Livro História da Filosofia Ocidental - Bertrand Russell

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HISTRIA DA FILOSOFIA OCIDENTAL

HISTRIA DA FILOSOFIA OCIDENTAL

BERTRAND RUSSELL

Histria DA FILOSOFIA OCIDENTAL

e sua conexo poltica e social desde os tempos primitivos at hoje

BERTRAND RUSSELL

LIVROS HORIZONTE

PORTUGAL BRASIL

Ttulo original

HISTORY OF WESTERN PHILOSOPHY

arid its ConnecUon with Political and Social Circunistances from the Earliest Times to the Presente Day

Traduo do PROF. DOUTOR VIEIRA DE ALMEIDA

Reservados os direitos de publicao para Portugal pela

EDITORIAL GLEBA, L.DA / LIVROS HORIZONTE, L.DA

Venda interdita no Brasil

PREFCIO

Algumas palavras de explicao e apologia podero evitar a este livro maior censura do que a que sem dvida merece.

Deve-se a apologia aos especialistas das vrias escolas e dos filsofos individualmente considerados. Exceptuando talvez Leibniz, cada filsofo que trato mais conhecido de outros do que de mim. Mas se livros campo vasto devem escrever-se, inevitvel, pois no somos imortais que os autores gastem menos tempo em cada parte do que um homem, concentrado em um s autor ou um perodo breve. Concluiro alguns com erudita e severa austeridade, que tais livros no devem escrever-se ou ento devem ser constitudos por monografias de vrios autores. No entanto, alguma coisa se perde nessa colaborao. Se h qualquer unidade no movimento da histria., se h alguma relao ntima entre o antes e o depois, necessrio que um s esprito sintetize os perodos anterior e ulterior. O estudioso de Rousseau pode ter dificuldade em apreciar a sua conexo com a Esparta de Plato e Plutarco; o historiador de Esparta pode no estar profeticamente cnscio de Hobbes, Fichte e Lenine. Mostrar relaes desse gnero o fim deste livro, fim que s por uma larga viso de conjunto pode atingir-se.

H muitas histrias da filosofia, mas nenhuma do meu conhecimento com o objectivo de esta. Os filsofos so efeito e causa. Muitos efeitos das circunstncias e da poltica e instituies do seu tempo; causa (se tiverem essa fortuna) de crenas modeladoras da poltica e instituies de pocas ulteriores. Na mor parte das histrias da filosofia, cada filsofo aparece no vcuo. As suas opinies so irrelacionadas, excepto na melhor hiptese para os filsofos primitivos. Eu tentei, ao contrrio mostrar cada filsofo, tanto quanto a verdade permite, como result

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do seu milieu, como homem em que se cristalizam e concentram vagos e difusos pensamentos e sentimentos da comunidade a que pertence. (1)

Isto exigiu alguns captulos de pura histria social. Ningum compreende esticos e epicuristas sem algum conhecimento da idade helenstica, ou os escolsticos sem o do desenvolvimento da Igreja do sculo v ao XIII. Por isso tratei brevemente os esboos puramente histricos de maior influncia no meu parecer sobre o pensamento filosfico, e mais demoradamente onde a histria provavelmente menos familiar a alguns leitores - por exemplo, a da Alta Idade Mdia. Mas nesses captulos histricos exclu quanto me pareceu de pequena ou nula influncia na filosofia contempornea ou subsequente (2).

Em livros como este o problema da seleco difcil. Sem pormenor o livro vazio e sem interesse; com pormenor, pode tornar-se de lentido intolervel. Optei por um compromisso, tratando s de filsofos que julguei de importncia capital e mencionando em relao com eles, pormenores que se no tm importncia fundamental tm valor como exemplo e vivificao.

(1)Este ponto de vista de Russell parece-nos merecer uma reflexo particularmente atenta. Se inegvel que as histrias da filosofia, na maior parte, nos apresentam as opinies de cada filsofo isoladas do contexto histrico-social em que se Inscrevem, no sero porventura mais complexos do que o sugere Russell os laos que os ligam ao seu tempo? A esse propsito afigura-se-nos oportuno citar um texto de Gramsci em que o pensador italiano, com a sua reconhecida lucidez, foca o problema com maior preciso: Do ponto de vista que nos preocupa, o estudo da histria e da lgica das diferentes filosofias dos filsofos no suficiente. Quanto mais no seja do que como orientao metdica, preciso chamar a ateno para as outras partes da histria da filosofia, quer dizer para as concepes do mundo das grandes massas, para as dos grupos dirigentes mais restritos (os Intelectuais) e finalmente para os liames que unem estes diferentes conjuntos culturais com a filosofia dos filsofos. A filosofia de uma poca no a filosofia deste ou daquele filsofo, deste ou daquele grupo de intelectuais, deste ou daquele grande agrupamento das massas populares: uma combinao de todos estes elementos que tem o seu apogeu numa direco determinada, em que este apogeu se tornou em norma de aco colectiva, quer dizer histria concreta e completa (integral. Traduzimos este fragmento do volume Oeuvres Choisies, traduction et notes par Gbert Moget et Armand Monjo, prface de Georges Cogniot, Paris [1959], p. 43. (E. P.) () Cremos que Bertrand Russell nem sempre solucionou acuradamente este problema. Assim, por exemplo, afigura-se-nos que o Autor no atribuiu a devida Importncia aos materialistas franceses do sculo XVIII, a despeito de constiturem uma das fontes e partes constituintes de uma das mais vigorosas correntes da filosofia contempornea, o materialismo dialctico. (R. F.)

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A filosofia desde os primeiros tempos foi no apenas mera questo de escolas ou disputa entre um pugilo de homens cultos, mas parte integrante da vida da comunidade, e como tal procurei considerd-1a. Se h mrito neste livro, deriva desse ponto de vista.

O livro deve a existncia ao Dr. Albert C. Barnes, por ter sido originariamente planeado e em parte apresentado em conferncias na Barnes Foundation, de Pensilvnia.

Como na maior parte da minha obra desde 1932 auxiliou-me na investigao e em muitas outras formas minha mulher, Patrcia Russell.

INTRODUO

As concepes da vida e do mundo a que chamamos filosficas so

produto de dois factores: um, herana de concepes religiosas e ticas; outro, aquela investigao que pode ter nome cientifica, usando o termo no sentido mais lato. Individualmente os filsofos largamente divergiram na proporo destes dois factores nos seus sistemas, mas a presena de ambos em qualquer grau o que caracteriza a filosofia.

Filosofia termo com vrios sentidos, mais latos ou mais estritos. Us-lo-ei no sentido lato que vou explicar.

Filosofia como entenderei a palavra algo intermdio entre teologia e cincia. Como a teologia, consiste em especulaes sobre matrias inacessveis at agora ao conhecimento definido, mas como a cincia, apela para a razo de preferncia autoridade, quer da tradio quer da revelao. Todo conhecimento definido - assim o sustento - pertence cincia; todo dogma, como o que excede o conhecimento definido, pertence teologia. Mas entre teologia e cincia h uma terra-sem-dono, exposta ao ataque de ambos os lados; a filosofia. As questes de maior interesse para espritos especulativos raro tm resposta cientifica, e as respostas confiantes de telogos j no parecem to convincentes como nos sculos anteriores. Estar o mundo dividido em esprito e matria, e sendo assim, que esprito e que matria? Est a alma sujeita matria, ou tem energias independentes? Tem o Universo unidade ou fim? Evolve para algum objectivo? H realmente leis da natureza, ou cremos nelas devido ao nosso inato amor da ordem? o homem o que parece ao astrnomo um pequeno conjunto de carvo impuro e gua, a arrastar-se impotente sobre um pequeno planeta sem importncia? Ou o que pensava Hamlet? Ser as duas coisas? H um tipo nobre e um

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tipo baixo de vida, ou so todos meramente fteis? Se um deles nobre, em que consiste e como realiz-lo? Deve o bem ser eterno para poder ser apreciado, ou merece procurar-se ainda quando o Universo caminhe inexoravelmente para a morte? Existe de facto a sabedoria ou no passa de requinte derradeiro de loucura? No h resposta em laboratrio para tais questes. Pretenderam teologias dar respostas, todas demasiado definidas, o que as torna suspeitas a espritos modernos. Estudar essas questes, se no responder-lhes, a tarefa da filosofia.

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Ma ento, dir-se-, por que perder tempo com problemas insolveis? Pode responder-se como historiador ou como homem em face do terror da solido csmica.

A resposta do historiador, tanto quanto posso d-la, ver-se- nesta obra, Desde que os homens foram capazes de especular livremente, as

suas aces em inmeros aspectos importantes dependeram das suas teorias sobre o mundo e a vida humana, assim como sobre o bem e o mal. Assim hoje como foi antes. Para compreender uma idade ou uma nao temos de compreender-lhe a filosofia, e para isso temos de ser em qualquer grau filsofos. H aqui uma causalidade recproca. As circunstncias da vida do homem concorrem muito para determinar a sua filosofia, e reciprocamente, a sua filosofia determina em muito as suas circunstncias. Esta interaco multissecular o tpico das pginas seguintes.

H no entanto uma resposta mais pessoal. A cincia diz-nos o que sabemos, e pouco; e se esquecemos quanto ignoramos ficaremos insensveis a muitos factos da maior importncia. Por outro lado, a teologia induz a crer dogmaticamente que temos conhecimento onde realmente s temos ignorncia, e assim produz uma espcie de impertinente arrogncia em relao ao Universo. A incerteza perante esperanas vivas e receios dolorosa mas tem de suportar-se se quisermos viver sem o conforto de contos de fadas. Nem bom esquecer as questes postas pela filosofia, nem persuadirmo-nos de que 1 ** he achmos resposta indubitvel. Ensinar a viver sem certeza e sem ser paralisado pela hesitao talvez o mais importante dom da filosofia do nosso tempo a quem a estuda.

Filosofia, como distinta da teologia, comeou na Grcia, no sculo vi a. C.. Depois foi de novo submergida pela teologia com a vinda do Cristianismo e a queda de Roma. O segundo grande perodo, do sculo XI ao XIV foi dominado pela Igreja Catlica, excepto alguns grandes rebeldes, como o imperador Frederico 11 (1195-1250). Este perodo terminou pelas confuses que culminaram na Reforma. O terceiro perodo, do sculo XVII at hoje, dominado, mais do que qualquer dos anteriores,

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pela cincia; as crenas religiosas tradicionais continuam a ser importantes mas necessitadas de justificao e modificadas sempre que a cincia o tornava imperativo, Poucos filsofos de este perodo so ortodoxos do ponto de vista catlico e o estado secular tem maior importncia do que a Igreja nas suas especulaes.

