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Betomenezes
O (fuzi)lamento do Poeta
Coleção Contos de Bolso #2
Esta coleção é fruto da parceria entre:
e
6 Sigma Publicações Digitais ®
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NO DIA DO JULGAMENTO, meu infame destino
me levou à praça onde os fuzis arrebentam com as
transgressões dos poetas.
Os dias logo passaram, mal me preparei.
Hoje amanheci. Fiz minha refeição sem gosto.
Toquei duas músicas de Bob Dylan com minha
harmônica imaginária. Dentro da minha cabeça de
poeta, os versos de liberdade me angustiam em alto
relevo sobre os outros pensamentos. Querem se
embrenhar por todo canto, por conta própria, e,
inconsequentes, romper, à força do grito, as cadeias
construídas pelas armas.
Os tempos mudaram. Antes, os poetas eram
levados a público para terem a homenagem de que
eles eram merecedores. E mesmo depois de mortos,
continuavam vivos na memória e nos livros. Hoje,
fogueiras públicas incendeiam essas lembranças.
Livros, revistas e discos. Tudo é pretexto para essas
orgias. Há sempre um contexto no mais puro dos
textos, há um contexto que o condena ao fogo. As
bibliotecas vazias tornaram-se fábricas de armas; as
livrarias, depósitos. As prensas das gráficas
vomitam, sem intermitência, propaganda
governamental. Aos poetas, uma bala. Nada mais.
Uma bala certeira no peito. Não há o pelotão.
Apenas um fuzil do mais qualificado oficial, do
mais respeitado pelotão do exército da Guarda
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Republicana. Um fuzil basta. Apenas um roçar um
pouco menos delicado no gatilho para espantar
esses pensamentos libertários que atormentam o
poeta para o quinto dos infernos. A eficácia de uma
bala ponto cinquenta desmistifica a ideia utópica de
que uma caneta ou um megafone podem romper as
barreiras totalitárias.
¿Quantos eu já vi cair em praça pública?
Nessa última primavera, já perdi a conta. Mês
passado colocaram dez poetisas em fila indiana.
Trazidas do sul, estiveram presas desde o outono.
Elas criaram um movimento, apregoaram o aborto,
o divórcio, a renúncia aos maridos. Mantiveram a
esperança por todo o inverno, eram de famílias
respeitadas. Muitos esperavam a clemência do
ditador, mas ela não veio. Serviu o exemplo de que
até da própria carne pode ser cortada. As dez foram
apresentadas no feriado da independência. Os seus
nomes gritados em microfone. Uma a uma,
enfileiradas por idade. Na frente, a mais nova
chorava, grávida de sete meses. Na plateia, o noivo
segurava as lágrimas para si. No fim da fila, a velha
poetisa de tantos livros e medalhas mostrava na
face cadavérica um sorriso que transpassava as
mais jovens e atingia em cheio o fuzilador. Era um
sorriso de vitória. "¿Mas que vitória, senhora?",
deu-me da plateia o ímpeto de perguntar. Houve o
silêncio quando o capitão deu o brado, saldou a
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república e ordenou. Em coice, o fuzil tentou punir
o oficial que atirou. Dele, a bala seguiu na
contramão do sorriso da mais experiente e furou a
todas no peito, uma a uma, e na velha senhora
cravou. As dez que apregoavam a revolução contra
as armas com cravos na mão, mortas, caíram. Viu-
se naquela tarde, a força do fuzil. Mas, nem o que
atirou, nem o que ordenou o fuzilamento, sabiam. É
que escorria, mais do que sangue, um rio de lirismo
em meio à brutalidade, se espalhando pela praça.
Poetas são suicidas em potencial. Se tem o
vendaval de paixão, eles estão lá, tentados.
