Bertrand Russell - A Fé de Um Racionalista

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  • 7/25/2019 Bertrand Russell - A F de Um Racionalista

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    A F DE UM RACIONALISTA

    Quando tento descobrir quais so as fontes originais das minhas opinies,tanto prticas e tericas, acho que a maioria delas advm, em ltima anlise,

    da admirao por duas qualidades - compaixo e veracidade. Para comearcom o sentimento de compaixo: a maioria dos males sociais e polticos domundo surgem devido a ausncia de simpatia e presena de dio, inveja oumedo. Sentimentos hostis deste tipo so comuns entre as naes; muitasvezes eles tm existido entre diferentes classes ou diferentes credos dentrode uma nao; em muitas profisses a inveja um obstculo para oreconhecimento de mrito superior; dio aos judeus, opresso dos negros,desprezo por todos os que no so brancos, trouxeram e esto trazendogrande sofrimento para os que se professam opressores, bem como paraaqueles a quem eles tm procurado oprimir. Todo tipo de ao ou sentimento

    hostil provoca uma reao que faz com que ele aumente e assim gera umaprognie de violncia e injustia que tem uma vitalidade terrvel. Isso s podeser controlado pelo cultivo em ns mesmos e pela tentativa de gerar nos

    jovens sentimentos de simpatia ao invs de hostilidade, de bem-querer aoinvs de malevolncia e de cooperao ao invs de competio.

    VERACIDADE E COMPAIXO

    Se me perguntam "Por que voc acredita nisso?" eu no deveria recorrer a

    qualquer autoridade sobrenatural, mas apenas para o desejo geral defelicidade. Um mundo cheio de dio um mundo cheio de tristeza. Cadaparte, onde h dio mtuo, espera que apenas a outra parte sofra, mas este raramente o caso. E at mesmo os opressores de maior sucesso estocheios de medo - os donos de escravos, por exemplo, so obcecados pelotemor de uma insurreio servil. Do ponto de vista da sabedoria mundana, osentimento hostil e a limitao da simpatia so uma tolice. Seus frutos so aguerra, morte, opresso e tortura, no s para suas vtimas originais, mas,ao longo prazo, tambm para os seus autores ou seus descendentes. Ao

    passo que se todos ns pudssemos aprender a amar ao prximo o mundoiria rapidamente tornar-se um paraso para todos ns.Veracidade, que eu considero em segundo lugar apenas com relao compaixo, consiste em termos gerais em acreditar de acordo comevidncias e no porque uma crena confortvel ou uma fonte de prazer.Na ausncia de veracidade, a compaixo ser frequentemente derrotada porauto-engano. Costumava ser comum entre os ricos alegar que agradvelser pobre ou que a pobreza o resultado da indolncia. Algumas pessoassaudveis sustentam que todas as doenas so auto-indulgncia. Ouvicaadores argumentarem que a raposa gosta de ser caada. muito fcilpara aqueles que tm poder excepcional convencerem-se de que o sistemano qual eles levam vantagem d mais felicidade s vtimas do que essas

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    desfrutariam sob um sistema mais justo. E, mesmo quando nenhum visbvio est envolvido, somente por meio de veracidade que podemosadquirir os conhecimentos cientficos necessrios para obtermos nossasaspiraes comuns. Considere quantos preconceitos muito arraigadostiveram de ser abandonados no desenvolvimento da medicina moderna e

    higiene. Tomando um tipo diferente de ilustrao: quantas guerras teriamsido evitadas se o lado que acabou por ser derrotado tivesse formado umaestimativa justa de suas perspectivas ao invs de ter se baseado empresuno e realizao de desejo!

    ACREDITAR SEM PROVA

    Veracidade, ou o amor verdade, definida por Locke como "no aceitaruma proposio com mais segurana do que garantem as provas com asquais ela construda." Esta definio admirvel em relao a todas asquestes nas quais razovel que se demandem provas. Mas como provasnecessitam de premissas, impossvel provar qualquer coisa a no ser quealgumas coisas sejam aceitas sem prova. Devemos, portanto, nos perguntar:Que tipo de coisa razovel acreditar sem provas? Eu deveria responder:Os fatos da experincia dos sentidos e os princpios da matemtica e lgica-- incluindo a lgica indutiva empregada na cincia. Estas so coisas quedificilmente podemos duvidar e nas quais existe uma grande medida deacordo entre a humanidade. Mas em questes em que os homensdiscordam, ou em que nossas prprias convices titubeiam, devemos