Coeso social e liberdade individual como religio e cincia esto em conflito ou em compromisso difcil durante todo o perodo. Na Grcia a coeso social assentava na lealdade cidade-estado; Aristteles mesmo, embora no seu tempo Alexandre j fosse obsoletizando a cidade-estado, s podia apreciar essa espcie de poltica. O grau de limitao da liberdade individual pelo dever para com a cidade variava muito. Em Esparta a liberdade era to escassa como na Alemanha moderna ou na Rssia; em Atenas, apesar de perseguies ocasionais, os cidados gozaram no melhor perodo de extraordinria liberdade quanto a restries impostas pelo Estado. O pensamento grego desde Aristteles dominado pela devoo religiosa e patritica cidade; os seus sistemas ticos adaptam-se vida dos cidados e tm largo elemento poltico. Quando os gregos foram submetidos primeiro pelos macednios, depois pelos romanos, as concepes prprias dos dias de independncia ficaram inaplicveis. De aqui, em primeiro lugar, perda de vigor pela ruptura da tradio, e em segundo lugar, uma tica mais individual e menos social. Os esticos viram a vida virtuosa como relao da alma com Deus mais do que relao dos cidados com o Estado. Assim prepararam o caminho ao Cristianismo, originaramente no poltico como o estoicismo, pois durante os trs primeiros sculos os seus aderentes estiveram livres de influncia do governo. A coeso social nos seis sculos e meio, de Alexandre a Constantino, foi mantida no pela filosofia ou pela fidelidade antiga mas pela fora; primeiro, das armas, depois, da administrao civil. Exrcito romano, estradas romanas, direito romano, e oficiais romanos, criaram e depois mantiveram um poderoso estado centralizado. Nada atribuvel filosofia romana, porque no a havia.

Durante esse longo perodo as ideias gregas do tempo de liberdade sofreram gradual processo de transformao; algumas, as que podemos considerar especificamente religiosas, ganharam em importncia relativa; outras, mais racionastes, foram rejeitadas pelo esprito da poca. Desse modo os ltimos pagos adaptaram a tradio grega at estar adequada incorporao na doutrina crist.

O Cristianismo popularizou uma opinio importante, j implcita na doutrina estica mas alheia ao esprito geral da antiguidade - isto , a de que o dever para com Deus mais imperativo do que o dever para com

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o Estado (1). Esta opinio de que - importa obedecer a Deus mais do que ao homem - como diziam Secretas e os Apstolos, sobreviveu converso de Constantino, porque os primeiros imperadores cristos eram arianos ou inclinados ao arianismo. Quando se fizeram ortodoxos caiu em desuso. No imprio bizantino permaneceu latente, como no subsequente imprio russo, que derivou de Constantinopla e seu Cristianismo (2). Mas no Ocidente, onde os imperadores catlicos foram quase imediatamente substitudos (excepto em parte da Glea) por conquistadores brbaros herticos, a superioridade da obedincia religiosa sobre a poltica sobreviveu e em certa extenso ainda sobrevive.

A invaso brbara ps termo durante seis sculos civilizao oeste europeia. Demorou na Irlanda at os dinamarqueses a destrurem no sculo IX; antes de extinguir-se produziu ali uma figura notvel: Scoto Erigena. No imprio oriental a civilizao grega manteve-se, dissecada como em um museu, at a queda de Constantinopla, em 1453, mas nada de importncia para o mundo veio de Constantinopla excepto uma tradio artstica e o cdigo justinianeu do direito romano.

No perodo obscuro, do fim do sculo v ao meado do XI o mundo romano ocidental sofre algumas mudanas muito interessantes. O conflito entre o dever com Deus e o dever para com o Estado, introduzido pelo Cristianismo, toma a forma de conflito entre a Igreja e o rei. A jurisdio eclesistica do papa estende-se Itlia, Frana, Espanha, Gr-Bretanha e Irlanda, Alemanha, Escandinvia e Polnia. A principio, exceptuada a Itlia e o Sul da Frana, o seu mando sobre bispos e abades era pequeno, mas desde Gregrio VII (sculo XI adiantado) tornou-se real e efectivo. Desde ento o clero com toda a Europa Ocidental formou uma s organizao sob a direco de Roma, procurando o poder inteligente e incansavelmente, e em geral vitorioso at depois de 1300 nos conflitos com governantes seculares. O conflito entre a Igreja e Estado no foi entre clero e laicato; foi tambm uma renovao do conflito entre o mundo mediterrneo e os brbaros do Norte. A unidade da Igreja era eco da do imprio romano, a sua liturgia era latina, e os seus homens mais notveis eram pela maior parte italianos, espanhis ou franceses do Sul. A sua educao, quando a educao reapareceu, era clssica; a sua concepo de direito e governo teria sido mais compreensvel a

(1)Esta opinio era antiga. J se encontra, por exemplo na Antgona, de Sfocles. Mas antes dos esticos poucos a compartilhavam. (1) Por Isso um russo moderno no pensa dever obedecer ao materialismo dialctico mais do que a Staline.

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Marco Aurlio do que aos monarcas contemporneos. A Igreja representava ao mesmo tempo a continuidade do passado e o mais civilizado do presente.

O poder secular, pelo contrrio, estava na mo de reis e bares de origem teutnica, ansiosos por conservar quanto possvel as constituies por eles trazidas das florestas da Germnia. O poder absoluto era alheio a essas instituies e assim era o que aparecia a esses vigorosos conquistadores como estpida e dessorada legalidade. O rei tinha de repartir o poder com a aristocracia feudal, mas todos esperavam ser contemplados com fontes ocasionais de ddivas na forma de guerra, morticnio pilhagem ou violao. Os monarcas podiam arrepender-se, porque eram sinceramente piedosos, e alm disso, o arrependimento era j uma forma de afecto. Mas a Igreja nunca pde conseguir deles -a regularidade de proceder tranquilo que um patro moderno pede e em geral obtm dos seus empregados. De que servia conquistar o mundo se no se pudea beber, matar e amar como o esprito pedia? E por que haviam eles con as suas armas de cavaleiros, obedecer s ordens de homens de. livros votados ao celibato e desarmados? Apesar da desaprovao eclesistica eles mantiveram o duelo, o julgamento pelas axmas e desenvolveram oi torneios e o amor corteso. Ocasionalmente, em impulso de fria ab assassinariam eclesisticos eminentes.

Toda a fora armada estava dolado dos reis e no entanto a Igreji venceu. A Igreja ganhou, em parte por ter quase o monoplio da educao, em parte porque os reis estavam em constante guerra entre si mas principalmente por governantes e povo crerem piamente que ele tinha o poder das chaves. A Igreja podia decidir se um rei passaria 1 eternidade no Cu ou no Inferno; podia -absolver sbditos do dever di lealdade e assim estimular a rebelio, Alm. disso, a Igreja representava a ordem em vez da anarquia e portanto era o apoio da crescente class, mercantil. Em especial na Itlia esta ltima considerao foi decisiva

O esforo teutnico para preservar pelo menos uma independncii parcial perante a Igreja exprimiu-se no s na poltica, mas na arte romance, cavalaria e guerra. Pouco no mundo intelectual porque a educao se limitava quase de todo ao clero. A filosofia explcita da Idad, Mdia no espelho fiel do tempo, mas apenas do pensamento de uin partido. No entanto entre os eclesisticos -especialmente entre os franciscanos -alguns por vrias razes estavam em desacordo com o papa Demais, na Itlia a cultura dos leigos precedeu de sculos a do Nort, dos Alpes. Frederico II com a pretenso de fundar uma religio nov. representa o extremo da cultura antipapal. Toms de Aquino, do rein@

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de Npoles onde reinava Frederico, II, at hoje o expositor clssico da filosofia papal. Dante, uns cinquenta anos depois, fez uma sntese e deu a nica exposio ponderada do mundo medieval completo.

Depois de Dante, por motivos tanto intelectuais como polticos a sntese filosfica medieval decaiu. Tivera carcter de elegncia e perfeio miniatural. Tudo o que o sistema tinha em conta achava lugar preciso relativamente aos outros contedos do mesmo cosmos finito. Mas o Grande Cisma, o Movimento Conciliar e o Papado, renascentista levaram Reforma, que destruiu a unidade da Cristandade e a teoria escolstica do governo centrado no papa. Durante o Renascimento, novo conhecimento da antiguidade e da superfcie da Terra, cansavam os homens dos sistemas, tornados prises mentais. A astronomia de Coprnico dava Terra e ao Homem posio mais modesta do que a teoria de Ptolomeu. O prazer de factos novos substituiu, entre os homens inteligentes, o de raciocinar, analisar e sistematizar. Embora em arte o Renascimento permanea ordeiro, em pensamento prefere uma desordem ampla e frutfera. Neste aspecto, Montaigne o representante mais tpico da poca.

Na teoria poltica, e em tudo excepto em arte, houve colapso da ordem. A Idade Mdia, turbulenta na prtica, tinha no campo do pensamento a paixo da legalidade e uma teoria muito precisa do poder poltico. Todo poder vem de Deus; Ele delega-o no papa nas coisas sagradas, no imperador em matria secular; mas um e outro perderam a importncia no sculo XV. O papa ficou sendo apenas um dos prncipes italianos imiscudo no incrivelmente complicado jogo sem escrpulo do poder poltico italiano. As novas monarquias nacionais de Frana, Espanha e Inglaterra tm nos seus territrios um poder onde nem o papa nem o imperador tm interferncia. O estado nacional, devido em grande parte plvora, adquiriu no pensar e no sentir dos homens uma influncia nunca at ento alcanada e destruiu progressivamente os restos da crena romana na unidade da civilizao.

Esta desordem poltica achou expresso em O Prncipe, de Machiavelli. Na falta de princpio condutor a poltica tornou-se luta aberta pelo poder. O Prncipe d conselhos argutos sobre o modo de jogar com xito. Repetia-se na Itlia o que sucedera na grande cidade grega: as restries morais desapareceram por serem consideradas unidas superstio. A libertao de cadeias tornou os homens enrgicos e criadores, Produzindo rara florescncia de gnios; mas a anarquia e a perfdia, inevitvel fruto da decadncia moral, tornaram os italianos colectiva-

INTRODUAO 11

mente impotentes, e como os gregos caram sob o domnio de na5eE menos civilizadas mas no assim destitudas de coeso social.

O resultado foi no entanto menos desastroso do que na Grcia, porque as naes de poderio recente, com excepo da Espanha, mostraram-se to capazes de grandes realizaes como os italianos tinham sido.

Desde o sculo XVI a histria do pensamento europeu dominada pela Reforma. A Reforma foi um complexo movimento polidrico e deveu o xito a vrias causas. Em primeiro lugar era a revolta das naes d( Norte contra o renovado domnio de Roma. A fora da religio subjugara o Norte mas a religio na Itlia decara. O papado permanecia como instituio e arrancava um tributo enorme da Alemanha e de Inglaterra, mas esses pases, ainda piedosos, no podiam reverenciar Brgias e Mdicis, que professavam salvar almas do purgatrio por dinheiro que dissipavam em luxo e imoralidade. Motivos nacionais, econmicos e morais confluam na revolta contra Roma. Alm de isso os prncipes no tardaram a compreender que se a Igreja nos seus territrios se tornasse meramente nacional poderiam domin-la e ficar mais poderosos do que tinham sido ao repartir o domnio com o papa. Por todos estes motivos as inovaes teolgicas de Lutero foram bem acolhidas por governantes e povos em grande parte do Norte da Europa.

A Igreja Catlica derivou de trs fontes. A sua histria sagrada f judaica, a sua teologia, grega, o seu governo e direito cannico, pelo menos indirectamente, romanos. A Reforma rejeitou os elementos romanos, afeioou os elementos gregos e reforou muito os elementos judaicos Cooperou de esta forma com as foras nacionalistas destruidoras da coeso social efectuada primeiro pelo imprio romano, depois pela Igreja Romana. Na doutrina catlica a revelao divina no terminou com as

Escrituras, continuou atravs da Igreja a que por isso h o dever d submeter as opinies individuais.. Os protestantes, pelo contrrio, rejeitam a Igreja como veculo da revelao. A verdade s existe na Bblia que cada homem pode interpretar por si. Se os homens divergirem n interpretao, no h autoridade divinamente autorizada para decidir a disputa. Na prtica, o Estado reclamou o direito antes pertencente Igreja, mas foi uma usurpao. Na teoria protestante no h intermedirio terrestre entre a alma e Deus.

