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Critérios de Evidência: A5 Resolver interesses divergentes; B5- Identificar e sugerir novas formas de realizar tarefas Bertolt Brecht: contos de ironia filosófica Histórias do Sr. Keuner, de Bertolt Brecht Um dos dramaturgos mais influentes do século XX, o alemão Bertolt Brecht (1898-1956) também é o criador de um misterioso personagem que figura em vários contos escritos ao longo de trinta anos: o senhor Keuner. Em textos curtos (são raros os que ultrapassam uma página), esse sábio pouco convencional destila uma filosofia irónica. A presente edição traz quinze contos até há pouco inéditos, descobertos em 2002, na Suíça, entre papéis de Brecht. A questão de existir um Deus Alguém perguntou ao sr. K. se existe um Deus. O sr. K. respondeu: "Aconselho a reflectir se o seu comportamento mudaria conforme a resposta a essa pergunta. Se não mudaria, podemos deixar a pergunta de lado. Se mudaria, posso lhe ser útil a ponto de dizer que você já decidiu: você precisa de um Deus". • • • Sucesso O sr. K. viu passar uma actriz e disse: "Ela é bonita". O seu acompanhante disse: "Ela teve sucesso recentemente porque é bonita". O sr. K. aborreceu-se e disse: "Ela é bonita porque teve sucesso". • • • O garoto desamparado O sr. K. falou sobre o mau costume de engolir em silêncio a injustiça sofrida, e contou a seguinte história: "Um passante perguntou a um menino que chorava qual o motivo do seu sofrimento. ‘Eu estava com doi s vinténs para o cinema’, disse o garoto, ‘aí veio um menino e arrancou-me um da mão’, e mostrou um menino que se via à distância. ‘Mas não gritaste por socorro?’, perguntou o homem. ‘Sim’, disse o menino, e soluçou um pouco mais forte. ‘Ninguém te ouviu?’, perguntou ainda o homem, afagando-o carinhosamente. ‘Não’, disse o garoto, e olhou para ele com esperança, pois o homem sorria. ‘Então dá-me o outro’, disse, e tirou-lhe o último vintém, continuando tranquilo o seu caminho". • • • O animal favorito do sr. K. Quando perguntaram ao senhor K. que animal ele apreciava mais que todos, ele mencionou o elefante, e assim se justificou: O elefante une astúcia e força. Não a astúcia mesquinha que basta para evitar uma emboscada ou arranjar um alimento, passando-se despercebido, mas a astúcia que sabe utilizar a força para grandes empreendimentos. Por onde esse animal passa, deixa uma larga pista. No entanto ele é camarada, entende brincadeiras. É tão bom amigo quanto bom inimigo. Muito grande e pesado, ele é, no entanto, também muito rápido. A sua tromba conduz ao corpo enorme até os menores alimentos, amendoins inclusive. As suas orelhas são reguláveis: ele ouve apenas o que lhe interessa. Ele chega a ficar muito velho. Também é sociável, e não só com elefantes. Em toda parte é igualmente amado e temido. Uma certa comicidade torna possível que ele seja até venerado. Ele tem uma pele espessa, na qual se quebram as facas; mas a sua índole é delicada. Ele é capaz de ficar triste. É capaz de se enraivecer. Ele gosta de CURSO EFA B3A 2010 / 2011 Avaliação Formando Formador Formando: __________________________________________________ Data: _____ / _____ / ______ ÁREA/Assunto: CIDADANIA E EMPREGABILIDADE Formador / Mediador: Celeste Afonso

Bertolt Brecht -Sr Keuner

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Page 1: Bertolt Brecht -Sr Keuner

Critérios de Evidência: A5 – Resolver interesses divergentes; B5- Identificar e sugerir novas

formas de realizar tarefas

Bertolt Brecht: contos de ironia filosófica

Histórias do Sr. Keuner, de Bertolt Brecht

Um dos dramaturgos mais influentes do século XX, o alemão Bertolt Brecht (1898-1956) também é o criador de um misterioso personagem que figura em vários contos escritos ao longo de trinta anos: o senhor Keuner. Em textos curtos (são raros os que ultrapassam uma página), esse sábio pouco convencional destila uma filosofia irónica. A presente edição traz quinze contos até há pouco inéditos, descobertos em 2002, na Suíça, entre papéis de Brecht.

