até o fim da linha e dali a pé não não

havia mais bondes tudo acabado há muito tempo aquela vez que você retornou

ver se estava ainda ali a ruína onde criança você se escondia aquela última vez

nenhum bonde nada só os velhos trilhos quando foi

C quando você se abrigou da chuva sempre o inverno então sempre a chuva

aquela vez no museu ao abrigo do frio da chuva da rua à espera do momento

de entrar sem ser visto e através das salas gelado e molhado até avistar o

primeiro banco laje de mármore sentar descansar secar depois cair fora dali

quando foi

B na pedra juntos ao sol na pedra na orla do pequeno bosque nada só o trigo

amarelando de quando em quando juras de amor apenas um murmúrio sem

jamais se tocar ou algo assim você numa ponta da pedra ela na outra pedra

longa e baixa como pedra de moinho sem nunca se olhar apenas ali na pedra

ao sol atrás o pequeno bosque olhando o trigo ou os olhos fechados ao redor

tudo imóvel nenhum sinal de vida ninguém por perto nenhum ruído

A subiu em frente do cais até a rua principal o saco de dormir na mão direita

em frente nem à direita nem à esquerda ao diabo os velhos lugares os velhos

nomes subiu em frente do cais até a rua principal e ali nenhum fio nada só os

velhos trilhos enferrujados quando foi estava sua mãe ah pelo amor de Deus

tudo acabado há muito tempo aquela vez que você retornou aquela última vez

ver se estava ainda ali a ruína onde criança você se escondia a ruína de uma

antiga como era mesmo o nome

C estava sua mãe ah pelo amor de Deus tudo acabado há muito tempo tudo

poeira todos eles só restou você tombado sobre a laje com seu velho casaco

verde a se abraçar quem mais se aquecer se secar e cair fora dali tombar em

outro lugar ninguém por perto você sozinho e de quando em quando um vigia

Page 3: BECKETT, Samuel - Aquela Vez

sonolento arrastando os chinelos de feltro nenhum ruído somente de quando

em quando o arrastar do feltro aproximando-se depois se afastando

B ao redor tudo imóvel apenas as espigas as folhas e vocês também imóveis

na pedra como entorpecidos nenhum ruído nenhuma palavra de quando em

quando juras de amor apenas um murmúrio única fonte de lágrimas antes de

se secarem totalmente aquele pensamento sempre que surgia dentre os outros

fazia emergir aquela cena

A a ruína de não importa pedaço de torre ainda em pé entre cascalhos e urtigas

onde você dormia nenhum amigo nenhum teto talvez aquela hospedaria junto

ao mar onde você não ela estava ainda ao seu lado ao seu lado aquela única

noite seja como for desembarcou de manhã tornou a embarcar na manhã

seguinte ver se estava ainda ali a ruína onde ninguém nunca vinha onde

criança você se escondia à espera do momento de entrar sem ser visto corria e

ali se escondia o dia todo numa pedra no meio das urtigas com seu livro de

gravuras

C e ali de repente tendo erguido a cabeça aberto os olhos uma enorme pintura

a óleo enegrecida pelo tempo empoeirada alguma celebridade homem ou

mulher ou criança célebre jovem príncipe talvez ou princesa algum jovem

príncipe ou princesa enegrecida pelo tempo atrás do vidro onde aos poucos

diante de seus olhos míopes procurando ver mais claro aos poucos emergiu

um rosto que lhe fez se voltar sobre a laje ver quem estava ali ao seu lado

B na pedra ao sol olhando o trigo ou o céu ou os olhos fechados nada só o

trigo amarelando o céu azul de quando em quando juras de amor apenas um

murmúrio e então as lágrimas antes de secarem totalmente ali de repente no

meio dos pensamentos que lhe viam à mente cenas sejam quais forem talvez

da infância distante ou do ventre materno a pior de todas ou daquele velho

chinês muito antes de Jesus Cristo que já nasceu com longos cabelos brancos

C jamais o mesmo depois daquilo jamais exatamente o mesmo mas isso não

era nenhuma novidade se não fosse isso era aquilo depois do que você jamais

pode ser o mesmo arrastando-se ao longo dos anos atolado em seu eterno

lamaçal murmurando a si mesmo quem mais você jamais será o mesmo depois

disto você jamais foi o mesmo depois daquilo

A ou conversando consigo mesmo quem mais conversas imaginárias você era

ainda uma criança dez onze anos numa pedra no meio das urtigas gigantes

entregue às suas invenções ora uma voz ora uma outra até ficar rouco e elas

todas soarem iguais noite adentro quando você se esquecia noite escura ou à

luz da lua e todos lá fora à sua procura

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B ou junto à janela no escuro a ouvir a coruja a cabeça vazia e aos poucos