Primeiros mártires, obcecados pelo desejo. Eu é
que sei. Corria, quando criança, atrás dos raios para
ver de perto as temidas elétricas árvores brancas
enviadas pelos deuses. O som do trovão, as nuvens
em chuva e eu, criança, virando poeta. Querendo
ser mais do que menino magro e tímido preso às
porteiras do interior. Se eu pudesse, voaria para as
nuvens do cerne dos raios. Insistiria para ver os
anjos, os demônios, marcaria consulta com Deus. E
com esses sonhos infantis, ia vivendo em paz,
achando ser sabedor das coisas e de certa forma
superior aos outros. Ao meu redor todos olhavam
para o céu e não viam o céu. Viam uma abóboda
azul manchada de branco. Vi o céu quando apontei
meus olhos, sobretudo, para dentro de mim. O
poeta tem a tola fantasia de se achar imortal. Deve
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ser para isso que servem os fuzilamentos: mostrar
aos outros que os poetas sangram. Na minha
infância, o sangue que escorria era o dos arranhões
dos tombos de bicicleta, da cabidela das galinhas e
dos panos sujos de minha mãe. Eu era o poeta dos
atos, um poeta em essência. Via tudo através de
uma câmera de lente exclusiva. Procurava o
caminho mais estranho para chegar ao lugar
comum, meu caminho único. Só vim a escrever no
papel muito mais tarde. Um bilhete para a moça
que sempre encontrava ao atravessar a ponte, essa
foi a primeira poesia que escrevi. Olhei aquela
mocinha de cabo a rabo. Descobri detalhes que
nunca tinha percebido nas mulheres. Sonhava em
claro, nas madrugadas, metaforizando no escuro do
meu quarto, desenhando com estrelas o corpo dela.
Comprei papel na venda, sentei e escrevi. Mas nas
bonitas linhas que saíram, eu não estava ali. Não
passei a limpo o rascunho das estrelas, nem os
detalhes que nela percebi: belos dedos mindinhos
tortos, delicada forma ligeira de morder os lábios
quando passava por mim. Sobre essas coisas não
escrevi. Medo de me expor. Medo de sua reação.
Preferi escrever versos seguros, subornei os
clássicos e, em paráfrases, poetizei o que tinha
certeza de que ela ia gostar. Assim não houve risco.
Ela rendeu-se ao primeiro verso. Fui perverso
comigo, sei, ¿mas qual apaixonado quer correr o
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risco? Naquele poema calculado, descobri em mim
um verso sombrio que a todos satisfazia. E logo
estava cheio de encomenda de poesia. Para a igreja:
batizado, catecismo, crisma, casamento, missa de
corpo presente. O prefeito me incumbia de textos
para as festas: inauguração, feriado. Para os
amigos, cartas de amor, principalmente. Todos, um
dia, precisaram de uma carta de amor.
Quando a primeira bomba apontou no
horizonte, vermelhando o céu antes do arrebol, vi
que ao contrário de muitos outros, as minhas
palavras seriam meu salvo-conduto para o negro
dia que nascia. Me alistei. Escalei a hierarquia
militar tão rapidamente que, quando vi, estava lá
em cima. General do Exército Republicano. A
escolha esmerada da palavra me fez bem-vindo em
todas as rodas, em todos os salões do Governo que
se formava. Hoje, sob as ordens do ditador,
controlo todo o sul do país, e aqui na capital
qualquer decisão deve passar por minha pessoa e
só, em último caso, levo a ele.
No começo turbulento da ditadura, protegi
meus pais e todos os amigos que pude. Também
usei meu poder para proteger jovens poetas
incitados. Eles chegavam aos quartéis aos tantos.
Nas torturas, bradavam versos enraivecidos: "¡Ah!
¡Liberdade! ¡O que ordenares farei!", "Até
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condenado à morte serei, ¡meu amor!" Se eles
soubessem o preço alto de rogar por mais forças a
essa dama. ¿Quem é o maior amante da liberdade
senão o nosso ditador? Eu quase sempre conseguia
uma maneira de livrá-los da pena capital, enviando-
os a prisões distantes e até mesmo embarcando-os
clandestinamente para o exterior. Outros, apesar de
tudo, tinham o infame destino do fuzilamento. Com
o congresso fechado e o supremo tribunal
exonerado, as leis são feitas e executadas de
maneira rápida. Portanto, todas as condenações
sempre são legais como em qualquer democracia
no mundo.
Foi num desses julgamentos que recebi a
ingrata missão de apontar um fuzil para um poeta.
