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ISSN 1982-5994 ISSN 1982-5994 EDIÇÃO ESPECIAL UFPa • 20 aNoS de aUTo do CÍrio • SeTeMBro, 2014

Beira do Rio Auto do Círio

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Beira do Rio edição especial Auto do Círio - Setembro de 2014

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ISSN

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EDIÇÃO ESPECIALUFPa • 20 aNoS de aUTo do CÍrio • SeTeMBro, 2014

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Na memória

do rio Que PAssou em minHA vidA À PororoCA HumAnA: o Auto do Círio!

O cortejo é arcaico e vivo a todo instante. É uma forma de narrativa em

movimento que passa, aos nos-sos olhos, espécie de emoção que anda, desloca-se, cami-nha. Revela-se, então, como um estilo especial da espeta-cularidade popular brasileira, caracterizado, de maneira singular, pelas nossas etnias, pela nossa formação cultural e religiosa.

Como navegante-espec-tador dessa espetacularidade, não recordo se conheci primeiro o desfi le de uma escola de samba, o maior cortejo brasileiro, “Como um rio que passou em minha vida e o meu coração se deixou levar”, ou a maior procissão religiosa do Brasil – O Círio de Nazaré – essa “pororoca humana”, que trans-borda de gente as ruas de minha cidade no mês de outubro, a qual acompanho desde menino, como navegante devoto nesse rio de fé.

Dessa confusão de recor-dações de minha infância e pela devoção por esses dois grandes

Miguel Santa Brigida Encenador, Carnavalesco e Devoto

cortejos, naveguei por águas ain-da mais comoventes e me aventu-rei como diretor teatral na fusão desses dois grandes cortejos em um terceiro, tão rico e complexo: O AUTO DO CÍRIO, que este ano celebra 20 anos desaguando nas ruas de Belém do Pará como um denso fenômeno de confi guração espetacular contemporânea.

Até 2009, estive na dire-ção deste espetáculo, trajetória de quinze anos, na qual busquei, como encenador-carnavalesco-devoto, imprimir em sua estética a força de um cortejo dramático popular, com o traçado sensível, diverso e múltiplo de ser para-ense culturalmente. Como uma procissão cênica a céu aberto, caracterizada pela miscigenação encantada da arte, da fé, da devoção e do espírito festivo do brasileiro, imprimindo em sua estrutura dramática o reviver simbólico dos autos medievais, com estações nas principais igrejas históricas do centro de Belém, na qual, público e artistas comungam as diversas linguagens artísticas produzidas pela UFPA.

Em 2003, na celebração dos 10 anos do evento, lancei-me como pesquisador na Academia Brasileira, produzindo a Disser-tação O Auto do Círio – Drama, Fé e Carnaval em Belém do Pará, pela UFBA, contribuindo com a construção do conhecimento em Artes Cênicas, articulando o saber científi co, o conhecimento artístico e a prática cênica na investigação dos autos populares como fenômenos espetaculares nas sociedades contemporâneas complexas, como produção cêni-ca da Amazônia paraense.

Esta pesquisa, consubs-tanciada na experiência híbrida de encenador-carnavalesco, credenciou-me à consultoria para

Escola de Samba Viradouro, do Rio de Janeiro, no carnaval de 2004, com enredo sobre o Círio de Nazaré, no qual, um dos carros alegóricos trazia a encenação do Auto do Círio, com atores para-enses e cariocas celebrando a dramaturgia carnavalesca da fé na Sapucaí.

Dessa rica experiência com a Viradouro, derivei minha pesquisa de Doutorado O Maior Estetáculo da Terra - O Desfi le das Escolas de Samba do Rio de Janeiro como Cena Contem-porânea na Sapucaí, na qual, investiguei a conversão do Auto do Círio na dramaturgia sapu-cainiana engendrada pelo samba brasileiro.

Esses dois processos cria-tivos de pesquisa, nascidos de minha vivência encarnada com o Projeto de Extensão do Auto do Círio, consolidaram um perfi l que hoje aprofundo, pesquiso e defendo na Pós-Graduação: o pesquisador-extensionista, cuja ação objetiva a indissociabilidade dessas duas instâncias, amal-gamadas ainda com o Ensino, confi gurando o tripé fundamental de nossa universidade.