O efeito desta mudana foi importante. A verdade deixou de depender da autoridade e passou a depender de meditao interior. Cresce rpida a tendncia para o anarquismo em poltica, e em religio par o misticismo que sempre lutara com dificuldades na estrutura da orto-

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doxia catlica. Tornou-se no um protestantismo mas uma multido de seitas; no uma filosofia antiescolstica mas tantas quantos os filsofos; no, no sculo XII, um imperador oposto ao papa mas um grande nmero de reis herejes. O resultado, no pensamento como na literatura, foi um subjectivismo continuamente aprofundado, actuante primeiro como saudvel libertao de escravatura espiritual mas encaminhado depois para um isolamento pessoal inimigo de sanidade social.

A filosofia moderna comea com Descartes, cuja certeza fundamental a da existncia prpria e dos seus pensamentos, de onde se infere o mundo externo. Era apenas o primeiro passo para um desenvolvimento atravs de Berkeley e Kant at Fichte, para quem tudo emanao do ego. Isto era uma insanidade, e a partir de esse extremo a filosofia tentou desde ento fugir para o mundo do senso comum ordinrio.

O anarquismo vai de mo dada com o subjectivismo em filosofia. J no tempo de Lutero, discpulos malvindos e irreconhecidos tinham desenvolvido a doutrina do Anabaptismo -algum tempo florescente na cidade de Mnster. Os anabaptistas repudiavam toda a lei, pois o homem bom deve ser guiado em cada momento pelo Esprito Santo, que no pode sujeitar-se a frmulas. De esta premissa chegaram ao comunismo e promiscuidade sexual; foram por isso exterminados depois de resistncia herica. Mas a doutrina, em forma atenuada espalhou-se na Holanda, Inglaterra e Amrica; histricamente a origem do quakerismo. Uma forma mais feroz de anarquismo, no conexa com a religio, apareceu no sculo XIX. Na Rssia, na Espanha, em menor grau na Itlia, teve xito considervel e ainda hoje assusta as autoridades americanas de imigrao. Esta forma moderna, embora anti-religiosa, tem muito do esprito do protestantismo primitivo; difere principalmente em dirigir contra os governos seculares -a hostilidade de Lutero contra os papas.

A subjectividade, uma vez liberta, no pode limitar-se sem seguir seu caminho. Em moral, a nfase protestante da conscincia individual era essencialmente anrquica. Hbito e costume eram to fortes que, exceptuando mpetos ocasionais como o de Mnster, os discpulos do individualismo tico procediam como convencionalmente virtuosos, mas o equilbrio era precrio. O culto setecentista da sensibilidade comeou a declinar; admirava-se um acto no pelas boas consequncias ou pelo acordo com um cdigo moral, mas pela emoo que o inspirava. De a o culto do heri, expresso em Carlyle e Nietzsche e o culto byroniano da paixo violenta, de qualquer espcie.

O movimento romntico em arte, em literatura e em poltica liga-se com este juizo subjectivo de homens que julgam no como membros da

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comunidade mas como objecto estticamente deleitoso de contemplao. Os tigres so mais belos do que os carneiros mas preferimo-los atrs de barras. O romntico tpico tira as grades e goza os saltos magnficos em que o tigre devora o carneiro. Exorta o homem a ser tigre e quando o consegue o resultado no inteiramente agradvel.

Houve diversas reaces modernas contra as mais insanas forma de subjectivismo. Primeiro, uma filosofia de compromisso mdio, a doutrina do liberalismo, que tentou demarcar a esfera do governo e a de indivduo. Na feio moderna comeou com Locke, to contrrio ao entusiasmo - o individualismo anabaptista - como autoridade absoluta e cega subservincia tradio. Uma revolta ulterior levou doutrina do culto do Estado, dando-lhe a posio atribuda pelo Catolicismo Igreja ou at a Deus. Hobbes, Rousseau e Hegel representam fases de essa teoria e as suas doutrinas esto incorporadas praticamente em Cromwell, Napoleo, e na Alemanha moderna. O Comunismo teoricamente est longe de tais filosofias, mas na prtica levado a um tipo de comunidade muito semelhante ao que resulta do culto do Estado (1),

Neste longo trajecto, de 600 a. C. at hoje dividiram-se os filsofos entre os que querem apertar os laos sociais e os que pretendem afroux-los. Outras diferenas acompanham estas. Os disciplinrios defenderam algum sistema de dogma velho ou novo e portanto em maior ou menor grau, foram hostis cincia, desde que dogmas no podem provar-se empiricamente. Quase sempre ensinaram que a felicidade no o bem, e a nobreza ou o herosmo deve ser-lhe preferido. Tiveram simpatia pela parte irracional da natureza humana, desde que sentiram ser a razo inimiga da coeso social. Os libertrios, por outro lado, com excepo dos anarquistas estremes, tenderam a ser cientficos, utilitrios, racionalistas, hostis paixo violenta e inimigos de todas as formas religiosas mais profundas. Este conflito existiu na Grcia, anteriormente ao que reconhecemos como filosofia e j bem explcito no pensamento grego primitivo. Mudando de forma persistiu at hoje e no h dvida de que permanecer no futuro.

Claro que nesta disputa como em tudo quanto persiste muito tempo - cada partido tem razo em parte. A coeso social uma necessi-

(1)Para se avaliar do grau de fundamentao desta afirmativa de Russell Indispensvel reflectir sobre a concepo marxista de Estado (veja-se, por exemplo

O Estado e a Revoluffio, de Lnine) que engloba, como sabido, a teoria da sua extino final, confrontando-a com as vrias realizaes histricas dessa concepe tais quais se nos deparam no horizonte dos nossos dias. (R. P.)

22 HISTRIA DA FILOSOFIA OCIDENTAL

dade e a humanidade nunca pde refor-la por meros argumentos racionais. Cada comunidade corre dois perigos opostos: ossificao por excesso de disciplina e de reverncia tradio, e por outro lado dissoluo ou queda sob domnio estrangeiro por desenvolvimento de individualismo e independncia pessoal, que impossibilita a cooperao. Em geral as grandes civilizaes comeam com um rgido sistema supersticioso, gradualmente afrouxado e conducente em certa fase a um perodo de gnio brilhante, enquanto o bom da velha tradio permanece e o mal inerente dissoluo no se desenvolveu. Mas quando o mal se revela, conduz anarquia e de -ai, inevitvelmente, a uma tirania nova, que produz nova sntese, baseada em novo sistema de dogma. O liberalismo uma doutrina tendente a evitar esta oscilao intrmina. A essncia do liberalismo a tentativa de assegurar a ordem social no na base de um dogma irracional e firmar a estabilidade sem exceder as restries necessrias conservao da comunidade. S o futuro dir se a tentativa tem bom xito.

LIVRO PRIMEIRO

FILOSOFIA ANTIGA

PARTE PRIMEIRA

OS PR-SOCRTICOS

CAPITULO I

SURTO DA CIVILIZAO GREGA

Nada mais surpreendente e difcil de explicar em toda a histria do que a sbita ascenso da civilizao grega. Muito do que constitui * civilizao j existia milhares de anos no Egipto e na Mesopotmia * irradiava para pases vizinhos. Mas faltavam elementos at que os gregos os encontraram. O que fizeram em arte e literatura bem conhecido, mas o que fizeram no campo intelectual ainda mais extraordinrio. Inventaram a matemtica, a cincia e a filosofia, escreveram pela prirneira vez histria em contraposio com simples anais, especularam livremente sobre a natureza do mundo e os fins da vida, sem a priso de qualquer ortodoxia herdada (1). O que foi to surpreendente que at poca muito recente os homens se contentavam com admirar e falar misticamente do gnio, grego. Mas possvel compreender o desenvolvimento da Grcia em termos cientficos e vale bem a pena faz-lo.

A filosofia comeou com Tales, que felizmente pode datar-se por ter predito um eclipse do ano 585 a. Q, segundo os astrnomos. Filosofia e cincia - originariamente ligadas - nasceram portanto no comeo do sculo VI a. C.. Que se passara na Grcia e pases vizinhos antes de esse tempo? Qualquer resposta em parte conjectural, mas a arqueologia, no sculo presente, deu-nos conhecimento mais amplo do que o dos nossos av s.

(1)Aritmtica e geometria j existiam entre os egpcios e babilnios, mas com regras prticas. Raciocnio dedutivo de premissas gerais foi uma inovao grega.

28 Histria DA FILOSOFIA OCIDENTAL

A escrita foi inventada no Egipto cerca de 4000 a. C. e na Mesopotmia pouco mais tarde. Em cada pais a escrita comeou pelo desenho de objectos; esses desenhos rapidamente se convencionalizaram de modo que as palavras foram representadas por ideogramas, como ainda so na China. No decurso de milhares de anos este sistema incmodo desenvolveu-se na escrita alfabtica.

O primitivo desenvolvimento da civilizao egpcia e mesopotmica deveu-se ao Nilo, ao Tigre e ao Eufrates, que tornaram fcil e produtiva a agricultura. Em muitos aspectos a civilizao era semelhante que os espanhis encontraram no Mxico e no Peru. Havia um rei, divino e desptico. No Egipto toda a terra lhe pertencia. A religio era politesta, com um deus supremo, a quem o rei estava ligado em intima relao. Havia uma aristocracia militar e outra eclesistica. Esta podia muitas vezes invadir o poder real, se o rei era fraco ou se estava empenhado em guerra difcil. Os cultivadores do solo eram servos, ou do rei ou da aristocracia ou dos sacerdotes.

Havia considervel diferena entre a teologia egpcia e a babilnica. Os egpcios, preocupados com a morte, acreditavam que as almas dos mortos iam ao inferno onde Osris as julgava, segundo a sua vida na Terra; pensavam que a alma voltaria finalmente ao corpo; de ai a mumificao e a construo de esplndidos tmulos. As pirmides foram construdas por vrios reis e no fim do quarto milnio a. C. e comeo do terceiro. Desde ento a civilizao egpcia estereotipou-se progressivamente e o conservantismo religioso impossibilitou o progresso. Cerca de 1800 a. C. o Egipto foi conquistado por semitas chamados hicsos, que governaram durante dois sculos. No deixaram rasto permanente no Egipto mas a sua presena deve ter ajudado a desenvolver a civilizao egpcia na Sria e na Palestina.

Babilnia teve um desenvolvimento mais guerreiro do que o Egipto. Primeiro a raa governante no era semita, mas sumrica, de origem desconhecida. Inventaram a escrita cuneiforme, adoptada depois pelos conquistadores semitas. Houve um perodo de luta entre vrias cidades independentes, mas por fim Babilnia triunfou e estabeleceu um imprio. Os deuses de outras cidades ficaram subordinados e Marduk, deus de Babilnia, adquiriu a posio ulterior de Zeus no panteo grego. O mesmo tinha acontecido no Egipto muito antes.

As religies do Egipto e Babilnia, como outras antigas eram na origem cultos da fertilidade. A terra era fmea, o sol macho. O touro era geralmente considerado encarnao da fertilidade masculina e deuses touros eram comuns. Em Babilnia, Istar, a terra-deusa, era a suprema

FILOSOFIA ANTIGA 29

divindade feminina. No ocidente asitico a Me Suprema era adorada com vrios nomes. Quando os colonos gregos da sia Menor lhe fundaram templos chamaram-lhe. Artemis e tomaram conta do culto. Tal a origem da Diana dos Efsios (1). O Cristianismo transformou-a em Virgem Maria e um concilio de feso legitimou o ttulo de Me de Deu, aplicado a Nossa Senhora.

