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A FÉ DE UM RACIONALISTA Quando tento descobrir quais são as fontes originais das minhas opiniões, tanto práticas e teóricas, acho que a maioria delas advém, em última análise, da admiração por duas qualidades - compaixão e veracidade. Para começar com o sentimento de compaixão: a maioria dos males sociais e políticos do mundo surgem devido a ausência de simpatia e presença de ódio, inveja ou medo. Sentimentos hostis deste tipo são comuns entre as nações; muitas vezes eles têm existido entre diferentes classes ou diferentes credos dentro de uma nação; em muitas profissões a inveja é um obstáculo para o reconhecimento de mérito superior; ódio aos judeus, opressão dos negros, desprezo por todos os que não são brancos, trouxeram e estão trazendo grande sofrimento para os que se professam opressores, bem como para aqueles a quem eles têm procurado oprimir. Todo tipo de ação ou sentimento hostil provoca uma reação que faz com que ele aumente e assim gera uma progênie de violência e injustiça que tem uma vitalidade terrível. Isso só pode ser controlado pelo cultivo em nós mesmos e pela tentativa de gerar nos jovens sentimentos de simpatia ao invés de hostilidade, de bem-querer ao invés de malevolência e de cooperação ao invés de competição. VERACIDADE E COMPAIXÃO Se me perguntam "Por que você acredita nisso?" eu não deveria recorrer a qualquer autoridade sobrenatural, mas apenas para o desejo geral de felicidade. Um mundo cheio de ódio é um mundo cheio de tristeza. Cada parte, onde há ódio mútuo, espera que apenas a outra parte sofra, mas este é raramente o caso. E até mesmo os opressores de maior sucesso estão cheios de medo - os donos de escravos, por exemplo, são obcecados pelo temor de uma insurreição servil. Do ponto de vista da sabedoria mundana, o sentimento hostil e a limitação da simpatia são uma tolice. Seus frutos são a guerra, morte, opressão e tortura, não só para suas vítimas originais, mas, ao longo prazo, também para os seus autores ou seus descendentes. Ao passo que se todos nós pudéssemos aprender a amar ao próximo o mundo iria rapidamente tornar-se um paraíso para todos nós. Veracidade, que eu considero em segundo lugar apenas com relação à compaixão, consiste em termos gerais em acreditar de acordo com evidências e não porque uma crença é confortável ou uma fonte de prazer. Na ausência de veracidade, a compaixão será frequentemente derrotada por auto-engano. Costumava ser comum entre os ricos alegar que é agradável ser pobre ou que a pobreza é o resultado da indolência. Algumas pessoas saudáveis sustentam que todas as doenças são auto-indulgência. Ouvi caçadores argumentarem que a raposa gosta de ser caçada. É muito fácil para aqueles que têm poder excepcional convencerem-se de que o sistema no qual eles levam vantagem dá mais felicidade às vítimas do que essas

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  • A F DE UM RACIONALISTAQuando tento descobrir quais so as fontes originais das minhas opinies, tanto prticas e tericas, acho que a maioria delas advm, em ltima anlise, da admirao por duas qualidades - compaixo e veracidade. Para comear com o sentimento de compaixo: a maioria dos males sociais e polticos do mundo surgem devido a ausncia de simpatia e presena de dio, inveja ou medo. Sentimentos hostis deste tipo so comuns entre as naes; muitas vezes eles tm existido entre diferentes classes ou diferentes credos dentro de uma nao; em muitas profisses a inveja um obstculo para o reconhecimento de mrito superior; dio aos judeus, opresso dos negros, desprezo por todos os que no so brancos, trouxeram e esto trazendo grande sofrimento para os que se professam opressores, bem como para aqueles a quem eles tm procurado oprimir. Todo tipo de ao ou sentimento hostil provoca uma reao que faz com que ele aumente e assim gera uma prognie de violncia e injustia que tem uma vitalidade terrvel. Isso s pode ser controlado pelo cultivo em ns mesmos e pela tentativa de gerar nos jovens sentimentos de simpatia ao invs de hostilidade, de bem-querer ao invs de malevolncia e de cooperao ao invs de competio.