Ao celebrarmos os 20 anos desta singular experiência da extensão universitária, fi ca a certeza de que a assinatura da UFPA na maior festa dos paraenses brilha especialmente neste espetáculo produzido pela Escola de Teatro e Dança, regis-trado em 2004, pelo IPHAN, como Patrimônio Imaterial da Cultura Brasileira, atrelado ao Círio de Nazaré. Consolidando a acade-mia de mãos dadas com o povo e consagrando-se nos braços da multidão! Salve o Auto do Círio! Celebremos sua longa vida como patrimônio dos paraenses e ore-mos por sua Salvaguarda!

Em 1993, eram cerca de 100 artistas e 50 especta-dores. Hoje, 500 artistas

e 40 mil espectadores ajudam a colorir a Cidade Velha. O Auto do Círio já faz parte da Quadra Nazarena e percorre o bairro histórico na sexta-feira que antecede a grande procissão.

Para celebrar os 20 anos, os professores Cláudia Palheta e Adriano Furtado, responsáveis pela direção do espetáculo, prometem resgatar a valorização do patrimônio humano, cultural e arquitetônico presente nas ruas estreitas do bairro. Este

ano, os ensaios acontecem na Praça do Carmo e as varandas das residências serão utiliza-das como cenário durante o cortejo.

Nesse clima de festa, o Beira do Rio publica esta edição especial com depoi-mentos de três personagens fundamentais nessa história - Margaret, Zélia e Miguel, a lém de reportagens com a produ-ção científi ca sobre o Auto e as boas histórias que o elenco reuniu ao longo desses anos.

Rosyane RodriguesEditora

universidAde FederAl do PAráAssessoria de Comunicação Institucional - ASCOM/UFPA

JORNAL BEIRA DO RIO - cientifi [email protected] Universitária Prof. José da Silveira Netto

Rua Augusto Corrêa n.1 - Prédio da Reitoria - TérreoCEP: 66075-110 - Guamá - Belém - Pará

Tel. (91) 3201-8036www.ufpa.br

Reitor: Carlos Edilson Maneschy; Vice-Reitor: Horácio Schneider; Pró-Reitor de Administração: Edson Ortiz de Matos; Pró-Reitor de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal: Edilziete Eduardo Pinheiro de Aragão; Pró-Reitora de Ensino de Graduação: Maria Lúcia Harada; Pró-Reitor de Extensão: Fernando Arthur de Freitas Neves; Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Emmanuel Zagury Tourinho; Pró-Reitora de Planejamento: Raquel Trindade Borges; Pró-Reitor de Relações Internacionais: Flávio Augusto Sidrim Nassar; Prefeito: Alemar Dias Rodrigues Junior. Assessoria de Comunicação Institucional. Direção: Luiz Cezar S. dos Santos; BEIRA DO RIO. Edição: Rosyane Rodrigues (2.386-DRT/PE); Reportagem: Brenda Rachit, Marcus Passos e Rosyane Rodrigues; Fotografi a: Adolfo Lemos, Alexandre Moraes e Wagner Meier; Fotografi a da capa: Alexandre Moraes; ; revisão: Júlia Lopes e Cintia Magalhães; Projeto gráfi co e diagramação: rafaela André; Marca gráfi ca: Coordenadoria de Marketing e Propaganda CMP/Ascom; Secretaria: Silvana Vilhena.

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Na memória

Margaret RefkalefskyAtriz,Figurinista eIdealizadora do Auto

Zélia Amador de DeusAtriz,Diretora de Teatro eIdealizadora do Auto

Auto do Círio: vinte Anos.

Há 20 anos, parece que foi ontem. Estávamos conversando no Gabine-

te da Reitoria. Marco Ximenes, reitor à época, Zélia Amador, vice-reitora, e Margaret Re-fkalefsky, à época, dirigia o Núcleo de Arte, hoje, Instituto de Arte. Aproximava-se a Se-mana Santa. E, na conversa, falamos da encenação da Pai-xão de Cristo de Nova Jerusa-lém. Marcos lançou o desafio: “Vocês que são de teatro bem que podiam pensar num gran-de espetáculo para marcar a época do Círio de Nazaré”. Nós aceitamos e levamos em frente.

