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Bergson e a força da filosofia Amauri Ferreira – Novembro de 2014 Para nos adaptarmos à vida social é necessário, por meio do reconhecimento habitual, distinguirmos objetos que percebemos justapostos simultaneamente no espaço para agirmos sobre eles, onde frequentemente nos servimos do número, da linguagem e do raciocínio inteligente para superarmos resistências materiais por meio da fabricação de instrumentos artificiais 1 . Somos capazes de conhecer as relações de causa e efeito entre certas coisas exteriores a nós, de desenvolvermos o conhecimento científico, de dominarmos uma porção da matéria inerte através da mecânica, em busca de bem-estar e prazer. Agarramo-nos a ideias gerais – e aos hábitos que caracterizam a moral fechada – para nos conservarmos. Mas, diante de ideias consideradas verdadeiras que sustentam a vida social de uma determinada época, surge, então, alguém que ousa romper com o senso comum: o filósofo. “Diante de ideias correntemente aceitas, de teses que parecem evidentes, de afirmações que haviam passado até então por científicas, assopra no ouvido do filósofo a palavra: Impossível. […] Força singular, essa potência intuitiva da negação” 2 . As ideias que o filósofo expõe através da sua obra vêm, primeiramente, desta rejeição de ideias consideradas socialmente como inquestionáveis. Ele avança no desenvolvimento da sua doutrina servindo-se da filosofia e da ciência de seu tempo e, sem dúvida, mergulha nesta jornada. Embora o resultado seja incerto, ele segue adiante e aceita riscos porque sente que tocou em algo que o impulsiona à materialização da obra 3 . Para esse despertar filosófico, que é necessariamente subversivo, é indispensável uma suspensão dos nossos hábitos que correspondem às exigências da vida social. Para Bergson, somos constituídos por uma zona de indeterminação que concerne ao intervalo entre o estímulo recebido (sonoro, visual, olfativo...) e a resposta efetuada através dos nossos mecanismos motores. Em razão da suspensão das ações utilitárias, as nossas lembranças passam a desfilar em nossa consciência com maior riqueza de detalhes, isto é, o nosso passado coexiste com o presente ou, para falar de outro modo, quando percebemos um objeto qualquer no mundo exterior, sentimos e nos recordamos de algo. Porém, a vida social exige de nós ações utilitárias, que implicam uma diminuição deste intervalo que caracteriza a zona de indeterminação, recalcando uma atualização mais rica do nosso passado e, sem dúvida, nos impedindo de experimentarmos o tempo real, onde cada instante 1 EC, p. 150. 2 PM, p. 126. 3 PM, p. 142.

Bergson e a Força Da Filosofia

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Estudo filosófico - 2014

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Bergson e a força da filosofia

Amauri Ferreira – Novembro de 2014

Para nos adaptarmos à vida social é necessário, por meio do reconhecimento habitual,distinguirmos objetos que percebemos justapostos simultaneamente no espaço para agirmos sobreeles, onde frequentemente nos servimos do número, da linguagem e do raciocínio inteligente parasuperarmos resistências materiais por meio da fabricação de instrumentos artificiais 1. Somoscapazes de conhecer as relações de causa e efeito entre certas coisas exteriores a nós, dedesenvolvermos o conhecimento científico, de dominarmos uma porção da matéria inerte através damecânica, em busca de bem-estar e prazer. Agarramo-nos a ideias gerais – e aos hábitos quecaracterizam a moral fechada – para nos conservarmos. Mas, diante de ideias consideradasverdadeiras que sustentam a vida social de uma determinada época, surge, então, alguém que ousaromper com o senso comum: o filósofo. “Diante de ideias correntemente aceitas, de teses queparecem evidentes, de afirmações que haviam passado até então por científicas, assopra no ouvidodo filósofo a palavra: Impossível. […] Força singular, essa potência intuitiva da negação”2. As ideiasque o filósofo expõe através da sua obra vêm, primeiramente, desta rejeição de ideias consideradassocialmente como inquestionáveis. Ele avança no desenvolvimento da sua doutrina servindo-se dafilosofia e da ciência de seu tempo e, sem dúvida, mergulha nesta jornada. Embora o resultado sejaincerto, ele segue adiante e aceita riscos porque sente que tocou em algo que o impulsiona àmaterialização da obra 3.