    VERACIDADE E COMPAIXO

    Se me perguntam "Por que voc acredita nisso?" eu no deveria recorrer a qualquer autoridade sobrenatural, mas apenas para o desejo geral de felicidade. Um mundo cheio de dio um mundo cheio de tristeza. Cada parte, onde h dio mtuo, espera que apenas a outra parte sofra, mas este raramente o caso. E at mesmo os opressores de maior sucesso esto cheios de medo - os donos de escravos, por exemplo, so obcecados pelo temor de uma insurreio servil. Do ponto de vista da sabedoria mundana, o sentimento hostil e a limitao da simpatia so uma tolice. Seus frutos so a guerra, morte, opresso e tortura, no s para suas vtimas originais, mas, ao longo prazo, tambm para os seus autores ou seus descendentes. Ao passo que se todos ns pudssemos aprender a amar ao prximo o mundo iria rapidamente tornar-se um paraso para todos ns.Veracidade, que eu considero em segundo lugar apenas com relao compaixo, consiste em termos gerais em acreditar de acordo com evidncias e no porque uma crena confortvel ou uma fonte de prazer. Na ausncia de veracidade, a compaixo ser frequentemente derrotada por auto-engano. Costumava ser comum entre os ricos alegar que agradvel ser pobre ou que a pobreza o resultado da indolncia. Algumas pessoas saudveis sustentam que todas as doenas so auto-indulgncia. Ouvi caadores argumentarem que a raposa gosta de ser caada. muito fcil para aqueles que tm poder excepcional convencerem-se de que o sistema no qual eles levam vantagem d mais felicidade s vtimas do que essas

  • desfrutariam sob um sistema mais justo. E, mesmo quando nenhum vis bvio est envolvido, somente por meio de veracidade que podemos adquirir os conhecimentos cientficos necessrios para obtermos nossas aspiraes comuns. Considere quantos preconceitos muito arraigados tiveram de ser abandonados no desenvolvimento da medicina moderna e higiene. Tomando um tipo diferente de ilustrao: quantas guerras teriam sido evitadas se o lado que acabou por ser derrotado tivesse formado uma estimativa justa de suas perspectivas ao invs de ter se baseado em presuno e realizao de desejo!

    ACREDITAR SEM PROVA

    Veracidade, ou o amor verdade, definida por Locke como "no aceitar uma proposio com mais segurana do que garantem as provas com as quais ela construda." Esta definio admirvel em relao a todas as questes nas quais razovel que se demandem provas. Mas como provas necessitam de premissas, impossvel provar qualquer coisa a no ser que algumas coisas sejam aceitas sem prova. Devemos, portanto, nos perguntar: Que tipo de coisa razovel acreditar sem provas? Eu deveria responder: Os fatos da experincia dos sentidos e os princpios da matemtica e lgica -- incluindo a lgica indutiva empregada na cincia. Estas so coisas que dificilmente podemos duvidar e nas quais existe uma grande medida de acordo entre a humanidade. Mas em questes em que os homens discordam, ou em que nossas prprias convices titubeiam, devemos encontrar provas, ou, se as provas no podem ser encontradas, devemos nos contentar em confessar ignorncia. H alguns que defendem que a veracidade deve ter limitaes. Algumas crenas, dizem eles, so reconfortantes e moralmente benficas, embora no se possa dizer que h bases cientficas vlidas para supor que elas sejam verdadeiras; essas crenas, dizem, no devem ser criteriosamente analisadas. Eu no posso admitir qualquer doutrina desse tipo. Eu no posso acreditar que a humanidade possa se beneficiar da relutncia em examinar esta ou aquela questo. Nenhuma moralidade slida pode necessitar de basear-se na evaso, e uma felicidade derivada de crenas no justificadas por qualquer motivo seno o de serem agradveis no um tipo de felicidade que pode ser admirada sem reservas.