Imaginávamos um gran-de espetáculo de rua. Os ingre-dientes não faltavam: Belém tem tradição de grandes cor-tejos. O povo paraense é muito teatral. Um de seus indicado-res culturais são os cordões de pássaros, os cordões de bichos, isso não é à toa. Por que não fazer um grande espetáculo de rua durante os festejos do Círio? Faltava um diretor, pre-cisávamos de uma pessoa que tivesse experiência em direção de teatro de rua. Só isso não bastava. Era necessário que a pessoa também conhecesse o Círio de Nazaré e soubesse de sua importância para os paraenses.

A resposta veio de pron-to: Amir Haddad. Amir, diretor do Grupo Teatral “Tá na rua”,

do Rio de Janeiro, conhecia o Círio, pois já vivera em Belém, tendo sido um dos professores do início da Escola de Teatro da UFPA, na década de 1960. Contatamos Amir, ele, de pron-to, aceitou, empolgou-se e, cheio de entusiasmo, assim que se desvencilhou de seus compromissos no Rio, rumou para Belém. Era, de certa forma, simbólica a vinda dele. Ele viria e juntos montaríamos o primeiro espetáculo sob sua direção, mas, em seguida, nós assumiríamos totalmente a montagem do espetáculo. Este deveria ter a estrutura de um auto, ou seja, teríamos as estações e nelas representarí-amos cenas, breves, mas com-pletas, com inicio, meio e fim, que, ao término do espetáculo, dariam o sentido ao todo.

Quando começamos a estruturar o Auto do Círio, tínhamos certeza de algumas coisas, primeiro, o Auto do Círio seria um encontro entre os artistas, a cidade e sua padroeira. Um encontro da cidade com suas raízes, suas tradições, a essência da cultu-ra e da religiosidade popular. O espetáculo deveria ter ligação com o Círio, com o teatro de rua e com a Virgem de Nazaré, relação essa que ultrapassa a questão religiosa e constitui-se em um traço de união entre os paraenses. Assim, o espetáculo deveria, em um percurso inver-so ao mito em que a Santa sai do bairro Nazaré e vem para

a Cidade Velha, o cortejo par-tiria da Praça do Carmo, local onde os artistas populares que confeccionam os brinquedos de miriti chegavam a Belém e lá expunham suas obras para depois se espalharem por toda a cidade. Saindo dessa praça, percorreríamos algumas ruas da Cidade Velha, passaríamos em frente à Capela de São João, após, a última estação aconteceria no espaço entre os dois palácios, o Antonio Lemos e o Lauro Sodré, em frente à Praça D. Pedro. Antes do dia do espetáculo, conversamos com os moradores que ficavam no percurso e pedimos que enfei-tassem suas casas com toalhas, velas, flores. Esse pedido só foi necessário da primeira vez.

Para o primeiro roteiro, a obra Carnaval Devoto, do antropólogo Isidoro Alves, e o mito de criação do mundo dos Caiapós foram o ponto de par-tida. Isso sem perder de vista os mitos, as lendas, os causos e tudo mais que pudesse servir de matéria-prima. Enfim, de-lineado o roteiro, começaram as oficinas e os ensaios. Muitos foram chegando, agregaram, aderiram.

O figurino seria aquele das montagens dos grupos que trouxeram para ser partilhado pelos demais, assim, coloca-ríamos na rua a memória e a história mais recente do teatro paraense. Precisávamos que o espetáculo reunisse o maior número de artistas, chama-

mos os estudantes da Escola de Teatro e Dança da UFPA (ETDUFPA), os professores, os grupos e as pessoas de teatro. Em síntese, reunimos, naquele ano, em torno de cem atores. E o público compareceu e aplaudiu. Numa sintonia entre artistas e espectadores, esse número cresce a cada ano.Nos primeiros anos, era sempre uma grande correria, pois o Auto não se afirmara como um grande acontecimento para os possíveis patrocinadores. Entretanto, se faltava patroci-nador, isso era fato de somenos importância para o público.