Para esse despertar filosófico, que é necessariamente subversivo, é indispensável umasuspensão dos nossos hábitos que correspondem às exigências da vida social. Para Bergson, somosconstituídos por uma zona de indeterminação que concerne ao intervalo entre o estímulo recebido(sonoro, visual, olfativo...) e a resposta efetuada através dos nossos mecanismos motores. Em razãoda suspensão das ações utilitárias, as nossas lembranças passam a desfilar em nossa consciênciacom maior riqueza de detalhes, isto é, o nosso passado coexiste com o presente ou, para falar deoutro modo, quando percebemos um objeto qualquer no mundo exterior, sentimos e nos recordamosde algo. Porém, a vida social exige de nós ações utilitárias, que implicam uma diminuição desteintervalo que caracteriza a zona de indeterminação, recalcando uma atualização mais rica do nossopassado e, sem dúvida, nos impedindo de experimentarmos o tempo real, onde cada instante

1 EC, p. 150.2 PM, p. 126.3 PM, p. 142.

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percebido por nós se compõe com todo o nosso passado, razão pela qual mudamos sem cessar.Bergson denomina duração este tempo constituído pela continuidade dos estados psicológicos 4.Portanto, a duração se distingue do tempo espacializado que é representado simbolicamente pelonúmero.

Em vez de se dirigir para a fixidez das coisas exteriores que nos aparecem comodescontínuas, o filósofo ousa voltar-se para si mesmo, onde há continuidade de sensações esentimentos, mudanças qualitativas que o enriquecem gradualmente, pois somente a partir dessadireção voltada para si mesmo que ele pode fazer com que seja despertada a intuição da duração:“Nada mais de estados inertes, nada mais de coisas mortas; apenas a mobilidade da qual é feita aestabilidade da vida. Uma visão desse gênero, na qual a realidade aparece como contínua e comoindivisível, está no caminho que leva para a intuição filosófica”5. Para acontecer esse despertar daintuição filosófica, a experiência de uma consciência que se abstém de agir de modo utilitário éplenamente estimulada pelo filósofo, que ocorre ao mesmo tempo em que ele amplia a suacapacidade de sentir o que as excitações materiais produzem no seu corpo e no seu espírito. Essaexperiência, que é possível a qualquer um de nós, é impedida quando nos limitamos aoreconhecimento habitual, cuja atenção passa de um objeto percebido a outro objeto: de uma notíciade jornal passamos rapidamente para outra notícia, de um canal de televisão a outro canal, de umsite na internet a outro... O embotamento dos sentidos e o esmagamento da experiência de quemudamos sem cessar são efeitos de um modo de existir reduzido ao utilitarismo, à comunicaçãogregária, à necessidade de nos adaptarmos ao meio para sobrevivermos.

Uma relação simpática com o objeto percebido, por meio do reconhecimento atento,permite, enfim, sentirmos que não estamos separados da continuidade material que nos afeta a todoinstante. A intuição surge dessa experiência que, da perspectiva da conservação gregária, é inútil,porém, ela é essencial para que seja desenvolvida uma atenção suplementar, que é a do espíritosobre ele mesmo: “Ela [a intuição] representa a atenção que o espírito presta em si mesmo, desobejo, enquanto se fixa sobre a matéria, seu objeto. Essa atenção suplementar pode sermetodicamente cultivada e desenvolvida”6. Ora, Bergson sublinha que, apesar da raridade daexperiência dessa atenção suplementar, ela pode, no entanto, ser cultivada e desenvolvida por meiode métodos que podem nos servir. Mas em qualquer método que nos leve à intuição da duraçãoestão implicadas algumas noções essenciais do bergsonismo: suspensão do mecanismo sensório-motor, ampliação da zona de indeterminação, atualização crescente do passado no presente, atençãosobre o objeto (que pode ser um livro, uma música, uma paisagem), estímulo da nossa capacidadede sentir. Evidentemente, são noções essenciais também para que alguém se torne filósofo.