difícil acreditar cada vez mais difícil acreditar que você tenha alguma vez

amado alguém ou alguém a você até concluir que essa é mais uma daquelas

histórias que você costumava inventar para deter o vazio mais uma daquelas

velhas fábulas para que o vazio não viesse cobri-lo com seu sudário

Silêncio. 3 segundos. Os olhos se abrem. Ligeira elevação da luz. Respiração

audível. 7 segundos.

C jamais o mesmo mas o mesmo o quê quem pelo amor de Deus alguma vez

você se disse eu em sua vida ora vamos (os olhos se fecham, ligeira queda da

luz) alguma vez você conseguiu se dizer eu nessa reviravolta que foi a sua

vida essa era uma palavra que você sempre carregava na boca antes que ela se

calasse para sempre toda a sua vida uma sucessão de reviravoltas na verdade

uma única reviravolta a primeira e última aquela vez pequeno verme enrolado

na lama de onde eles o arrancaram limparam desenroscaram nenhuma outra

reviravolta depois dessa você nunca mais olhou para trás depois disso ou isso

foi uma outra vez tudo isso uma outra vez

B recontando suas fábulas a si mesmo aquela vez juntos na pedra ao sol ou

aquela vez juntos à beira do rio ou aquela vez juntos nas dunas aquela vez

aquela vez e cada vez melhor sempre juntos em algum lugar ao sol à beira do

rio diante da foz o sol se pondo os detritos que desciam o rio levados pela

correnteza ou detidos pelos caniços o rato morto ou algo assim boiando ao seu

encontro levado pela correnteza lentamente até se perder de vista

A aquela vez que você retornou ver se estava ainda ali a ruína onde criança

você se escondia aquela última vez subiu em frente do cais até a rua principal

pegar o onze nem à direita nem à esquerda uma única ideia em sua cabeça ao

diabo os velhos lugares os velhos nomes cabeça baixa em frente até o alto

para se plantar ali o saco de dormir na mão até se dar conta enfim

C quando você começou a não mais saber quem você era só para ver a que

isso levaria não mais saber quem você era sem saber quem estava dizendo o

que você dizia de quem o crânio onde você mofava de quem as misérias que o

deixaram assim ou isso foi uma outra vez aquela vez sozinho com os retratos

dos mortos enegrecidos pelo tempo empoeirados as datas nas molduras para

que você não se enganasse de século não podendo acreditar que era você até

que o expulsaram dali para debaixo da chuva hora de fechar

B jamais um olhar para o seu rosto ou outra parte jamais um gesto para ela

nem dela para você sempre paralelos como nas duas extremidades de um eixo

sem nunca se aproximar um do outro como duas leves manchas no limiar do

campo sem nunca se tocar ou algo assim sempre um espaço entre vocês por

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mínimo que fosse nunca juntos como carne e sangue apenas duas sombras