Hobsbawm e Ranger (1997) observam que toda tradição é uma invenção que outrora surgiu em algum lu-gar do passado, podendo ser alterada em algum lugar do futuro. As tradições estão sempre mudando, a fim de que incorporem novos valores e comportamentos definidos por meio da repetição em um processo de “continuidade em relação ao passado”. Isso foi o que aconteceu com o Auto do Círio, o espetáculo trans-cendeu a sua teatralidade, incorporou várias linguagens artísticas, fez-se múltiplo, criou vínculos, transformou-se num ritual de celebração que reúne os artistas e a cidade para homenagear a padroeira. De modo que acompanhar o cortejo passou a fazer parte da tradição das festividades da Quadra Nazarena.

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Elenco traz artistas profissionais e amadores

Imperfeitos, banidos e fiéis

� Brenda Rachit

“Senhoras e senhores! Nós somos imperfei-tos. Sempre jogados,

sempre banidos, sempre expulsos [...] Somos palhaços. Somos os que não têm uma casa, porque temos muitas casas.” Essa exortação, re-citada em todas as edições do Auto do Círio, ressoa como um pedido de licença à dona da festa. Deixan-do de lado as roupas de todo dia, funcionários públicos, estudantes, professores, figurinistas, atores e tantos outros apresentam-se vestidos de criatividade, fé e arte, bradando “Viva!Viva!Viva!” em

resposta à permissão concedida pela Virgem de Nazaré.

De forma artística e nada convencional, o Auto do Círio leva ao bairro Cidade Velha personalidades e histórias que representam a diversidade do povo paraense. Os artistas, pro-fissionais ou não, pesquisam a visualidade e a composição de seus figurinos, adereços e perfor-mances cuidadosamente. Muitos já construíram uma identidade nesses 20 anos de participação no espetáculo.

É o caso do estilista e car-navalesco Jean Negrão. Aos dez anos de idade, ele se encantou

ao assistir à primeira edição do evento. “Era uma roda de atores, uma performance. Eu vi aquilo e não sabia o que era, mas queria estar no meio deles. Naquele dia, eu me vi vestido com uma fantasia”, relembra.

Jean Negrão acompanha-va o Auto do Círio apenas como observador, até, finalmente, se inscrever para participar do elen-co. Percebendo a dificuldade de ser visto no cortejo, que segue à mesma altura do público, ele se apresentou, em 2005, com sapa-tos de 15 centímetros de altura. Seu figurino representava um ori-xá e os sapatos eram cobertos de

pérolas, búzios e guizos. No ano seguinte, arriscou um salto ainda maior, 20 centímetros. O calçado era coberto com peles, imitando um pé de bode. Ele conta que, ao final do cortejo, eram muitos os pedidos para ser fotografado com seus sapatos.

Jean Negrão ainda pos-sui todos os sapatos usados nos espetáculos, mas a maior parte dos figurinos foi desfeita para dar vida a mantos de réplicas da imagem de Nossa Senhora de Nazaré. Para ele, essa é uma forma de devolver aquilo que ele representa todos os anos no Auto do Círio: a fé do povo.

Diretores na Linha Do tempo

O Auto é criado a partir de oficina realizada por Amir Haddad. O cortejo dramático sai pelas ruas da Cidade Velha para homenagear a N.Sra. de Nazaré.

Espetáculo ganha as matrizes estéticas do carnaval, como a bateria e o puxador de samba, o casal de mestre-sala e porta--bandeira e o porta--estandarte.

A c a d a a n o , a s performances ganham maior espaço no espetáculo, assim como os figurinos ganham br i lho e volume, tornando-se “figurinos alegóricos”.

Amir HAddAd (1993 A 1995) miguel sAntA BrígidA (1996 A 2008) Hudson AndrAde (2009)

FOTO ICA FOTO ICA

WAgnEr MEIEr

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Edição EspEcial, sEtEmbro dE 2014 - Beira do rio - 5

Nas ruas

Essa memória é constru-ída a partir de um “espetáculo que conta um pouco da nossa história e faz com que o espec-tador se envolva com a fé, com o lúdico, com a vida”. Essa é a visão do artista visual e ator Álvaro de Souza.