A questão de existir um Deus Alguém perguntou ao sr. K. se existe um Deus. O sr. K. respondeu: "Aconselho a reflectir se o seu comportamento mudaria conforme a resposta a essa pergunta. Se não mudaria, podemos deixar a pergunta de lado. Se mudaria, posso lhe ser útil a ponto de dizer que você já decidiu: você precisa de um Deus". • • • Sucesso O sr. K. viu passar uma actriz e disse: "Ela é bonita". O seu acompanhante disse: "Ela teve sucesso recentemente porque é bonita". O sr. K. aborreceu-se e disse: "Ela é bonita porque teve sucesso". • • • O garoto desamparado O sr. K. falou sobre o mau costume de engolir em silêncio a injustiça sofrida, e contou a seguinte história: "Um passante perguntou a um menino que chorava qual o motivo do seu sofrimento. ‘Eu estava com dois vinténs para o cinema’, disse o garoto, ‘aí veio um menino e arrancou-me um da mão’, e mostrou um menino que se via à distância. ‘Mas não gritaste por socorro?’, perguntou o homem. ‘Sim’, disse o menino, e soluçou um pouco mais forte. ‘Ninguém te ouviu?’, perguntou ainda o homem, afagando-o carinhosamente. ‘Não’, disse o garoto, e olhou para ele com esperança, pois o homem sorria. ‘Então dá-me o outro’, disse, e tirou-lhe o último vintém, continuando tranquilo o seu caminho". • • • O animal favorito do sr. K. Quando perguntaram ao senhor K. que animal ele apreciava mais que todos, ele mencionou o elefante, e assim se justificou: O elefante une astúcia e força. Não a astúcia mesquinha que basta para evitar uma emboscada ou arranjar um alimento, passando-se despercebido, mas a astúcia que sabe utilizar a força para grandes empreendimentos. Por onde esse animal passa, deixa uma larga pista. No entanto ele é camarada, entende brincadeiras. É tão bom amigo quanto bom inimigo. Muito grande e pesado, ele é, no entanto, também muito rápido. A sua tromba conduz ao corpo enorme até os menores alimentos, amendoins inclusive. As suas orelhas são reguláveis: ele ouve apenas o que lhe interessa. Ele chega a ficar muito velho. Também é sociável, e não só com elefantes. Em toda parte é igualmente amado e temido. Uma certa comicidade torna possível que ele seja até venerado. Ele tem uma pele espessa, na qual se quebram as facas; mas a sua índole é delicada. Ele é capaz de ficar triste. É capaz de se enraivecer. Ele gosta de

CURSO EFA B3A 2010 / 2011

Avali

ação

Formando

Formador

Formando: __________________________________________________

Data: _____ / _____ / ______ ÁREA/Assunto: CIDADANIA E EMPREGABILIDADE

Formador / Mediador: Celeste Afonso

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dançar. Ele morre na selva. Ele ama as crianças e outros animais pequenos. Ele é cinza e chama a atenção com o seu tamanho. Ele não é comível. Ele é bom trabalhador. Ele gosta de beber e fica alegre. Ele faz algo pela arte: fornece marfim. • • • Um aluno abandona o sr. Keuner Um aluno abandonou o sr. Keuner. Este gostava de lidar com ele: a nenhum outro gostava tanto de contrariar as opiniões. Porém, o sr. Keuner não ficou abatido. "Ele era um bom aluno", disse, "um dos melhores! É pena que tenha ido embora, mas não é ruim. Seria ruim se vocês dois partissem", e indicou tranquilamente dois alunos que não estimava muito, "vocês não aprenderam nada!" • • • Se os tubarões fossem homens