nem mais nem menos não fossem as juras

A não havia mais bondes que fazer então nem pensar em perguntar falar com

alguém nunca mais em sua vida a pé então curvado até a estação enfim pegar

o trem mas ali tudo fechado e trancado o terminal neodórico da ferrovia a

colunata em ruínas que fazer então

C a chuva e a eterna andança procurando assim inventá-la inventar assim a si

mesmo enquanto avançava tentar ver a que isso levaria não ter existido

poderia muito bem levar a isso não ter nunca sido a eterna andança todos os

truques possíveis cambaleando murmurando por toda a parte até que a boca se

exaurisse a cabeça se exaurisse as pernas se exaurissem de quem quer que elas

fossem ou que aquilo desistisse o que quer que aquilo fosse

B imóveis feito mármore sempre imóveis como aquela vez na pedra ou aquela

vez nas dunas estendidos paralelos na areia fixando o azul ou os olhos

fechados azul escuro azul escuro imóveis feito mármore lado a lado a cena

emergia e lá estavam vocês de novo onde quer que fosse

A senão desistir daquilo desistir tombado num degrau sob o pálido sol da

manhã não nunca o sol naqueles degraus outro lugar então ir tombar em outro

lugar sob o pálido sol um degrau de uma porta o degrau da porta de alguém à

espera da noite e da hora de embarcar sair daquele inferno sem precisar

dormir em algum lugar ao diabo os velhos lugares os velhos nomes as pessoas

boquiabertas ao vêlo ali até retomarem seu caminho do outro lado da rua

B imóveis feito mármore lado a lado antes de imergir e sumir sem nunca

terem se movido como as duas esferas de um haltere exceto as pálpebras e de

quando em quando os lábios para jurar amor e tudo ao redor também imóvel

onde quer que fosse nada se move nenhum ruído apenas as folhas suavemente

no pequeno bosque atrás ou as espigas ou os bambus ou os caniços conforme

o caso de homem nenhum sinal de homem ou animal nenhum sinal nenhum

som

C sempre o inverno então sempre a chuva sempre à espera do momento de

entrar sem ser visto para se abrigar da rua do frio da chuva com seu velho

casaco verde herança de seu pai nada como os lugares gratuitos a biblioteca

municipal uma coisa formidável a cultura gratuita providência dos sem-teto ou

o correio esse era um outro um outro lugar uma outra vez

A tombado no degrau da porta com seu velho casaco verde sob o pálido sol o

inútil saco de dormir sobre os joelhos sem saber mais onde você estava aos

poucos sem saber mais onde você estava nem quando nem por quê sozinho no

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mundo sem conhecer ninguém como aquela vez na pedra a criança na pedra

onde ninguém nunca vinha

Silêncio. 3 segundos. Os olhos se abrem. Ligeira elevação da luz. Respiração

audível. 7 segundos.