Quando uma religio est ligada ao governo de um imprio motivos polticos transformam-lhe as feies primitivas. Um deus ou deusa associado com o Estado tem de dar no s colheita abundante mas vitria na guerra. Uma casta sacerdotal rica elaborou o ritual e a teologia e reuniu em um panteo as vrias divindades das partes componentes do imprio.

Pela associao com o governo os deuses tambm se associavam com

* moralidade. Os legisladores receberam as leis de um deus, de modo que

* quebra da lei era uma impiedade. O mais antigo cdigo conhecido o de Hamurabi, rei da Babilnia cerca de 2100 a. C.; o rei assegurava que lhe fora entregue por Marduk. A conexo entre moralidade e religio aumentou constantemente no tempo antigo.

A religio babilnica, diferente da do Egipto, ocupava-se mais da prosperidade neste mundo do que da felicidade no outro. Magia, divinao, e astrologia embora no peculiares a Babilnia, estavam ali mais desenvolvidas do que em qualquer outra parte e foi principalmente atravs de Babilnia que adquiriram prestgio na baixa antiguidade. De Babilnia vieram algumas coisas que pertencem cincia: diviso do dia em vinte e quatro horas e do circulo em 360 graus, assim como a descoberta do ciclo dos eclipses, que permitiu predizer os lunares com certeza e os solares com alguma probabilidade. Este conhecimento babilnico, como veremos, foi adquirido por Tales.

As civilizaes do Egipto e Mesopotmia eram agrcolas, e as das naes circundantes a principio eram pastoris. Com o desenvolvimento do comrcio veio um novo elemento, de comeo quase s martimo. As armas, at cerca de 1000 a.C. eram de bronze, e as naes que no tinham no seu territrio os metais necessrios tinham de obt-los por trfico ou pirataria. A pirataria era expediente temporrio, e onde as condies polticas e sociais eram estveis o comrcio tinha mais vantagens. No comrcio a ilha de Creta parece ter sido o pioneiro. Cerca de

(1)Diana o equivalente latino de rtemis. rtemis vem mencionada no Testamento grego, onde a nona traduo fala de Diana.

50 HISTORIA DA FILOSOFIA OCIDENTAL

onze sculos, de 2500 a. C. a 1400 a. C. existiu em Creta uma civilizao artisticamente adiantada, a minoana. O que resta da arte cretense d uma impresso de alegria e luxo quase decadente, muito diverso da tristeza aterradora dos templos egpcios.

De esta importante civilizao quase nada se sabia at as escavaes de Sir Arthur Evans e outros. Foi uma civilizao martima, em estreita relao com o Egipto (excepto durante o tempo dos hicws). Pinturas egpcias mostram que o comrcio entre o Egipto e Creta era feito por marinheiros cretenses; esse comrcio atingiu o mximo cerca de 1500 a. Q. A religio cretense parece ter tido alguma afinidade com as da Sria e sia Menor, mas em arte h maior afinidade com o Egipto, embora a arte cretense seja original e de assombrosa vivacidade. O centro da civilizao cretense era o chamado palcio de Minos, em Cnossos, que ficou na tradio da Grcia clssica. Os palcios de Creta eram magnificentes mas foram destrudos cerca dos fins do sculo XIV a. C., provavelmente por invasores gregos. A cronologia da histria de Creta deriva de objectos egpcios ali encontrados e de objectos cretenses achados no Egipto; assim o nosso conhecimento depende de documentos arqueolgicos.

Os cretenses adoravam uma deusa ou talvez vrias. A mais indubitvel era uma Dona dos Animais, caadora, provavelmente origem da rtemis clssica (1). Naturalmente era tambm me; a nica divindade masculina, exceptuado o Dono dos Animais, o seu jovem filho. H sinais de crena na vida futura, como da crena egpcia no prmio ou castigo pelas aces na Terra. Mas em conjunto e pela sua arte os cretenses parece terem sido um povo alegre, no muito opresso por supersties aterradoras. Gostavam de corridas de touros e tanto homens como mulheres praticavam nelas feitos acrobticos. Sir Arthur Evans pensa que as corridas eram celebraes religiosas e os intervenientes pertenciam mais alta nobreza, mas neste ponto no h concordncia geral. As pinturas existentes so cheias de movimento e realismo.

Os cretenses tinham uma escrita linear mas no foi decifrada. Pacficos, as suas cidades no eram fortificadas. A sua defesa era certamente martima.

Antes de destruda a cultura minoana, ela desenvolveu-se, cerca de

1600 a. C., no territrio grego, onde sobreviveu, atravs de fases de modi-

() Tinha um gmeo ou consorte, o Dono dos Animais>, mas era menos eminente. Mais tarde, rtemis foi identificada com a Me Suprema da Asia Menor.

FILOSOFIA ANTIGA 31

ficao, at cerca de 900 a.C.. Esta civilizao continental chama-se miceniana; conhecida pelos tmulos de reis e por fortalezas em colinas, o que mostra maior medo de guerra do que havia em Creta. Tmulos e fortalezas impressionaram a imaginao da Grcia clssica. Os mais antigos produtos artsticos nos palcios so ou de facto cretenses ou aparentados com os de Creta. A civilizao miceniana, vista atravs de uma neblina lendria, a descrita em Homero.

Sobre os micenianos h uma grande incerteza. Deveram a sua civilizao a terem sido conquistados pelos cretenses? Falavam grego ou eram uma raa indgena anterior? No h resposta certa, mas h indcios da probabilidade de serem conquistadores que falavam grego, e pelo menos a aristocracia era constituda por invasores louros do Norte que trouxeram consigo a sua linguagem (1). Os gregos vieram. Grcia, em trs vagas sucessivas: primeiro os jnios, depois os aqueus, e por fim os drios. Os jnios, apesar de conquistadores, parece terem adoptado inteiramente a civilizao cretense, como os romanos mais tarde adoptaram a grega. Mas os jnios foram maltratados e largamente desapossados pelos aqueus, que lhes sucederam. Sabe-se pelas inscries hititas achadas em Bughaz-Keui, que os aqueus tiveram um grande imprio organizado no sculo XIV a. C.. A civilizao miceniana, j enfraquecida pela guerra entre jnios e aqueus, foi praticamente destruda pelos drios, ltimos invasores gregos. Ao passo que os invasores precedentes tinham adoptado amplamente a religio minoana, os drios conservaram a religio original indo-europeia dos seus antepassados. A religio da poca miceniana permaneceu no entanto, especialmente nas classes mais baixas, e a religio dos gregos clssicos era um misto das duas. De facto, algumas deusas clssicas eram de origem miceniana.

Embora o que fica dito seja provvel, deve notar-se que no sabemos se os micenianos eram ou no gregos. O que sabemos que a sua civilizao decaiu, que cerca do tempo em que ela findou o ferro substituiu o bronze, e que por algum tempo a supremacia martima passou para os fencios.

Mas na ltima fase da idade miceniana, e depois do seu fim, alguns dos invasores fixaram-se e fizeram-se agricultores, enquanto outros, impelidos primeiro para as ilhas da sia Menor, depois para a Siclia e Sul da Itlia, fundaram cidades martimas comerciais, Foi nelas que os gregos

(1)V. The Minoan-Mycenaean Religion and its Survival in Greek Religion, for Martn P. Nfisson, pp. 11 e seg.

32 HISTORIA DA FILOSOFIA OCIDENTAL

deram as primeiras contribuies qualitativamente novas civilizao; a supremacia de Atenas veio mais tarde, e tambm se ligou a um poderio naval.

O continente grego montanhoso e pouco frtil. H no entanto vales frteis com fcil acesso ao mar, mas separados por montanhas que impedem a comunicao entre eles. Nesses vales foram crescendo pequenas comunidades agrcolas, tendo por centro uma cidade, em geral sem comunicao com o mar. Assim foi natural que apenas a populao excedeu os recursos internos, os que no podiam ali viver tentassem a navegao. As cidades do continente fundaram colnias muitas vezes em lugares onde era mais fcil achar subsistncia do que na ptria. Por isso no primeiro perodo histrico os gregos da sia Menor, Siclia e Itlia eram muito mais ricos do que os do continente.

O sistema social era muito diferente em diversas partes da Grcia. Em Esparta, uma aristocracia pouco numerosa vivia do trabalho de servos oprimidos de raa diferente; nas regies agrcolas mais pobres a populao consistia principalmente em cultivadoras de terra prpria, com o auxlio das famlias. Mas onde floresciam a indstria e o comrcio, os cidados livres enriqueceram com o emprego de escravos - homens nas minas, mulheres na indstria txtil. Na Jnica esses escravos eram de populaes brbaras circundantes, em regra adquiridos na guerra. Com o aumento da riqueza aumentou o isolamento de mulheres respeitveis, que tiveram pequena parte nos aspectos civilizados da vida grega, excepto em Esparta e em Lesbos.

Houve um desenvolvimento geral, primeiro da monarquia para a aristocracia, depois para uma alternativa de tirania e democracia. Os reis no eram absolutos, como os do Egipto e Babilnia; eram assistidos por um Conselho de Ancios, e no podiam impunemente transgredir o costume. Tirania no significava necessariamente governo mau, mas apenas o de um homem que no o tinha hereditrio. Democracia significava governo de todos os cidados, no inclusos escravos e mulheres. Os tiranos primitivos adquiriram o poder, como os Mdicis, por serem os mais ricos membros das plutocracias respectivas. Muitas vezes a fonte da riqueza foi a posse de minas de ouro e prata, mais lucrativa pela instituio da cunhagem, vinda do reino da Lidia, adjacente Jnica A cunhagem parece ter sido inventada pouco antes de 700 a. C..

(1)V.P.N. Ure, The Origin of Tyratiny.

FILOSOFIA ANTIGA 33

Um dos mais importantes resultados para os gregos, do comrcio ou da pirataria a principio mal distintos foi a aquisio da escrita. Embora existente havia milnios no Egipto e em Babilnia e apesar de haver uma escrita minoana cretense (ainda por decifrar) no h prova de que os gregos conhecessem o alfabeto antes do sculo x a. C.. Aprenderam-no com os fencios, que como outros habitantes da Sria estiveram expostos influncia egpcia e babilnica e conservaram a supremacia comercial martima at o surto das cidades gregas da Jnica, Itlia e Siclia. No sculo XIV, escrevendo a Ikhnaton. (rei herege do Egipto) os srios ainda usam o cuneiforme babilnico; mas Hiro de Tiro (969-936) usou o alfabeto fencio, provavelmente derivado da escrita egpcia. Os egpcios usaram a principio uma simples pictografia; gradualmente, por convencionalizao, esses desenhos vieram a representar slabas (as primeiras dos nomes das coisas representadas) e por fim simples letras, segundo o principio de A era um archeiro que atirou a uma r (1). Este ltimo passo que no foi completado pelos mesmos egpcios mas

pelos fencios trouxe o alfabeto com todas as suas vantagens. Os gregos, aprendendo com os fencios, alteraram o alfabeto de acordo com a sua linguagem e introduziram a inovao das vogais em vez de s ter consoantes. Indubitavelmente a aquisio de este mtodo apressou a marcha da civilizao grega.

