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Aula de Bioetica

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  • BIOTICA

    Introduo Histrica

    O ser humano tem sido encarado de diferentes formas ao longo dos sculos. Com efeito, o que agora consideramos brbaro, como o trabalho escravo ou em extremo como os reis que se divertiam a fazer tiro ao alvo sobre os marinheiros da varanda do seu palcio, tudo isto era de uso corrente, algo perfeitamente normal. A vida era provida de um sentido plural, pessoas mais e menos dispensveis. Escandaliza-nos pensar assim e, desta forma, no sculo XX, com a redefinio do estatuto do Homem, passamos a preocupar-nos cada vez mais com esses respeitos. Assim, surgiu a Biotica como forma de mediar e frear os frenticos impulsos cientficos, aqueles a que s o avano da cincia importa.De fato, em pleno sculo XX, a humanidade presenciou casos verdadeiramente chocantes, ligados principalmente a eventos belicistas. Na Segunda Grande Guerra, os eventos foram muito mais grotescos, os mdicos recrutados para os campos de concentrao dispunham de total liberdade para manipular o corpo dos reclusos a seu bel-prazer: amputaes, enxertos, novas tcnicas operatrias. Valer a pena manchar a cincia com o sangue dos inocentes? Quanto a ns, a velha mxima de que os fins justificam os meios soa cada vez mais a hipocrisia.Indubitavelmente, a Biotica constitui um instrumento cada vez mais vlido na delimitao das fronteiras do saber, fronteiras essas que caber ao Homem o bom senso de no ultrapassar.

    Conceitos de Biotica

    o estudo interdisciplinar entre biologia, medicina e filosofia, que investiga todas as condies necessrias para uma administrao responsvel da vida humana e da pessoa. o estudo sistemtico das dimenses morais incluindo viso, deciso, conduta e normas morais das cincias da vida e da sade, utilizando uma variedade de metodologias ticas num contexto interdisciplinar. (JUNGES: 1999, p. 20/21).

    O Nascimento da bioticaO Novo ConceitoSeus pesquisadores reconhecem simbolicamente a obra Biotica: uma Ponte para o

    Futuro, de Van Rensselaer Potter, como um marco histrico importante para a disciplina. (10)Vale conferir algumas das idias, publicadas nessa obra, um livro baseado em artigos

    de sua autoria divulgados entre os anos de 1950 e 1960: ... o que ns temos de enfrentar o fato de que a tica humana no pode estar separada de uma compreenso realista da ecologia em um sentido amplo. Valores ticos no podem estar separados de fatos biolgicos... como indivduos no podem deixar nosso destino nas mos de cientistas, engenheiros, tecnlogos e polticos que esqueceram ou nunca souberam estas verdades elementares. A maioria deles especialista que no lida com as ramificaes de seu conhecimento limitado.... Ou seja, a ponte para o a que se referia Potter, a biotica, deveria ser uma disciplina capaz de acompanhar o desenvolvimento cientfico(para ele, basicamente, a biologia e seus derivados), com uma vigilncia tica que ele supunha poder estar isenta de interesses morais. Propunha democratizao contnua do conhecimento cientfico.(12)

  • Para Potter, o conhecimento biolgico estaria associado a valores humanos. Essa proposta de Potter de associar biologia (entendida, em sentido amplo, como o bem-estar dos seres humanos, dos animais no-humanos e do meio ambiente) e tica o que, hoje, se mantm como o esprito da biotica.(12) Por um lado, um grande desenvolvimento tecnolgico fez surgir dilemas morais inesperados relacionados prtica biomdica. Por outro, os anos 1960 foram tambm a era da conquista dos direitos civis.