    CRENAS RELIGIOSAS E O UNIVERSO

    Estas consideraes aplicam-se especialmente s crenas religiosas. A maioria de ns foi educada para acreditar que o universo deve sua existncia a um Criador todo-sbio e todo-poderoso, cujos propsitos so benficos mesmo no que para ns pode parecer mal. Eu no acho que certo nos recusarmos a aplicar essa crena os tipos de testes que devemos aplicar uma crena que toca nossas emoes menos ntima e profundamente.

  • Existe alguma evidncia da existncia de tal Ser? Sem dvida, a crena nele reconfortante e s vezes tem alguns bons efeitos morais no carter e comportamento. Mas isso no evidncia de que a crena verdadeira. De minha parte, acho que essa crena perdeu qualquer racionalidade que pudesse ter possudo quando foi descoberto que a Terra no o centro do universo. Enquanto pensava-se que o Sol e os planetas e as estrelas giravam em torno da Terra, era natural supor que o universo tinha um propsito em conexo com a terra, e, j que o homem era o que o homem mais admirava na terra, este propsito estava supostamente incorporado no homem. Mas a astronomia e a geologia mudaram tudo isso. A Terra um planeta menor de uma estrela menor que uma das muitas milhes de estrelas em uma galxia que uma das muitas milhes de galxias. Mesmo durante a vida de nosso prprio planeta o homem apenas um breve interldio. Vida no-humana existia h incontveis eras antes do homem ter evoludo. O homem, mesmo se ele no cometer suicdio cientfico, perecer finalmente, atravs do colapso da gua ou ar ou calor. difcil acreditar que a Onipotncia necessitasse de um cenrio to vasto para um resultado to pequeno e transitrio.Alm da pequenez e brevidade da espcie humana, no consigo pensar que ela seja um clmax digno de tal preldio enorme. H uma presuno bastante repulsiva e auto-complacncia no argumento de que o homem to esplndido a ponto de ser uma evidncia da infinita sabedoria e infinito poder de seu Criador. Aqueles que usam este tipo de raciocnio sempre tentam concentrar a nossa ateno nos poucos santos e sbios; eles tentam fazer-nos esquecer os Neros e Attilas e Hitlers e os milhes de covardes malvados aos quais homens como esses deviam o seu poder. E at mesmo o que h de melhor em ns capaz de levar ao desastre. Religies que ensinam o amor fraterno tm sido usadas como uma desculpa para a perseguio, e nossa mais profunda descoberta cientfica transformada em um meio de destruio em massa. Posso imaginar um demnio sarcstico produzindo-nos para o seu divertimento, mas no posso atribuir a um Ser que sbio, beneficente e onipotente o peso terrvel da crueldade, sofrimento e degradao irnica do que h de melhor que tem marcado a histria do homem cada vez mais na medida em que ele torna-se mais senhor de seu destino.

    UMA CONJECTURA PLAUSVEL

    H uma concepo diferente e mais vaga de Propsito csmico no como onipotente mas como agindo lentamente sobre um material recalcitrante. Esta uma concepo mais plausvel de um Deus que, embora onipotente e amoroso, produziu deliberadamente seres to sujeitos ao sofrimento e crueldade como a maioria da humanidade. No tenho a pretenso de saber que no h tal Propsito; meu conhecimento do universo muito limitado. Mas eu digo, e digo com toda a confiana, que o conhecimento dos outros