O primeiro fruto notvel de esta civilizao foi Homero. A seu

respeito tudo conjectural, mas uma grande corrente de opinio considera-o uma srie de poetas e no um indivduo. Para os que adoptam esta opinio, a Ilada e a Odisseia levaram duzentos anos a completar-se, isto , de 750 a 550 a. C. (2), aproximadamente, ao passo que outros mantm que Homero estava aproximadamente completo no fim do sculo VIII (3). Os poemas homricos na forma actual foram trazidos a Atenas por Pisstrato, que reinou (com intermisses) de 560 a 527 a. C.. Desde ento a juventude ateniense aprendeu Homero de cor e essa era a parte mais importante da sua educao. Em algumas partes da Grcia, especialmente em Esparta, Homero no teve o mesmo prestigio at data mais recente.

(1)Por IX, Gimel, 3., letra do alfabeto hebreu, significa camelo e o sinal

o desenho convencional de um camelo.

Beloch, Griechische Geschichte, Cap. XII. Rostovtseff, History of the Ancient World, Vol. 1, p. 399,

34 17ISTRIA DA FILOSOPIA OCIDENTAL

Os poemas homricos, como os romances de corte da Baixa Idade Mdia, representam o ponto de vista de uma aristocracia civilizada que ignora as vrias supersties plebeias ainda vivas entre a populaa. Muito mais tarde, muitas de essas supersties voltaram luz do dia. Guiados pela antropologia, muitos escritores modernos concluram que Homero, longe de ser primitivo, foi um expurgador, uma espcie de expurgador oitocentsta, racionalizador de mitos antigos, com o ideal de ilustrao urbana de uma classe superior. Os deuses olmpicos da religio em Homero no eram os nicos objectos de culto no seu tempo ou depois de ele. Havia outros elementos mais obscuros e selvagens na religio popular, postos de lado pela inteligncia grega mais elevada, mas prontos a reaparecer em momentos de fraqueza ou terror. Na fase da decadncia, crenas que Homero desprezara mostraram ter persistido meio sepultas atravs do perodo clssico. Este facto explica muitas coisas que de outro modo parecem inconsistentes ou singulares.

Em toda a parte a primitiva religio foi tribal e no pessoal. Cumpriam-se ritos dirigidos por simpatia mgica a favorecer o interesse da tribo, especialmente para a fertilidade animal, vegetal e humana. No solstcio de Inverno, o Sol tinha de ser animado a no diminuir de fora; a Primavera e o Outono tambm tinham cerimnias adequadas. Muitas vezes elas produziam grande exaltao colectiva, em que os indivduos se fundiam no conjunto da tribo. Por todo o mundo em certa fase da evoluo religiosa, animais sagrados e seres human@4 eram ritualmente mortos e comidos. Esta fase variou em data nas diferentes regies, Normalmente o sacrifcio humano durou mais do que o rito de comer as vtimas; na Grcia ainda no estava extinto no comeo da era histrica. Ritos da fertilidade sem esse aspecto cruel eram comuns em toda a Grcia; os mistrios de Elusis, em especial, eram essencialmente de simbolismo agrcola.

Deve admitir-se que a religio em Homero no verdadeiramente religiosa. Os deuses so completamente humanos, diferentes dos homens apenas pela imortalidade e pelo poder. Moralmente nada pode dizer-se a seu favor, e difcil ver como puderam inspirar temeroso respeito. Em alguns passos, mas tarde, foram tratados com irreverncia voltaireana. Tal sentimento religioso genuno de Homero respeita menos aos deuses do Olimpo do que a seres mais sombrios, como o Fado, ou Necessidade ou Destino, a que at Zeus est sujeito. O Fado exerceu grande influncia em todo o pensamento grego e foi talvez uma das fontes de que derivou na cincia a crena em lei natural.

FILOSOFIA ANTIGA

Os deuses homricos eram os deuses de uma aristocracia conquistadora, no os da fertilidade til de aqueles que realmente lavravam terra. Como diz Gilbert Murray: (1)

Os deuses da maior parte das naes dizem ter criado o mundo Os Olmpicos no. O mximo que fizeram foi conquist-lo... E depois de conquistar os seus reinos, que fazem? Tratam do governo? Promove: a agricultura? Praticam comrcio e indstria? Nada de isso. Por que haviam de fazer trabalho honesto? ]@ mais fcil viver dos rendimentos e destruir com raios aqueles que no pagam. So chefes conquistadores piratas reais. Combatem, divertem-se, jogam e tocam msica; bebe forte e atroam com gargalhadas o ferreiro coxo que os visita. Nunca tm medo, excepto do prprio rei. Nunca mentem, excepto no amor e 1 guerra.

Os heris humanos de Homero no se portam melhor. A famlia -padro a Casa de Pelops, mas no tem xito como modelo de famlia feliz.

Tantalos, o fundador asitico da dinastia, comeou a carreira p ofensa directa aos deuses; diz-se que tentou engan-los dando-lhes comer carne humana, a de seu prprio filho Pelops. Pelops, miraculosamente restitudo vida, pecou. Ganhou a famosa corrida de carros cont Enomeu, rei de Pisa, por conivncia com Myrtilos, cocheiro do rei, depois livrou-se do seu aliado a quem prometera prmio, atirando-o mar. O castigo caiu sobre os filhos, Atreu e Tiestes, na forma chama pelos gregos ate, o impulso forte, seno irresistvel para o crime. Ties1 corrompeu a mulher do irmo e depois tratou de roubar o talism famlia, o famoso velo de ouro, Atreu por seu lado, baniu o irmo, e tornando a cham-lo a pretexto de reconciliao serviu-lhe mesa a cai dos prprios filhos. O castigo ficou em herana a Agamninon, filho Atreu, que ofendeu rtemis matando um veado sagrado, sacrificou prpria filha Ifignia para acalmar a deusa e obter viagem **tranqu para Tria sua armada; por sua vez foi assassinado por sua infiel mulher Clitemnestra, e pelo seu amante Egisto, filho sobrevivente de Tiest Orestes, filho de Agammnon, vingou seu pai, matando a me e Egisto (

Homero, como realizao acabada, foi um produto da Jnia, isto de uma parte da sia Menor helnica e ilhas adjacentes. Durante sculo vi o mais tardar, os poemas homricos fixaram-se na forma actual

Five Stages of Greck Religion, p. 67. Primitive Culture in Greece, H. J. Rose, 1925, p. 193.

36 Histria DA FILOSOFIA OCIDENTAL

Tambm comearam nesse sculo a cincia, a matemtica e a filosofia gregas. Ao mesmo tempo acontecimentos de capital importncia ocorriam em outras partes do mundo. Confcio, Buda e Zoroastro, se existiram, pertencem provavelmente ao mesmo sculo (1). No meado do mesmo sculo estabeleceu Ciro o imprio persa; perto do fim, as cidades da Jnia a que os persas tinham concedido autonomia limitada, revoltaram-se sem xito, e vencidas por Dario, os seus melhores homens foram exilados. Muitos dos filsofos de este perodo vaguearam de cidade em cidade na parte do mundo helnico ainda no escravizada, difundindo a civilizao at ento confinada na Jnia. Foram bem tratados nas suas viagens. Xenfanes, que viveu na ltima parte do sculo vi e foi refugiado, diz: Isto , o que diramos ao p do lume no Inverno, estendidos em leito macio, depois de uma boa refeio, bebendo doce vinho e mastigando gros de bico: De que pais sois e que idade tendes, caro senhor? E que idade tnheis quando os Medos apareceram? O resto da Grcia conseguiu manter a independncia nas batalhas de Salamina e Plateias, ficando a Jnia libertada por algum tempo(2).

A Grcia estava dividida em grande nmero de pequenos estados, cada um de eles constitudo por uma cidade e territrio agrcola circunjacente. O nvel de civilizao era muito diferente nas vrias partes do mundo grego e s uma minoria de cidades contribuiu para a realizao helnica total. Esparta, de que tenho de falar adiante, foi militarmente importante mas no culturalmente. Corinto era rica e prspera, grande centro comercial mas no prolfica de grandes homens.

Havia ainda comunidades agrcolas rurais, como a proverbial Arcdia, que os homens da cidade imaginaram idlica, mas que na realidade estava cheia de antigos horrores brbaros.

Os habitantes adoravam Hermes e Pan e tinham muitos cultos da fertilidade, em que muitas vezes uma simples coluna substitua a esttua de um deus. O bode era smbolo da fertilidade, porque os camponeses eram pobres de mais para possurem bois. Se o alimento escasseava era aoitada a esttua de Pan. (O mesmo sucede ainda em remotas aldeias chinesas). Havia um cl de supostos lobisomens, provavelmente associado a actos de canibalismo e sacrifcios humanos. Pensava-se que quem

() A data de Zoroastro conjectural. Alguns colocam-na antes de 1000 a. C.. V. Cambridge Ancient History, Vol. IV, p. 207. () Vencida Atenas por Esparta, a Paz de Antlcidas reconheceu aos persas o direito sobre toda a costa da sia Menor. Cinquenta anos depois eram Incorporados no Imprio de Alexandre.

PILOSOFIA ANTIGA 3

comer a carne da vitima sacrificada se tornaria lobisomem. Em uma caverna consagrada a Zeus-Lykaios (o lobo-Zeus) ningum tinha proteco e quem l entrasse morreria dentro de um ano. Esta superstio era ainda viva na poca clssica (1).

Pan, cujo nome original (dizem alguns) era Paon, isto , nutridor ou pastor, adquiriu o nome mais conhecido, com o significado de Deu., universal, quando Atenas lhe adoptou o culto, no sculo v, depois da guerra prsica (2) .

Houve contudo na Grcia antiga muito do que na nossa compreenso do termo chamamos religio. Ligava-se no com os Olmpicos, mas com Dinisos, ou Baco, pensado vulgarmente por ns como deus desacreditado do vinho e da embriaguez. 112 verdadeiramente notvel o caminho de este culto de onde surgiu um misticismo profundo, com grande influncia em muitos filsofos e que at teve parte na formao da teologia crist, e deve ser tido em conta por quem deseje estudar o desenvolvi. mento do pensamento grego.

Dinisos, ou Baco, era na origem um deus trcio; os trcios eram. muito menos civilizados que os gregos, que lhes chamavam brbaros Como todos os agricultores primitivos, tinham cultos de fertilidade ( um deus que a promovia. Chamava-se Baco. Nunca se esclareceu s@ Baco tinha forma humana ou bovina. Quando descobriram como fazei cerveja pensaram em uma intoxicao divina e honraram a Baco. Quando mais tarde conheceram a vinha e aprenderam a beber vinho, ainda pensaram melhor de ele. A sua funo de promover a fertilidade em, geral foi-se subordinando relativa s uvas e divina demncia produzida pelo vinho.

Ignora-se a data em que este culto emigrou da Trgica para a Grcia, mas parece ter sido antes do comeo dos tempos histricos. O culto de Baco defrontou a hostilidade do ortodoxo, mas no entanto estabeleceu-se. Continha muitos elementos brbaros, como despedaar animais ferozes e com-los crus. Teve um curioso elemento de feminismo. Matronas respeitveis e raparigas em grandes grupos gastavam noites inteiras nas colinas rasas em danas que estimulavam o xtase e em uma intoxicao talvez em parte alcolica, mas principalmente mstica. Os maridos achavam a prtica aborrecida mas no ousavam opor-se religio. Tanto a beleza como a selvajaria do culto vem-se nas Bacantes, de Eurpides.