    Ainda nesse perodo inicial de surgimento, dois outros acontecimentos contriburam para que a biotica fosse definida como um novo campo disciplinar: as denncias cada vez mais freqentes, relacionadas s pesquisas cientficas com seres humanos, tema impulsionado pelas histrias das atrocidades cometidas por pesquisadores nos campos de concentrao da segunda Guerra Mundial; e a abertura gradual da medicina, que, de uma profisso fechada e autoritria, passou a dialogar com os que David Rotham denominou de estrangeiros em seu livro Estrangeiros Beira do Leito: uma Histria de como a Biotica e o Direito Transformaram a Medicina: primeiro os filsofos, os telogos e os advogados e, depois, os socilogos e os psiclogos, que passaram a opinar sobre a profisso mdica, porm sob outras perspectivas profissionais. (13)

    Os avanos cientficos e tecnolgicos comearam a ameaar a tranqilidade do processo tico de tomada de deciso na prtica mdica. De amigos e confidentes morais, mdico e paciente tornaram-se distantes morais. Esse processo de estranhamento moral foi de fundamental importncia para o surgimento e consolidao da biotica.(14)

    A Microhistria da BioticaTrs acontecimentos exerceram um papel particularmente importante na consolidao

    da disciplina. O primeiro deles foi a publicao do artigo da jornalista Shana Alexander, intitulado Eles decidem quem vive, quem morre, publicado na revista Life, em 1962, em que contavam a histria e os desdobramentos da criao de um comit de tica hospitalar em Washington, nos EUA. O Comit de Seattle, como ficou conhecido, tinha o objetivo de definir prioridades para a alocao de recursos em sade. (14)

    Alguns anos depois, em 1966, ocorre o segundo evento dessa microhistria da biotica contado por Jonsen. Na mesma poca da publicao do livro de Potter, exatos 5 anos antes, Henry Beecher, divulgou o artigo que mais assombro provocou a comunidade cientfica mundial desde o anncio das atrocidades cometidas pelos mdicos engajados no nazismo. Da compilao original de 50 artigos, Beecher publicou, em Ethics and clinical research, 22 relatos

    Beecher constatou que, de 100 pesquisas envolvendo seres humanos publicadas no decorrer do ano de 1964 em um excelente peridico cientfico, um quarto revela maus-tratos ou violaes ticas, seja em relao aos pacientes, seja em relao condenao dos protocolos. Mesmo em um perodo ps-guerra manteve-se a tica utilitarista como justificativa para a experimentao cientfica com seres humanos. No havia discursos sociais contrrios a esse tipo de pesquisa cientfica. (16)

    Beecher props que toda e qualquer experimentao com seres humanos deveria respeitar, primeiramente, a necessidade de obteno do termo de consentimento informado e, em seguida, o compromisso do pesquisador de agir de forma responsvel.(16)Os tratados humanitrios e de defesa dos direitos humanos assinados por inmeros pases, inclusive pelos estados Unidos, no haviam ecoado na prtica cientfica at os anos de 1970. Era urgente, portanto, alguma forma de difuso dos princpios morais da cultura dos direitos humanos que no fosse somente pela referncia a tratados e convenes de carter to abstratos e distantes como eram Helsinque ou Nurembergue. ( 17)

    O Caso Tuskegee, como ficou conhecido, seguramente um dos exemplos mais pertubadores utilizados pelos pesquisadores de biotica como referncia aos abusos realizados em nome da cincia e do progresso. A pesquisa era conduzida pelo servio de Sade Pblica dos Estados Unidos(V. S. Public Health Service - PHS), ou seja, um rgo

  • sanitrio oficial do pas, e consistia em acompanhar o ciclo natural de evoluo da sfilis em sujeitos infectados. Vale lembrar que a penicilina, medicamento par o tratamento da sfilis, j havia sido descoberta, com uso corrente no tratamento convencional. A denuncia desse caso forou a opinio pblica a perceber que nem tudo estava moralmente correto no campo da cincia, tecnologia e medicina.(18)

    O terceiro evento que Jonsen seleciona como significativo para essa microhistria da biotica a resposta do pblico a um outro e dramtico avano mdico. Em 1967, Christian Barnard, um cirurgio cardaco da frica do Sul, transplantou o corao de uma pessoa quase morta em um paciente de doena cardaca terminal. Esse acontecimento provocou grande balbria na mdia internacional. O n da questo girava em torno da origem do rgo, pois a comunidade mdica perguntava como o Barnard poderia garantir que doador estaria realmente morto no momento do transplante. (18)