Se os tubarões fossem homens, eles seriam mais gentis com os peixes pequenos. Se os tubarões fossem homens,

eles fariam construir resistentes caixas do mar, para os peixes pequenos com todos os tipos de alimentos dentro,

tanto vegetais, quanto animais. Eles cuidariam para que as caixas tivessem água sempre renovada e adoptariam

todas as providências sanitárias exigíveis se, por exemplo, um peixinho ferisse a barbatana, imediatamente ele faria

uma atadura a fim de que não morresse antes do tempo. Para que os peixinhos não ficassem tristonhos, eles dariam

cá e lá uma festa aquática, pois os peixes alegres têm melhor sabor do que os tristonhos.

Naturalmente também haveria escolas nas grandes caixas. Nessas aulas os peixinhos aprenderiam como nadar para

a guelra dos tubarões. Eles aprenderiam, por exemplo, a usar a geografia, a fim de encontrar os grandes tubarões,

deitados preguiçosamente por aí. A aula principal seria naturalmente a formação moral dos peixinhos. Eles seriam

ensinados de que o acto mais grandioso e mais belo é o sacrifício alegre de um peixinho, e que todos eles deveriam

acreditar nos tubarões, sobretudo quando esses dizem que velam pelo belo futuro dos peixinhos. Incutir-se-ia nos

peixinhos que esse futuro só estaria garantido se aprendessem a obediência. Antes de tudo os peixinhos deveriam

guardar-se antes de qualquer inclinação baixa, materialista, egoísta e marxista. E denunciaria imediatamente os

tubarões se qualquer deles manifestasse essas inclinações.

Se os tubarões fossem homens, eles naturalmente fariam guerra entre si a fim de conquistar caixas de peixes e

peixinhos estrangeiros. As guerras seriam conduzidas pelos seus próprios peixinhos. Eles ensinariam os peixinhos

que entre os peixinhos e outros tubarões existem gigantescas diferenças. Eles anunciariam que os peixinhos são

reconhecidamente mudos e calam nas mais diferentes línguas, sendo assim impossível que se entendam uns aos

outros. Cada peixinho que na guerra matasse alguns peixinhos inimigos da outra língua silenciosos, seria

condecorado com uma pequena ordem das algas e receberia o título de herói.

Se os tubarões fossem homens, haveria entre eles naturalmente também uma arte, haveria belos quadros, nos quais

os dentes dos tubarões seriam pintados em vistosas cores e suas guelras seriam representadas como inocentes

parques de recreio, nas quais se poderia brincar magnificamente. Os teatros do fundo do mar mostrariam como os

valorosos peixinhos nadam entusiasmados para as guelras dos tubarões. A música seria tão bela, tão bela, que os

peixinhos, sonhadores e possuídos pelos mais agradáveis pensamentos, sob seus acordes e a orquestra na frente,

entrariam em massa para as guelras dos tubarões Também haveria uma religião ali.

Se os tubarões fossem homens, eles ensinariam essa religião. E só na barriga dos tubarões é que começaria

verdadeiramente a vida. Ademais, se os tubarões fossem homens, também acabaria a igualdade que hoje existe

entre os peixinhos, alguns deles obteriam cargos e seriam postos acima dos outros. Os que fossem um pouquinho

maiores poderiam inclusive comer os menores, isso só seria agradável aos tubarões, pois eles mesmos obteriam

assim mais constantemente maiores bocados para devorar. E os peixinhos maiores que deteriam os cargos valeriam

pela ordem estabelecida para que chegassem a ser professores, oficiais, engenheiros da construção de caixas e

assim por diante. Curto e grosso, só então haveria civilização no mar, se os tubarões fossem homens.