(1)Ros% ob. elt, pp. 65 e seg. (1) J.E. Harrison, Prolegomena to the Study of Greck Religion, p. 651-

38 HISTORIA DA FILOSOFIA OCIDENTAL

O xito de Dinisos na Grcia no surpreende. Como todas as colectividades civilizadas rapidamente, os gregos, ou pelo menos em certa proporo, desenvolveram um amor do primitivo e um desejo de vida mais instintiva e apaixonada do que a sancionada pela moral corrente. Para homens ou mulheres que por compulso ficam mais civilizados em proceder do que em sentir, a racionalidade penosa e a virtude parece um fardo ou uma escravido. Isto leva a reaces no pensar, no sentir e no agir. Interessa-nos especialmente a do pensar mas deve dizer-se alguma coisa relativa do sentimento e da aco.

O homem civilizado distingue-se do selvagem principalmente pela prudncia, ou, usando um termo mais amplo, prevWncia. Aceita penas presentes por causa de prazeres futuros, ainda quando afastados. Este hbito comeou a ser importante com a ascenso da agricultura. Nenhum animal e nenhum selvagem trabalharia na Primavera para ter alimento no Inverno seguinte, excepto era formas de aco puramente instintivas, como a das abelhas fabricando o mel ou os esquilos enterrando nozes. Mas aqui no h previdncia; h directo impulso para um acto que ao espectador humano se revela til mais tarde. A previdncia verdadeira comea apenas quando o homem faz alguma coisa a que o impulso o no obriga, porque a razo lhe diz que de isso tirar proveito em data futura. A caa no exige previdncia porque d prazer; lavrar o solo trabalho e no se executa por impulso espontneo.

A civilizao colide com o impulso, no s pela previdncia, que coliso auto-aplicada, mas tambm atravs da lei, costume e religio. Essa forma herdou-a do barbarismo, mas tornou-a menos instintiva e mais sistemtica. Certos actos so rotulados de criminosos e punidos; outros, embora no punidos por lei, so considerados perversos e expem os seus autores desaprovao social. A instituio da propriedade privada traz consigo a sujeio de mulheres e usualmente a criao de uma classe escrava. Por outro lado os objectivos da comunidade so impostos ao indivduo, e este, adquirido o hbito de considerar a sua vida como um todo, cada vez mais sacrifica o presente ao futuro.

P, evidente que este processo pode ir longe de mais, como, por exemplo, pela avareza. Mas sem ir to longe, a prudncia pode Meilmente fazer perder algumas das melhores coisas da vida. O adorador de Dinisos reage contra a prudncia. No arrebatamento fsico ou espiritual reconquista uma intensidade de sentimento que a prudncia tinha destrudo; acha o mundo cheio de prazer e beleza e a sua imaginao liberta-se subitamente da priso de preocupaes dirias. O ritual bquico produzia o chamado entusiasmo, que significa etimologicamente a

filosofia ANTIGA 3

entrada de deus no adorador, que acreditava ter-se unido com o deus Muito do que maior na realizao humana envolve algum elemento d( intoxicao (1), alguma paixo desprezadora, da prudncia. Sem o ele, mento bquico a vida perderia interesse; com ele perigosa. prudncia e paixo conflituam ao longo da histria. No conflito em que deva, mos apoiar inteiramente uma das partes.

Na esfera do pensamento, a civilizao sbria na generalidade sinnima de cincia. Mas a cincia pura e simples no satisfaz; os homens precisam da paixo, da religio, da arte. A cincia pode limitar o conhecimento mas no a imaginao. Entre os filsofos gregos como entre os dos ltimos tempos houve os principalmente cientficos e os principal mente religiosos; os ltimos deveram muito, directa ou indirectamente religio de Baco. Isto aplica-se especialmente a Plato, e atravs dele, aos tardios desenvolvimentos incorporados ultimamente na teologia crist.

O culto de Dinisos na forma original em selvagem e em muitos modos repulsivo. No foi nessa forma que impressionou os filsofos ma., na espiritualizada atribuda a Orfeu, que era asctica e substituiu i arrebatamento fsico pelo mental.

Orfeu uma figura. obscura mas interessante. H quem o julgue um homem real, e quem o suponha deus ou heri imaginrio. Tradicionalmente, velo da Trgica, como Baco, mas mais provvel ter vindo (o] o movimento associado com o seu nome) de Cy-eta. ]@ certo que as dou trinas rficas contm muito que parece de fonte egpcia, e atravs d Creta que principalmente o Egipto influenciou a Grcia. De Orfeu diz-se ter sido um reformador, despedaado pelos mnades enfurecidos, estimulados pela ortodoxia bquica. A sua dedicao msica no to acentuada nas velhas formas da lenda como mais tarde Primeiro, era sacerdote e filsofo.

Fosse como fosse a doutrina de Orfeu, a dos 6rficos bem conhecida. Acreditavam na transmigrao das almas; ensinavam que a alma deve conseguir glria eterna ou sofrer tormento eterno ou temporrio conforme a sua vida na Terra. Pretendiam ser puros, em parte por cerimnias de purificao, em parte evitando certas formas de contam! nao. Os mais ortodoxos abstinham-se de alimento animal, excepto em ocasies rituais quando o comiam sacramentalmente. O homem, diziam em parte de terra e cu; por uma vida pura, aumenta a parte celest

() Falo de Intoxicao mental, no pelo lcool.

40 HISTRIA DA FILOSOFIA OCIDENTAL

e diminui a terrestre. No fim o homem pode unir-se com Baco e chama-se um. Baco. Formou-se uma elaborada teologia, que afirmava ter Baco nascido duas vezes, uma de sua me, Semele, outra da coxa de seu pai, Zeus.

O mito de Dinisos teve muitas formas. Em uma filho de Zeus e Persfone; quando ainda rapaz foi despedaado pelos Tits, que lhe comeram a carne, menos o corao. Uns dizem que o corao fora dado a Zeus por Semele, outros que Zeus o engolira; de qualquer modo originou o segundo nascimento de Dinisos. O dilaceramento, de um animal bravio, devorada a carne crua pelas Bacantes, era a repetio do acto dos Tits e em certo sentido o animal era encarnao do deus. Os Tits eram terrenos, mas depois de comer o deus tinham uma centelha de divindade. Assim o homem em parte terrestre, em parte divino e os ritos bquicos, procuram faz-lo completamente divino.

Eurpedes pe na boca de um sacerdote rfico uma confisso instrutiva: (1).

Descendente da linha fencia de Europ2 de Tiro e filho do grande Zeus, tu que reinas em Creta, a das cem cidadelas; eu te procuro depois de ter deixado o teu divino templo, cujo telhado sustido pela trave cortada da madeira desta regio, que, por meio do machado de ao e da cola de boi, foi reforada com firmes cavilhas de ciprestes. A minha vida tem decorrido pura desde que me t~ iniciado do Zeus do Ida e, no meio dos troves de Zagreu, que vagueia de noite, tomo parte nos festins em que se devora a carne crua, seguro nos archotes resinosos da me das montanhas e, tendo sido purificados chamam-me bquico, entre os sacerdotes dionisacos. Envergando as vestes brancas, fujo da gerao dos mortais e da urna funerria e no me aproximando, evito comer a,& carnes em que j esteve a vida.

Inscries rficas encontradas em tmulos do instrues alma dos mortos sobre o caminho para o outro mundo e sobre o que devem dizer para merecer a salvao. Esto quebradas e incompletas; a mais completa (a Petlia) diz:

(1)As tradies em verso de este capitulo so do Dr. Rosado Fernandes, a quem o anotador deixa aqui expressos os seus agradecimentos.

FILOSOFIA ANTIGA 41

Encontrarda uma fonte esquerda das manses do Hades e, junto dela, um cipreste, que, branco., se ergue. Dessa fonte no te aproximes demasiado. Encontrards uma outra ~o ao lago de Mnemsine (M~ria), correndo, da gua fria, e h guardas em frente dela. Diz: Sou, filha de Gaia (Terra) o de Crano, (Cu) estrelado@, mas a minha raa de 1!7rano (somente). Ficai, tambm vs, sabendo isto. Quanto a mim estou morta de sede e pereo. Mas dai-me rapidamente a gua fria que corre do lago de Mnemsine!> E eles prprios te daro a beber a gua do lago sagrado e, logo a seguir, reinars entre os outros h~.

Outra inscrio diz:

Salv, tu que sofreste o sofrimento... De homem te tornaste em deus.

E ainda outra:

feliz e bem-aventurado, tu sers deus em vez de mortal.

A fonte de que a alma no deve beber o Letes, que produz esquecimento; a outra fonte Mnem6sine, recordao. A alma no outro mundo, se vai salvar-se no para esquecer, mas, pelo contrrio, para adquirir memria ultranatural.

Os rficos eram uma seita asctica. O vinho para eles era apenas um smbolo, como mais tarde no sacramento cristo. O arrebatamento que buscavam era o entusiasmo da unio com deus. Acreditavam adquirir de esta forma conhecimento mstico inacessvel por outros meios. Este elemento mstico entrou na filosofia com Pitgoras, que foi reformador do orfismo, como Orfeu foi reformador da religio de Dinisos. De Pitgoras, os elementos rficos penetraram na filosofia de Plato, e de Plato na filosofia muito ulterior, que foi em qualquer grau religiosa.

Alguns elementos nitidamente bquicos sobreviveram onde o orfismo teve influncia. Um de eles foi o feminismo, j bem visvel em Protgoras, e que em Plato, foi ao ponto de reclamar igualdade poltica para as mulheres. As mulheres como sexo, diz Pitgoras, so mais naturalmente inclinadas piedade. Outro elemento bquico foi o respeito pela emoo violenta. A tragdia grega nasceu dos ritos de Dinisos. Eurpides, em especial, honrou os dois principais deuses do

42 Histria DA filosofia OCIDENTAL

orfismo, Dinisos e Eros. No respeitou os homens friamente justos e bem comportados, que nas suas tragdias enlouquecem ou so levados ao desastre pelos deuses em castigo da sua blasfmia.

A tradio convencional relativa aos gregos a de que a sua admirvel serenidade lhes permitiu contemplar a paixo de fora, admirando-lhe a beleza mas permanecendo eles calmos e olmpicos. uma viso unilateral. Talvez seja verdade de Homero, Sfocles e Aristteles, mas inteiramente falso de aqueles gregos que receberam influncia directa ou indirecta bquica ou rfica. Em Elusis, onde os mistrios eleusinos formavam a parte mais sagrada da religio de estado ateniense, cantava-se um hino que dizia:

Agindo ao alto a tua taa de vinho, com o teu entusiasmo que enlouquece, vieste tu para os lugares recnditos e floridos de E7~evo, Baco, salv, Pan.

Nas Bacantes, de Eurpedes, o coro de Mnades desenvolve uma combinao de poesia e selvajaria, verdadeiro reverso da serenidade, Celebram o prazer de despedaar um animal bravio, membro a membro e com-lo cru imediatamente:

R doce, quando, nas montanhas ao sair da ~d% bquica, se cai sobre o solo com a sagrada ~to de pele, se perwgue o bode que vai ser degolado, pois delcia devorar a carne crua, quando se vai para as montanhas da Prigia ou da Ldia, sendo Baco o nosso condutor, evo!