Álvaro conheceu o Auto em 2002, quando fez a inscrição para o elenco e começou a par-ticipar dos ensaios. Seu figurino de estreia foi bastante curioso, um personagem do filme Ma-trix. No dia do cortejo, chegou pintado de branco, com roupas e cabelos prateados. “O meu personagem acabou marcando aquele ano, todo mundo lembra até hoje e, de vez em quando, tem uma piada durante os en-

saios”, brinca. Hoje, o artista visual faz um trabalho mais elaborado e aprofundado em contextos literários, norteado pelo tema da programação.

Para ele, o Auto do Círio “é um encontro entre pessoas que não se veem o ano inteiro e pessoas que nunca se viram, mas, a partir dos ensaios, tornam-se amigos, criam laços que duram por toda a vida”, acrescenta.

Um exemplo dessas re-lações duradouras é a Compa-nhia Moderno de Dança, que, este ano, completa dez anos de participação no Auto do Círio. Sob a direção da professora Ana Flávia Mendes Sapucahy, a Companhia é responsável pela

comissão de frente do corte-jo. Convidada pelo professor Miguel Santa Brígida, à época diretor do espetáculo, Ana Flávia permanece desde 2003 à frente desse trabalho, compon-do a coreografia da comissão, segundo o tema de cada ano.

Ana Flávia afirma que um dos melhores momentos que pôde vivenciar no Auto fora em 2007, quando segurou a imagem de Maria, a qual, presa em balões, subiu ao céu, ao tér-mino do evento. O ano de 2012 foi tão marcante quanto, pois, além de coreógrafa, participou também como dançarina.

“O Auto do Círio é o momento em que os partici-pantes do evento, somados ao

público, podem expressar sua religiosidade e homenagear a padroeira dos paraenses”. Este ano, a professora é presença confirmada na programação, pois confessa que não parti-cipar do Auto é viver um Círio incompleto.

Nesses 20 anos, muitos personagens já passaram por esse cortejo, alguns trilha-ram novos caminhos e outros pretendem ficar enquanto for possível. Para alguns, um ritual. Para outros, memória, união, carnaval, festa e oração. Mas em meio à diversidade de artistas e espectadores, há um sentimento único de perten-cimento, de ter o Auto como patrimônio.

Oportunidade de encontros entre artistasEm outubro, a ro-

tina passa a ter outra dinâmica para alguns personagens do Auto. Anastácio Campos é fun-cionário público, mas, há muito tempo, vive o universo do carnaval em Belém e no Rio de Janeiro. Seu contato com o Auto era apenas de observador, fotografando os ensaios do evento. Mas decidiu tornar-se perso-nagem. No que se refere à composição, Anastácio afirma “eu sempre me insiro no lado profano, no lado carnavalesco”.

Sobre suas fanta-

sias, o ano mais marcante foi quando se vestiu de Pierrot. Em 2014, Anas-tácio Campos preferiu apostar na figura de D’Ar-tagnan, o quarto mosque-teiro. Entre as grandes emoções, está a parti-cipação da atriz Cássia Kiss, que já integrou o elenco e recitou a mes-ma exortação declamada todos os anos. Para Anas-tácio, foi um momento singular e emocionante.

O Auto do Círio possibilita o encontro de artistas de vários segui-mentos. O ator Hudson Andrade participa do

cortejo desde quando era aluno da Escola de Teatro e Dança da UFPA. A partir das atividades curricula-res, ele pôde conhecer de perto o projeto. Hudson trabalhou como assisten-te de produção, escreveu textos para a estação de teatro e para a drama-turgia do cortejo, além de dirigir o espetáculo em 2009.

Entre os momen-tos marcantes, Hudson lembra-se de um humilde senhor que se inscrevia todos os anos no Auto e, certa vez, por alguns im-previstos, ele ficou sem

figurino. Então, todos correram nas lojas do Comércio em busca de adereços para que ele não ficasse sem fantasia.

Ao relembrar essa história, Hudson enfatiza a união entre aqueles comprometidos com o trabalho, “tudo isso cria um vínculo. A gente vira uma comunidade”. Ele frisa também a impor-tância do manifesto para a sociedade. “A nossa ci-dade tem uma deficiência com a memória. Algumas coisas vão ficando pra trás e é importante man-tê-las”.

Companhia Moderno de Dança está há 10 anos no Auto

ALEX

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Diretores na Linha Do tempo

"Todos os Caminhos levam a ti, Senhora" o tema apresentou a diversidade cultural e religiosa de Belém e do inter ior do Estado.