    encontrar provas, ou, se as provas no podem ser encontradas, devemosnos contentar em confessar ignorncia. H alguns que defendem que averacidade deve ter limitaes. Algumas crenas, dizem eles, soreconfortantes e moralmente benficas, embora no se possa dizer que hbases cientficas vlidas para supor que elas sejam verdadeiras; essascrenas, dizem, no devem ser criteriosamente analisadas. Eu no possoadmitir qualquer doutrina desse tipo. Eu no posso acreditar que ahumanidade possa se beneficiar da relutncia em examinar esta ou aquelaquesto. Nenhuma moralidade slida pode necessitar de basear-se na

    evaso, e uma felicidade derivada de crenas no justificadas por qualquermotivo seno o de serem agradveis no um tipo de felicidade que podeser admirada sem reservas.

    CRENAS RELIGIOSAS E O UNIVERSO

    Estas consideraes aplicam-se especialmente s crenas religiosas. Amaioria de ns foi educada para acreditar que o universo deve sua existnciaa um Criador todo-sbio e todo-poderoso, cujos propsitos so benficos

    mesmo no que para ns pode parecer mal. Eu no acho que certo nosrecusarmos a aplicar essa crena os tipos de testes que devemos aplicar uma crena que toca nossas emoes menos ntima e profundamente.

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    Existe alguma evidncia da existncia de tal Ser? Sem dvida, a crena nele reconfortante e s vezes tem alguns bons efeitos morais no carter ecomportamento. Mas isso no evidncia de que a crena verdadeira. Deminha parte, acho que essa crena perdeu qualquer racionalidade quepudesse ter possudo quando foi descoberto que a Terra no o centro do

    universo. Enquanto pensava-se que o Sol e os planetas e as estrelasgiravam em torno da Terra, era natural supor que o universo tinha umpropsito em conexo com a terra, e, j que o homem era o que o homemmais admirava na terra, este propsito estava supostamente incorporado nohomem. Mas a astronomia e a geologia mudaram tudo isso. A Terra umplaneta menor de uma estrela menor que uma das muitas milhes deestrelas em uma galxia que uma das muitas milhes de galxias. Mesmodurante a vida de nosso prprio planeta o homem apenas um breveinterldio. Vida no-humana existia h incontveis eras antes do homem terevoludo. O homem, mesmo se ele no cometer suicdio cientfico, perecerfinalmente, atravs do colapso da gua ou ar ou calor. difcil acreditar quea Onipotncia necessitasse de um cenrio to vasto para um resultado topequeno e transitrio.

    Alm da pequenez e brevidade da espcie humana, no consigo pensar queela seja um clmax digno de tal preldio enorme. H uma presuno bastanterepulsiva e auto-complacncia no argumento de que o homem toesplndido a ponto de ser uma evidncia da infinita sabedoria e infinito poderde seu Criador. Aqueles que usam este tipo de raciocnio sempre tentamconcentrar a nossa ateno nos poucos santos e sbios; eles tentam fazer-

    nos esquecer os Neros e Attilas e Hitlers e os milhes de covardes malvadosaos quais homens como esses deviam o seu poder. E at mesmo o que hde melhor em ns capaz de levar ao desastre. Religies que ensinam oamor fraterno tm sido usadas como uma desculpa para a perseguio, enossa mais profunda descoberta cientfica transformada em um meio dedestruio em massa. Posso imaginar um demnio sarcstico produzindo-nos para o seu divertimento, mas no posso atribuir a um Ser que sbio,beneficente e onipotente o peso terrvel da crueldade, sofrimento edegradao irnica do que h de melhor que tem marcado a histria do

    homem cada vez mais na medida em que ele torna-se mais senhor de seudestino.

    UMA CONJECTURA PLAUSVEL

    H uma concepo diferente e mais vaga de Propsito csmico no comoonipotente mas como agindo lentamente sobre um material recalcitrante.Esta uma concepo mais plausvel de um Deus que, embora onipotente eamoroso, produziu deliberadamente seres to sujeitos ao sofrimento e

    crueldade como a maioria da humanidade. No tenho a pretenso de saberque no h tal Propsito; meu conhecimento do universo muito limitado.Mas eu digo, e digo com toda a confiana, que o conhecimento dos outros

