BERESHIT – A CRIAÇÃO DA · PDF fileBERESHIT – A CRIAÇÃO DA DIVERSIDADE Maurício Waldman1 BERESHIT O Livro de Gênesis, ou Bereshit ( ), tal como é conhecido no hebraico ou

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  • BERESHIT A CRIAO DA DIVERSIDADE

    Maurcio Waldman1

    BERESHIT

    O Livro de Gnesis, ou Bereshit ( ), tal como conhecido no hebraico ou Yvrit (), possivelmente uma das mais conhecidas narrativas bblicas, difundida em quase

    todas as lnguas. Hoje, faz parte do imaginrio das mais variadas culturas. Bereshit um relato que traz a marca da tradio judaico-crist, uma das mltiplas vertentes originrias do mundo pr-moderno, aquele que antecederia o novo universo de valores criados pela civilizao contempornea.

    TEMPO HEBRAICO

    Este texto atenderia basicamente ao debate relativo ao conceito hebraico de tempo. O fato de o tempo hebraico ser retilneo j foi utilizado por alguns tericos para julg-lo como em oposio diversidade do tempo, portanto, em contradio a outras leituras e posicionamentos culturais diante da fruio da temporalidade. Ele se oporia aos ciclos da natureza, tornando-o responsvel pela degradao do meio natural, alm de incluir uma estratgia de excluso de outros grupos e povos.

    1 Socilogo, autor de vrios livros e artigos. Ex-integrante da equipe do Centro Ecumnico de Documentao e Informao (CEDI). Atualmente mestrando em Antropologia na USP, com dissertao com eixo na questo da percepo cultural do espao-tempo.

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    "Tudo tem seu tempo determinado e h tempo para todo propsito debaixo do cu" (Eclesiastes 3:1)

  • Por estas razes, e tambm por ser a modernidade uma civilizao baseada na interpretao de que o tempo, alm de ser dinheiro, acelerado, importaria ater-nos a uma reavaliao do tempo hebraico. Isto nos possibilita visualizar sua atualidade na tica dos excludos, marginalizados dos processos de transformao e de perpetuao da vida pelo tempo da modernidade.

    Primeiramente, seriam cabveis algumas observaes sobre a lngua hebraica, na qual o Livro de Gnesis, bem como a maior parte do Antigo Testamento, esto vertidos. O hebraico resulta de um antigo dialeto cananeu e alcanou expresso literria atravs do incansvel trabalho dos profetas e dos trovadores da antiga Palestina. Esta terra era conhecida na antiguidade como bero de inmeros poetas, msicos e cantores.

    Traduzir um texto como o Gnesis, no tarefa fcil. Qualquer traduo incorre nas dificuldades inerentes busca de palavras e de expresses que no encontram, necessariamente, uma correspondncia integral de um linguajar para outro.

    O hebraico, ou Lashon Ha-Kodesh ( : ou seja, lngua sagrada), nos remete a uma estrutura de pensamento com muitas associaes com o mundo semtico e oriental antigo. Lngua "econmica" na explicitao de conceitos, o hebraico, no texto bblico, apresenta uma melodia potica primordial, um sopro forte, abrupto e enigmtico.

    Devemos ao poeta e ensasta Haroldo de CAMPOS (1984), um esforo em captar, na traduo para o portugus, este estilo bblico, procurando hebraicizar a lngua portuguesa e estampar as suas vibraes originais. Eis como o primeiro versculo da gesta de origem, o Yom Echad ( : literalmente dia um), aparece na inteligente interpretao de Haroldo de Campos :

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    1. Nocomear Deus criando: o fogogua e a terra

    2. Eaterra era lodo torvoEatreva sobre orostodoabismoEosopro-Deus revoa sobre orostodgua

    3. EDeusdisse seja luzEfoiluz

    4. EDeusviu queeraboa aluzeDeus dividiu luz etreva

    5. EDeus chamouluzdia Eatreva chamounoiteEfoitardeefoimanhdia um

  • Alm dos sentidos literrios e lingsticos, h que se atentar para os sentidos simblicos do tempo hebraico. Embora possivelmente refratrios a uma transcrio direta, eles podem ser decifrados pela analise da cultura e da religiosidade dos antigos hebreus.

    Independente de considerarmos os hebreus como povo, religio ou movimento social, so indiscutveis os traos marcadamente semticos, orientais e antigos presentes no pensamento hebraico. Estes rasgos arcaicos da cultura hebraica, compartilhados por diversos outros contextos civilizatrios do mundo pr-moderno, tornam esta cultura, bem como o prprio cristianismo, mais prximos do mundo tradicional do que se poderia supor primeira vista.

    Refiro-me basicamente as duas noes bsicas do tempo bblico, anlogo a muitas outras interpretaes pr-modernas. A primeira associa-se a noo de um tempo qualitativo, marcado por eventos significativos. A segunda, inseparvel da primeira, a de que este tempo segmentado, onde cada coisa tem seu tempo, e existe um tempo prprio para cada coisa.

    TEMPO BBLICO

    O texto bblico no concebe o tempo como uma entidade abstrata, vazia, quantitativa, irreversvel e retilnea, medida por anos, dias, horas, minutos e segundos, dentro da qual tudo contido e tudo sucede. A idia bblica de tempo de algo concreto, vivo, experimental e qualitativo, que incorpora os seres e as coisas, e que no se pode representar independente deles (ANDRADE, 1971: 170).