Para festejar os seus 20 anos, o Auto do Círio vai valorizar o cortejo, o patrimônio h i s t ó r i c o e o s moradores da Cidade Velha.

O elenco tem maior p a r t i c i p a ç ã o n a criação do tema e a visualidade é mais colorida e mais leve.

CláudiA PAlHetA e AdriAno FurtAdo (2014)Beto Benone e CláudiA PAlHetA (2010) Beto Benone (2011 A 2013)

ALEXANDRE MORAES

ADOLFO LEMOS

ARTE CLÁUDIA PALHETA

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Na Academia

Nesses 20 anos, o Auto do Círio já foi tema de diversas pesquisas

Outro olhar sobre o espetáculo

� Marcus Passos

A concentração começa em frente à Igreja do Car-mo. Milhares de pessoas

aguardam ansiosamente o iní-cio da apresentação. O cortejo inicia, segue rumo à Igreja da Sé, passa pela Igreja de Santo Alexandre e concentra-se entre os Palácios Lauro Sodré e Antô-nio Lemos, local da apoteose.

Seguindo o roteiro aci-ma, o Auto do Círio percorre

as ruas do Bairro Cidade Velha, na sexta-feira que antecede a procissão do Círio de Nossa Senhora de Nazaré. Em sua 20ª edição, o espetáculo “ca-minhante” segue reafirmando uma de suas propostas, a valori-zação do patrimônio arquitetô-nico e cultural da cidade. Este ano, o cortejo traz como tema “Senhora de Todas as Artes”.

Idealizado em 1993, pelas professoras Zélia Amador de Deus e Margaret Refkale-fsky, o projeto contou com a

direção do teatrólogo Amir Haddad, que ficou no comando do espetáculo até 1995. Nesses 20 anos de existência, o Auto do Círio serviu como objeto de pesquisa acadêmica por diversas instituições de ensino. O projeto de caráter extensio-nista, articulado com o ensino e a pesquisa, embasou artigos, monografias, dissertações e te-ses, confirmando-se como um rico campo de estudos.

Produzido pela atriz e teatróloga Ana Carolina Mar-

celiano, o Artigo O Auto do Círio – Pavilhão de Flora: Performance da memória, configura-se como exemplo dessa produção acadêmica sobre o assunto. Ao fazer re-ferência aos festejos populares que aconteciam no Largo de Nazaré, especificamente ao Pavilhão de Flora – nome de um barracão inaugurado no século XIX, a pesquisadora trabalha essas memórias a partir de con-ceitos de autores como Richard Schechner e Eugênio Barba.

ALEXANDRE MORAES

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Na Academia

No ano de 2010, a direção geral do Programa de Extensão da Escola de Teatro e Dança da UFPA passou para as mãos do professor Beto Be-none. Três anos depois, esse envolvimento com o Auto do Círio culminou na produção da Dissertação Três vestidos fazem pra se apresentar: um estudo sobre o vestir no espetáculo o Auto do Círio, sob orientação da professora Ana Karine Jansen de Amorim e coorientação da professora Carmem Izabel Rodrigues.

Apresentada ao Pro-grama de Pós-Graduação em Artes, a pesquisa teve por objetivo “estudar o espetácu-lo a partir de uma análise da visualidade, que é algo riquís-simo de signifi cações durante o cortejo, e verifi car o que

as signifi cações representam para o ator e o espectador nas suas relações de afetividade com os processos de criação”, revela Beto Benone.

Ao longo do trabalho, o autor propõe-se a analisar um novo conceito chamado de “figurino-fantasia”. Sua concepção refere-se a um hibridismo entre o fi gurino e a fantasia que se deslocam de um espaço-tempo para outro momento qualquer, exercen-do a função de fi gurino dentro de um determinado espetá-culo. O “fi gurino-fantasia” é pensado e concebido a partir de referências carnavalescas. No Auto do Círio, o artista está livre para criar e recriar a partir de seus referenciais.

A pesquisa também re-vela que as principais marcas

desse vestir são as misturas de cores, o exagero e as tex-turas. Isso estabelece laços com o trabalho do autor, que vive o momento real ou ima-ginário para uma única apre-sentação, que fi ca registrada na memória da cidade, por meio do canto, da dança e do impacto visual desse vestir.