Por partir de uma intuição original, ou seja, do conhecimento da vida de dentro comoimpulso para criar, o filósofo não imita, ou melhor, não pode imitar a filosofia de ninguém. Essaideia de “falta de originalidade” somente aparece ao leitor por meio de uma leitura apressada e, porisso, superficial, pois, de fato, diante da obra de um grande pensador, “ali mesmo, onde parecerepetir coisas já ditas, [o filósofo] as pensa à sua maneira”7. Certamente ele foi influenciado pelasideias de outros filósofos e cientistas, porém, como ele as recebeu, como ele as submeteu à intuiçãoe como ele soube comunicar por meio das palavras a sua visão original da vida, é algoprofundamente verdadeiro e singular. Ao ser atingido por uma ideia original, o filósofo extrai davida o impulso para comunicar o seu pensamento – seus conceitos trazem a sua assinatura. Apenasaparentemente, ou seja, pela forma, sua obra pode ser considerada como uma “evolução na históriada filosofia”, mas, de fato, através de um exame mais profundo, sua obra nos revela sua novidade esimplicidade, e não uma “evolução”: “O filósofo poderia ter vindo vários séculos antes; teria lidadocom uma outra filosofia e uma outra ciência; ter-se-ia posto outros problemas; ter-se-ia expresso poroutras fórmulas; nenhum capítulo, talvez, dos livros que escreveu teria sido como é; e no entanto ele

4 DI, p. 77.5 PM, p. 147.6 PM, p. 88.7 PM, p. 128.

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teria dito a mesma coisa”8. Bergson, que foi um grande leitor de Espinosa, considera o livroprincipal deste filósofo, a Ética, como grande exemplo de contraste entre a forma e o fundo de umaobra filosófica. É o fundo que sustenta a forma, é o pensamento vigoroso que está por trás do desfilede proposições, demonstrações, escólios, corolários. “É, por trás da pesada massa dos conceitosaparentados ao cartesianismo e ao aristotelismo, a intuição que foi a de Espinosa, intuição quenenhuma fórmula, por simples que seja, será suficientemente simples para exprimir. […] Quantomais remontamos para essa intuição original, tanto melhor compreendemos que, caso Espinosativesse vivido antes de Descartes, teria sem dúvida escrito algo diferente do que escreveu, mas que,Espinosa vivendo e escrevendo, teríamos certeza de ter apesar de tudo o espinosismo”9.

Em uma carta pouco conhecida, escrita em homenagem a Gabriel Tarde 10, Bergson enfatizaa existência de dois gêneros de pensadores que a história da filosofia nos ensina a distinguir.Existem os que “caminham metodicamente rumo ao seu objetivo, elevando-se de grau em grau atéuma síntese querida e premeditada”. Esta busca pela unificação do saber soa estranha aos ouvidosde Bergson, porque mantém o filósofo condicionado a levar adiante os resultados que o cientistaalcançou através da experiência. Deste modo, o filósofo se limita a induzir e a deduzir, sem aceitarriscos, seguindo a mesma direção da ciência ao generalizar os mesmos fatos: “Há uma certaconcepção da filosofia que quer que todo esforço do filósofo tenda a abarcar numa grande síntese osresultados das ciências particulares. […] Estranha pretensão, na verdade! Como a profissão defilósofo poderia conferir àquele que a exerce a capacidade de avançar mais longe do que a ciênciana mesma direção que ela?”11

Mas existem aqueles pensadores que assumem riscos, que têm consciência de que nem tudoque a filosofia nos diz é verificado ou verificável, porque simplesmente sentem que estão certosdaquilo que querem nos comunicar. São os que vão, “sem método aparente, aonde sua fantasia osconduz, mas cujo espírito é tão bem afinado ao uníssono das coisas que todas as suas ideias seharmonizam naturalmente entre elas. […] Eles são filósofos sem haver procurado sê-lo, sem haverpensado nisso. Sua reflexão, partindo não importa onde e engajando-se em não importa quecaminho, arranja-se para conduzi-las sempre ao mesmo ponto”. Para Bergson, a filosofia não é umasíntese mais sofisticada da ciência, porque é tarefa da filosofia se colocar na experiência da duração.Ora, a experiência da duração implica consciência, direção para o interior de nós mesmos, onde aintuição filosófica pode ser, inclusive, intensificada pela emoção criadora. Portanto, o filósofo deveseguir esse movimento da vida, que é a criação, para colocar verdadeiros problemas, pois, alertaBergson, a história da filosofia errou durante muito tempo em se deter nos falsos problemas, cujasquestões são inerentes à estrutura da nossa inteligência, tais como o Ser, o não-Ser, o Nada, oFundamento – problemas que nos mantém distantes do conhecimento da vida. Ao contrário daciência, que nos promete bem-estar e prazer, a filosofia pode nos dar a alegria e, também, como elesublinha na carta em homenagem a Tarde, “nos tornar melhores e mais fortes”. Esta é a forçasubversiva da filosofia que não pode ser esquecida.

8 Idem.

9 PM, p. 130.10 “Carta de Bergson, do Instituto, Professor de Filosofia no Collège de France.” 11 PM, p. 140.