B ou sozinho nas mesmas cenas inventando-a assim deter conter o vazio na

pedra (os olhos se fecham, ligeira queda da luz) sozinho na ponta da pedra

com o trigo o azul ou à beira do rio sozinho à beira do rio com os seus

fantasmas o rato afogado ou o pássaro ou o que quer que aquilo fosse na

correnteza se afastando no fogo do crepúsculo lentamente até se perder de

vista nada se move apenas a água o sol morrendo até morrer desaparecer e

você com ele e tudo o mais

A ninguém nunca vinha só a criança na pedra no meio das urtigas gigantes a

luz coando por uma fresta do muro curvada sobre seu livro noite adentro

absorta noite escura ou à luz da lua e todos lá fora à sua procura ou

conversando sozinha dividindo-se em muitas para ter uma companhia ali onde

ninguém nunca vinha

C sempre o inverno então inverno sem fim o ano todo como se não pudesse

acabar o ano agonizante como se o tempo não pudesse avançar aquela vez no

correio aquele alvoroço fim de ano tendo esperado o momento de entrar sem

ser visto para se abrigar da rua do frio da chuva abriu a porta como outro

qualquer seguiu em frente nem à direita nem à esquerda até a mesa com seus

formulários e canetas sentar-se no primeiro banco vazio e como sempre uma

olhada ao redor antes de tirar um cochilo

B ou aquela vez sozinho deitado nas dunas sem juras para quebrar a paz

quando foi antes ou depois antes de ela chegar depois de sua partida ou os

dois antes de ela chegar depois de ela ter partido e você de novo na mesma

cena onde quer que fosse a mesma velha cena antes ou depois não importa

com o rato ou o trigo as espigas amarelando ou aquela vez nas dunas com o

planador que passava aquela vez que você retornou pouco depois bem depois

A onze doze anos na ruína na pedra plana no meio das urtigas noite escura ou

à luz da lua a sussurrar ora uma voz ora outra você era ainda uma criança e ali

no degrau sob o pálido sol lá está você de novo ao diabo os que passam

boquiabertos ao vê-lo ali tombado sob o sol agarrado ao saco de dormir aos

brados com suas tolices olhos fechados cabelos brancos que o chapéu não

escondia e assim permaneceu sob o pálido sol esquecendo-se de tudo

C medo de ser expulso por não ter motivo para ficar ali sem falar de seu

aspecto repugnante olhou por isso de novo ao redor para seus asquerosos

semelhantes agradecendo de novo a Deus que apesar de seu péssimo estado

Page 7: BECKETT, Samuel - Aquela Vez

você não era como eles até se dar conta aos poucos que por causar

repugnância você não deveria ter entrado ali e se exposto àqueles olhares

àquelas pessoas que passavam por você como se você não existisse ou isso foi

uma outra vez um outro lugar uma outra vez

B o planador que passava nenhuma mudança os mesmos céus sempre nunca

nada mudava a não ser ela ali ou não com você à sua mão direita sempre mão

direita no limiar do campo e de quando em quando na grande paz bem baixo

apenas um murmúrio como ela o amava difícil acreditar que você mesmo você

tenha alguma vez conseguido divagar a esse ponto até aquela última vez enfim

A inventando sem cessar a história tombado no degrau da porta inventando a

si mesmo reinventando a si mesmo pela milionésima vez esquecendo-se de

tudo onde você estava e por que a ruína a ruína de sua infância que lhe fez

retornar ver se ela estava ainda ali e de novo nela se esconder à espera da noite

e da hora de partir à espera da hora de partir

C a biblioteca essa era uma outra um outro lugar uma outra vez aquela vez à

espera do momento de entrar sem ser visto para se abrigar da rua do frio da

chuva alguma coisa ali você jamais pode ser o mesmo depois daquilo jamais o

mesmo algo a ver com a poeira algo que a poeira lhe disse sentado à grande

mesa redonda ao lado de alguns velhos curvados sobre a página e nenhum

ruído

B aquela última vez quando você tentou e não conseguiu à janela no escuro a

coruja levantou vôo foi piar para algum outro ou voltou à sua árvore oca com

alguma cobra no bico e nenhum ruído hora após hora hora após hora nem um

único ruído quando você tentou tentou e não conseguiu mais nenhuma palavra

para conter o vazio e nada lhe restou a não ser desistir desistir ali à janela no

escuro noite escura ou à luz da lua desistir de tudo e deixá-lo vir não foi tão

ruim assim o vasto sudário a cobri-lo não foi tão ruim assim não foi o pior de

tudo ou quase

A descer de novo até o cais o saco de dormir na mão o velho casaco verde

herança de seu pai a arrastar-se pelo chão os cabelos brancos que o chapéu

não escondia à espera da hora de descer em frente nem à direita nem à

esquerda ao diabo os velhos lugares os velhos nomes uma única idéia na

cabeça subir a bordo sair daquele inferno e nunca mais retornar ou isso foi

uma outra vez tudo isso uma outra vez nunca houve uma outra vez apenas

aquela vez sair daquele inferno e nunca mais retornar

C nenhum ruído apenas as velhas respirações o virar das páginas quando de

repente aquela poeira o lugar todo repleto de poeira ao abrir os olhos do chão

ao teto havia só poeira e nenhum ruído somente o que foi que ela lhe disse

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veio partiu foi isso algo assim veio partiu veio partiu ninguém veio ninguém

partiu apenas veio partiu apenas veio partiu

Silêncio. 3 segundos. Os olhos se abrem. Ligeira elevação da luz. Respiração

audível. Sorriso, de preferência desdentado. 7 segundos. A luz se extingue

lentamente. Cortina.

NOTA

ABC se sucedem sem nenhuma interrupção, exceto durante 10 segundos nos

dois locais indicados. Contudo, a passagem de uma voz à outra deve ser

claramente perceptível, ainda que de uma forma suave. Caso as três fontes de

origem e o contexto não se mostrarem suficientes para se obter esse efeito, o

mesmo deverá ser realizado mecanicamente, amplificando-se, por exemplo,

três vezes o som.