De acordo com Beto Benone, as produções aca-dêmicas sobre o Auto do Círio permitem aos artistas registrarem os seus processos criativos. “Esses trabalhos são significativos para a história artística e para a divulgação de ideias e pensamentos. Por isso, esse espetáculo é uma caixa de surpresas recheada de caminhos para desem-bocar em vários estudos da Arte”, fi naliza o professor.

Leia mais*MARCELIANO, Ana Carolina. O Auto do Círio – Pavilhão de Flora: Performance da memória. Ensaio Geral, Edição Especial, Belém, v. 5, n. 9, 2013.

MOREIRA, Francisco Edilberto Barbosa. Três vestidos fazem pra se apresentar: um es-tudo sobre o vestir no espetáculo o Auto do Círio. 2012. 116f. Dissertação (Mestrado em Artes). Instituto de Ciências da Arte, Univer-sidade Federal do Pará, 2012.

SANTA BRÍGIDA, Miguel de. O auto do círio:

drama, fé e carnaval em Belém do Pará. 2003. 200 f. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas). Escola de Dança, Escola de Teatro, Universidade Federal da Bahia, 2003.

WAgnEr, Eduardo. O Auto do Círio: A Car-navalização Imagética do Espetáculo. 2008. Trabalho de Conclusão de Curso. Instituto de Ciências da Arte, Licenciatura Plena em Artes Plásticas, 2008.

*Todos os trabalhos estão disponíveis na Biblio-teca do ICA

TCC analisa a carnavalização imagéticaEm 2008, o pesquisador

Eduardo Wagner defendeu na Faculdade de Artes Plásticas o Trabalho de Conclusão de Cur-so intitulado “O Auto do Círio: a carnavalização imagética do espetáculo”, sob orientação do professor Miguel Santa Brígida.

“A carnavalização é um espírito festivo que está presente nas práticas culturais. E carnavalização imagética é o conceito referente à visualida-de das escolas de samba que

delinearam a identidade visual e espetacular que o Auto do Círio possui”, explica Eduardo Wagner.

O trabalho contou com o conceito de carnavalização extraído da obra de Mikhail Bakhtin e também utilizou como referência Michel Maffe-soli e Felipe Ferreira. Teóricos do campo da Semiótica tam-bém foram usados para discutir os conceitos de imagem, signo e símbolo. Todo esse referen-

cial ajudou na definição da carnavalização imagética como um processo de assimilação de elementos visuais das escolas de samba pelo Auto do Círio.

“Ao estudarmos o espe-táculo, conhecemos também as relações sociais, culturais e históricas mantidas no contex-to da cidade. A cultura popular possui uma rica gama de cami-nhos que nos levam à pesquisa e o Auto do Círio é uma prova disso”, enfatiza o pesquisador.

Figurino tem cores, texturas e exagero

FOTOS ADOLFO LEMOS/ALEXAnDrE MOrAES/WAgnEr MEIEr

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O espetáculo

20ª edição traz mudanças e aproxima cortejo dos participantes

Aniversariante esbanja juventude � Rosyane Rodrigues

2014 é um ano para viver o Patri-mônio. É nesse clima que a 20ª edição do Auto do Círio ganhará

as ruas do bairro Cidade Velha no próximo dia 10 de outubro. Com o tema Senhora de Todas as Artes, a ideia é agregar todas as vertentes artísticas envolvidas no cortejo. “Nós queríamos um tema que, além de caracterizar o Auto e comemorar os 20 anos do espetáculo, fosse capaz de mostrar a mistura harmônica de linguagens que ele apresenta ao reunir carnaval, carimbó, teatro, dança...unindo o clássico ao popular, o sagrado ao profano e, em tudo isso, ser pensado e vivido para a Senhora de Nazaré”, explica a professora Cláudia Palheta.