    Essa anlise genealgica de Jonsen sobre a trajetria e o desenvolvimento da biotica alcana os anos 1980 e 1990, um perodo mais marcadamente definido pela institucionalizao da disciplina. Segundo o autor, essa fcil e rpida difuso do tema pelo mundo uma resposta angstia da sociedade diante das implicaes polticas e sociais decorrentes do desenvolvimento da cincia, da tecnologia e da medicina. Por ser a biotica um campo disciplinar compromissado com o conflito na rea de sade e doena dos seres humanos e dos animais no-humanos, seus temas dizem respeito a situaes de vida que nunca deixaram de estar em pauta na histria da humanidade. A estrutura de pensamento que suporta a biotica, um discurso que visa garantir os interesses de grupos e indivduos socialmente vulnerveis, aqueles imersos em quadros de hierarquia social que os impedem de agir livremente, algo absolutamente novo no campo da teoria moral aplicada.(19)

    Talvez, no que se refere pesquisa biomdica, um elemento decisivo para essa mudana de mentalidade tenha sido a formao de um discurso crtico com relao pesquisa cientfica, no aceitando mais a premissa de que o desenvolvimento da cincia estaria acima de qualquer suspeita para o bem-estar e a sade da humanidade. (19)

    No momento em que ... a medicina estava cada vez melhor, mas que os pacientes estavam cada vez piores..., a ruptura com o padro da tica beira do leito permitiu o surgimento da biotica como uma instncia mediadora e democrtica para os conflitos morais.(20)

    A Consolidao Acadmica da BioticaRelatrio de Belmont

    Todo esse processo de transformao social e, especialmente, de mudanas nos padres morais de relacionamento entre o profissional de sade e o paciente ocorreu entre as dcadas de 1960 e 1970, um perodo fundamental para a consolidao acadmica da biotica. Em 1974, formou-se, ento, a Comisso Nacional para a Proteo de Sujeitos Humanos na Pesquisa Biomdica e Comportamental, responsvel pela tica das pesquisas relacionadas s cincias do comportamento e biomedicina. Aps quatro anos, o resultado do trabalho da comisso ficou conhecido como Relatrio Belmont, um documento que ainda hoje um marco histrico e normativo para a biotica.(21)

    Os participantes do Relatrio Belmont justificaram a eleio de trs princpios ticos, dentre um universo e possibilidades, argumentando que a escolha baseava-se em uma estrutura profunda do pensamento moral. Foram, portanto, os seguintes princpios escolhidos:

    1- Respeito pelas pessoas: os indivduos devem ser tratados como agentes autnomos e as pessoas com autonomia diminuda (os socialmente vulnerveis) devem ser protegidas de qualquer forma de abuso. A concesso do consentimento somente tem validez aps a informao e a compreenso sobre a totalidade da pesquisa.

    2- Beneficncia: Compromisso do pesquisador para assegurar o bem-estar das pessoas envolvidas direta ou indiretamente no experimento cientfico.

  • 3- Justia: eqidade social, princpio do reconhecimento das necessidades para a defesa de interesses iguais. (22)

    No contexto de incertezas ticas que dominava a pesquisa cientfica do perodo, a divulgao do Relatrio Belmont representou um verdadeiro divisor de guas para os estudos da tica aplicada(23).

    As Primeiras PublicaesOs anos de 1970 marcaram o incio da era acadmica da biotica. Duas publicaes

    vm sendo particularmente importantes.(23)O livro Problemas Morais na Medicina, organizado pelo filsofo Samuel Gorovitz e

    publicado pela primeira vez em 1976, foi o precursor de uma srie de estudos que correlacionavam os estudos ticos s situaes mdicas conflituosas, tais como o aborto e a eutansia. (23)Era preciso, portanto, que os pressupostos de responsabilidade e arrogncia da tcnica fossem postos em dvida, pois, como regra geral, eram eles que justificavam a autoridade mdica em situaes de conflito.(24)

    Mas, alm da postura crtica de vanguarda, a opo temtica do livro j apontava para os assuntos que viriam, alguns anos depois, a ser considerados como campo analtico preferencial da biotica: a relao mdico-paciente, consentimento livre e esclarecido, paternalismo, eutansia, suicdio assistido, aborto alm de questes relacionadas justia social foram exaustivamente discutidos. Infelizmente, as situaes que impulsionaram o seu surgimento, como a vulnerabilidade dos indivduos decorrentes das estruturas sociais de dominao, fossem elas de raa, de gnero ou classe foram grosseiramente abandonadas.(25).