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    seres humanos tambm limitado, e que ningum pode apresentar qualquerevidncia adequada de que os processos csmicos tm algum propsito.Nossas evidncias bastante inadequadas, at onde vo, tendem na direooposta. Parecem mostrar que a energia est sendo mais e maisuniformemente distribuda, enquanto que tudo que possvel atribuir valor

    depende de distribuio desigual. No final, portanto, devemos esperar umauniformidade montona, em que o universo continuaria para todo o sempresem a ocorrncia de qualquer coisa interessante. Eu no digo que isso vaiacontecer, digo apenas que, com base no nosso conhecimento atual, essa a conjectura mais plausvel.Imortalidade, se pudssemos acreditar nela, nos permitiria livrar-nos destepessimismo quanto ao mundo fsico. Diramos que, embora nossas almas,durante sua permanncia aqui na terra, so escravas da matria e da fsica,elas passam no momento da morte para um mundo eterno alm do impriode decadncia que a cincia parece revelar sobre o mundo tangvel. Mas impossvel acreditar nisso, a menos que pensemos que um ser humanoconsiste de duas partes -- alma e corpo -- que so separveis e podemcontinuar de forma independente uma da outra.Infelizmente todas as evidncias vo contra isso. A mente cresce como ocorpo; como o corpo, ela herda as caractersticas de ambos os pais; afetada por doenas do corpo e por drogas; est intimamente ligada com ocrebro. No h nenhuma razo cientfica para supor que aps a morte amente ou alma adquire uma independncia do crebro que nunca teve navida. No tenho a pretenso de afirmar que este argumento conclusivo,

    mas tudo o que temos para basear-nos, com exceo das evidnciaspobres fornecidas pela pesquisa parapsicolgica.

    FELICIDADE ATRAVS DA COMPAIXO

    Muitas pessoas temem que, sem as crenas tericas que me vejo obrigado arejeitar, as crenas ticas que aceito no poderiam sobreviver. Elas apontampara o crescimento de sistemas cruis que se ope ao cristianismo. Masesses sistemas, que cresceram em um ambiente cristo, nunca poderiam ter

    crescido se a compaixo ou a veracidade tivessem sido praticadas; eles somitos do mal, inspirados pelo dio e sem suporte cientfico. Homens tendema ter as crenas que atendem s suas paixes. Homens cruis acreditam emum Deus cruel e usam sua crena para justificar sua crueldade. Somentehomens bondosos acreditam em um Deus bondoso, e estes seriambondosos de qualquer maneira. As razes para a tica que eu, em comumcom muitos cujas crenas so mais ortodoxas, gostaria de ver prevalecerso as razes derivadas do curso dos acontecimentos neste mundo. Vimosum timo sistema de falsidade cruel, o sistema nazista, levar uma nao

    para o desastre a um custo imenso para seus oponentes. No porsistemas como esse que a felicidade deve ser alcanada; mesmo sem aajuda de revelao no difcil ver que o bem-estar humano requer uma

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    tica menos feroz. Mais e mais pessoas esto tornando-se incapazes deaceitar as crenas tradicionais. Se eles pensarem que, alm destas crenas,no h razo para comportamento bondoso os resultados podero serdesnecessariamente infelizes. por isso que importante mostrar querazes sobrenaturais no so necessrias para tornar bondosos os homens

    e para provar que somente atravs da compaixo a raa humana podealcanar a felicidade.

    A F de um Racionalistafoi transmitida originalmente pelo rdio na BBC Home Service em 20 de

    Maio de 1947, em uma srie intitulada O Que Acredito (ocasio em que pontos de vista cticos

    foram transmitidos no rdio pela primeira vez aps vinte anos de campanha do movimento de livre

    pensamento). Foi publicada pela primeira vez noListenerem 29 de Maio de 1947, e foi re-impressa

    no Literary Guide em Julho de 1947. Foi primeiramente publicada como um panfleto por C. A.

    Watts para aAssociao de Imprensa Racionalistaem Agosto de 1947, e re-impressa vrias vezes.

    Foi includa na coleo das transmisses, um livreto intitulado O Que acredito, editado por Geroge

    Woodcock e publicado pela Porcupaine Press em 1948. Apareceu como Haldeman-Julius Big Blue

    Book nos Estados Unidos, e em outras edies e tradues estrangeiras. Foi includa no livro

    Atesmo, uma coleo de ensaios de Russell, editada por Madalyn Murray OHair e publicada em

    1972 pela Arno Press nos Estados Unidos.

    Traduzido para o portugus por Andr Luzardo.