Para os professores Cláudia Palheta e Adriano Furtado, respon-sáveis pela organização do Auto do Círio 2014, ao longo do tempo, o Auto transformou-se em mais uma romaria da Quadra Nazarena, assim como a Rodoviária, a Fluvial, a Trasladação e o próprio Círio. “Nós percebemos a

Os professores Cláudia Palheta

e Adriano Furtado são os

responsáveis pela da 20ª

edição do Auto do Círio.

presença de promesseiros reais dentro do Auto, as apresentações são pen-sadas como uma forma de promessa, então, no Auto, são ‘apresentadas’ promessas feitas a Santa. Por isso, é interessante designar o Auto do Círio como uma Arte Romaria, já que muitos participantes pensam sua pa-resentação e seu figurino como forma de agradecer e homenagear a Senhora de Nazaré. Então, o tema Senhora de Todas as Artes é uma maeira de dizer que qualquer que seja a forma que estes artistas-romeiros escolham para apresentar-se no Auto do Círio, eles serão acolhidos pela Senhora. O capricho com o figurino e a dedicação aos ensaios...tudo é feito para a Se-nhora”, explica a professora.

Para festejar os 20 anos, os organizadores querem estreitar os laços com o bairro histórico e seus moradores, resgatar aquele objetivo inicial de valorização e preservação do patrimônio. Nesse sentido, a primeira ação foi a mudança do local dos ensaios, da Aldeia Cabana para a Praça do Carmo, que só foi decidida após uma série de reuniões com os moradores do entorno da Praça. “A nossa preocupação era saber o que es-sas pessoas achavam do ‘barulho’ que nós iríamos fazer na casa delas e nós fomos recebidos de braços abertos”, comemoram os professores.

Amizade - Os diretores também con-versaram com aqueles que têm suas casas ao longo do trajeto do cortejo. “Nessas conversas, encontramos pes-soas que assistem ao Auto do Círio há 19 anos. Existe morador que faz festa no dia do Auto, que prepara banho de cheiro para jogar nos participantes do cortejo, morador que abre as portas da sua casa para transformá-la em camarim, ou seja, os moradores sempre estiveram conosco, mas nós não sabíamos dessa amizade. Foi uma maravilhosa surpresa ser abraçado por eles”, conta o professor Adriano Furtado.

O resultado dessa boa recep-ção é a possibilidade de distribuir as atrações ao longo de algumas varan-

das de casas localizadas na Rua Dr. Assis, realizando um desejo pensado desde 2010.

“Este é um bom ano para rever e reviver emoções imbricadas nos corações e nas ações artísticas de cada integrante que participa do cortejo”, dizem os organizadores. Por isso, pessoas muito importantes na construção dessa história, como os professores Zélia Amador de Deus, Margaret Refkalefsky, João de Jesus Paes Loureiro e Miguel Santa Brígida foram convidados e farão participações especiais ao longo do espetáculo.

Em 2014, o cortejo não fará a tradicional parada em frente à Igreja de Santo Alexandre. “Essa é uma mu-dança que queríamos fazer há algum tempo, pois, em alguns momentos, essa estação quebrava a sequência da romaria. Mas é importante des-tacar que a estação não desaparece, apenas será realocada para a frente do Solar Barão do Guajará, sede do Instituto Histórico e geográfico, onde vai acontecer a cena da coroação, entre outras, tendo a fachada do casarão como cenário.

A coordenação do Auto do Círio 2014 é de Cláudia Palheta, que conta com a direção cênica de Adriano Furtado, com a colaboração de Waldete Britto, rebeca Caste-lo, Inês Ribeiro, Luiza Monteiro, Bruce Macedo, Ana Flávia Mendes Sapucahy, Tarik Alves, Aníbal Pacha, Néder Charone, Jorge Torres, Adria-na Cruz, Ramiro Quaresma, Lúcia Uchoa, Leonardo Coelho de Souza, Antônio Cândido de Souza e Odete Barbosa Gonçalves, com a assistência de direção de Markcson de Moraes, Breno Monteiro, Lauro Sousa, Suely Brito e Guilherme Repilla, e com a produção de Tânia Santos.

O Auto do Círio estará nas ruas no dia 10 de outubro, a partir das 19h. O cortejo envolve atividades de pesquisa, ensino e extensão e é uma realização da UFPA, por meio do Instituto de Ciências das Artes, da ETDUFPA e da PROEX, com apoio do Fórum Landi e patrocínio da Vale.

ALEXANDRE MORAES