  • seres humanos tambm limitado, e que ningum pode apresentar qualquer evidncia adequada de que os processos csmicos tm algum propsito. Nossas evidncias bastante inadequadas, at onde vo, tendem na direo oposta. Parecem mostrar que a energia est sendo mais e mais uniformemente distribuda, enquanto que tudo que possvel atribuir valor depende de distribuio desigual. No final, portanto, devemos esperar uma uniformidade montona, em que o universo continuaria para todo o sempre sem a ocorrncia de qualquer coisa interessante. Eu no digo que isso vai acontecer, digo apenas que, com base no nosso conhecimento atual, essa a conjectura mais plausvel.Imortalidade, se pudssemos acreditar nela, nos permitiria livrar-nos deste pessimismo quanto ao mundo fsico. Diramos que, embora nossas almas, durante sua permanncia aqui na terra, so escravas da matria e da fsica, elas passam no momento da morte para um mundo eterno alm do imprio de decadncia que a cincia parece revelar sobre o mundo tangvel. Mas impossvel acreditar nisso, a menos que pensemos que um ser humano consiste de duas partes -- alma e corpo -- que so separveis e podem continuar de forma independente uma da outra.Infelizmente todas as evidncias vo contra isso. A mente cresce como o corpo; como o corpo, ela herda as caractersticas de ambos os pais; afetada por doenas do corpo e por drogas; est intimamente ligada com o crebro. No h nenhuma razo cientfica para supor que aps a morte a mente ou alma adquire uma independncia do crebro que nunca teve na vida. No tenho a pretenso de afirmar que este argumento conclusivo, mas tudo o que temos para basear-nos, com exceo das evidncias pobres fornecidas pela pesquisa parapsicolgica.

    FELICIDADE ATRAVS DA COMPAIXO

    Muitas pessoas temem que, sem as crenas tericas que me vejo obrigado a rejeitar, as crenas ticas que aceito no poderiam sobreviver. Elas apontam para o crescimento de sistemas cruis que se ope ao cristianismo. Mas esses sistemas, que cresceram em um ambiente cristo, nunca poderiam ter crescido se a compaixo ou a veracidade tivessem sido praticadas; eles so mitos do mal, inspirados pelo dio e sem suporte cientfico. Homens tendem a ter as crenas que atendem s suas paixes. Homens cruis acreditam em um Deus cruel e usam sua crena para justificar sua crueldade. Somente homens bondosos acreditam em um Deus bondoso, e estes seriam bondosos de qualquer maneira. As razes para a tica que eu, em comum com muitos cujas crenas so mais ortodoxas, gostaria de ver prevalecer so as razes derivadas do curso dos acontecimentos neste mundo. Vimos um timo sistema de falsidade cruel, o sistema nazista, levar uma nao para o desastre a um custo imenso para seus oponentes. No por sistemas como esse que a felicidade deve ser alcanada; mesmo sem a ajuda de revelao no difcil ver que o bem-estar humano requer uma

  • tica menos feroz. Mais e mais pessoas esto tornando-se incapazes de aceitar as crenas tradicionais. Se eles pensarem que, alm destas crenas, no h razo para comportamento bondoso os resultados podero ser desnecessariamente infelizes. por isso que importante mostrar que razes sobrenaturais no so necessrias para tornar bondosos os homens e para provar que somente atravs da compaixo a raa humana pode alcanar a felicidade.

    A F de um Racionalista foi transmitida originalmente pelo rdio na BBC Home Service em 20 de Maio de 1947, em uma srie intitulada O Que Acredito (ocasio em que pontos de vista cticos foram transmitidos no rdio pela primeira vez aps vinte anos de campanha do movimento de livre pensamento). Foi publicada pela primeira vez no Listener em 29 de Maio de 1947, e foi re-impressa no Literary Guide em Julho de 1947. Foi primeiramente publicada como um panfleto por C. A. Watts para a Associao de Imprensa Racionalista em Agosto de 1947, e re-impressa vrias vezes. Foi includa na coleo das transmisses, um livreto intitulado O Que acredito, editado por Geroge Woodcock e publicado pela Porcupaine Press em 1948. Apareceu como Haldeman-Julius Big Blue Book nos Estados Unidos, e em outras edies e tradues estrangeiras. Foi includa no livro Atesmo, uma coleo de ensaios de Russell, editada por Madalyn Murray OHair e publicada em 1972 pela Arno Press nos Estados Unidos.

    Traduzido para o portugus por Andr Luzardo.