    E neste sentido que o relato da criao articulado em sete dias. A cada dia ( : yom em hebraico) so atribudas as falas da criao: a separao da luz e da treva, no dia um; o cu no dia dois; o mar e as plantas no dia trs; a luz e os astros no dia quatro; os animais no dia cinco; o homem e a mulher no dia seis; o sbado, a coroa da criao, no dia sete.

    O fato destes sete dias da criao serem anormais porque distribudos desigualmente com relao ao sol, na realidade pouco importante, visto no serem dias astronmicos. So os primeiros dias de uma sucesso de dias que marcar a vida da criao. No se trata, na perspectiva bblica, de uma pr-histria, mas do comeo da historia (NEHER, 1975: 182).

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  • Esta interpretao da temporalidade, inaugurada em Bereshit, aparece em diversos livros da Bblia. Os livros sagrados esto repletos de pequeninas sentenas, cristalinas e profundas, relativamente natureza do tempo. Elas confirmam uma velha e autentica sabedoria popular, cujo sentido para o tempo residia na constante vinculao do tempo ao ser e ao acontecer de cada coisa.

    No Antigo Testamento, alm de Bereshit, podemos encontr-las no Deuteronmio (11:14 e 28:12), xodo (31:10), Eclesiastes (3:1-8; 8:6 e 9:11), Levtico (26:4), Nmeros (28:2), Esdras (4:15 e 19), Salmos (33:19, 37:19, 39 e 78:2), Provrbios (25:19), Isaas (33:2; 6; 60: 22), Osias (2:9 e 10:12), Miquias (2:3 e 5:2), Habacuque (2:3), Zacarias (10:1) e vrias citaes em Jeremias, Ezequiel e Daniel. No Novo Testamento, aparecem em Mateus (16:3, 31:34; 41; 24:45; 26:18), Marcos (12:2, 13.33), Lucas (1:20; 12:42; 21:24), Joo (7:6, 8) e Atos dos Apstolos (3:20, 21 e 15:21).

    Estreitamente vinculada a esta forma de compreender a passagem do tempo, est outra caracterstica tpica das culturas pr-modernas, definida como a da espacializao do tempo. Dito em outras palavras, o tempo medido, aferido, compreendido, em funo de marcadores espaciais ou scio-ambientais.

    Uma das pistas que encontramos desta postura frente temporalidade tambm fornecida por Bereshit. Eis como Deus, no quarto dia, fez sua fala dos astros: Deus disse: que existam luzeiros no firmamento do cu, para separar o dia e a noite e para marcar festas, dias e anos (Gnesis 1.14). A antiga Palestina foi ocupada por diversos grupos sociais que compartilhavam uma idntica excluso da parte do poder estabelecido no antigo Oriente Mdio. Pas com grande variedade de paisagens naturais, muito contrastantes entre si, facilitou o surgimento de diversos espaos territoriais compartimentados, expresso de dinamismos sociais e histricos peculiares a cada um desses grupos.

    A heterogeneidade dos espaos naturais, como a serra, a montanha central, a plancie do Saron e o vale do Jordo, a plancie litornea, a estepe e o deserto, foram ocupados por populao diversificada, que em cada um destes espaos criou sua maneira de regular a passagem do Tempo.

    com base nessas ressalvas que podemos, simultaneamente, afirmar o carter singular e geral do tempo hebraico. Sua singularidade justamente dispor estas diferentes fruies do tempo - a de cada grupo tribal, de cada compartimento territorial, de cada atividade, do tempo de cada profeta ou juiz, e assim por diante - ordenando-as retilineamente.

    Os imprios egpcios e os da Mesopotmia, por serem estados centralizados, pautaram-se por uma concepo cclica e repetitiva do tempo. O javismo constituiu uma contracosmogonia que antagonizava com essas noes. Isto explica o fato das populaes hebraicas - ou hapiru - desenvolverem uma forma de compreender a temporalidade que em si mesma, era crtica das verses apresentadas pelos grandes poderes imperiais.

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  • UM NOVO TEMPO

    Propor a retilinearidade do tempo uma das formas que os textos vtero-testamentrios encontraram pare evitar o recurso linguagem mtica. O Deus de Israel inaugura um novo tempo que no se identifica com um ciclo de tributos repetido imemorialmente, abatendo-se sobre os grupos sociais no representados no edifcio do poder.

    Em toda a Bblia, o verbo bara ( ), que designa o ato criador, se reserva ao Altssimo. S Deus pode criar, ou dito hebraicamente, fazer jorrar, de maneira sbita e soberana, o tempo. A palavra que inicia a narrativa, Bereshit, revela que o essencial ao narrador do Gnesis no o que houve no princpio, mas sim, que houve um princpio. Bereshit, no significa no princpio, mas num princpio (NEHER, 1975: 176-177).

    A retilinearidade do tempo, tpica da inculturao bblica, talvez a mais proeminente contribuio do pensamento hebraico. Ela se diferencia de todas as demais interpretaes do mundo oriental justamente por dispor o homem diante da histria, a qual em Bereshit, tem o seu comeo consagrado.

    Por intermdio de Bereshit, os hebreus entendiam que a origem do mundo no estava oculta inteligncia humana. Para o homem permanecer em unio com a criao, no necessit