E não era um poeta qualquer, era O Poeta. Por mais
de uma década ele se escondeu nas montanhas do
norte, depois que voltou do exílio. Seus textos
incitadores eram esperados com ansiedade. Suas
palavras se espalhavam por todo o país em papéis
mimeografados e por emails, repetidas vezes
encaminhados. Atacavam em cheio a ordem
estabelecida e estarreciam a confiança da
população. Sua prisão acalmou as preocupações do
ditador e sua condenação me leva agora ao centro
das atenções.
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Com as medalhas alinhadas no uniforme
engomando, eu estou aqui. Tenho em pé ao meu
lado o fuzil limpo e verificado, escuto solenemente
os acordes do Hino Nacional. Esse som de
trombetas dos trompetes sempre me deu a ideia
exata de como os poetas mortos são saudados às
portas do paraíso. ¿Será que no paraíso dos poetas
eles ainda precisam poetizar? ¿Ou terão finalmente
o descanso? ¿Os pensamentos libertinos finalmente
aceitarão a trégua? As trombetas nacionais se
encerram e no microfone o nome do grande poeta é
anunciado. Sem algemas, com dois oficiais
armados de cada lado, surge na praça o Poeta. Os
longos cabelos castanhos encaracolados escorrem
sobre a túnica de linho cru que mês passado no
campo ainda era flor. Rugas na face imberbe. Não
há sofrimento, tampouco frustração. Passos retos,
nenhuma vontade de fugir. Passa por mim como se
eu não existisse. Na verdade, para ele sou apenas
um infante, um de tantos que perderam na infância
o dom da poesia. Confiante, ele segue ao seu posto.
Encara o ditador por segundos e continua a
caminhar. Em pé, aquém da parede, espera pela
bala final. Antes, três quartos de hora de
um inflamado discurso do nosso ditador sobre a
Democracia. Na plateia, palmas correligionárias da
multidão que sustenta ensandecidamente cartazes
com fotos do ditador. O público passou toda a tarde
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trocando cartões postais de fuzilamentos passados.
Agora se acotovelam pela melhor posição para ver
o próximo ato que será feito com maestria. E o
maestro dessa orquestração sou eu.
Com meu nome e meus títulos anunciados
pelo mestre de cerimônias, pagaria todos os meus
ordenados para estar bem longe, engraxando
sapatos de sargentos, aquartelado em alguma
cidadezinha do interior. No entanto estou aqui; e
nunca fui ovacionado por tanta gente. Meu nome é
chamado por milhares dessa torcida de sangue. Sou
o centro das atenções como sempre sonhei, como
sempre esperei por todos esses anos. Levanto-me e
caminho até a posição de fuzilador. Doze metros
me separam do Poeta. Do púlpito, o ditador me
saúda. Eu deveria estar honrado com tão poderosa
saudação. ¿O que gostaria mais? Sinceramente, por
mim, preferiria estar do outro lado do cano.
Gostaria de ser o Poeta a ser fuzilado, maiúsculo,
como Ele é. Trocaria todas as medalhas que estoco
em estojos finos por uma bala certeira no peito.
Uma única. Para derrubar tão grande covardia
acumulada em um único homem. ¡Ah, meu
querido ditador! Essa bala poderia ser para você.
Todos conhecem a minha notável rapidez em
empunhar uma arma. E a acurada mira que difere
alfinetes de agulhas. Me dê dois segundos e vossa
excelência já era. Um eterno ditador que por todo
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esse tempo caftinou a senhora liberdade. Um
ditador que, firmado em ombros de grandes
libertários, aprisionou uma nação por três décadas.
Dê-me uma bala e nada mais. Conduzirei ele,
então, à terra dos perversos onde os versos do mais
transgressor dos poetas não ousou penetrar. Uma
bala entre os olhos, no centro da testa. Uma das
milhares de balas fabricadas por meu pai na
biblioteca desativada da minha cidade natal. O
ditador caído será o fim de uma era. Depois dessa
queda, o que se sucede a mim será mero detalhe.
Detalhe que não me importa mais. Todavia, entre
pensar e fazer há um enorme fosso. Da mesma
grandeza do fosso que divide o que eu sou do que
eu nasci para ser. E eu deveria estar junto àquela
parede, olhando com esse sorriso de poeta para o
público que me fuzila.