A dana dos Mnades na montanha no era apenas feroz; era uma fuga aos fardos e cuidados da civilizao para o mundo da beleza no-humana e para a liberdade do vento e das estrelas. Menos freneticamente cantavam:

Ser que ainda porei meus ps nus nas danas nocturnas de Baco, deitando **ystra trs a cabea envolvida no ar hmido de orvalho, como a cora que brinca nos verdes prazeres dos prados, quando fugiu ao implacvel caador e ao obstculo das redes bem tecidas. Quando, porm, o caador incita, com seus gritos, a corrida dos ces, ela, igual s rpidas procelas, com esforo, se lana na

FILOSOFIA ANTIGA 43

planos, ao longo do rio, procurando solitrias paragens, longe dos homem, entre os verdes rebentos de ensombrada floresta.

Antes de repetir que os gregos eram serenos, imaginemos as matronas de Filadlfia portando-se de este modo at em uma pea de Eugnio ONeill.

O rfico no mais sereno do que o adorador no reformado de Dnisos. Para o rfico a vida no mundo pena e fadiga. Ligados a uma roda que gira sem fim em ciclos de nascimento e morte, a nossa verdadeira vida so os astros, mas estamos ligados Terra. S pela renncia e purificao e uma vida asctica podemos sair da roda e atingir o xtase da unio com Deus. No esta a viso do homem para quem a vida fcil e agradvel; mais semelhante ao espiritual negro:

Pm going to tell God a71 my troubles

When I get home.

Nem todos os gregos mas grande parte de eles eram apaixonados; infelizmente, desavindos consigo mesmos, seguiram um caminho pela inteligncia e outro pelas paixes, com imaginao para conceber o cu e auto-assero voluntariosa que cria o Inferno. Tinham como mxima Nada, de mais, mas eram de facto excessivos em tudo no pensa. mento puro, na poesia, na religio, e no pecado. Foi a combinao do paixo e da inteligncia que os fez grandes enquanto o foram. Tambm. no teriam transformado o mundo futuro como o transformaram. O sei prottipo mitolgico no o Zeus olmpico, mas Prometeu, que trouxe o fogo do cu e foi pago com tormento eterno.

Mas se tomado em conjunto como caracterstica dos gregos, o que fica dito seria viso unilateral, como a da serenidade. Houve de facto duas tendncias na Grcia, uma apaixonada, religiosa, mstica, supraterrestre, outra alegre, emprica, racionalista e interessada em adquirir conhecimento da diversidade dos factos. Herdoto, como os primeiros filsofos da Jnia e at certo ponto Aristteles, representam a ltima tendncia. Beloch (ob. cit. I, i, p. 434) diz, depois de descrever o Orfismo

Mas a nao grega era demasiado vigorosa e jovem para poder aceitar em geral uma crena que negava este mundo e transferia para o alm a vida real. Por isso a doutrina rfica se confinou a um circulo relativamente estreito de iniciados sem a menor influncia na religio d@ Estado, sequer nas comunidades como Atenas, que tinham acolhido a mistrios no ritual do Estado, dando-lhes. proteco legal. Um milnio

44 HISTRIA DA FILOSOFIA OCIDENTAL

tinha de passar antes que tais ideias certo que em muito diferente vesturio teolgico - conseguissem vitria no mundo grego.

Isto pareceria exagero, especialmente quanto aos mistrios de Musis, impregnados de orfismo. Em geral os de temperamento religioso voltaram-se para o orfismo, ao passo que os racionalistas se afastaram, Pode comparar-se a situao com a do metodismo na Inglaterra no fim do sculo XVIII e comeo do XIX.

Sabemos mais ou menos o que um grego educado aprendia com o pai, mas ignoramos o que nos primeiros anos aprendia com a me, que era em grande parte impedida de entrar na civilizao em que os homens se compraziam. 2 provvel que os atenienses educados, mesmo no melhor perodo, por mais racionalistas que fossem nos processos mentais explicitamente conscientes, conservassem da tradio e da infncia modos mais primitivos de pensar e sentir, prontos a reaparecer em tempo de presso. Por isso parece adequada uma anlise simples da perspectiva grega.

A influncia da religio, em particular da no-olmpica, s recentemente foi bem reconhecida. Um livro revolucionrio, Prolegomena to the Study of Greck Religion, de Jane Harrison, acentuou o primitivo e dionisaco elemento na religio do grego vulgar; F. M. Cornford, em From Religion to Philosophy, tentou mostrar aos estudiosos da filosofia grega a influncia da religio nos filsofos, mas no podem aceitar-se inteiramente muitas de suas interpretaes, ou neste assunto as da sua antropologia (11). A opinio mais equilibrada parece-me ser a de John Burnet em Early ~k Phil~hy, especialmente no captulo li Seience and Religion. Surgiu, diz ele, um conflito entre cincia e a religio do renascimento religioso que correu sobre a Hlade no sculo vi a. C., juntamente com a mudana de cena da Jnia para Ocidente. A religio da Hlade continental, diz, desenvolvera-se por via muito diferente da da Jnia. Em especial o culto de Dinisos vindo da Trcia e apenas mencionado em Homero, continha em germe um caminho inteiramente novo de considerar a relao do homem com o mundo. Seria certamente errado atribuir aos trcios mesmos viso muito exaltada; mas no h dvida de que para os gregos o fenmeno do xtase sugeriu que a alma era algo mais do que um duplo enfraquecido do ser e s fora do corpo revelava a sua verdadeira natureza...

() Por outro lado os livros de Cornford sobre vrios dilogos de Plato parecem-me verdadeiramente admirveis.

FILOSOFIA ANTIGA 45

A religio grega parecia prestes a atingir a mesma fase j atingida pelas religies do Oriente; e a no ser a cincia difcil ver o que podia contrapor-se a esta tendncia. ] costume dizer que os gregos foram salvos de uma religio de tipo oriental por no terem tido sacerdcio. ]@ o erro de tomar o efeito pela causa. O sacerdcio no faz dogmas, embora preserve os que estavam feitos; nas primeiras fases do desenvolvimento os povos orientais no tinham sacerdcio neste sentido. No foi tanto a ausncia de sacerdcio, como a existncia de escolas cientficas, que salvou a Grcia.

A nova religio - nova em um sentido, embora em outro velha como a humanidade - atingiu o mximo desenvolvimento com a fundao das comunidades rficas. Tanto quanto sabemos o seu lar foi a tie-a; mas difundiram-se rapidamente em especial no Sul da Itlia e na Siclia. Eram principalmente associaes para o culto de Dinisos; mas distinguiam-se por duas feies novas entre os helenos. Defendiam a revelao como fonte de autoridade religiosa e organizavam-se em comunidades. Os poemas que contm a sua teologia foram atribudos ao Orfeu trcio, que descera ao Hades e era portanto guia seguro atravs dos perigos que a alma desencarnada corre no outro mundo.

Burnet prossegue afirmando a similaridade entre as crenas rficas e as da ndia, aproximadamente da mesma poca, embora afirme que no pode ter havido contacto. Depois fala do significado original da palavra orgia, usada pelos rficos para significar sacramento, entendido como purificao da alma do crente, que lhe permitia escapar da roda do nascimento. Os rficos, diferentemente dos sacerdotes do culto olmpico, fundaram o que podemos chamar igrejas, isto , comunidades religiosas a que todos sem distino de raa ou sexo podiam ser admitidos por iniciao, e da sua influncia proveio a concepo da filosofia como linha de vida.

CAPITULO II

ESCOLA DE MILETO

Em todos os compndios de histria da filosofia o que primeiro se diz que ela, comeou com Tales, que dizia ser tudo feito de gua. Isto desanima o principiante, que se esfora talvez sem grande energia por sentir pela filosofia aquele respeito que o curriculum parece esperar. H no entanto ampla razo de respeitar Tales, embora talvez mais como homem de cincia do que como filsofo, no sentido moderno da palavra.

Tales nasceu em Mileto, na sia Menor, florescente cidade comercial com grande populao escrava e unia dura luta de classes entre pobres e ricos da populao livre. Em Mileto o povo, primeiro vitorioso, matou as mulheres e os filhos dos aristocratas; depois os aristocratas venceram e queimaram vivos os - adversrios, iluminando espaos livres da cidade com tochas vivas (1). Assim era na maior parte das cidades da sia Menor no tempo de Tales.

Mileto, como outras cidades comerciais da Jnia, desenvolveu-se muito econmica e politicamente nos sculos e IA vII De comeo o poder politico pertencia a uma aristocracia terratenente, gradualmente substituida por uma oligarquia de mercadores. Estes, por sua vez, foram substitudos por um tirano, elevado ao poder (como costume) pelo apoio do partido democrtico. O reino, da Ldia ficava a leste das cidades costeiras gregas, com quem manteve relaes de amizade at a queda de Ninive (606 a. C.). Isto deu liberdade Lidia para voltar as atenes

() Rostovtsev, History of lhe Ancient WorZd, Vol. I, p. 284.

PILOSOFIA ANTIGA 47

para oeste mas Mileto, conseguiu manter as boas relaes com Creso, ltimo rei da Lidia, conquistada por Ciro em 546 a. C.. Houve tambm importantes relaes com o Egipto, onde o rei dependia de mercenrios gregos e abrira algumas cidades ao trfico grego. A primeira instalao grega no Egipto foi a guarnio milsia de um forte; mas a mais importante foi Daphnae. Ali se refugiaram Nebuchadrezzar Jeremias e muitos outros judeus fugitivos (Jeremias, xLin 5 e seg.) ; mas ao passo que o Egipto indubitavelmente influenciou os gregos, os judeus no, nem podemos supor que Jeremias sentisse seno horror perante os cpticos jnios.

Quanto data de Tales, o melhor testemunho, como vimos, ele ter sido famoso por anunciar um eclipse que segundo os astrnomos deve ter-se dado em 585 a. Q. Outros testemunhos concordam com este. A predio no prova de gnio extraordinrio. Mileto era aliada da Ldia, que tinha relaes culturais com Babilnia, e os astrnomos babilnios tinham descoberto a volta dos eclipses em um ciclo de cerca de dezanove anos. Podiam predizer eclipses da Lua com xito completo mas quanto aos do Sol havia a dificuldade de um eclipse poder ser visvel em um lugar e no em outro. Portanto podiam apenas dizer que em tal ou tal data era de esperar um eclipse e isto provavelmente o que Tales sabia. Nem ele nem eles sabiam porque era este ciclo.

Diz-se que Tales viajara no Egipto e de l trouxera aos gregos a cincia da geometria. O que os egpcios sabiam de geometria eram apenas regras prticas e no h razo para supor que Tales tivesse chegado a provas dedutivas, como os gregos mais tarde descobriram. Parece ter descoberto como calcular a distncia de um navio no mar, por observao desde dois pontos da terra e como avaliar a altura de uma pirmide pelo comprimento da sombra. Atribuem-se-lhe muitos outros teoremas, provavelmente sem fundamento.

Foi um dos sete sbios da Grcia; cada um de eles ficou conhecido por uma sentena sbia; a sua, que deve ser um erro, foi a gua e melhor.

Segundo Aristteles ele pensava que a gua era a substncia original de onde todas as outras provinham, e mantinha que a Terra repousa sobre gua. Aristteles diz tambm que ele atribula uma alma ao magnete porque move o ferro; alm de isso, que todas as coisas esto cheia E de deuses (1).

(1)Burnet (Early Greek Philosophy, p, 51) discute esta afirmao.

48 Histria DA FILOSOFIA OCIDENTAL

A afirmao de que tudo feito de gua deve considerar-se uma

hiptese cientfica e de modo nenhum louca. H vinte anos admitia-se que tudo feito de hidrognio, que dois teros de gua. Os gregos eram audaciosos nas hipteses, mas a escola de Mileto pelo menos estava preparada para verific-las empiricamente. Sabe-se muito pouco de Tales para poder reconstitui-lo satisfatoriamente, mas sabe-se muito mais dos seus sucessores em Mileto, e razovel supor que algumas coisas provm de ele. A sua cincia e a sua filosofia eram imperfeitas mas estimulavam tanto o pensamento como a observao.

H muitas lendas a respeito de ele mas no creio que se conhea mais do que os poucos factos mencionados. Algumas so divertidas como a referida por Aristteles na Poltica (1259, a). Era censurado pela sua pobreza, que parecia mostrar a inutilidade da filosofia. Conta-se que ele soube ainda no Inverno, pelo seu conhecimento dos astros, que haveria no Vero seguinte grande colheita de azeitonas. Ento alugou por baixo preo todos os lagares de Quios e de Mileto, porque ningum licitou contra ele. Chegada a colheita, todos os queriam e com pressa, de modo que os cedeu ao preo que quis e ganhou muito dinheiro. Assim mostrou que os filsofos podem enriquecer facilmente se quiserem mas que tm outras ambies.

Anaximandro, o segundo filsofo milsio, muito mais interessante do que Tales. Diz-se que tinha sessenta e quatro anos em 546 a. C. e h razes para supor a data bastante aproximada. Considerava todas as coisas provenientes de uma substncia prima, mas no a gua, como pensara Tales ou qualquer outra substncia conhecida. P, infinita eterna e intemporal e encerra todos os mundos, porque ele pensava ser o nosso mundo um entre muitos. A substncia prima transformou-se nas vrias que conhecemos e estas transformam-se umas nas outras. A este respeito formulou uma proposio notvel e importante:

Dentro, de aquilo de onde as coisas provm, dissipam-se mais uma vez, como est ordenado, porque do reparao e satisfao umas s outras pela sua injustia, de acordo com a disposio do tempo.

A ideia de justia, simultaneamente csmica e humana, tomava uma parte hoje difcil de compreender na religio e na filosofia gregas; a nossa palavra justia dificilmente exprime esta ideia, mas no se encontra outra prefervel. O pensamento expresso por Anaximandro parece ser este: deve haver certa proporo de terra, fogo e gua no

mundo, mas cada elemento (concebido como uni deus) tenta constantemente alargar o seu imprio. Mas h uma necessidade ou lei natural que permanentemente restabelece o equilbrio; onde houve fogo, por exemplo.

FILOSOFIA ANTIGA 49

h cinzas que so terra. Esta concepo de justia de no ultrapassar limites eternamente fixados - uma das mais profundas crenas gregas. Os deuses estavam sujeitos justia como os homens, mas este supremo poder no era pessoal e no era um deus supremo.

Anaximandro tinha um argumento para demonstrar que a substncia prima no podia ser a gua ou qualquer elemento conhecido. Se algum o fosse conquistaria os outros. Aristteles refere que ele considerava os

elementos conhecidos em oposio uns com os outros. O ar frio, a gua hmida, o fogo quente. Portanto, se um de eles fosse infinito, o resto j teria deixado de existir. A substncia prima deve portanto ser neutral lia luta csmica.

Houve um movimento eterno a que se deve a origem dos mundos; os mundos no foram criados como na teologia judaica ou crist, mas evolveram. Houve evoluo at no reino animal; os seres vivos provieram do elemento hmido, quando evaporado pelo Sol. O homem, como outros animais, descende dos peixes. Provm de animais de espcie diferente, porque, dada a sua longa infncia, no teria sobrevivido tal qual .

Anaximandro era cheio de curiosidade cientfica. Diz-se ter sido o primeiro homem que fez um mapa. Considerava a Terra de forma cilndrica. Refere-se que julgava o Sol, segundo uns do tamanho da Terra, segundo outros vinte sete ou vinte oito vezes maior.

Onde original cientfico e racionalista. Anaxmenes, ltimo da trade milsia, no to interessante como Anaximandro mas trouxe algumas ideias importantes. A data incerta. Ulterior a Anaximandro, viveu antes de 494 a. C.. Pois que nesse ano Mileto foi destruda pelos persas na represso da revolta Jnia.

A substncia prima, segundo ele, o ar. A alma ar; o fogo., ar rarefeito; condensado, torna-se primeiro gua, depois terra, finalmente pedra. Esta teoria tem o mrito de considerar quantitativas todas as diferenas e dependentes inteiramente do grau de condensao.

Atribuiu Terra a forma de disco, cercado pelo ar. Assim como a nossa alma, que ar, nos mantm constantemente, assim a respirao e o ar envolvem todo o mundo. Cr que o mundo respira.

Anaxmenes foi mais admirado na antiguidade do que Anaximandro, embora modernamente a apreciao seja oposta. Influiu muito em Pitgoras e na especulao ulterior. Os pitagricos descobriram que a Terra esfrica, mas os atomistas aderiram concepo de Anaxmenes, da forma de disco.

A escola de Mileto importante no pelo que conseguiu mas pelo que tentou. Proveio do contacto do esprito grego com Babilnia e o

50 histria DA FILOSOFIA Ocidental

Egipto. Mileto era uma rica cidade comercial, onde as supersties e os prejuzos primitivos se atenuavam pelo contacto com muitas naes. A Jnia at ser subjugada por Dario, no comeo do sculo v, era a parte culturalmente mais importante do mundo helnico. Quase indemne ao movimento religioso ligado com Dinisos e Orfeu, a sua religio em olmpica mas no parece ter sido tomada muito a srio. As especulaes de Tales, Anaximandro e Anaxmenes devem considerar-se hipteses cientficas e raro mostraram intruso de desejos antropomrficos e ideias morais. As questes postas eram justas e o seu vigor inspirou investigadores subsequentes.

A fase imediata da filosofia grega ligada s cidades gregas do Sul da Itlia mais religiosa e em particular mais rfica em alguns aspectos mais interessante, admirvel na realizao, mas em esprito menos cientfica do que a dos milsios.

Captulo M

PITGORAS

Pitgoras, cuja influncia nos tempos antigos e modernos o me assunto neste captulo, foi um dos homens mais importantes que jama@. houve, quer quando sbio, quer quando no o era. A matemtica, 11 sentido de demonstrao dedutiva, comea com ele e nele se liga Intimamente com uma forma peculiar de misticismo. A influncia da matemtica na filosofia, que em parte se lhe deve, foi desde ento ao mesmo tempo profunda e pouco feliz.

Comecemos com o pouco que se sabe da sua vida. Nasceu na lha de Samos e viveu cerca de 532 a. C.. Dizem que era filho de um cidad abastado de nome Mnesarco, outros que era filho do Deus Apolo. Deix a escolha ao leitor. Nesse tempo governava em Samos o tirano Policrates velho rufio imensamente rico e dono de uma grande frota.

Samos era rival comercial de Mileto; os seus mercadores iam at Tartessus na Espanha, famosa pelas suas minas. Policrates, reinou em Samos desde cerca de 535 a 515 a. C.. Sem qualquer escrpulo moral libertou-se de seus dois irmos, a princpio seus associados na tirania e usou a frota -largamente na pirataria. Aproveitou a submisso de Mileto pela Prsia, mas para impedir qualquer expanso dos persas para Oci dente alou-se com Amasis, rei do Egipto. Mas quando Cambises, rei da Prsia, ps todo o seu esforo na conquista do Egipto, Policrates compreendeu que ele provavelmente venceria e mandou atacar o Egipto po uma esquadra composta dos seus inimigos polticos; mas a tripulao amotinou-se e regressou a Samos para atac-lo. Venceu-os mas veio i

52 HISTORIA DA FILOSOFIA OCIDENTAL

cair por um apelo traioeiro sua avareza. O strapa persa de Sardes disse que pensava em revoltar-se contra o Grande Rei e pagaria enormes somas pelo auxlio de Policrates, que veio ao continente para um encontro, foi preso e crucificado.

Policrates protegia as artes e embelezou Samos com obras pblicas notveis. Anacreonte foi seu poeta de corte; mas Pitgoras desaprovava o seu governo e por isso deixou Samos. Diz-se, e no improvvel, que visitou o Egipto e ali aprendeu muito do seu saber; mas certo que se fixou por fim em Crton, no Sul da Itlia.

As cidades gregas sul-italianas, como Samos e Mileto, eram ricas e prsperas e no estavam expostas ao perigo persa (1). As duas maiores eram Sbaris e Crton. Sbaris ficou proverbial pelo luxo. Diodoro diz que nos melhores dias a sua populao atingia o nmero de 300 000, embora isto seja exagero. Crton era aproximadamente igual a Sbaris. Ambas importavam artigos jnios, no s para consumo como para reexportar para a Glia e Espanha. As vrias cidades gregas da Itlia lutaram speramente umas com as outras. Quando Pitgoras chegou a Crton tinha ela sido vencida pelos lcrios. Mas pouco depois da sua chegada Crton derrotou Sibaris, que ficou totalmente destruda (510 a. C.). Sbaris tinha estado ligada comercialmente com Mileto. Crton era famosa na medicina; certo Democedes de Crton foi -mdico de Policrates e

depois de Dario.

Em Crton. fundou Pitgoras uma sociedade de discpulos, que por algum tempo teve influncia na cidade; mas depois os cidados foram-lhe hostis e ele dirigiu-se a Metapontion (tambm no Sul da Itlia), onde morreu. Breve se tornou figura mitica, milagrosa e de poder mgico, mas foi tambm fundador de uma escola de matemticos (2).

Pitgoras um dos homens mais interessantes e eni gmticos da histria; no s a tradio a seu respeito misto de verdade e falsidade, mas at na mais simples e indiscutvel forma apresenta-nos uma psicologia curiosssima. Pode descrever-se em resumo como uma combinao de Einstein e Mrs. Eddy., Fundou uma religio em que os pontos

() As cidades gregas da Sicilia corriam o perigo cartagins, mas na Itlia esse perigo no se sentia iminente. () Aristteles diz que ele primeiro se ocupou de matemtica e aritmtica e depois veio a ocupar-se das artes maravilhosas de Fercides.

FILOSOFIA ANTIGA 53

capitais eram a transmigrao das almas (1) e o pecado de comer favas. A sua religio concretizou-se em uma ordem religiosa, que uma vez por outra adquiriu contrle do Estado e estabeleceu um governo dos santos. Mas os no regenerados gostavam de favas e cedo ou tarde revoltavam-se.

Alguns dos preceitos da ordem de Pitgoras eram:

1.Abster-se de favas.

2.No apanhar o que caiu.

3.No tocar um galo branco.

4.No partir po.

5.No passar sobre uma tranca.

6.No avivar o lume com ferro.

7.No comer de um po inteiro.

8.No despedaar uma grinalda.

9.No se sentar numa quartola.

10.No comer o corao.

11.No passear em estradas.

12.No deixar andorinhas aninhar -no telhado. 13. Ao tirar a panela do lume no deixar a marca nas cinzas, mas

agit-las.

14.No se ver ao espelho junto de uma luz.

15.Ao despir a roupa de cama, enrol-la e desfazer as impresses do corpo (2) .

Todos estes preceitos so primitivas concepes-tabu. Cornford (From Religion to Philosophy) diz que em seu parecer A escola pitagrica representa a corrente principal da tradio mistica, contrastante com a tendncia cientfica. Parmnides, a quem chama descobridor da lgica, na sua opinio um