Poetas não devem pensar em hierarquia, em
saudações respeitosas a autoridades. Poetas não
devem estar presos a soldos. Poetas não pensam em
planos de aposentadoria. Pois, como eu já disse,
poetas são suicidas em potencial. Agora, aqui, com
arma em posição de tiro, relembro das poesias que
não fiz, dos filmes que protagonizei mas nunca
entraram em cartaz. Eu devia ter seguido as
badaladas das reboladas das morenas, ter fugido,
curtido o exílio, ter tentado o Nobel. Hoje seria
conhecido pelas trilogias poéticas que, em milhões
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de tiragens, divulguei. Deixaria todos esses
bárbaros e suas tiranias e viveria esquecendo minha
terra, arremessando os jornais no lixo. Covarde
como sempre, como sempre fui.
E em covardia, aponto o fuzil para o Poeta.
Da mira redonda, vejo seu sorriso em relevo. Meu
dedo coça no gatilho. E agora não há arrimo. Foi
dada a ordem. Devo atirar. Mas não atiro. O dedo
indicador rígido evita o gatilho. Repetem a ordem.
Eu não atiro. Permaneço imóvel. Eu que sempre
tive o dom da escolha das palavras, duas delas
agora me travam a mente e o corpo: meia volta.
Retornar. Volver. O ditador e o publico
esperam.
Todos sempre esperam o melhor de mim,
mas nunca esperam uma surpresa. Sempre faço a
coisa certa, da melhor maneira, devo salientar. Mas
nunca surpreendo ninguém. Quando subornei os
clássicos, firmei um pacto de segui-los, de copiá-
los para sempre. E dos clássicos, não há mais
surpresas. Como não há surpresas nos raros filmes
que são reprisados sem fim nos canais de TV
estatais. Nunca serei clássico, no máximo
estamparei o mais valioso dos cartões postais: o do
fuzilamento do Poeta. Com meu fuzil limpo e
medalhas alinhadas no peito. Meia volta, volver.
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Baixo a arma, e a coloco na direção vertical
apontada para o meu queixo. Murmúrios e
rebuliços ao meu redor. Não espero uma nova
ordem, atiro. Não lembro de que clássico copiei. Só
sei que nessa hora nenhum freio me veio. Apenas
atirei. Assim devem ser os poetas, atirar primeiro e
depois ver os estragos não calculados de sua ação.
Deixo minha pensão para os meus pais.
Que minha mulher me compreenda e que perdoe
por nunca ter feito a carta de amor que ela merecia.
Sigo agora para as portas do paraíso dos poetas.
Quem sabe esse meu último arrependimento me
redima. Antes do amanhecer estarei lá, pedirei
clemência ao porteiro. Que eu seja aceito junto aos
poetas que sempre admirei: os poetas de sangue e
os poetas de mente. E não importa se serei saudado
com as mesmas honras dos profetas ou escarnecido
como os ladrões de bicicletas.
FIM
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Sobre a Coleção
A Coleção Contos de Bolso é fruto de uma
parceria entre O Bule e a 6 Sigma Publicações
Digitais e traz e-livros que serão lançados
mensalmente e distribuídos de forma gratuita
através da internet. Ao total serão dez volumes
colecionáveis de cinco autores diferentes — dois
contos de cada, portanto — com, no máximo, 30
páginas para você ler em seu e-reader ou
computador, enviar para os amigos, parentes, ou
mesmo disponibilizar em seus blog’s para
download gratuito!
Twitter: http://twitter.com/obule_blogue
Blog: http://www.o-bule.com
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Sobre o Autor
Betomenezes é doutor em
Física, professor
universitário e autor dos
romances Pirilampos Cegos
(2007) e O Gosto Amargo de
Qualquer Coisa (2008),
ambos vencedores do prêmio
Novos Escritos, da prefeitura de João Pessoa.
Militante de movimentos artísticos e literários,
ajudou a fundar o CAIXA BAIXA, núcleo literário
de escritores paraibanos, onde exerce o cargo de
presidente.
Twitter: www.twitter.com/betomenezes
Blog: www.betomenezes.biz
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